Ditadura

Hélio Schwartsman: Ditadura não, pô!

Poder estatal precisa ater-se ao princípio da impessoalidade da administração

Depois da Venezuela e de Cuba, o futuro chanceler do Brasil, Ernesto Araújo, desconvidou a Nicarágua para a posse de Jair Bolsonaro. Fê-lo em nome da liberdade. “A posse do PR [presidente] Bolsonaro marcará o início de um governo com postura firme e clara na defesa da liberdade”, declarou Araújo.

No que configura um grande avanço em relação a manifestações pregressas, Bolsonaro parece concordar com seu chanceler. Por ocasião do desconvite a Nicolás Maduro, ele disse: “Ditadura, pô, não podemos admitir. O povo lá não tem liberdade”.

Eu não poderia concordar mais. Por também prezar a liberdade, jamais convidaria os ditadores desses países para minha festa de aniversário. Existem, contudo, diferenças entre uma pessoa e um Estado.

Enquanto eu, você e qualquer cidadão que não esteja desempenhando funções públicas podemos manifestar preferências, exercitar caprichos e praticar todo tipo de discriminação não vedada por lei, inclusive o amor, o poder estatal precisa ater-se ao princípio da impessoalidade da administração.

Isso significa que, se o Brasil quisesse excluir da posse ditadores, precisaria fazê-lo de forma sistemática, aplicando o mesmo princípio a todas as nações e não apenas àquelas com que a pessoa física de Jair Bolsonaro tem uma rusga pessoal.

Numa análise perfunctória, teriam de ser desconvidados não só Venezuela, Cuba e Nicarágua, mas também China, Rússia, Turquia, Arábia Saudita, Egito, Paquistão, Costa do Marfim, Nigéria e Togo, para citar apenas algumas das autocracias mais escancaradas.

Isso não implica que valores não devam fazer parte das relações do Brasil com outras nações. Mas, de novo, é preciso que os princípios sejam aplicados de forma impessoal, não ao sabor das idiossincrasias de quem esteja no governo.

Quanto antes Bolsonaro entender que será o presidente do Brasil e não mais o ídolo de um grupo de WhatsApp, melhor.


Clóvis Rossi: Silenciar sobre ditaduras é crime de guerra

Um SOS pela Nicarágua

A Folha publicou nesta sexta-feira (21) anúncio de página inteira que é um verdadeiro manifesto político-institucional. Diz: “A Folha acredita que não existe democracia sem liberdade de imprensa”.

Eu também acredito, mas vou um passo adiante: acho que não podem existir fronteiras para a democracia e para a liberdade de imprensa.

Por isso, faço desta coluna, a última do ano, um apelo: não podemos deixar sem apoio o jornalismo da Nicarágua, o que significa, em consequência, apoiar também a luta pelos direitos humanos, violentamente atacados pela ditadura do casal Daniel Ortega e Rosário Murillo.

Quanto aos direitos humanos, é indispensável ressaltar a atuação do brasileiro Paulo Abrão, secretário-executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ele não tem se omitido, desde que o governo Ortega intensificou, em abril, a escalada repressiva.

A rigor, a CIDH é o único balão de oxigênio que permite respirar aos nicaraguenses.

Agora, a escalada repressiva alcançou outro raro balão de oxigênio, o sítio e revista Confidencial. É, ao lado do tradicional jornal La Prensa, veículo essencial para o exercício de liberdade de imprensa, assim como um ou outro programa jornalístico de televisão.

É bom ter em conta que a perseguição à mídia executada impiedosamente pelo governo de Nicolás Maduro, na Venezuela, ajudou a tornar o regime não só uma execrável ditadura mas também um fracasso de dimensões colossais.

É fundamental, pois, tentar ajudar Confidencial e demais veículos para preservar um espaço de acompanhamento crítico do regime enquanto há ainda tempo para evitar um fechamento incontornável e um fracasso socioeconômico semelhante ao de Caracas.

Confesso francamente que não sei bem o que fazer, nesse sentido. Por isso, copio o apelo enviado por Carlos Chamorro, o diretor de Confidencial, contendo algumas maneiras simples e indolores de ajudá-lo:

“Assinar o canal de Youtube de Confidencial: https://goo.gl/4xcR7W”;

“Seguir Confidencial no Twitter: https://goo.gl/uMjwke

“Dar ‘like’ na fanpage de Facebook de Confidencial: https://goo.gl/VdnRnW

“Dar ‘like’ na fanpage de Esta Semana:: https://goo.gl/tnAnSs” e na de Niú (https://goo.gl/SVjA3L)”. São dois outros informativos perseguidos.

Não é nada dramático, mas é mais do que os jornalistas brasileiros fizemos para tentar ajudar, por exemplo, El Nacional da Venezuela, obrigado a encerrar a edição em papel.

É uma contribuição para que Chamorro possa cumprir a promessa que acompanha o apelo acima reproduzido:

“Não vão conseguir que nos autocensuremos e deixemos de informar, porque temos o compromisso sagrado com um povo que tem sido massacrado e encarcerado, de contar como se substitui uma ditadura sanguinária de forma pacífica e como os nicaraguenses vamos conseguir reconstruir este país em paz, com democracia e eleições livres e com justiça que castigue os crimes da ditadura”.

Que os democratas digam amém. O silêncio é crime de guerra.
*
PS - Férias a partir de amanhã e até meados de janeiro, se houver janeiro em 2019. Feliz Natal e um Ano Novo realmente novo.


Folha de S. Paulo: Decretado há 50 anos, AI-5 mudou para sempre as linguagens artísticas do país

Lançamentos reveem anos de repressão durante a ditadura e ascensão do conservadorismo hoje

Por Maria Luísa Barsanelli, da Folha de S. Paulo

Ainda que rodeada de incertezas, a classe artística permanecia em grande parte tranquila nos primórdios do regime militar brasileiro.

Castello Branco, primeiro general-presidente, era tido como intelectual e amante das artes, em especial das cênicas, da qual era assíduo frequentador. Pôs à frente do Serviço Nacional do Teatro uma crítica e estudiosa de renome, Bárbara Heliodora, e o conselho da Companhia Nacional de Teatro agregou de Carlos Drummond de Andrade a Décio de Almeida Prado.

“Quem iria desconfiar que um governo chefiado por um presidente tão bem-intencionado em relação ao teatro iria se transformar num inimigo dessa atividade?”, questionava o crítico Yan Michalski em “O Teatro sob Pressão” (1985).

O que se seguiu ao mandato de Castello Branco, findo em março de 1967, foi uma escalada de repressão que levou ao mais opressivo ato institucional do regime, o AI-5, decretado há exatos 50 anos.

O ato, que institucionalizou a ditadura e deu ao então presidente, Arthur da Costa e Silva, poderes de fechar o Congresso Nacional, moldou as criações artísticas. A censura, até então pontual, passa a ser uma máquina de Estado, minando trabalhos e perseguindo artistas, alguns dos quais recorreram ao exílio.

No período antes do decreto, as artes brasileiras viviam uma ebulição e modernização de linguagem, mas o que uns viam como experimentação interessante foi visto por outros como “ameaças a Deus, à família e à propriedade —à liberdade, enfim”, escreve o jornalista A. P. Quartim de Moraes no recém-lançado “Anos de Chumbo: o Teatro Brasileiro na Cena de 1968”.

Entre as reações da classe estava o espetáculo “1ª Feira Paulista de Opinião”, produzido pelo Teatro de Arena.

Reunia dramaturgos como Lauro César Muniz, Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos e Augusto Boal, além dos compositores Edu Lobo, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Todos respondiam à questão: O que pensa o Brasil de hoje? “Basta criticar as plateias de sábado —deve-se agora buscar o povo”, dizia Boal sobre a obra. Ela teve 84 cortes da censura, mas os artistas decidiram encená-la na íntegra, em desobediência civil.

“De certo modo, o próprio movimento de resistência deu pretextos para que o movimento de repressão aumentasse”, diz Quartim de Moraes.

Capa do programa da 1ª Feira Paulista de Opinião, realizada pelo Teatro de Arena em junho de 1968, em São Paulo

Capa do programa da 1ª Feira Paulista de Opinião, realizada pelo Teatro de Arena em junho de 1968, em São Paulo - Reprodução

O decreto do AI-5, que vigorou por dez anos, só fez aumentar a censura. Visto como maldito, o dramaturgo Plínio Marcos tinha sempre os trabalhos vetados. Conta-se que, certa vez, irritado com um censor, perguntou-lhe o porquê da reprimenda.

“Porque suas peças são pornográficas e subversivas”, respondeu. “Mas por que são pornográficas e subversivas?”, contestou o autor. “São pornográficas porque têm palavrão. E são subversivas porque você sabe que não pode escrever com palavrão e escreve.”

Chico Buarque passou por algo semelhante, e nos anos 1970 assinou músicas por meio de um heterônimo. Com o nome Julinho da Adelaide conseguiu liberação para lançar “Acorda Amor”, “Jorge Maravilha” e “Milagre Brasileiro”.

A 10ª Bienal de São Paulo, em 1969, acabou boicotada por artistas devido à censura às obras de arte e à agressividade instalada pelo governo.

O espetáculo "Roda Viva", montado pelo Teatro Oficina, também é lembrado pela repressão, em 1968. Em São Paulo, o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu o Teatro Galpão, de Ruth Escobar. Cenários e camarins foram destruídos, e parte do elenco, como a atriz Marília Pêra, foi espancada pelo grupo paramilitar. Já em Porto Alegre soldados foram ao hotel onde os artistas estavam hospedados, agrediram o elenco e o embarcaram num ônibus de volta a São Paulo.

São fatos históricos hoje vistos com distanciamento, mas que retornam ao debate num momento em que muitos questionam se vivemos um retorno à censura.

O assunto vem sendo debatido em encontros e seminários, entre eles um simpósio organizado no mês passado pela USP que costurava paralelos entre o clima de 50 anos atrás e o de hoje, com uma ascensão do conservadorismo e de movimentos extremistas.

“Melhor seria se este livro não precisasse existir”, escreve a crítica de arte Luisa Duarte na abertura de “Arte Censura Liberdade”, antologia organizada por ela e lançada agora.

O livro, diz a autora, é uma reação a ataques sofridos por artistas, em especial no ano passado, que teve casos como a interdição da mostra “Queermuseu”, em Porto Alegre, e agressões ao coreógrafo WagnerSchwartz, que foi chamado de pedófilo após uma performance em que seu corpo nu podia ser manipulado pelo público —ele foi tocado, na perna e na mão, por uma uma criança.

Os conflitos, opina Duarte, teriam a ver com o momento político e ainda com as conquistas de minorias.

Nos 19 textos do volume, discute-se a chamada guerra cultural —disputa política que ganha corpo no campo das artes— e se o meio artístico não estaria se isolando e deixando de dialogar com a população.

Por fim, “Arte Censura e Liberdade” tenta “apontar uma possibilidade de sair de uma enrascada”, segundo a autora. “Tomara que o país não necessite de um livro desses daqui a dois anos.”

Anos de Chumbo: o Teatro Brasileiro na Cena de 1968

A. P. Quartim de Moraes. Edições Sesc. R$ 54 (191 págs.) e R$ 27 (ebook)


Arte Censura Liberdade – Reflexões à Luz do Presente

Luisa Duarte (org.). Editora Cobogó. R$ 46 (264 págs.)

CENSURA EM NÚMEROS

84
cortes foram feitos pela censura no espetáculo ‘1ª Feira Paulista de Opinião’, do Teatro de Arena

33 dos 36
livros da escritora de romances eróticos Cassandra Rios foram vetados

48
canções de Taiguara, registradas entre 1970 e 1974, foram proibidas


El País: “O Brasil não cumpriu o dever de pôr a ditadura em pauta. Há um pacto para não constranger os militares”

Eugênia Gonzaga, da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, diz que hierarquia do presidente em relação às Forças Armadas poderia facilitar a demanda das famílias dos desaparecidos

Por Marina Rossi, do El País

No aniversário de 50 anos do Ato Institucional número 5 (AI-5, de 13 de dezembro de 1968), considerado o ato mais duro dos 17 instituídos durante a ditadura militar brasileira, a procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, faz questão de pontuar os poucos mas importantes - avanços na pauta dos desaparecidos políticos. Dentre elas, a identificação das ossadas de dois militantes dados como desaparecidos, que ela considera "a melhor notícia do ano".

A procuradora é uma das que assina um manifesto que intelectuais, lideranças de movimentos sociais e profissionais de diversas áreas lançam para marcar os 50 anos do AI-5 nesta quinta, em São Paulo. "A garantia das liberdades, dos direitos humanos individuais e sociais, do livre exercício da cidadania nos une, para além de eventuais diferenças e nuances ideológicas ou político-partidárias. Enfatizamos nosso compromisso com a pluralidade e a diversidade cultural, de crenças e de comportamento da sociedade brasileira. Conclamamos os democratas a se unirem para manter as liberdades duramente conquistadas ao longo das últimas três décadas", diz o texto.

Leia os principais trechos da entrevista, concedida por telefone:

Pergunta. Nesta semana, completam-se quatro anos que a Comissão Nacional da Verdade entregou as 29 recomendações para prevenir as violações dos direitos humanos no Brasil. Em que situação estão essas recomendações?

Resposta. Uma das recomendações foi a responsabilização dos agentes da ditadura. Isso recai sobre o Ministério Público Federal que montou grupos de trabalho e instaurou inquéritos. Os resultados foram pequenos, primeiro porque os réus e testemunhas em sua maioria estão mortos e, em segundo lugar, porque o Judiciário não está cumprindo essa recomendação. O Judiciário ainda é a favor de que a Lei da Anistia [promulgada pelo presidente João Batista Figueiredo, em 197, que concede anistia a todos os que cometeram crimes políticos entre 1961 e 1979] seja aplicada em qualquer caso. Também por isso, o tema da responsabilização dos agentes da ditadura está no Supremo, parado, desde 2011 e não se tem previsão de entrar na pauta.

P. O Judiciário entende que muitos dos crimes ocorridos na ditadura já prescreveram. Como reverter isso?

R. São duas coisas diferentes. No caso dos desaparecimentos forçados, é considerado um crime que não se esgota enquanto os corpos não forem encontrados, então não há prescrição. Mas no caso da responsabilização dos agentes da ditadura, o principal motivo de estar segurando [esse julgamento] é essa interpretação da Lei da Anistia. Na verdade, existe um pacto para não se constranger os militares.

P. E quais são as chances do Governo Bolsonaro, cuja cúpula é toda formada por militares, avançar nessas recomendações?

R. O Brasil demonstra que não cumpriu seus deveres. Deveria ter feito muito mais espaços de memória, colocado esse tema em pauta sempre. A questão das buscas dos corpos foram incipientes, sempre foram esforços individuais, dos próprios familiares. O Brasil nunca tomou nenhuma atitude que colocasse em xeque as Forças Armadas. Um dos argumentos [para a morosidade nos processos] é que os documentos foram destruídos, mas a resposta para isso é que é possível fazer a reconstituição dos documentos, e, na realidade, nunca houve uma ordem para tal.

P. Mas então quais são as chances de que agora esse tema avance?

R. Pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que existe desde 1995, fizemos recentemente em Brasília um encontro de familiares para analisar esse aspecto [do encontro saiu da Carta de Brasília, que reitera, dentre outras coisas, a necessidade de implementação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade]. A nossa reivindicação prossegue e é pela localização dos corpos. E esse novo Governo, se quiser e se tiver algum tipo de interesse em fazer alguma diferença nessa pauta, é o que mais tem condições em termos de hierarquia em relação às Forças Armadas. A questão da entrega dos corpos [dos desaparecidos às famílias], além de se dar um encerramento digno, ainda que simbólico, é um tema defendido em qualquer religião. Vamos levar essa pauta à ministra indicada [dos Direitos Humanos, Damares Alves], ao ministro da Justiça [Sergio Moro] e ao presidente da República. Essa pauta sempre teve muito pouco apoio dos diversos governos. Fernando Henrique Cardoso fez a lei que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em 1995, mas desde então, o orçamento é praticamente inexistente para essa comissão. Na era dos governos de esquerda [Lula e Dilma], por uma questão de estratégia, preferiram tocar outras pautas e deixar essa mais de lado. Houve algumas iniciativas, alguns avanços, mas a revelação [de identidades das vítimas] e o encontro de corpos foi incipiente. Tivemos duas identificações neste ano das ossadas de Perus e uma delas foi emblemática porque era um militante do Rio que veio parar na vala de Perus, o que mostra a integração dos esforços entre os Estados. [A comissão anunciou no último dia 3 a identificação do corpo do bancário e sindicalista Aluísio Palhano Pedreira Ferreira. Ele fora incluído em 2014 na lista de mais de 400 desaparecidos políticos elaborada pela Comissão Nacional da Verdade].

P. Quais outras ações estão avançando?

R. Entregamos 11 atestados para retificação das causas da morte e estamos encaminhando mais 20 pedidos. Essas pessoas não tinham sequer atestado de morte, então começamos pedindo pelos atestados. Tivemos na primeira certidão completamente retificada, que é do diplomata José Jobim [a causa da morte foi retificada em setembro deste ano, passando a constar em seu atestado de óbito como resultante da perseguição política durante a ditadura militar].

P. Apesar desses avanços, muitas das recomendações feitas pela Comissão da Verdade não só foram esquecidas, como algumas legislações que tem ecos considerados ligados à ditadura surgiram nesse meio tempo, como a criação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), a volta da Justiça Militar como foro para julgar soldados que cometam homicídios e os casos de arbitrariedade da Polícia Militar….

R. Sim, houve um retrocesso. Um deles é em relação à recomendação da desmilitarização das polícias. Não significa que não é para existir Polícia Militar, mas que não existam essas práticas militares. E o que vemos é um caminho contrário. Por exemplo, chamar uma investigação de uma operação, que é uma prática militarizada, representa condenação por antecipação. E passou a ser usada em grande escala, de forma até banal. Outra coisa é que, de acordo com a Constituição, os municípios podem ter suas guardas civis, que não precisam necessariamente ser armadas, seguir práticas de hierarquia como ocorre nas Forças Armadas. E o que vemos é o contrário. Temos centenas de polícias e todas são militarizadas. Na verdade, o caminho deveria ser o contrário. A própria intervenção federal [no Rio de Janeiro e agora em Roraima] e a GLO, são tipos de enfrentamentos com as Forças Armadas que lembram os períodos de guerra e são absolutamente contrários às práticas humanitárias.

P. Como criar mecanismos que de fato possam ser seguidos e respeitados?

R. A identificação das ossadas de Aluísio Palhano e de Casemiro [Dimas Antônio Casemiro teve suas ossadas identificadas em fevereiro. Elas também estavam na vala de Perus] foram as melhores notícias do ano. As retificações de atestados que estão em curso e a Carta de Brasília que os familiares reiteraram, mesmo no atual cenário, levanta a bandeira pela igualdade e democracia. Acho que foi um ato corajoso de ir até Brasília, muitas das pessoas já são idosas, e foram até lá para dizer: continuaremos aqui com a nossa bandeira “onde estão os desaparecidos?”. Independentemente da ideologia, não há justificativa alguma para o governo desaparecer com corpos. O país não vai demorar tanto para se dar conta que esses tipos de práticas não são em benefício de ninguém. No passado, as pessoas não tinham informações, não sabiam exatamente o que estava acontecendo. Hoje, com as redes sociais, espero que as pessoas tenham mais discernimento em relação aos perigos e que as próximas eleições não tendem a repetir esse resultado truculento que vimos agora.


Paulo José Cunha: A direita não é mais aquela!

Comeram a inteligência dela! Larárárá…

A ditadura militar teve um guru. Chamava-se Golbery do Couto e Silva. General e estudioso de geopolítica (tem um livro excelente, embora chatíssimo, sobre o tema), foi um dos principais teóricos da doutrina de segurança nacional, idealizada nos anos 50 na Escola Superior de Guerra e depois exportada para várias ditaduras latino-americanas da época.

Tinha como eixo o apoio ao capitalismo clássico e o combate a qualquer “ideologia exótica”. Por inspiração de Golbery, o primeiro ditador, General Castelo Branco, criou o temido Serviço Nacional de Informações, o SNI, o “Ministério do Silêncio”, a partir de cujas indicações eram cassados mandatos e suprimidos direitos. Mas seus agentes praticaram tantos crimes e arbitrariedades que o próprio Golbery reconheceria, anos depois: “Eu criei um monstro”. Apesar disso, era reconhecido pela sua inteligência e sagacidade. O cineasta Glauber Rocha causou furor ao declarar que Golbery era “o gênio da raça”.

Daquele tempo pra cá a direita brasileira emburreceu muito. Na ampla maioria de seus quadros impera ruidosa imbecilidade e truculência. Ganha uma mariola e um cigarro Yolanda quem se lembrar de um expoente da direta brasileira neste momento a quem se possa atribuir o título de pessoa minimamente inteligente.

O governo de Jair Bolsonaro, que está pra começar, também já elegeu seu guru. É o astrólogo e “filósofo” de botequim (com todo o respeito aos botequins) Olavo de Carvalho. Já indicou alguns ministros do futuro governo e deve ser o oráculo a quem Bolsonaro e sua trupe recorrerão em busca de conselhos nos momentos críticos (e bota crítico nisso) que o futuro governo enfrentará.

Os Estados Unidos apoiam o Estado Islâmico!

Difícil prever o tamanho do desastre que poderá advir se o futuro governo aceitar as indicações de Olavo de Carvalho. Compilando uma coleção das imbecilidades que já proferiu, vale destacar algumas para alegrar o leitor.

Continue a leitura mas por favor não ria muito alto. Pois esse farsante que se diz filósofo foi capaz de afirmar, sem prova alguma, como de resto tem feito em todas as suas declarações, que os Estados Unidos estão trabalhando juntamente com o Reino Unido pela ascensão islâmica mundial! “Eu digo para vocês: o Príncipe Charles é membro de uma tarica. Ele protege um sheik islâmico”. Eu avisei pra não rir. Não me desobedeça!

De outra feita, Olavo de Carvalho disse que existem sinais claros (não disse nem vai dizer quais) de que há um movimento mundial de extinção das religiões, principalmente a católica. Aqui no Brasil, segundo ele, Dilma Roussef e Gilberto Carvalho estão por trás desse trabalho.

Só pra constar, eu, PJC, o locutor que vos fala, não vou com a cara de nenhum dos dois. Mas daí a achar que estão trabalhando pelo fim das religiões no mundo vai uma distância maior do que a burrice posuda de Olavo de Carvalho.

Combustíveis fósseis não existem!

Da coleção de idiotices do sujeito, há uma que chega abaixo do nível do pré-sal. Pois o cabra teve o desplante de dizer, sem se ruborizar nem deixar cair o cigarro, que os combustíveis fósseis... não existem! E com a cafajestice que lhe é peculiar, garantiu que já foram encontrados hidrocarbonetos numa galáxia que fica “na puta que o pariu, onde nunca teve dinossauro nem fóssil, porra”.

Portanto, “combustível fóssil é o cu da sua mãe!”. Eu já mandei você não rir, leitor. Estou começando a me zangar. E afaste as crianças, que aqui tem palavrão!

Uma das principais características de qualquer idiota é acreditar sem checar a fonte ou verificar as provas. Olavo de Carvalho afirma com absoluta convicção que a Pepsi-Cola “está usando células de fetos humanos. E essa denúncia foi para uma agência do governo, que não sei o nome, e ela disse que isso é um procedimento comercial normal! Portanto, ao beber Pepsi-Cola você é um abortista terceirizado”.

Olha, se você continuar a rir eu juro que paro esta coluna bem aqui!

Das pérolas olavianas, uma das mais criativas e basbaques é a afirmação dele de que não existe qualquer prova de que o sistema descoberto por Copérnico (sol ao redor do qual giram planetas, ao redor dos quais giram satélites) seja real. Mais adiante, na mesma entrevista, Olavo, o Gênio, afirma com todas as letras que Albert Einstein, diante da falta de provas para confirmar o sistema copernicano preferiu modificar a física inteira. E introduziu conceitos como a curvatura do espaço, que o gênio Olavo diz não ter entendido. Eu, o locutor que vos fala, também não entendo. Mas Einstein é Einstein. E eu sou apenas um pobre diabo, que Olavo, o Sábio, não admite ser.

Teria a consciência vindo do dedão do pé?

Ele afirmou também, com toda a convicção, que não há nenhuma prova de que a consciência seja causada pelo cérebro. Mas não disse de onde ela poderia vir. No caso dele, suspeito que a consciência tenha vindo, sei lá, do dedão do pé.

Esse lunático afirma sem perder a pose de sabichão, entre outras sandices, que “a história da origem das ciências é tudo empulhação, não foi nada disso que aconteceu”. Caramba, quando vai parar de rir, cacete!

Agora eu vou deixar você rir um pouquinho, porque essa é ótima: “A União Soviética foi quem armou a Alemanha nazista, em segredo. Não haveria nazismo nem Alemanha nazista se não fosse o plano de Stálin de usar a Alemanha nazista como ponta-de-lança da revolução. O Stálin planejou toda a Segunda Guerra usando os nazistas como instrumentos, isto está mais do que provado!”

Pronto, já riu o suficiente. Agora, é pra ficar sério, senão eu vou continuar a lhe fazer cócegas. A última dele foi dizer que “o fundador do Haiti dedicou o país a Exu, daí os terremotos que destruíram o país. Da mesma forma como Louisiana, devastada pelo furacão Katrina, é a central da macumba nos Estados Unidos”. E conclui dizendo que os negros americanos são os mais felizes do mundo porque, em sua maioria, são protestantes... Baianos, fujam já daí que a qualquer momento pode ocorrer um terremoto ou um furacão mais forte do que Ivete Sangalo que vão devastar a Bahia!


Cristovam Buarque: Ressurreição pelas urnas

O livro A ressurreição do General Sanchez, publicado pela Editora Paz e Terra, em 1981, reeditado em 1997 pela editora Geração, conta a história de um ditador latino-americano que, percebendo o esgotamento de sua ditadura, decide terminar seu regime e escolher um substituto. Usando as técnicas da engenharia genética, mandou fabricar um clone. O herdeiro seria idêntico ao pai, mas enquanto crescia, foi mudando de personalidade e de ideologia. Descobriu-se depois que a CIA havia produzido outro clone de direita, neoliberal; o Vaticano tinha produzido um democrata cristão, carola. Os clones foram sendo substituídos clandestinamente pelos serviços de espionagem dos países. O ditador aceitou pacientemente essa variação, até descobrir que os soviéticos também tinham o seu clone. Comunista, ele não aceitou.

O general mandou matar o último clone, o comunista, e engravidou três mulheres para escolher como seu herdeiro o primeiro filho que nascesse. Para surpresa de todos, cada mulher deu à luz cinco meninos, todos com cara e mãos de demônio. O ditador então legalizou os partidos e autorizou uma eleição livre, universal, desde que disputada entre os quinze meninos, seus filhos demônios. Não esperava o caos provocado por uma eleição com tantos candidatos, todos com alta taxa de rejeição pelos eleitores que não queriam escolher entre diabos, ainda que filiados a partidos diferentes.

Ao sentir os limites de seu poder para controlar e organizar sua sucessão, o general mandou dizer ao povo que tinha decidido morrer, para ressuscitar quando o país precisasse dele outra vez. E desapareceu. Em um estilo de realismo fantástico, o livro descreve o período democrático como um grande carnaval, em que a população brinca nas ruas, os constituintes dentro do parlamento, enquanto a desordem se espalha, até que o general ressuscita, durante a tristeza e a ressaca da quarta-feira de cinzas histórica.

Ainda é cedo para dizer se essa ficção de 1981, anterior à redemocratização no Brasil, se assemelha à história recente de algum país. Mas é possível dizer que o período entre o fim de uma ditadura e o renascimento de outra se parece com a história que o livro descreve: os democratas civis perdem mais tempo brigando entre eles e olhando para as reivindicações de cada grupo no presente do que imaginando a melhor forma de construir o futuro para o país. Até que o povo, cansado do caos, da corrupção, do crime, da pobreza, da desigualdade, termina exigindo a volta da ditadura.

O autor não imaginou, porém, a possibilidade de que o fracasso dos democratas levaria os eleitores a votarem, democraticamente, pela volta do ditador: no livro, o fim da democracia decorre da ressurreição, por determinação divina. A obra conta: “Na sua autobiografia, sob o título Predestinado, que foi escrita pelo jornalista Ruiz Jimenez, e distribuída grátis em todas as escolas do país, o general Sanchez relembra a tarde de agosto quando ele decidiu tomar outra vez o governo de Sinandá. ‘Eu estava sentado, na varanda da Casa Grande, quando do Riacho Pequeno pareceu sair a voz de Deus dizendo: General, chegou a sua hora. Eu pensei que ia morrer e lembrei que um soldado não teme esse momento. Mas aí a voz disse pausadamente: General, seu dever é tomar o governo da Pátria e transformá-la em um exemplo aos olhos do mundo. E eu respondi: com vossa ajuda?”. O livro não diz: “missão não se discute, se cumpre; e Deus provê capacidade para quem Ele escolhe”.

Quase 40 anos depois de publicada, a obra exige uma nova versão em que a ressurreição se daria pelo voto, pelas urnas, não pelas armas. O desânimo do povo preferindo o risco do autoritarismo e da intolerância ao caos criado por civis perdidos em suas brigas partidárias, sem espírito público, sem perspectiva de longo prazo. Uma nova versão deveria descrever os erros cometidos pelos políticos democratas ao longo do período em que o ditador estava morto, esperando voltar. Ajudaria ao autor inspirar-se em um personagem do próprio livro, um escritor que previu o que aconteceria: o caos provocando a ressurreição; e que antes de partir para seu exílio em Paris afirmou que “a história ocorre como um carrossel, onde os políticos sobem e descem, e o povo, mesmo quando vota, fica de fora, olhando o sobe e desce dos políticos montados nos cavalinhos”.

http://www.pps.org.br/2018/11/06/cristovam-buarque-ressurreicao-pelas-urnas/


Samuel Pessôa: Narrativas

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história

A democracia requer a distinção de fatos das narrativas. E requer reconhecer erros e corrigi-los.

A vitória de Bolsonaro representa o desejo de diversos grupos de reescrever nossa história. Construir uma nova narrativa. Certamente esse desejo não é compartilhado por todos os eleitores do capitão no segundo turno. Mas existe.

A narrativa que se deseja construir é que não houve ditadura militar, que não houve tortura e que a corrupção resulta da redemocratização. Essa narrativa fere fatos conhecidos de nossa história. E fatos são fatos, narrativas são narrativas.

A corrupção é perene na nossa história. Não há forma de combater a corrupção que não seja com independência do Judiciário e imprensa livre e vigilante. Ou seja, com democracia.

Mas, para diferenciar narrativas de fatos, será necessário reconhecer também que a narrativa de que a guerrilha defendia a democracia está factualmente errada.

Ou seja, se é fato que a ditadura torturou Dilma Rousseff, também é fato que toda a guerrilha lutou para instituir a ditadura que considerava correta.

Gente muito jovem, movida por paixões igualitárias e por uma ideologia não democrática, cometeu o erro de pegar em armas. Pagaram caro.

Não há simetria entre os crimes. Os guerrilheiros atuaram por conta e risco seus, enquanto a ditadura praticava seus crimes com o anteparo do Estado.

Também parece ser exagerada, e aqui ainda temos que esperar o juízo dos historiadores, a narrativa de que mensalão e petrolão sempre existiram, da forma e intensidade da de agora.

Analogamente, se é verdade que o Escola sem Partido pretende instituir práticas em sala de aula incompatíveis com a liberdade de expressão, é forçoso reconhecer que esse movimento reage a um processo de doutrinação nas disciplinas de história e geografia que constrói inúmeras narrativas factualmente erradas.

Não é verdade que a Inglaterra lutou contra o tráfico negreiro para vender tecidos na América, ou que a Guerra do Paraguai foi uma conspiração inglesa para destruir uma potência sul-americana autônoma, ou ainda que os europeus entravam dentro do território africano para aprisionar negros e escravizá-los, ou que os EUA enriqueceram pois exploraram os países pobres, e tantas outras bobagens a que nossos alunos são expostos.

Finalmente, se é verdade que a direita defendeu a ditadura por aqui, é verdade também que partidos de esquerda defendem ditaduras na América Latina ainda hoje. Não é coerente defender a Venezuela, como faz o PT, e achar que Bolsonaro é autoritário por afirmar que não houve ditadura por aqui.

Mesmo porque tanto as ditaduras venezuelana, nicaraguense e cubana quanto as ditaduras chilena, argentina e brasileira violaram, aquelas ainda violam, em massa os direitos humanos.

Ademais, na história do continente, as ditaduras ditas de direita terminaram. Algo acontece que faz com que os milicos retornem aos quartéis. As ditaduras ditas de esquerda não terminam e se mostram dispostas, para se perpetuar no poder, a expor seu povo a sofrimentos imensos na forma de desorganização econômica e perda de bem-estar.

A dita esquerda, se quiser continuar a pertencer ao campo democrático, terá de abandonar suas narrativas mentirosas e buscar os fatos. A democracia agradece.

Na coluna passada, referi-me ao presidente eleito, Jair Bolsonaro, como o tenente que se aposentou como capitão. A afirmação está errada. Quando Bolsonaro requereu a reforma, já era capitão. Agradeço aos colegas Pedro Jobim e Luciano Irineu de Castro pela correção.

*Samuel Pessôa, Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.


Fernando Henrique Cardoso: Paciência histórica

Que movimentos e partidos poderão materializar um radicalismo de centro?

Com a eleição de Bolsonaro e a hecatombe que se abateu sobre o sistema partidário, o melhor é manter a “paciência histórica”. Com a idade, algo se aprende. A principal lição talvez possa ser resumida em antigo ditado popular: “Não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe”.

Como em todo slogan, nesse há muita coisa indefinida: o que alguns qualificam como “bem” para outros pode ser o “mal”. A despeito de opiniões distintas, penso que a onda conservadora que se prenuncia não será boa, como não seria a da arrogância petista, que está na raiz do atual estado de coisas, com a polarização do “nós” contra “eles”.

Democrata, curvo-me à decisão da maioria. Mas não me amoldo, como não me amoldaria se fosse vencedor o polo oposto. Pertenço à família espiritual dos que pretendem ser razoáveis, aceitam o diálogo, podem mudar de opinião e quando o fazem dizem o porquê. E não querem ficar espremidos num “centro amorfo”. Essa família sabe que a emoção existe, deixa-se envolver por ela de vez em quando, mas tenta apegar-se a algum grau de razoabilidade.

Nas circunstâncias, há que esperar. Como será o governo Bolsonaro? Como enfrentará os desafios de reduzir a desigualdade social, como retomará o crescimento econômico para criar empregos; porá ordem nas finanças públicas, assegurará a tranquilidade às pessoas assustadas com tanta violência nas ruas e no campo, será capaz de combater o crime organizado? Sem falar na hercúlea tarefa, que é de todas as forças políticas, sobretudo das que tenham maior convicção democrática, de recolocar nos trilhos o sistema eleitoral e partidário, que afundou na corrupção, na fragmentação e na perda de conteúdo programático.

Não se trata de esperar sem fazer nada, nem de assumir a posição fácil de criticar tudo o que o governo faça. A possibilidade de se criar um “centro” não amorfo implica tomar partido com base em valores e na razão.

Li outro dia uma expressão de que gostei: um “centro radical”. Radical em não aceitar o arbítrio e, portanto, em respeitar a Constituição. Ah, dirão, ela está obsoleta. Então que se mude o que pereceu, mas por meio de emendas que o Congresso aprove, mantidas as cláusulas pétreas. Ser radical de centro implica ser firme na preservação dos direitos civis e políticos e propor uma sociedade não excludente e justa. Sem conservadorismo.

A onda conservadora concentra-se principalmente nos costumes, na cultura. O centro radical prega o respeito à diversidade e sua valorização, que é constitutiva da democracia, embora se recuse a transformar a diferença em expressão única do que é positivo. Opõe-se à violência contra os que têm preferências, sexual ou sobre o que seja, divergentes do padrão e sustenta os direitos das minorias. O mesmo vale para a preferência religiosa: há que respeitá-la integralmente, mesmo quando diversa da crença dominante ou quando composta de fragmentos de várias crenças ou quando for nenhuma. O que vale para as crenças vale com a mesma força para as ideologias, desde que elas aceitem não ser a expressão única da verdade e da moralidade.

A radicalidade de um centro progressista não se limita, contudo, aos aspectos comportamentais. Propor soluções econômicas antiquadas, a exemplo do controle estatal dos setores produtivos e do desprezo pelo equilíbrio fiscal, como setores da esquerda fazem, não somente é anacrônico, como também contraria os interesses do povo. Como oferecer emprego e melhorar a renda dos mais pobres propondo uma política econômica que leva à estagnação e ao desemprego, como se viu recentemente com a “nova matriz econômica”?

Sem fundamentalismos desnecessários e mesmo contraproducentes, o “centro progressista e radicalmente democrático” deve incorporar ao seu credo uma visão mais liberal, sem medo de ser tachado de “elitista” ou “direitista”.

Sem cair, por outro lado, na apologia do “individualismo possessivo”, porque o mercado não é a única dimensão da vida nas sociedades contemporâneas. A ideia de que se pode comandá-lo ou regulá-lo com mão de ferro é irrealista. E o realismo não é de direita nem de esquerda, é um requisito para o bom governo. Este, por sua vez, não se resume à adequação eficiente entre meios e fins. É preciso crer numa “utopia, viável”: a da busca de uma sociedade aberta, decente e, portanto, mais igualitária. A sociedade civil, em sua pluralidade de opiniões, tem um papel crítico na construção de tal tipo de utopia.

Num artigo de jornal não cabem demasiadas considerações sobre os valores que poderão dar arrimo a um centro que não se confunda com a fisiologia de “centrões”, nem se perca na vacuidade das indefinições. Mas é preciso deixar no ar a pergunta: que movimentos e partidos poderão materializar o radicalismo de centro?

Comecemos com a autocrítica. Também o PSDB, ainda que vitorioso em Estados expressivos, se desfigurou nas últimas eleições. Será capaz de se remontar? Francamente, não sei. E os demais partidos e movimentos de renovação, que rumos eles tomarão para sobreviver?

Se for o da adesão oportunista ou o da crítica indiscriminada a tudo o que o novo governo fizer, de pouco servirão para a retomada do rumo democrático e progressista. É cedo para apostar. A paciência histórica é boa conselheira e não se confunde com inação. A consolidação de um novo movimento requer desde já a pavimentação de alianças, não só no círculo político, mas principalmente na sociedade, para formar um polo aglutinador da construção de um futuro melhor. E como as eleições de outubro mostraram, não basta ter boas ideias, é preciso que elas circulem nas redes que conectam as pessoas e mobilizam corações e mentes.

*Fernando Henrique Cardoso é sociólogo, foi presidente da República


El País: Educação, o primeiro ‘front’ da guerra cultural do Governo Bolsonaro

Adepta do Escola sem Partido, futura gestão cogita revisionismo sobre a ditadura, além de incentivar vigilância a professores para “expurgar Paulo Freire” das escola

Antes mesmo de ganhar a eleição, Jair Bolsonaro já aparecia em vídeos convocando pais e alunos a delatar professores que promovam, segundo suas palavras, “doutrinação ideológica”. Agora, políticos do PSL incentivam o patrulhamento contra “o comunismo e a ideologia de gênero”. Eleita deputada estadual por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo criou um canal para denúncias contra professores. Nesta quinta-feira, a Vara da Infância e da Juventude acatou representação do Ministério Público Estadual e considerou ilegal o canal mantido por Campagnolo, determinando também a retirada do ar de vídeos em que ela aparece conclamando pais e alunos a denunciarem.

Não se trata de iniciativas isoladas, pelo contrário. A pregação contra a suposta sexualização de crianças nas escolas e a “doutrinação” de esquerda na educação são facetas centrais da campanha vitoriosa de Bolsonaro, que também estão presentes na estratégia de mobilização de forças conservadoras e de extrema direita pelo mundo, parte das chamadas “guerras culturais”. Uma semana após a votação, já há sinais de que a Educação será um dos primeiros fronts do bolsonarismo que chega ao poder.

Na Câmara dos Deputados, na euforia após a vitória do capitão reformado do Exército, o tema também se moveu. O projeto “Escola sem Partido”, que veta várias práticas, entre elas o uso da palavra “gênero” e da expressão “orientação sexual” nas escolas, foi pautado para ser discutido em uma comissão especial. A votação acabou, no entanto, adiada. "Esse tema não é apenas do Parlamento. Ganhou as ruas. É um tema do Brasil. Pautaremos na próxima semana para debate democrático", prometeu o deputado presidente da comissão, Marcos Rogério (DEM-RO).

Os efeitos já são sentidos em escolas e universidades pelo país, que registraram nos últimos dias episódios de denúncias a professores e rusgas entre apoiadores e detratores de Bolsonaro. Em Fortaleza, o professor de história Jam Silva Santos foi acusado de doutrinação após exibir o filme Batismo de Sangue, baseado em um livro de Frei Betto sobre a ditadura, a estudantes do ensino médio no colégio Santa Cecília. Um aluno gravou trecho do filme que parou nas redes sociais, onde Santos sofreu linchamento virtual sob a alegação de crítica velada a Bolsonaro. Na segunda-feira, ele foi recebido no colégio com aplausos dos estudantes, que consideraram injustas as críticas ao professor. Ele exibe o filme em suas aulas há cinco anos e nunca havia tido problemas semelhantes.

De acordo com o Sindicato dos Professores do Ceará (APEOC), os casos de denúncias por suposta "doutrinação ideológica" têm crescido no Estado este ano. Desde janeiro, pelo menos cinco professores, além de Jam Silva Santos, estiveram sob a mira de críticos nas redes sociais. Um deles é Euclides de Agrela, professor de história e sociologia da Escola Estadual Otávio Terceiro de Farias, em Fortaleza. Uma discussão entre ele e um aluno, expulso de sala depois de ofendê-lo, foi filmada e viralizou em páginas de apoio a Bolsonaro, que atrelaram a fala do professor sobre atitudes “nazifascistas” atribuídas ao ex-capitão à sua militância pelo PSOL, partido ao qual é filiado.

Agrela admite que se exaltou e teve reação descabida à confrontação do estudante bolsonarista, mas condena a divulgação fora de contexto dos vídeos em sala de aula, que lhe rendeu ameaças de morte. “Tive que sair de casa por alguns dias. Um clima de terror.” O vice-presidente da APEOC, Francisco Reginaldo Pinheiro, afirma que o sindicato criou um canal para prestar apoio a educadores vítimas de intimidação e patrulhamento nas escolas. “Defendemos a liberdade de ensino. Existem espaços adequados para queixas de pais e alunos. Expor o professor em rede social é perigoso, coloca sua segurança em risco. Infelizmente isso está se tornando recorrente por causa da polarização ideológica motivada pela política”, diz Pinheiro.

Paulo Freire e os grandes males
O plano de governo em educação é considerado vago em vários pontos como valorização do professor ou reforma do ensino médio, mas a equipe de Bolsonaro explícita bem suas prioridades. Aponta que “um dos maiores males atuais é a forte doutrinação” e promete “expurgar a ideologia de Paulo Freire”, o patrono da educação brasileira, embora atualmente as bases curriculares tanto do ensino fundamental quanto do médio não façam referência aos métodos do educador. “A rejeição a Paulo Freire é uma estratégia narrativa”, afirma Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e ex-candidato ao Senado pelo PSOL. “Porque ele simboliza o estímulo ao senso crítico e a própria pedagogia, que, na visão de Bolsonaro, significam doutrinação.”

Cara não está sozinho na avaliação. “O que Paulo Freire preconiza é aceito no mundo inteiro. Estive em Cingapura, primeiro lugar no (teste educacional) Pisa, e eles citaram Paulo Freire como alguém que inspira o país a buscar as aspirações educacionais que desejam”, disse à revista Nova Escola Cláudia Costin, coordenadora do Centro de Excelência e Inovação de Políticas Educacionais (CEIPE) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-diretora do Banco Mundial.

Outro desejo do futuro Governo é, também, a reinserção no currículo escolar das disciplinas de educação moral e cívica, algo abolido após o fim da ditadura militar. Durante a campanha, o general Aléssio Ribeiro Souto, um dos designados por Bolsonaro para elaborar o plano de educação, chegou a questionar a teoria da evolução e defender o criacionismo no ensino de ciências. “Se a pessoa acredita em Deus e tem o seu posicionamento, não cabe à escola querer alterar esse tipo de coisa”, afirmou Souto.

Souto também prega uma revisão do período ditatorial nas aulas de história, exigindo que se conte “a verdade” sobre o regime. “É uma concepção autoritária da educação”, diz Luiz Carlos de Freitas, pesquisador e professor aposentado da Unicamp. “Enxergam qualquer pensamento diferente do deles como um risco, que deve ser combatido com disciplina e repressão. E, ao combaterem uma possível ideologia com a imposição de suas crenças, acabam caindo na contradição de promover doutrinação às avessas. É um retrocesso.” Atualmente, ao contrário do material didático adotado em colégios militares, que se referem ao golpe militar como “revolução de 1964”, os livros do MEC definem o regime como uma ditadura. O criacionismo consta na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Já a  educação sexual, que tanto mobiliza Bolsonaro, já vem sendo atacada há anos e é tratada apenas de maneira transversal com foco em sexualidade no último ano do ensino fundamental.

Os obstáculos para colocar as ideias em prática
Para colocar em prática as propostas direcionadas à área a partir do próximo ano, Bolsonaro terá de entrar em rota de colisão com as diretrizes do Plano Nacional de Educação (PNE) e da Base Nacional Comum Curricular, além de apelar à influência no Congresso. As propostas de revisão de currículo nas escolas se chocam com determinações recentes do Conselho Nacional de Educação, órgão independente que auxilia as tomadas de decisão do MEC e é responsável pela definição da Base Curricular. A reforma do ensino infantil e fundamental já está finalizada, enquanto a do ensino médio deve ser concluída até o fim do ano. Como os mandatos de conselheiros do órgão foram renovados por Michel Temer, Bolsonaro teria de esperar pelo menos dois anos para mudar parte da mesa diretora, que hoje prioriza o enxugamento de disciplinas e tem praticamente fechada a lista de livros didáticos recomendados nas escolas.

Jair M. Bolsonaro

@jairbolsonaro

Por muito tempo nossas instituições de ensino foram tomadas por ideologias nocivas e inversão de valores, pessoas que odeiam nossas cores e Hino. Hastear uma bandeira do Brasil não tem relação com política, mas com o orgulho de ser brasileiro e a esperança de tempos melhores.

Se quiser impor as ideias de seus correligionários já no início de mandato, entre elas o revisionismo da ditadura, que, segundo o general Souto, passa pela eliminação de livros que “não tragam a verdade sobre 1964 [ano do golpe militar]”, criacionismo, ensino de moral e cívica e foco nas matérias de ciência, matemática e português, o novo governo precisaria transferir para o Congresso o poder de determinar as disciplinas no currículo. “Bolsonaro já deu mostras de desprezo pelas regras do jogo democrático”, critica Daniel Cara. “O caminho para emplacar suas medidas na Base Curricular seria um rompimento institucional com o Conselho.”

Olavo Nogueira Filho, diretor do movimento Todos Pela Educação, lamenta que os planos para educação não tenham sido debatidos na campanha e critica a falta de profundidade dos projetos de Bolsonaro, cujo plano conclui dizendo que a educação precisa “evoluir para uma estratégia de integração” entre os governos federal, estadual e municipal, sem maiores detalhes. “Infelizmente, o debate sobre políticas educacionais não ocorreu nessas eleições. Há muitas propostas em discussão na esfera suprapartidária. Espero que o novo governo esteja disposto a ouvi-las para buscar avanços duradouros na área.”

PAGAR POR UNIVERSIDADE PÚBLICA DEPENDE DE MUDANÇA NA CONSTITUIÇÃO
No plano já ventilado por apoiadores de Bolsonaro, há propostas como a cobrança de mensalidade nas universidades que dependem de alterações na Constituição – a gratuidade está prevista em todos os níveis do ensino público. Para revogar as cotas raciais, desejo antigo do presidente de extrema direita, que pretende manter apenas as cotas sociais, ele teria de mexer na lei de 2012 que reserva vagas para estudantes negros e indígenas nas instituições federais. As emendas dependeriam de aprovação em dois turnos na Câmara e no Senado. Pelos acenos favoráveis a seu partido, que elegeu a segunda maior bancada de deputados, o governo não teria grandes entraves para aglutinar maioria em torno dos projetos, mas corre o risco de desperdiçar capital político previsto para reformas que lhe exigirão mais esforços, como a tributária e a da Previdência.

Dentro da intenção de levar ordem e disciplina ao ambiente escolar, se destaca a proposta de construir um colégio militar em cada capital brasileira. Hoje existem 13 instituições de ensino fundamental e médio vinculadas ao Exército no país, sendo 11 delas localizados em capitais. O custo por aluno nesse modelo é três vezes maior que o da escola pública. Além do investimento, o desempenho dos colégios militares costuma ser inflado pelo fato de adotarem processos seletivos na admissão de estudantes. A promessa de campanha, entretanto, teria pouco impacto no contexto de problemas complexos da educação nacional. “O Brasil tem mais de 40 milhões de alunos. Somos um país que carece de políticas públicas para resolver a dificuldade de acesso e permanência nas escolas, especialmente entre a população mais vulnerável. Os colégios militares são um recurso de baixo alcance, que, no fim das contas, acabam beneficiando os estudantes de melhor condição”, afirma Anna Helena Altenfelder, presidente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).


Bruno Boghossian: Disposição em normalizar ditadura é fruto apodrecido da campanha

Defesa do regime por Bolsonaro e leniência das instituições alimentam o retrocesso

Quase um terço dos brasileiros acha que o legado da ditadura militar foi positivo para o país. Na última pesquisa do Datafolha, 32% dos entrevistados disseram que houve mais realizações boas do que ruins no regime autoritário. Há quatro anos, esse índice era de 22%.

Um dos frutos apodrecidos da campanha eleitoral deste ano é uma aparente disposição em normalizar os horrores do autoritarismo e da tortura. A defesa aberta do regime feita pelo líder da corrida presidencial e a leniência das instituições contribuem para o retrocesso.

A relativização ganhou ares oficiais quando o chefe do STF, Dias Toffoli, disse que a deposição do presidente da República em 1964 não foi um golpe militar, mas um “movimento”.

Nesta quarta (24), o TSE mandou suspender, pela segunda vez, uma propaganda do PT que vinculava Jair Bolsonaro ao torturador BrilhanteUstra. Para o ministro Luís Felipe Salomão, o vídeo “pode criar [...] estados passionais com potencial para incitar comportamentos violentos”.

Bolsonaro disse no Roda Viva, em julho, que “abomina” a tortura, mas se desmentiu logo depois. Insinuou que “este pessoal que se diz torturado” inventa histórias para obter indenizações e respondeu que Ustra era o autor de seu livro de cabeceira.

Confrontado meses depois, o vice Hamilton Mourão contemporizou. Disse que havia um confronto entre militares e terroristas, e acrescentou que Ustra poderia ser considerado um herói, mesmo condenado pelas barbaridades que cometeu. “Heróis matam”, sentenciou.

Os chilenos levam sua história a sério. Há dez dias, o Exército destituiu o diretor da Escola Militar do país. Ele havia permitido um ato em homenagem a um brigadeiro punido por crimes praticados durante o regime de Augusto Pinochet.

Militares reformados e da reserva podem participar da vida política. A prova disso é que Bolsonaro disputa a eleição democraticamente. Nada justifica, porém, o mofo corporativista que leva autoridades a tentarem apagar as atrocidades da ditadura.


Bernardo Mello Franco: Revisionismo de toga

O novo presidente do STF resolveu reescrever a História. “Eu me refiro a movimento de 1964”, disse Dias Toffoli, descartando a palavra “golpe”

O presidente do Supremo Tribunal Federal resolveu reescrever a História. Em seu 19º dia no cargo, ele decidiu que não houve golpe militar no Brasil. “Eu não me refiro mais nem a golpe, nem a revolução de 1964. Eu me refiro a movimento de 1964”, informou.

Ao expor a sua visão particular dos fatos, Dias Toffoli citou o historiador Daniel Aarão Reis. Foi uma surpresa desagradável para o professor da UFF. “Chamar o golpe de movimento é uma aberração. Rejeito categoricamente a paternidade dessa ideia, com a qual eu não concordo”, ele afirma.

Em palestra na USP, Toffoli atribuiu ao historiador a avaliação de que a “tanto para a esquerda, tanto para a direita passou a ser conveniente culpar o regime militar de tudo”. Para Aarão Reis, o ministro distorceu suas palavras e fez uma “interpretação vesga da História”.

“Esse tipo de análise sustenta que os dois lados cometeram excessos. É uma forma de lavar as mãos sobre o que aconteceu. Ao igualar o que não é igual, acaba legitimando a ditadura”, critica.

O professor lembra que o “movimento” de Toffoli rasgou a Constituição, derrubou um governo legítimo e submeteu o país a um estado de exceção. “Ao dizer isso, o ministro recupera uma triste atitude do ministro Ribeiro da Costa, que era presidente do Supremo e apoiou o golpe. Depois ele se arrependeu, mas já era tarde demais”, afirma.

A ditadura instaurada em 1964 cassou três ministros do STF e forçou a aposentadoria de outros dois. Ao assumir o comando do tribunal, Toffoli surpreendeu ao nomear um oficial da reserva para sua assessoria direta. O general Fernando Azevedo e Silva participou do grupo de militares que formulou propostas para o presidenciável Jair Bolsonaro.

Para a crônica eleitoral da Lava-Jato: a 11 dias do primeiro turno, a Polícia Federal acusou o ex-ministro Antonio Palocci de arrecadar propina para o PT. Aconteceu em 2016, às vésperas da disputa municipal.


Cristovam Buarque: Sonhos e exemplos

Os leitores sabem que livros escritos por jornalistas tendem a provocar leituras agradáveis e a não provocar questionamentos intelectuais. Dois livros lançados em Brasília este mês confirmam a primeira afirmação e desmentem a segunda. O livro Borboletas e Lobisomens, de Hugo Studart, é lido com o prazer de uma boa reportagem sobre a Guerrilha do Araguaia; o livro Para onde vai a Igreja?, de Gerson Camarotti, entrevista cinco cardeais brasileiros para saber onde está caminhando a Igreja, sob o papado de Francisco.

O livro de Studart descreve a aventura de jovens da cidade embrenhados na selva amazônica, lutando para sobreviver, derrotar um poderoso exército, fazer uma revolução e implantar o socialismo. As duas obras nos provocam para o debate sobre os dogmas e seus fracassos devido à força do tempo, que amarela todos os livros e suas ideias. Camarotti nos passa a aventura de um papa com 80 anos tentando fazer uma revolução e atualizar a Igreja Católica. Os nossos jovens usavam dogmas criados por Marx, Lenin e Mao para derrubar uma ditadura e implantar o socialismo; Francisco e seus cardeais lutam para derrubar preconceitos arraigados há séculos por interpretações da Bíblia.

A ideologia dos nossos guerrilheiros não sobreviveu à duração da própria guerrilha; diante da velocidade como ocorriam as mudanças na realidade, suas ideias ficavam velhas, enquanto eles lutavam por elas. No mesmo tempo em que eles lutavam pela revolução social, outros jovens em universidades ao redor do mundo faziam a revolução científica e tecnológica que transformava o mundo e fazia obsoletas as ideias da revolução guerrilheira; o capitalismo encontrava fôlego, o Partido Comunista da URSS se desfazia e os líderes chineses se preparavam para novos tempos: globalização, robótica, inteligência artificial, crise ecológica, esgotamento do Estado, apartação social, enriquecimento e individualismo de parte dos trabalhadores do setor moderno.

O livro de Studart nos permite perceber como aqueles jovens queriam fazer história, sem perceber o rumo que ela tomava, independentemente deles e dos militares que enfrentavam. Mostra também o heroísmo e a capacidade de sonhar dos guerrilheiros. O autor trata da importância dos sonhos como o alicerce para formar cada guerrilheiro e uni-los na selva com armas na mão. Isso nos faz especular quais os sonhos que motivariam os jovens de hoje para lutar pela construção de um mundo melhor, mais pacífico e mais justo, mais eficiente e mais acolhedor.

Os jovens do Araguaia achavam que isto era possível pela tomada do poder e a estatização dos meios de produção com o Estado controlado pelo partido a serviço do povo. Os jovens guerrilheiros não sabiam que não se consegue fazer uma sociedade justa sem ter uma economia eficiente. Descobriu-se que o Estado serve sempre à minoria que o controla, sejam industriais, sejam latifundiários, banqueiros, militares, juízes ou servidores civis, não importa o partido; descobriu-se também que para ficar no poder o partido e seus militantes são capazes de depredar o Estado, aceitar propinas, destruir a eficiência da economia, tentando enganar ao povo.

Eles nos deram o exemplo de heroísmo e de luta a ser seguido hoje, com novas ideias e novos métodos. Não mais as armas, mas as urnas; não mais estatizar a economia e a sociedade, mas promover a liberdade, construindo uma economia eficiente e assegurando igualdade no acesso à educação e à saúde, independentemente da renda e do endereço da família; respeitando o meio ambiente; promovendo a ciência e tecnologia; sem corrupção e com democracia; não só em seu país, mas em todo o imenso mundo global de hoje.

Studart dedica espaço à pergunta que levou um jovem a sair do aconchego confortável de sua família de classe média em cidades para embrenhar-se na mata inóspita, disposto a morrer e matar. Sua resposta é de que foram os sonhos de mudar o mundo com revolução para construir utopia. Camarotti começa cada entrevista perguntando as razões que levaram o cardeal ao sacerdócio; de todos eles ouviu que tinham sonho de realização espiritual e também exemplo de religiosos e santos. Isso nos leva a perguntar qual o sonho para inspirar os jovens de hoje à vontade de mudar o mundo, e em que exemplo de vida se baseariam para escolher a luta no lugar do conforto.

A principal tarefa dos filósofos e dos políticos de hoje é provocar sonhos coletivos nos jovens para que eles queiram mudar o Brasil e o mundo; e dar exemplo de vida para legitimar os sonhos. (Correio Braziliense – 31/07/2018)