Ditadura

Maria Cristina Fernandes || A mãe que desafiou ancestrais do bolsonarismo

Passava de meia-noite quando Elzita Santos de Santa Cruz Oliveira, hóspede em um apartamento no Rio, recebeu uma chamada telefônica. Foi orientada a descer sozinha e esperar por uma viatura. Era a resposta a seu telefonema da manhã ao Dops, quando insistira em ver sua filha para acreditar que estivesse viva. No carro, um soldado, como se estranhasse a presença de uma senhora de quase 60 anos, de livre e espontânea vontade, ali, entre fuzis, lhe perguntou: "A senhora de onde é, da Paraíba?"

Sem olhar para o lado, Elzita, respondeu que era pernambucana como as mulheres de Tejucupapo. A quem lhe perguntava se eles sabiam a que se referia, ela respondia: "Se não sabiam, ficaram sabendo". Em 23 de abril de 1646, as mulheres de Tejucupapo, no litoral norte do Estado, lutaram contra invasores holandeses numa batalha com 300 mortos.

O diálogo se deu em 1972, dois anos antes da prisão de seu quinto filho, Fernando Santa Cruz. O relato da conversa entre dona Elzita e o ancestral do presidente Jair Bolsonaro foi resgatado pela jornalista Sílvia Bessa na coletânea de perfis "Heroínas Dessa História", a ser lançada pelo Instituto Vladimir Herzog, em setembro, sobre mulheres cujos familiares desapareceram nas mãos dos agentes do Estado durante a ditadura.

Das 15 perfiladas, dona Elzita foi aquela que mais tempo peregrinou por gabinetes e porões. Morreu aos 105 anos, um mês antes de seu neto, Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ser vítima da descarga bolsonarista. Não se dava por satisfeita com versões. Queria o timbre do Estado no papel passado.

Reunidos em sua casa em Olinda, em seus últimos anos de lucidez, seus filhos lhe relataram o depoimento do delegado Cláudio Guerra ("Memórias de uma Guerra Suja", Topbooks, 2012). No livro, o delegado afirma ter levado dez cadáveres de presos políticos, entre eles, Fernando, dos Destacamentos de Operações de Informação, os DOIs, e da Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), para serem carbonizados no forno da Usina Cambahiba, no Rio. As cinzas desses corpos, conta, teriam sido misturadas ao vinhoto, o resíduo fétido da destilação do álcool de cana-de-açúcar.

"Quem disse que Fernando teve o corpo incinerado? Um delegado? Um torturador? Tem provas disso? Não?" Os filhos não tiveram tempo de reagir: Ela encerrou a história: "Vamos jantar". Nunca a veriam chorar nem usar luto, ainda que não lhe faltassem motivos.

Filha de um dono do engenho da Zona da Mata, casou-se aos 17 anos com o sobrinho do então governador Estácio Coimbra. O marido viria a morrer de tuberculose três meses depois. Viúva antes da maioridade, conheceria o médico sanitarista Lincoln Santa Cruz, dez anos depois. Com ele teria dez filhos, quase todos insurgentes.

Admiradores de Luís Carlos Prestes e de dom Hélder Câmara, os Santa Cruz nunca apoiaram o golpe de 1964, mas foi a militância dos filhos que os estigmatizou. Um dia receberam a visita de um verdureiro. "Estão dizendo que seus filhos são comunistas. O que é comunismo, doutor?". Lincoln mostrou-lhe a mesa posta e respondeu: "É todo mundo poder comer de tudo que tem nesta mesa".

Se o humanismo do pai lhes serviu de esteio, era a mãe que fazia a retaguarda. Dona Elzita aborrecia-se com as tarefas domésticas, gostava de ler romances e não era mãe de fazer cafuné, mas virava uma onça na hora de defender a militância dos filhos. Numa passeata em 1967, no Recife, Fernando havia acabado de completar 18 anos e foi preso ateando fogo a uma bandeira dos Estados Unidos. Seria enquadrado na Lei de Segurança Nacional.

Contra a vontade do marido, conseguiu uma certidão falsa de nascimento atestando que ele tinha "aproximadamente" 17 anos e o soltou. Dois anos depois, Marcelo, o mais velho dos filhos homens, chegou em casa com a notícia de que havia sido expulso da Faculdade de Direito do Recife, e que teria que deixar o país.

O delegado do Dops disse que se o estudante fizesse uma declaração dizendo não ser comunista, seu passaporte sairia. Marcelo, que se elegeria vereador em Olinda pelo PT, partido ao qual foi filiado até 2017, se rebelou. Achava a exigência uma humilhação. "Você só fala o que quiser", apoiou a mãe, que contornaria o delegado para conseguir a emissão do passaporte para o filho.

Na primeira prisão de Rosalina, a filha mais velha, no Rio, arrumou as malas e deixou com o marido a incumbência de prestigiar a formatura de outra filha. Entre telefonemas e peregrinações noturnas, lhes disseram que, se ela quisesse sair, teria que colaborar. Rosalina, que trabalhava como assistente social do Banco Nacional de Habitação (BNH), fazia mestrado em ciências sociais e militava na VAR-Palmares, como a ex-presidente Dilma Rousseff, depois se tornaria professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. "O que o senhor quer que eu diga pra minha filha? Que ela seja dedo-duro? Que ela fale o que fez e que vocês cumpram a lei e a julguem, mas não batam na minha filha". Naquela prisão, Rosalina, grávida, abortaria depois de uma sessão de choques e chutes.

Quando Fernando desapareceu, a experiência vivida pelos irmãos mais velhos deu a dona Elzita a esperança de que ele lhe seria devolvido, estraçalhado, mas vivo. Ele havia deixado o Recife em 1970 com a mulher, Ana Lúcia, sua companheira de militância na Ação Popular, rumo ao Rio, depois de sucessivas prisões. Conseguiria um emprego no governo estadual e ingressaria no curso de direito da Universidade Federal Fluminense. Só a militância era clandestina.

Na AP, atuava na busca de companheiros desaparecidos, mobilizando familiares e advogados. Não há registro de sua participação em ações armadas. Em 1972, depois de passar em concurso público do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo, se mudaria com a mulher e o filho, Felipe, recém-nascido.

No Carnaval do ano seguinte, decidiu voltar ao Rio, onde encontraria os irmãos Marcelo, Rosalina e Márcia, e reveria companheiros da AP. Pela manhã foram à praia. Ao meio-dia se separaram. Combinaram de se encontrar no dia seguinte. Lá estavam todos, menos Fernando. Na véspera, ele saíra às 16h da casa de Marcelo para, com Eduardo Collier Filho, companheiro de militância desde a adolescência, irem ao encontro de Doralina Rodrigues, também da AP. No jargão da clandestinidade, "caíram ao cobrir um ponto".

O pai se entregou à tristeza, mas dona Elzita, com a mãe de Collier, Risoleta, pôs o pé na estrada. O primeiro livro sobre o tema, "Onde Está Meu Filho", escrito por um grupo de cinco jornalistas reunidos por Chico de Assis (Paz e Terra, 1985), relata a visita que lhes serviria de testemunho contra as evasivas do Estado sobre o desaparecimento de ambos.

Ao chegarem ao Doi-Codi, um oficial que se apresentou como "Marechal" confirmou a presença de ambos e pediu que voltassem no domingo, dia de visita. Deixaram sacolas com roupas e alimentos. Ao voltarem, na expectativa de que veriam seus filhos, foram informadas de que tinha havido um equívoco, e lhes devolveram as sacolas.

Dona Elzita resolveu, então, procurar um marechal de verdade para ajudá-la. No dia 21 de maio, escreveu a Juarez Távora, integrante da Coluna Prestes e da Revolução de 1930. Apelava para que fizesse chegar a carta ao general Golbery do Couto e Silva. O velho marechal a entregaria nas mãos do chefe da Casa Civil de Ernesto Geisel.

Como não houvesse providências, nova carta lhe foi dirigida renovando o apelo com menção a seu irmão, Joaquim Távora, oficial do Exército que aderiu ao Levante do Forte de Copacabana e, depois de desertar do Exército, acabaria morto na revolta paulista de 1924. Desta vez, o marechal a encaminharia ao comandante do II Exército, general Ednardo D'Ávila Mello, que reagiria com ameaças à família Santa Cruz. O mesmo Exército acrescentaria meses depois ao seu legado "civilizado e respeitador da dignidade humana" a morte de Wladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.

Dona Elzita decidira apelar ao II Exército (São Paulo) depois de ver esgotadas suas tentativas junto ao comandante do I Exército (Rio). A carta ao general Reinaldo Melo de Almeida também ficaria para a história da luta das mães de desaparecidos: "Fui motivada a fazer a presente carta, tendo em vista os predicados cristãos e humanistas de V. Exca., herdados de seu pai, figura ímpar, que enaltece a literatura nordestina. Em discurso pronunciado por José Américo ao retornar à Paraíba, em tempos idos, afirmou: 'Voltar é renascer. Ninguém se perde no caminho de volta'".

Os predicados do general haviam ficado pelo caminho. Ao responder à dona Elzita, o comandante do I Exército lavou as mãos: "Seu filho, procurado pelos órgãos de segurança por estar implicado em atividades subversivas, não se encontra preso em nenhuma organização militar subordinada a este comando".

Dona Elzita vendeu joias para percorrer o Brasil em busca do filho. Não se limitava aos poderosos. Um dia resolveu falar do filho numa fila do INSS e se deu conta de que a sociedade havia assistido à escalada do arbítrio, bestificada. "Ah, mas não é possível", lhe diziam. "É possível, sim", respondia, indignada.

A "velha Zita", como lhe chamava Fernando, chamava os militares da ditadura de "monstros que matavam jovens idealistas". Resumia numa frase o orgulho do filho - "Nunca traiu nenhum companheiro" - e confortava a angústia dos amigos de Fernando.

Numa carta, Doralina, a amiga com quem Fernando e Collier se encontrariam quando foram pegos, escreveu: "Bem sei que Fernando deu a vida também por mim, pois ele sabia como encontrar-me (...) Posso não ser digna desse gesto, mas outros amigos que ele preservou na repressão o são. Doralina daria o nome de Fernando a seu filho. São esses os amigos que o presidente Jair Bolsonaro, em "live" na cadeira do barbeiro, disse terem assassinado o filho de dona Elzita.


El País: “Governo quer inviabilizar apuração dos crimes da ditadura”, diz Eugênia Gonzaga

Procuradora diz que decreto de Bolsonaro deve dificultar trabalho de identificação de vítimas da ditadura

Assinado pelo presidente Jair Bolsonaro no último dia 11 de abril, o decreto 9.759 não deve afetar apenas os conselhos sociais de participação popular. A medida também coloca sob a mira de cortes os trabalhos da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos do governo federal e criada em 1995, com o intuito de promover o reconhecimento de pessoas mortas ou desaparecidas em razão das violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar. Um dos possíveis prejudicados pelo decreto que, segundo o governo, pretende enxugar gastos da administração pública, é o Grupo de Trabalho Perus, responsável por analisar 1.047 ossadas retiradas de uma vala clandestina na Zona Norte de São Paulo, em 1990.

De acordo com a procuradora da República Eugênia Gonzaga, presidenta da Comissão, a princípio, as atividades do GT Perus estão mantidas, já que o Governo ainda não especificou quais órgãos serão desativados pelo decreto [na noite desta segunda-feira, após a publicação desta entrevista, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou que “ao contrário do que foi divulgado por parte da imprensa, o Grupo de Trabalho Perus (GTP) não foi encerrado com a publicação do Decreto 9.759/2019”]. O grupo ainda tem, como explica a procuradora ao EL PAÍS, amparo jurídico baseado em acordo que garante recursos da União, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Prefeitura de São Paulo para executar o orçamento de aproximadamente 800.000 reais por ano. Por enquanto, os efeitos práticos, sob a gestão Bolsonaro, são a dificuldade de renovar contratos, o esvaziamento de peritos para análise das ossadas e a indicação de membros contrários à revisão de crimes cometidos pelo regime militar para compor a Comissão.

Pergunta. Como o decreto interfere nos trabalhos da Comissão e do GT Perus?
Resposta. Esse decreto é genérico, não cita especificamente o grupo de Perus. Um acordo judicial homologado em 2016 assegura a manutenção do convênio entre União, Unifesp e Prefeitura e, consequentemente, a continuidade dos trabalhos. De qualquer forma, nossas atividades na Comissão estão bem desfalcadas. Em Perus, por exemplo, temos apenas quatro peritos. O contrato com o governo federal venceu no fim do ano passado e até agora não foi renovado. Dependemos da verba da Prefeitura, mas o acordo vence no fim do ano e ainda não sabemos como vai ficar. Não estamos parados. No entanto, caminhamos a passos muito lentos.

P. O que pode acontecer com o grupo caso o Governo não renove o contrato após o decreto?
R. Isso seria o descumprimento de um acordo judicial. O governo não pode interferir por decreto em uma decisão que está homologada na Justiça. Como o acordo envolve outras instituições, não cabe ao presidente extinguir unilateralmente a força-tarefa de Perus. Porém, em outros grupos que não têm o mesmo respaldo jurídico, os impactos já foram sentidos. Equipes de peritos constituídas graças a parcerias com universidades, que faziam trabalho de investigação e busca de corpos em localidades como Foz do Iguaçu, Ilha Grande e Rio de Janeiro, foram extintas. Teremos que recomeçar do zero.

P. Há conversas em andamento entre governo e Comissão?
R. Logo no início do ano falei com a ministra Damares [Alves, dos Direitos Humanos]. Ela disse que era sensível à busca de corpos. O secretário-adjunto [Alexandre Moreira] tem nos apoiado. Mas muita coisa depende das decisões de cúpula. Justamente o que falta para alavancar os trabalhos.

P. A cúpula do Governo, incluindo o próprio presidente, tem vários representantes simpáticos ao período do regime militar. Essa inclinação ideológica pesa para as forças-tarefas de identificação de corpos e reparação das violações praticadas pela ditadura?
R. Está bem clara a intenção: o governo quer inviabilizar os trabalhos de apuração dos crimes da ditadura. Tem negado pedidos de renovação de contrato e nomeado pessoas que são notadamente contrárias aos princípios da Comissão de Mortos e também da de Anistia. Um exemplo é o Ailton Benedito [procurador de Goiás], que foi convidado para integrar nossa comissão sem que ninguém me consultasse. O objeto das forças-tarefas está sendo frustrado. Tanto é que os três ministros das Forças Armadas soltaram nota no último dia 31 de março dizendo que os militares apenas cumpriram os anseios da sociedade. Num primeiro momento, muita gente pode até ter apoiado o golpe. Mas ninguém apoiou tortura e assassinatos. Os 467 mortos registrados se referem apenas a militantes políticos. Não podemos nos esquecer que milhares de pessoas foram atingidas por atos de exceção do regime, inclusive militares.

P. No que a postura do atual governo difere dos outros?
R. Destinar verba para os trabalhos nunca foi uma política de Estado. Infelizmente, o Brasil não cumpriu seu dever na transição do autoritarismo para a democracia. As ossadas de Perus ficaram guardadas por mais de 20 anos. Nesse período, algumas autoridades se sensibilizaram, mas nada que se revertesse em apoio permanente. Sempre existiu, em todos os governos, o medo de desagradar militares e as Forças Armadas. Não é verdade que o Exército defendeu o país. A instituição errou muito e, ao contrário do que estipula a Comissão Nacional da Verdade, ainda não assumiu seus erros. Só estamos passando por todas essas dificuldades devido ao histórico de omissão de governos, sociedade e imprensa sobre as mortes na ditadura, por temerem as reações negativas. Adotamos uma política baseada no esquecimento. E esse foi o pior caminho possível para a transição democrática.


Fausto Salvadori: O curto mandato de Moacir Longo

Cassado logo após o golpe de 1964, que completa 55 anos, vereador denunciou em Plenário a violência da ditadura militar. No dia do golpe de 64, Moacir Longo saiu da Câmara escondido para não ser preso pela ditadura

Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br

Versão atualizada de reportagem originalmente publicada em dezembro de 2011

Muitos vereadores não voltaram para casa naquela terça-feira. Preferiram passar a noite de 31 de março de 1964 no interior do Palacete Prates, no Vale do Anhangabaú, onde funcionava a sede da Câmara Municipal de São Paulo, acompanhando as notícias sobre a movimentação de tropas do Exército que pretendiam derrubar o presidente João Goulart. Muitos temiam o início de uma guerra civil.

De todos os vereadores, o operário, jornalista e militante comunista Moacir Longo é o que tinha mais motivos para se preocupar com a queda do presidente. Ele sabia que, se os militares tomassem o poder, corria o risco de sair do Palacete Prates direto para a cadeia.

Enquanto a noite avançava, Longo conversou com Marcos Mélega, líder da União Democrática Nacional (UDN) e conhecido por seu anticomunismo, sobre as movimentações dos militares. Apesar das divergências ideológicas, Longo se dava bem com todos os colegas de vereança. O conservador abriu o jogo com o comunista. Mélega contou-lhe que, sim, o golpe militar estava em andamento e os revoltosos pretendiam criar um governo paralelo sediado em Minas Gerais, para o qual pediriam reconhecimento do governo dos Estados Unidos e, se fosse preciso, apoio militar para enfrentar a Presidência da República em Brasília.

“Eles estavam preparados para uma guerra civil e achavam que do nosso lado também estávamos”, recorda Longo, mais de cinco décadas depois. E ri. Preparados? Eles não estavam.

A movimentação que levou ao golpe de Estado havia começado na madrugada daquela terça-feira, em Juiz de Fora, no interior de Minas Gerais, quando um general, Olympio Mourão Filho, ainda vestido de pijama e roupão de seda vermelha – “posso dizer com orgulho de originalidade: creio ter sido o único homem no mundo (pelo menos no Brasil) que desencadeou uma revolução de pijama”, escreveria, mais tarde, em suas memórias –, telefonou para militares e políticos comunicando que se preparava para marchar com suas tropas em direção ao Rio de Janeiro para derrubar o presidente João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Longo em casa, com o diploma de vereador Crédito: Marcelo Ximenez/CMSP

Duas semanas antes, em 13 de março, Jango, como era conhecido, havia anunciado, em um discurso na Central do Brasil, no Rio, o lançamento de um projeto de “reformas de base”, que previam itens como reforma agrária e urbana. Eram propostas que agradavam aos trabalhadores, mas incomodavam as elites empresariais brasileiras e também despertavam a desconfiança do governo norte-americano, que via o risco de Goulart “entregar o País aos comunistas”. Enquanto militares, políticos e empresários traçavam planos para a derrubada de Jango, o presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, autorizava o lançamento da Operação Brother Sam, que previa o envio de um porta-aviões ao litoral brasileiro para auxiliar os revoltosos. Mal sabiam que nada disso seria necessário.

Ao longo do dia 31, à medida que as tropas de Mourão Filho se aproximavam do Rio, o movimento golpista ia ganhando cada vez mais adesões. No final da noite, quando os vereadores paulistanos se movimentavam no Palacete Prates, chegou a notícia de que o general Amaury Kruel, comandante do II Exército, responsável pelas áreas de São Paulo e Mato Grosso, havia aderido ao golpe. Era um apoio decisivo.

O presidente eleito João Goulart caiu sem resistir. No dia 1º de abril, temendo ser capturado pelos militares golpistas, viajou do Rio de Janeiro para Brasília e de lá para Porto Alegre. Na madrugada do dia 2, o senador Auro Moura Andrade, presidente do Congresso, aproveitou-se da ausência de Jango para declarar vaga a Presidência da República. Em seu lugar, assumiu o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, que, duas semanas depois, daria lugar a Humberto de Alencar Castello Branco, o primeiro de uma linhagem de generais que passaria a comandar o Brasil ao longo dos 21 anos seguintes. O reconhecimento de que o senador desrespeitou a Constituição, ao declarar vaga a Presidência enquanto o presidente ainda estava no País, viria somente 39 anos depois, quando uma resolução do Congresso anulou simbolicamente a decisão de 1964, “visando tornar clara a manobra golpista levada a cabo no plenário”.

A mil quilômetros dali, os acontecimentos de Brasília aumentavam a tensão no Palacete Prates, onde os vereadores permaneciam reunidos. Do lado de fora, militares ameaçavam invadir o prédio e prender os vereadores de que não gostavam, conforme o relato de Longo. “Aí o Luiz Domingues de Castro, que era o presidente da Casa, falou: ‘Se isso acontecer, eu entrego as chaves da Câmara ao comandante do golpe em São Paulo’”, conta. O blefe deu certo. Como naquele dia os militares ainda tentavam disfarçar seu golpe de Estado como uma “revolução democrática”, preferiram evitar um confronto direto com o Legislativo.

Para ludibriar a vigilância dos militares que rondavam o Prates e salvar da prisão Moacir Longo e Odon Pereira da Silva (PTB), os vereadores mais visados por conta da militância comunista, a Câmara Municipal montou uma operação digna de 007, personagem que emplacava um filme por ano nas telas da época. Utilizaram para isso os automóveis da Casa – que na época eram apenas dois, destinados ao presidente e ao primeiro-secretário. Passaram o 1º de abril fazendo várias saídas com os dois carros, sempre cheio de pessoas, para não chamar atenção. Numa dessas saídas, já na madrugada do dia 2, enquanto o governo democrático chegava ao fim em Brasília, Longo e Pereira conseguiram deixar o Palácio sem chamar a atenção das autoridades.

Longo refugiou-se na casa de um médico, companheiro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), no Sumaré, região oeste da capital. Mas nunca retornaria à Câmara como vereador. Pediu licença do cargo, pois sabia que os militares iriam caçá-lo – em sentido figurado – além de cassá-lo – literalmente.

‘REGIME DE TERROR’

A caçada aos vereadores já tinha começado. Logo após a consumação do golpe militar, um grupo de aproximadamente dez vereadores foi obrigado a comparecer no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para “prestar esclarecimentos”. Longo, que estava escondido, não foi. Outros não tiveram opção: foram presos em casa e levados à delegacia. Quase todos foram liberados em poucas horas, com exceção de Odon Pereira da Silva, que só conseguiu sair do Dops após a pressão de outros vereadores junto ao delegado.

Um dos vereadores detidos nesse primeiro ataque da ditadura recém-instalada, David Lerer, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), conta que ouviu da boca do coronel Rubens Resstel, encarregado de conduzir o seu inquérito policial militar (IPM), que o governo já tinha decidido pela cassação de seu colega Moacir Longo. “Vereador, na Câmara Municipal vocês são dois do PSB. Nós já vamos pegar um, comunista conhecido”, ouviu do militar, que acrescentou: “Não queremos acabar com o partido, o presidente Castello Branco é um democrata, o senhor concorda? Portanto está liberado, mas atenção. Na próxima o senhor não escapa”.

A movimentação feita pelos vereadores no Palacete Prates pretendia ser uma “vigília democrática”, segundo Longo, um gesto de resistência a favor do governo democraticamente eleito. Em dois dias, contudo, o golpe militar já havia se consolidado. Reunidos no Salão Nobre, o presidente da Casa e parte dos líderes das bancadas debateram qual deveria ser, então, “a posição da Edilidade Paulistana” diante dos acontecimentos. Decidiram pelo apoio ao golpe.

Uma comissão de vereadores foi até o gabinete do general Amaury Kruel, onde deixou um ofício cheio de elogios, assinado pela Mesa Diretora da Câmara Municipal, que declarava “a mais irrestrita solidariedade” ao militar golpista, a quem chamava de “ilustre cabo de guerra”. O senador Moura Andrade também recebeu um ofício ainda mais entusiasmado, em que os vereadores saudavam a “imorredoura lição de civismo e patriotismo” dada ao derrubar o governo e afirmavam sua “fé num Brasil cristão, alicerçado no regime democrático, onde não poderão medrar ideologias deletérias da índole do comunismo pagão”.

As comemorações pelo golpe militar continuaram na primeira sessão realizada após o queda de Goulart, em 6 de abril. Nesse dia, além da sessão ordinária, os vereadores convocaram uma “sessão especial” destinada a comemorar a chegada dos militares ao poder, “essa memorável vitória que há de ficar gravada nos nossos corações para todo o sempre”. Dos 45 vereadores, 29 manifestaram-se naquele dia: 24 declararam apoio ao golpe, três falaram de outros assuntos e apenas dois criticaram a ação militar — João Carlos Meirelles, do Partido Democrata Cristão (PDC), e David Lerer.

A passagem de Longo pela Câmara durou apenas três meses / Crédito: Ângelo Dantas/CMSP

Nos meses seguintes, ainda que os Anais da Casa tenham registrado algumas críticas aos militares, a maioria delas vindas de Lerer, a maioria preferia elogiar o novo regime ou falar de outras coisas. Uma das falas mais contundentes registradas contra a autoproclamada “revolução” acabou vindo após o governo do presidente Castello Branco divulgar, em 13 de junho, a lista de cassados com base no Ato Institucional nº 1. Um dos nomes, como esperado, era a do vereador Moacir Longo. O assunto foi ignorado nos debates em Plenário do Palacete Prates. A única menção à cassação partiu de Lerer, em 17 de junho. Na tribuna, o companheiro de bancada de Longo leu uma carta enviada pelo colega. “O regime de terror implantado pelo Ato Institucional, editado por aqueles que se julgam no direito de tutelar a Nação, não tem futuro”, atacava a carta-discurso de Longo, em uma das mais duras manifestações contra o regime militar de 1964-1985 registradas no Parlamento paulistano durante o período ditatorial.

Longo não exagerava ao chamar o governo daqueles dias de “regime de terror”. Embora o regime ainda não tivesse entrado em sua fase mais dura, que teria início em 13 de dezembro de 1968, com a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), as mortes, torturas e perseguições já estavam na ordem do dia. Em A ditadura envergonhada, o jornalista Elio Gaspari contabiliza 13 mortes nos nove primeiros meses do governo militar, além de 2 mil funcionários públicos que foram demitidos ou aposentados compulsoriamente e 386 pessoas que tiveram seus mandados cassados e/ou perderam os direitos políticos, entre 1964 e 1966. Os casos de tortura se contavam às centenas, vários deles denunciados no Correio da Manhã — curiosamente, um jornal que, em 31 de março, havia apoiado a derrubada de João Goulart.

Encerrada a leitura da carta de Longo, nenhum vereador tocou mais no assunto. A sessão prosseguiu como se nada tivesse acontecido. “A Câmara Municipal aceitou sem protesto a cassação, assumindo papel de total submissão ao arbítrio”, afirma o relatório da Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, publicado em 2016.

“Li a carta com muito orgulho”, relembra Lerer. Ele lamenta que a cassação de Longo o tenha impedido de conhecer melhor o colega de partido. “Sempre tivemos pouco contato. Tomamos posse em janeiro e teve a revolução em março. Não deu tempo nem de ficar amigo, de tomar uma cerveja juntos”, diz.

COMUNISTA DE CARTEIRINHA

Perseguição política não era uma novidade para Longo. Para ser eleito vereador, meses antes, precisara recorrer de uma decisão da Justiça eleitoral que havia impugnado sua candidatura. “O Dops informava à Justiça quem tinha cadastro de comunista. Eu tinha. E era volumoso…”, conta Longo, orgulhoso do seu currículo de “revolucionário profissional” iniciado em 1945, quando era um operário magrelo recém-chegado do interior que, mesmo sem ter idade para votar, participava das eleições distribuindo folhetos de Iedo Fiúza, candidato do PCB à Presidência da República.

Nascido em 5 de maio de 1930, em Taquaritinga, no interior de São Paulo, filho de imigrantes italianos e espanhóis, Longo começou a trabalhar aos dez anos, na lavoura. Seu pai, que trabalhava no comércio de café, foi um comerciante “relativamente próspero” até a quebra da Bolsa de Valores, em 1929, levá-lo à falência. Depois disso, o casal, com seus 13 filhos, foi trabalhar na roça.

Aos 15 anos, mudou-se com a família para a capital paulista, onde a família se tornou operária. “Meu primeiro emprego na cidade foi numa fábrica de tamancos”, lembra Longo. Influenciado pelo pai, comunista de carteirinha, filiou-se em 1946 ao PCB, num dos breves períodos em que o partido esteve legalizado. Em maio do ano seguinte, contudo, o registro do partido foi cassado. Liberdade partidária não era algo que cabia nos marcos da limitada democracia da época. “O regime político que passou a vigorar em janeiro de 1946, embora inscrito nos marcos da denominada democracia liberal, fundou-se no terrorismo de Estado, na negação das garantias individuais, na banalização da eliminação física de opositores e na supressão da liberdade de organização dos setores populares – especialmente os sindicatos e o PCB”, afirma o jornalista Pedro Estevam da Rocha Pomar no livro A Democracia intolerante: Dutra, Adhemar e a repressão ao Partido Comunista (1946-1950) (Imprensa Oficial, 2002).

Longe da arena eleitoral, Longo lutava no movimento sindical, reivindicando melhores salários, descanso semanal remunerado e abono de Natal (o atual 13º salário). Chegou a perder o emprego de ajustador mecânico numa metalúrgica por participar de uma greve. “Os movimentos sociais eram duramente reprimidos, não era essa moleza de hoje”, recorda. Foi preso pela primeira vez em 12 de dezembro de 1949, ao pichar em um muro “Viva o camarada Stálin, campeão da paz”.Jogado na ilegalidade, o PCB fechou sedes e perdeu quase 70% dos seus filiados, segundo Longo. Ele e o pai continuaram na militância, que tinha se tornado mais dura. “Aí a luta adquiriu caráter diferente, porque o partido estava na clandestinidade e começaram as perseguições”, lembra. Uma das estratégias usadas pelos comunistas foi o de concorrer por outras siglas, mas nem isso evitava a perseguição das autoridades. Em 1947, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou os registros de 15 vereadores comunistas – ou suspeitos de pertencer ao PCB – que haviam sido eleitos pelo Partido Social Trabalhista (PST), entre elas aquela que se tornaria a primeira vereadora paulistana, Elisa Kauffmann Abramovich.

Aos 21 anos, por decisão do partido, afastou-se do trabalho como operário e passou a ser remunerado para se dedicar exclusivamente à militância, tornando-se o que os comunistas chamavam de “revolucionário profissional”. Começou como secretário de propaganda no comitê distrital do Ipiranga (zona sul da capital) e, nove anos depois, foi eleito presidente municipal. “Garoto ainda, cara de moleque, franzino, fumando dois maços de cigarro por dia, assumindo a direção do partido no principal município do País…”, relembra Longo no documentário O Longo caminho de Moacir, produzido pela Fundação Astrojildo Pereira.

Aprendeu a fazer jornalismo na prática das redações dos jornais comunistas, como Notícias de Hoje e Voz Operária, que usavam a mão de obra de “repórteres populares” — militantes com vocação para escrita que eram chamados a escrever sobre tudo, dos problemas dos bairros aos campeonatos de futebol de várzea. “Eram jornais que tinham poucos recursos e nada de anúncios, então a gente tinha que escrever muito”, recorda.

O moleque franzino também presidiu a União da Juventude Comunista e viajou à União Soviética para um curso de sociologia política, ao lado de “uma turma da pesada” que incluía quadros como o historiador Jacob Gorender e as lideranças Carlos Marighella e Maurício Grabois. “Era um curso muito bom. Não tratava de bomba nem de guerrilha, como a imprensa conservadora imaginava. Eram matérias de caráter social e político”, recorda.

PRIMEIRO, CASSADO; DEPOIS, PRESO

Em 1963, o rosto do militante estava estampado em santinhos com a frase “Para vereador – Moacir Longo – um operário metalúrgico que tornou-se combativo jornalista a serviço dos trabalhadores”. Não se sentia à vontade com a candidatura. “Só fui candidato porque o partido me forçou. Não queria, resisti bastante, mas acabei tendo de topar a parada”, diz.

Operários na construção da nova sede / Acervo CMSP

Na época, os comunistas adotavam a estratégia de concorrer por diferentes partidos, para não correrem o risco de serem alvos de uma “carnificina político-eleitoral” como haviam sofrido em 1947. Enquanto Longo elegeu-se pelo PSB, outro membro do PCB, Odon Pereira da Silva, foi de PTB. Os comunistas ainda haviam conseguido emplacar um terceiro vereador, Gonzaga Pereira, eleito pelo PRT. Naquele tempo de segredos e informações compartimentadas, a filiação de Gonzaga Pereira ao PCB não era conhecida nem por Longo ou Odon da Silva, que pertenciam a uma divisão diferente do PCB. “Gonzaga era muito discreto”, lembra.

Longo fez uma campanha com poucos recursos. “Minha campanha foi feita com um panfleto, bem simples, e reuniões pequenas, com famílias, nos bairros, portas de fábrica, e uma ou duas inscrições murais, que naquele tempo podia”, conta. Após as eleições, realizadas em 6 de outubro, tornou-se vereador com 4.632 votos.

Embora estreante na política, conseguiu mostrar um bom poder de articulação. Nas conversas de bastidores para a escolha da Mesa Diretora, como muitos dos vereadores eleitos eram de primeiro mandato, vinham discutindo a criação de uma espécie de “bancada dos novos”, em oposição aos da “velha política”. Longo fez os colegas desistirem da ideia, ao mostrar a divisão que importava não era entre novos e velhos. “Procurei mostrar que a principal divisão na Câmara era entre as forças progressistas e as conservadoras e golpistas”, diz. Assim, ajudou a montar um grupo de 11 vereadores, conhecido como Bloco Nacionalista, que buscava reunir nomes identificados com a esquerda.

A articulação comandada por Longo conquistou uma importante vitória na eleição da Mesa Diretora, que ocorreu em 1º de janeiro de 1964, numa sessão tumultuada, com empurrões e xingamentos. Mesmo sendo dono da maior bancada, o Partido Social Progressista (PSP), criado por Ademar de Barros, governador de São Paulo e um dos articuladores do golpe, saiu derrotado na disputa. A chapa liderada por Manoel Figueiredo Ferraz, genro de Ademar, perdeu feio. O PSP conseguiu levar apenas a vice-presidência da Casa. Já a UDN, dona da segunda maior bancada entre os vereadores  e que no plano nacional era a principal opositora de João Goulart , ficou de fora da Mesa.

Na prática, a escolha da Mesa Diretora significou uma derrota para as forças políticas que, dali a três meses, viriam a arrancar o presidente João Goulart do poder. É claro que nada desse histórico seria visto com bons olhos pelas autoridades quando a ditadura se instalasse. “Os 11 vereadores entraram numa lista de nomes montada pelo tal Comando da Revolução, mas no final cassaram apenas a mim, que era o coordenador do bloco”, conta Longo.

Ele permaneceu apenas três meses no Palacete Prates, tempo suficiente para presidir a Comissão da Lavoura, Indústria e Comércio, participar como membro da Comissão de Finanças e Orçamento e arrumar polêmica ao denunciar na tribuna um acordo da Prefeitura com uma companhia telefônica, que ele considerava lesivo ao Município.

Após a cassação, nunca mais se candidatou a outro cargo eletivo. “Agora, nem forçado pelo partido eu iria”, diz. Mesmo na clandestinidade, nunca deixou de fazer política do jeito que gostava, por meio do jornalismo ou da militância com as bases. “Eu sempre achei que militar politicamente é um dever de cidadania”, afirma.

A CRIANÇA QUE ESTAPEOU O TORTURADOR

A ditadura também não se esqueceu do ex-vereador: ao visitar um colega de partido, Longo acabou detido por agentes do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi). “Isso foi em 25 de julho de 1972. Eu não esqueço”, conta a professora Leda Rosa dos Santos Neto, com quem o comunista se casou em 1969. Quando seu marido foi preso, Leda levava no colo a filha de dois anos do casal, Laelya, e na barriga a segunda filha, Denise, que nasceria naquele ano. “Foi terrível”, ela se lembra.

O Doi-Codi, na época, era comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, falecido em 2015 e conhecido pela brutalidade. Em 2008, tornou-se o primeiro militar a ser reconhecido oficialmente como torturador numa decisão judicial. Desses tempos duros, a família guarda uma daquelas cenas que, assustadora na época, hoje pode ser recordada com graça: “Numa das visitas, Ustra foi fazer uma gracinha para minha filha Laelya e ela deu um tapa na cara dele”. A criança de dois anos deu o recado que centenas de presos torturados e mortos gostariam de ter dado.

Longo conta que foi torturado nas dependências do Doi-Codi, mas prefere desconversar quando toca nesse tema, e não dá para saber se isso é por trauma, timidez ou ambos. Seja como for, ele não gosta de ser visto como herói. “Não fiz nada de extraordinário, não cometi nenhum ato heroico, nada. Fui sempre um militante dedicado à disciplina e às tarefas do partido”, é como resume sua história no documentário O Longo caminho.

Do Doi-Codi, foi levado para o Presídio Tiradentes e, depois, para o Presídio do Hipódromo, ambos endereços de vários presos políticos durante o regime militar. Lá, entre discussões políticas com outros presos, jogos de buraco e trabalhos manuais, como feitura de cestas e colares, aproveitava para fazer anotações em uma brochura, selecionando informações dos livros de história do Brasil que recebia de Leda. Nas revistas gerais feitas nas celas, o caderno coberto de anotações cuidadosamente escritas foi apreendido duas vezes, mas devolvido.

Longo saiu do presídio, sob livramento condicional, em 1974. Ao lado da militância política, voltou a fazer jornalismo, passando por veículos como Correio do Povo, de Guarulhos, Jornal de Hoje, em Campinas (ao lado do jornalista José Hamilton Ribeiro), e Folha de S. Paulo. Após a redemocratização, atuou como assessor parlamentar e como assessor de comunicação do Sindicato dos Agentes Fiscais de Renda do Estado de São Paulo (Sinafresp), onde participou da publicação de quatro livros, entre eles Reformas para desenvolver o Brasil (Nobel, 2003).

Em 2006, resolveu se aposentar da militância política para “ficar de papo para o ar”. Mas não foi exatamente o que fez. Aproveitou o tempo livre para usar as anotações feitas no cárcere como base para seu livro Brasil – os descaminhos do país das terras achadas, lançado em 2008 pela Fundação Astrojildo Pereira. Com a obra, procurou preencher uma lacuna das reflexões de seu partido, que achava voltadas demais para a realidade estrangeira. “Esse livro é o que eu queria dizer sobre o meu país. Depois que o escrevi, fiquei mais sossegado”, conta.

Hoje, é considerado presidente de honra do PPS (atual Cidadania 23), nome adotado pelo antigo PCB em 1992. Em 2010, recebeu a Ordem do Ipiranga, a maior distinção concedida pelo governo de São Paulo. Não se arrepende de nada. “Quando a gente tem uma convicção, deve ser coerente com ela e ir em frente, haja o que houver.” E pagou o preço por suas convicções: “Tive uma vida muito dura, muito tensa, convivendo com o medo de ser preso e perder a vida”.

“Hoje estou tranquilo e consigo dar mais atenção para a família”, acrescenta, sentado no sofá da sala do seu apartamento, em um condomínio na Penha, zona leste paulistana, onde vive com a esposa. E onde o ronco do trânsito é abafado pelos cantos de “bem-te-vi, bem-te-vi” do lado de fora.

DE VOLTA À CÂMARA

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Longo descerra placa em homenagem a vereadores cassados por ações autoritárias / Crédito: Mozart Gomes/CMSP

Aos 83 anos, Longo retomou sua história interrompida na Câmara Municipal de São Paulo, ao presidir uma sessão solene que, em 9 de dezembro de 2013, restituiu simbolicamente os mandatos de 42 vereadores cassados por ações autoritárias, entre 1937 e 1969.

“A noite de hoje é importante para as novas gerações tomarem conhecimento de que no Brasil nunca houve democracia de fato para todos; neste País sempre reinou a opressão a todas as oposições”, criticou Longo durante a sessão. “Ainda temos que avançar muito na construção da democracia, não apenas política, mas social”, disse.

Ao final de sua fala, o homem que, 49 anos antes, havia deixado a Câmara Municipal escondido em um carro, para não ser preso pela polícia, e agora retornava à instituição para presidir uma sessão solene no Salão Nobre, concluiu: “Viva a democracia”.

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Longo descerra placa em homenagem a vereadores cassados por ações autoritárias / Crédito: Mozart Gomes/CMSP

TRECHOS DA CARTA-DISCURSO DE MOACIR LONGO, LIDA NO PLENÁRIO POR DAVID LERER EM 16/6/1964, APÓS A CASSAÇÃO DO VEREADOR

Senhor Presidente, Senhores Vereadores: desejaria despedir-me pessoalmente de todos os colegas da Câmara Municipal de São Paulo, no momento em que o Sr. Presidente da República, Sr. Marechal Humberto de Alencar Castello Branco, assina ato do qual consta mais uma lista de cassação de mandatos e de suspensão de direitos políticos pelo prazo de dez anos de cidadãos brasileiros, entre os quais figura o meu nome.
Creio que todos sabem por que estou ausente, por que não posso comparecer pessoalmente. Nestas condições, falo pela última vez aos nobres colegas, através desta carta-discurso, única forma ao meu alcance neste momento.
O mandato ora cassado não me pertencia. Era exercido por delegação de, aproximadamente, cinco mil trabalhadores paulistanos que me honraram com a sua confiança. O ato que me atinge é mais um entre centenas de outros que colocam representantes do povo e lutadores em prol das causas populares ante a fúria vingativa de algumas personalidades civis e militares, investidas de poderes discricionários ao encabeçarem um movimento de força que aboliu, em nossa pátria, as liberdades democráticas e o respeito à pessoa humana.
O regime de terror implantado pelo Ato Institucional, editado por aqueles que julgam no direito de tutelar a Nação, não tem futuro. Não tem futuro porque está sendo repudiado pelo povo brasileiro de tantas e tão gloriosas tradições democráticas. Não tem futuro porque nascido de um movimento que se dizia contra a corrupção, atingiu apenas e fundamentalmente legítimos patriotas e defensores incansáveis da emancipação nacional, do progresso e do bem-estar do nosso povo. (…)
E não tem futuro porque não tem movimento que se proponha restaurar a democracia, viola todas as liberdades asseguradas pela Constituição e instaura a “democracia do silêncio”, fundada no desrespeito à vontade popular, manifestada nas urnas, na intervenção nos sindicatos, nas entidades estudantis e nas associações populares, no arrolhamento da imprensa, rádio e TV, bem como na interdição das praças públicas para o povo.
Não tem futuro, ainda, porque um movimento que tinha por objetivo restabelecer a autoridade e a autonomia do Poder Legislativo, estabelece a mordaça e a tutela como formas de intimidá-lo, subjugá-lo e colocá-lo de joelhos, anulando-o como Poder independente.(…)
A tudo isso o povo assiste perplexo e aterrorizado, parece aceitar esse estado de coisas num silêncio que, entretanto, revela um surdo protesto. Tenho certeza, contudo, que não tolerará esta situação por muito tempo. (…)
Essa não é uma previsão fundada num otimismo gratuito. É, antes, a convicção de quem acredita firmemente na vocação democrática de seu povo, na sua disposição de luta e no fato de que é ele quem faz a história.
Ao encerrar estas palavras, como brasileiro despojado de seus mais elementares direitos de cidadão, mas que continua sendo um do povo e, portanto, preocupado com os destinos de sua pátria, espero que a Câmara Municipal de São Paulo se integre na luta de redenção nacional.
O ato que me tira da vida pública não me abate, não me desperta ressentimentos nem ódios, não me coloca à margem da luta pelo progresso, não me provoca arrependimentos, mas, ao contrário, orgulha-me do que fiz até aqui. Gera em mim novas forças para prosseguir no caminho que escolhi – a luta pelo socialismo.
Aos meus eleitores, trabalhadores e companheiros do Partido Socialista Brasileiro (PSB), que em mim confiaram, peço tolerância e compreensão por não ter feito tudo que de mim esperavam, no breve período de atividades parlamentares. Se mais não fiz foi, talvez, por incapacidade e nunca porque me faltassem abnegação e esforço.
Cumpro o ato do senhor Presidente da República ao deixar o mandato legislativo, mas o mandato de luta que o povo me outorgou está revigorado e será exercido fora da Câmara.
Ao despedir-me quero reafirmar, ainda uma vez, a certeza de que o caminho da ditadura será barrado, e a democracia autêntica será restaurada e que o povo brasileiro se libertará.
Muito obrigado, Sr. Presidente e senhores Vereadores.

São Paulo, 15 de junho de 1964.

Livro
Elio Gaspari. A Ditadura envergonhada. Companhia das Letras, 2002


Sergio Fausto: Sobre a admiração dos Bolsonaros por Pinochet

O regime do general chileno foi não apenas uma ditadura, mas das mais brutais da região

Os presidentes da Câmara e do Senado chilenos, Ivan Flores e Jaime Quintana, recusaram convite para comparecer a jantar com Jair Bolsonaro organizado pelo presidente Sebastián Piñera. Incivilidade? De modo algum. Bolsonaro jamais poupou elogios ao ditador Augusto Pinochet. Razão de sobra para não comparecerem ao encontro.

Em sua recente visita a Santiago, o presidente brasileiro mostrou-se mais cauteloso, disse que não estava ali para discutir Pinochet, mas não perdeu a ocasião de uma vez mais pôr em dúvida que no Cone Sul (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai e Paraguai) tenha havido uma série de regimes ditatoriais liderados por militares nas décadas de 1960 a 1980. Falsificação histórica comparável à de chamar democrática a Venezuela chavista.

O regime de Pinochet foi não apenas uma ditadura, mas uma das mais brutais da região. Por quase duas décadas manteve fechado o Congresso, banidos todos os partidos políticos, proscritos todos os sindicatos de oposição, controlado o Poder Judiciário e a imprensa. Pinochet presidiu o Chile sem jamais ser submetido ao teste das urnas. Quando teve de enfrentá-lo, no plebiscito de 1988, o povo chileno disse-lhe não e a ditadura viu-se obrigada a reconhecer que havia chegado ao fim.

Depois do retorno do Chile à democracia, duas comissões – uma presidida por um respeitado jurista e político de centro, Raúl Retting, e outra pelo então bispo auxiliar emérito da Arquidiocese de Santiago, Sergio Valech – deram números tão precisos quanto possível à sistemática violação de direitos humanos durante a ditadura pinochetista: cerca de 30 mil pessoas presas e submetidas a sevícias de toda sorte e 3 mil mortas ou desaparecidas em centenas de centros clandestinos de detenção e tortura.

A matança começou logo após o golpe de 11 de setembro de 1973, com a decretação do “estado de guerra” e a organização das chamadas caravanas de la muerte. Sob o comando do general Sergio Stark, destacamentos militares puseram em marcha a execução sumária de uma centena de líderes políticos e sindicais ligados ao governo deposto de Salvador Allende. Depoimentos feitos anos mais tardes por alguns dos participantes relatam fuzilamentos seguidos de esquartejamento, com requintes de crueldade, e desaparição dos corpos.

Milhares de pessoas foram feitas prisioneiras já nos primeiros dias. À falta de infraestrutura, improvisaram-se instalações como o Estádio Nacional. Ali mataram em 16 de setembro de 1973 Victor Jara, cantor popular, com 44 tiros, não sem antes lhe terem quebrado os dedos das mãos a coronhadas. Em 2008 a Suprema Corte de Justiça condenou o general Stark a seis anos de prisão. Já os responsáveis pela morte de Victor Jara receberam pena de 15 anos, em sentença da Corte de Apelações de Santiago, em 2018.

À selvageria inicial seguiu-se a organização de um aparato dedicado à supressão de toda e qualquer oposição à ditadura de Pinochet. Em 1974 criou-se a Dirección de Inteligencia Nacional (Dina), a polícia política do regime, contra o voto de um único integrante da Junta Militar. Chefe dos Carabineiros, a polícia nacional chilena, o general Germán Campos se opôs à institucionalização do terrorismo de Estado, o que lhe custou o cargo.

O longo braço da Dina ultrapassou as fronteiras do Chile. Em setembro de 1974 seus agentes fizeram explodir em Buenos Aires o carro dirigido pelo antecessor de Pinochet no comando do Exército, o general Carlos Pras. Em 21 de setembro de 1976, em plena capital dos EUA, agentes da polícia política mandaram pelos ares o veículo de Orlando Letelier, ex-embaixador chileno em Washington. Ao matá-los a Dina cumpria o desígnio de Pinochet de eliminar fisicamente figuras respeitadas no exterior que denunciavam a sistemática e brutal violação dos direitos humanos no Chile. Pelo assassinato de Pras e Letelier, além de outros inúmeros crimes, o general Manuel Contreras, chefe da Dina, recebeu sentenças de tribunais chilenos que, somadas, o condenaram a pena de reclusão superior a 500 anos.

Para o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, as violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura de Pinochet foram o preço a pagar para livrar o Chile do risco de virar Cuba. A seu ver, valeram a pena. A afirmação revela não só uma assustadora insensibilidade ao sofrimento humano, mas também um raciocínio falacioso. Se a violência do regime Pinochet se justificasse por esse suposto risco, por que teria perdurado quando todos os partidos e grupos de esquerda já estavam desarticulados, quando não destruídos? Por que teriam agentes da Dina, então renomeada Central Nacional de Informaciones, envenenado o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, líder democrata-cristão que se opusera a Allende, em assassinato cometido em 1982, quase dez anos depois do golpe de 11 de setembro? Por que vários centros clandestinos de detenção e tortura só foram desativados quando o país retornou à democracia?

A verdade é que o terror estatal posto em funcionamento pela ditadura Pinochet visava a extirpar da memória e remover do horizonte da sociedade chilena quaisquer forças que pudessem pôr em xeque o modelo de país forjado a ferro e fogo pela ditadura, assegurando impunidade pelos crimes cometidos em seu nome. Não se travava só de implantar uma economia de mercado com direitos sociais mínimos, mas também uma ordem política autoritária com as Forçar Armadas à testa e a negação ou severa limitação dos direitos civis e políticos, além de uma cultura domesticada por um catolicismo ultraconservador e repressivo.

Ao se recusarem a comparecer ao jantar com Bolsonaro, os presidentes do Senado e da Câmara honraram as melhores tradições democráticas do Chile, um país que se libertou da ditadura pinochetista e elucidou a verdade de seus crimes, sem revanchismo, mas com coragem.

*Superintendente Executivo da Fundação FHC. Colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP


El País: A regra de sangue da Operação Condor, a aliança mortífera das ditaduras do Cone Sul

A Operação Condor, aliança entre Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia, permitiu a troca de informações e livre trânsito para perseguir, torturar e matar opositores da ditadura no continente

Era novembro de 1978, quando o casal uruguaio de ativistas Lilián Celiberti e Universindo Rodríguez Díaz e seus dois filhos, Camilo, 8 anos, e Francesca, 3 anos, foram sequestrados em Porto Alegre. A família fora raptada em uma operação conjunta entre militares brasileiros e uruguaios que perseguiam os opositores das ditaduras para torturá-los e matá-los. Mas acabou fracassada após ser descoberta por dois jornalistas. O sequestro dos uruguaios, como o caso ficou conhecido, tornou-se, anos mais tarde, o exemplo mais emblemático de como ocorreu, na prática, a Operação Condor.

Na época do sequestro, a Condor era uma aliança secreta formada entre os governos militares do Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai, Chile e Uruguai para perseguir os ativistas contra os regimes militares nesses países. Embora formalizada somente em 25 de novembro de 1975, em Santiago do Chile, essa conexão repressiva já existia desde o início daquela década no continente. O jornalista Luiz Cláudio Cunha, que juntamente com o fotógrafo J.B. Scalco, descobriu o sequestro da família, conta que o caso foi a primeira ação da Condor em território brasileiro. “Até então, não havia nenhuma informação sobre a Condor ter entrado no Brasil”, conta ele, que também é autor do livro Operação Condor: Sequestro dos Uruguaios (L&PM, 2008). “O sequestro foi a única ação da operação flagrada enquanto acontecia”.

Cunha narra que chegou ao flagrante por meio de um telefonema anônimo que recebeu na redação da revista Veja em Porto Alegre, onde era diretor. “Era uma sexta-feira, 17 de novembro de 78, e eu recebi um telefonema de São Paulo, de uma pessoa que não se identificou, dizendo o nome de quatro pessoas e um endereço”, conta o jornalista. “Eu perguntei se eles estavam desaparecidos e me disseram “‘não, estão detenidos [detidos, em espanhol]”. Cunha afirma que chegou ao endereço e fora recebido por Lilián Celiberti, com quem começou a falar em espanhol, e logo duas pistolas apareceram apontadas para sua cabeça. “Me mandaram entrar, e como eu falei em espanhol, acharam que eu era do Uruguai”, afirma. Os militares buscavam por Hugo Cores, um dos principais ativistas uruguaios e alvo da Operação Condor. Ao se identificar como jornalista, e mostrar suas credenciais, Cunha acabou liberado pelos militares e logo se pôs a escrever tudo o que tinha visto.

Embora o jornalista tenha ido ao apartamento da família no dia 17 de novembro, já fazia uma semana que Lilián havia sido sequestrada. E como o caso acabou tornando-se público após a publicação da reportagem, Lílian e Universindo foram torturados e presos, mas não foram mortos. “A regra de sangue da Condor era identificar o inimigo, localizar, mandar o comando para pegar, sequestrar, torturar, extrair as informações, matar e desaparecer com o corpo”, diz Cunha. “No caso de Porto Alegre, como aparecem jornalistas no meio da operação tiveram que abortá-la e não puderam matar os sequestrados. Dali em diante, eles não puderam matar a Lílian e o Universindo, porque virou um escândalo internacional”.

Para que a Condor pudesse alcançar seus objetivos, um dos acordos era o de livre trânsito dos militares, que podiam atravessar as fronteiras sem mandado judicial ou ordem da Justiça, e com anuência dos países que faziam parte do pacto. Além disso, a operação contava com apoio e suporte dos Estados Unidos que, embora não tivessem participação direta nas ações, sabiam que elas existiam. “Os Estados Unidos também forneceram, através da CIA, um sistema de comunicação sofisticado que era utilizado entre todos os países chamado Condortel”, conta Cunha.

A revelação do sequestro e da ação de militares uruguaios em solo brasileiro feita por Cunha e Scalco não jogaram luz, porém, na Operação Condor naquele momento. “Nunca ninguém soube da existência da Condor, que foi uma organização que só apareceu a partir da liberação dos documentos da CIA durante o Governo Clinton nos Estados Unidos [1993-2001]”, explica Cunha. Os documentos liberados pelos Estados Unidos atestando a existência da Condor são mais uma peça que se soma à história das ditaduras tanto no Brasil, como em outros países da América do Sul. E esse quebra-cabeça contraria, obviamente, a tese proferida pelo presidente Jair Bolsonaro de que não houve ditadura no Brasil.

“A regra de sangue da Condor era identificar o inimigo, localizar, mandar o comando para pegar, sequestrar, torturar, extrair as informações, matar e desaparecer com o corpo”

O fim da Condor
A Operação Condor, cujo nome rememora a ave presente no brasão oficial do Chile, terminou no início dos anos 80, juntamente com o arrefecimento das ditaduras no continente. Antes disso, porém, deu um de seus suspiros finais no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Era março de 1980 quando os ativistas Horacio Domingo Campiglia e Monica Susana, do Movimento Peronista Montoneros, que mantinha resistência armada contra a ditadura militar argentina, aterrissaram no Rio para participar de uma convenção. Ao descerem do avião, já havia um corredor polonês de oficiais à espera dos do casal. “Quando eles desceram da escada do avião, perceberam que seriam presos e logo começaram a gritar seus nomes e de onde eram”, conta o jornalista Luiz Cunha.

O desfecho dessa ação realizada por militares argentinos em solo brasileiro é mais amargo do que o sequestro dos uruguaios: Monica e Horacio foram levados naquele mesmo dia para a Argentina onde foram torturados e mortos. Seus corpos nunca foram encontrados. “Na véspera, havia descido um avião no Galeão, modelo Hércules, com uma tropa armada, uniformizada, do exército argentino, que só poderia descer com autorização da aeronáutica”, diz Cunha. “Ou seja, aquela ação era no âmbito da operação repressiva da Condor”.

Foi a própria Argentina que, anos mais tarde, seria o primeiro país a condenar formalmente os chefes da Operação Condor. O longuíssimo julgamento com 105 vítimas e 18 réus teve início em 1999 com cinco casos e foi crescendo gradualmente, durando mais de uma década. Em 2016, um tribunal federal condenou por “associação ilícita no âmbito da Operação Condor” alguns dos principais acusados a penas entre 12 e 25 anos.

Aqui no Brasil, o Estado do Rio Grande do Sul reconheceu oficialmente, em 1991, o sequestro dos uruguaios e os indenizou. Um ano depois, o então presidente do Uruguai, Luis Alberto Lacalle fez o mesmo. Lílián Celiberti ainda hoje é ativista política no Uruguai. Universindo Díaz faleceu de câncer em 2012, aos 60 anos.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro agora quer brigar com a História

Segundo o porta-voz do governo, Bolsonaro ‘não considera’ que houve golpe em 1964. É constrangedor que ele precise explicar a divergência do chefe com os livros de História

O presidente Jair Bolsonaro não se contenta em fabricar crises no presente. Ele também quer brigar com o passado, como indica a ordem para que os militares comemorem os 55 anos do golpe de 1964.

O porta-voz do Planalto, Otávio do Rêgo Barros, tentou justificar a iniciativa. “O presidente não considera o 31 de março de 1964 um golpe militar”, disse. É constrangedor que o general precise explicar uma divergência do chefe com os livros de História.

A data festejada por Bolsonaro marca o aniversário de um típico golpe de Estado. Com tanques nas ruas, os militares derrubaram um presidente legítimo e mergulharam o país num regime de exceção.

A ditadura fechou o Congresso, censurou a imprensa e perseguiu opositores. Deixou um saldo de 434 mortos e desaparecidos, além de milhares de torturados e exilados. São fatos do passado, que devem ser lembrados para que não se repitam.

Em países que enfrentaram seus fantasmas, exaltar ditaduras é crime e pode dar cadeia. Por aqui, escolheu-se contemporizar com personagens que cultuam o autoritarismo. Um deles acaba de assumir a Presidência pela via democrática que insiste em desprezar.

Ao celebrar o golpe, Bolsonaro mantém o figurino radical que marcou sua atuação parlamentar. O problema é que agora ele representa o país, não uma franja do eleitorado fluminense. Além de desrespeitar as vítimas da ditadura, suas declarações comprometem a imagem do Brasil no exterior.

Foi o que ocorreu na semana passada, quando ele foi a Santiago em viagem oficial. Houve fortes protestos, e os presidentes da Câmara e do Senado do Chile se recusaram a encontrá-lo. Reclamaram de seus elogios públicos ao general Augusto Pinochet, chefe de uma ditadura que matou mais de três mil pessoas.

No domingo, o presidente Sebastián Piñera afirmou que as declarações de Bolsonaro sobre o tema são “tremendamente infelizes”. O chileno ensina que um governante de direita não precisa defender regimes que sufocaram as liberdades em nome de ideais conservadores.


Bruno Boghossian: Defesa da ditadura por Bolsonaro não pode ser política de governo

Ao repetir métodos de sua vida parlamentar, presidente ignora peso da faixa

O Jair Bolsonaro dos anos 1990 prometia fechar o Congresso se chegasse ao poder. Dizia ser favorável a uma nova ditadura, propunha que o Palácio do Planalto se tornasse local de testes para a bomba atômica e argumentava que o país só mudaria se passasse por uma guerra civil. “Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem. Tudo quanto é guerra morre inocente”, afirmou.

Por mais de duas décadas, aquele deputado ganhou holofotes ao amplificar uma ira popular contra a classe política. Bolsonaro acumulava votos ao proteger os interesses militares e agregava a sua plataforma uma defesa da ditadura no Brasil para animar seu eleitorado na caserna.

O “sindicalista” agitador virou presidente da República, mas preservou métodos do passado. O discurso de Bolsonaro transbordou dos quartéis, mas ele ainda tenta mobilizar sua tropa ao flertar com soluções autoritárias e lançar provocações para legitimar o regime militar.

Nos últimos dias, o presidente determinou que as unidades das Forças Armadas comemorem os 55 anos do golpe de 1964. A ordem foi vista como um ultraje proposital para desviar atenções, atiçar opositores e instigar apoiadores aguerridos. Seria lamentável se Bolsonaro fosse só deputado. O adjetivo ganha dimensão ao subir a rampa do Planalto.

Mesmo que se trate de uma afronta barata, a tentativa de dar novas tintas a um regime autoritário é incompatível com o papel de um presidente. Não pode, portanto, se tornar política de governo numa democracia.

Bolsonaro patrocina a subversão de valores ao convocar uma celebração oficial para um regime que fechou o Congresso, prendeu opositores e usou tortura e mortes como métodos de repressão.

Nos primeiros anos de carreira, Bolsonaro disse na Câmara ser favorável a um regime de exceção. “Sou a favor, sim, de uma ditadura, desde que esse Congresso dê mais um passo rumo ao abismo, que no meu entender está muito próximo”, afirmou. Talvez ele ainda não tenha sentido o peso da faixa presidencial.


Bruno Boghossian: Rejeição de Bolsonaro a autocratas depende da cor da boina do ditador

Presidente ataca esquerda por crise na Venezuela enquanto festeja ditaduras de direita

No discurso que fez ao lado de Juan Guaidó no Planalto, Jair Bolsonaro não usou a palavra “ditadura” para descrever o regime de Nicolás Maduro. O presidente brasileiro, como se sabe, até tem simpatia por governos autoritários. A razão da crise no país, ele sugeriu, é o fato de a esquerda estar no poder.

Bolsonaro resolveu contaminar o encontro com sua obsessão ideológica. Ignorou um alerta feito dois minutos antes pelo próprio convidado. “Não é certo que exista um dilema entre uma ideologia e outra. O dilema na Venezuela é entre democracia e ditadura”, afirmou Guaidó.

O presidente brasileiro até se comprometeu a trabalhar para restabelecer a democracia no país vizinho, mas também quis culpar as gestões petistas pelo apoio à ditadura chavista e disse que o Brasil quase seguiu o caminho da Venezuela.

Nunca houve dúvidas de que Bolsonaro usaria o governo como palanque para embates políticos com a esquerda. A referência ao regime venezuelano é singular porque, dois dias antes, o presidente se derramou em elogios a ditadores de direita.

Bolsonaro explorou um evento oficial na usina de Itaipu, na terça (26), para celebrar os generais do regime militar brasileiro e fazer uma homenagem ao paraguaio Alfredo Stroessner —corrupto, líder de um regime torturador e acusado de pedofilia.

O presidente gosta de jogar confetes sobre autocratas. Em 2006, quando era deputado, ele tentou usar a Embaixada do Brasil no Chile para enviar uma mensagem ao neto do “saudoso general Pinochet”. Em vez de condenar a perversidade de qualquer governo autoritário, Bolsonaro só enxerga a cor da boina do ditador.

*
A indicação da especialista Ilona Szabó para o conselho de política criminal do Ministério da Justiça indicava que Sergio Moro estava disposto a escutar opiniões divergentes. A revogação dessa escolha “diante da repercussão negativa” mostra que o governo decidiu ouvir só um lado: a gritaria das redes sociais.


Bernardo Mello Franco: Circular do MEC é típica de ditaduras

O ministro Vélez prometeu combater a ‘doutrinação’, mas quer despejar propaganda oficial nas salas de aula. A receita já foi usada no regime militar e no Estado Novo

O ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, orientou os diretores de escolas a filmarem os alunos perfilados diante da bandeira e ao som do hino nacional. O comunicado é típico de ditaduras, e não só pelo ufanismo de almanaque.

Vélez enviou uma carta a ser lida para alunos, professores e funcionários no primeiro dia do ano letivo. O texto começa com uma exclamação patriótica (“Brasileiros!”) e termina com o slogan de campanha do presidente Jair Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). Entre uma coisa e outra, exalta a chegada do “Brasil dos novos tempos”, numa aparente alusão à posse do chefe.

A circular insta os diretores a filmarem as crianças e enviarem os vídeos para o gabinete do ministro. Só faltou dizer que as escolas que descumprirem a ordem ficarão de recuperação — ou receberão menos verbas federais no ano que vem.

Prócer da ala olavista do governo, Vélez já havia deixado claro que confunde as tarefas de Estado com a militância ideológica. Em vez de mirar as deficiências do ensino básico, tem desperdiçado tempo com discursos contra a suposta influência do “globalismo” e do “marxismo cultural” sobre os professores.

O ministro é um crítico da “doutrinação”, mas sua circular representa exatamente o que ele diz combater: a tentativa de despejar conteúdo chapa-branca pela goela dos alunos. Não chega a ser uma ideia original.

Depois do golpe de 1964, que Vélez já definiu como uma data “para comemorar”, os militares estimularam o culto à bandeira e a pregação ufanista nas escolas. Chegaram a impor a disciplina Educação Moral e Cívica, outra patriotada que o ministro quer ressuscitar.

Antes disso, o Estado Novo obrigou os estudantes a reverenciarem o chefe do governo e os símbolos nacionais. Na cartilha “Getúlio Vargas, o amigo das crianças”, editada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, o presidente dizia que “é preciso plasmar na cera virgem que é a alma da criança a alma da própria pátria”.

É assim que pensam as ditaduras, sejam elas de esquerda ou de direita.


Mario Sergio Conti: O Haiti é aqui

As marcas da intervenção militar brasileira para apoiar um governo golpista

O governo Bolsonaro adquire feições militares a cada dia que passa. A última contagem, feita pela Folha, detectou 45 oficiais no primeiro e segundo escalões. São sete ministros, o porta-voz, diretores, gerentes, montes de assessores, chefes na Petrobras, nos Correios e na Funai.

A blitzkrieg deu um chega para lá nos evangélicos fanáticos, nos falcões neoliberais, nos trumpeteiros, nos udenistas de capa preta, no baixo clero e na bruta prole presidencial —a caserna virou a alma do governo. Tal armação não é legado da ditadura.

O PT reinventou os militares. Em que pese aos salamaleques de Sarney, Collor e FHC, eles estavam no desvio desde 1985. Não foram incriminados pelas atrocidades da ditadura, mas mofavam em casernas. O PT os tirou de lá e lhes conferiu uma missão nobre, intervir no Haiti.

Foi a mais longa operação militar da nossa história: 13 anos. Foi a que envolveu o maior contingente humano: 37 mil homens, contra 25 mil na Força Expedicionária na Itália. Foi a única missão na qual Brasil teve autorização para empregar força física.

A ingerência imposta aos haitianos foi sobretudo aquilo que Lula disfarçou: atentado à soberania de uma nação pobre; apoio a um governo fantoche; defesa dos privilégios de uma elite rapace.

A intromissão está sintetizada em “The Big Truck that Went By” (St. Martin’s Press, 320 págs.), de Jonathan Katz. Contudo, o tema do livro é outro. Partindo do terremoto de 2010, no qual 250 mil haitianos morreram, ele disseca a corrupção de grandes empresas e ONGs filantrópicas.

A conclusão de Katz, o único jornalista estrangeiro em Porto Príncipe no dia do sismo, está no subtítulo: “Como o mundo quis salvar o Haiti e provocou um desastre”. Amoldado, o subtítulo caberia à ação brasileira: “O Exército brasileiro foi salvar o Haiti, mas salvou-se a si mesmo”.

Jean-Bertrand Aristide, um ex-padre da teologia da libertação, foi o primeiro presidente eleito do Haiti. Derrubado por militares, voltou ao poder e tomou uma medida extremada para evitar futuros golpes: acabou com as Forças Armadas. Não deu certo.

Grupos paramilitares, gangues e a elite local o afrontaram. Mercenários americanos sequestraram Aristides e o despacharam para o exílio. Milhares dos seus adeptos foram assassinados.

Sob a orientação dos Estados Unidos, a ONU articulou a criação de uma força internacional e a encarregou de policiar o pobre Haiti. Foi esse triste papel, o de caudatário de um golpe, que coube ao Brasil.

Por que Lula topou? Porque embarcara na mística do país unido em torno de si, o líder popular pró-mercado. Ao Brasil apaziguador caberia um assento no Conselho de Segurança da ONU.

Ele também quis dar serventia aos milicos. A utilidade começaria em Cité Soleil e acabaria na Rocinha. O poder armado seria usado contra pardos, pobres e pretos lá fora, para depois aplicá-lo em favelas.

Por fim, a missão no Haiti obteve o apoio de duas bêtes noires do bolsonarismo, além do PT —a ONU, organização que o capitão tachou de “comunista”, e a Cuba de Fidel Castro.

A missão mobilizou a elite do Exército. Oficiais sêniores saíram de quartéis mecanizados, escolas de alto comando e academias militares. Reequipadas com badulaques de primeira, as tropas receberam salários em dobro.

“A experiência foi fundamental para a atual geração de oficiais do Exército brasileiro”, disse o primeiro comandante da missão de paz, general Augusto Heleno Pereira.

Bolsonaro o tornou ministro —e recrutou para o governo outros quatro comandantes da missão haitiana.
“A América Latina tem menos guerras que a Suíça e mais generais que a Prússia”, disse certa vez Fidel Castro. Acrescente-se que a experiência internacional de militares muitas vezes prefigura o uso da força internamente.

No Império Romano, milicos vitoriosos no exterior voltavam para casa e viravam ditadores —vide Júlio César. Na França revolucionária, um general corso liderou campanhas na Itália e no Egito antes de se sagrar imperador.

Nos anos 1930, o general Franco se amotinou no Marrocos e liderou a guerra civil contra a República proclamada em Madri. Nesses três casos, e no Haiti, militares disciplinaram povos distantes e depois se voltaram contra quem os deu poder.

O anjo da história continua a contemplar as ruínas do mundo se acumularem a seus pés. Resta ver, então, como os egressos da missão haitiana, que formam a espinha dorsal do governo Bolsonaro, reagirão aos atos do capitão que nunca saiu de casa.

Mario Sergio Conti é jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".


Portal do PPS: Reconhecimento internacional de Guaidó dá novo rumo à luta contra ditadura Maduro, diz Freire

Dualidade: Guaidó se autodeclara presidente da Venezuela e ganha apoio internacional

O presidente do PPS, Roberto Freire, disse que o reconhecimento internacional e o apoio da população à Assembleia Nacional e Juan Guaidó, que se autodeclarou presidente da Venezuela, nesta quarta-feira (23), dará novo rumo à luta contra ditadura de Nicolás Maduro.

“O reconhecimento internacional e o apoio do povo à AN [Assembleia Nacional] e seu presidente [Guaidó] novo rumo terá a luta contra a ditadura de Maduro”, escreveu Freire em seu perfil no microblog Twitter.

O Brasil foi um dos primeiros países na América Latina a reconhecer Guaidó como presidente interino da Venezuela. Estados Unidos, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai e Peru também condenaram o regime de Nicolás Maduro.

Freire disse ainda na rede social que não foi apenas a instalação da dualidade de poder na Venezuela, mas que “começaram os movimentos e conflitos para uma futura – que pode estar mais próxima do que aparenta – decisão do impasse político entre a ditadura de Maduro e a democracia da AN”, o Parlamento venezuelano de maioria oposicionista.

Em nota pública (veja aqui), o PPS reconheceu Guaidó como presidente interino da Venezuela e afirma que “ele tem a legitimidade democrática necessária para superar a crise política que vigora há bastante tempo” na Venezuela.

Além de apoiar Guaidó, o partido “alerta que a solução do impasse venezuelano tem que ser resolvido pelo seu povo, de forma democrática e livre, e não por qualquer tipo de intervenção externa”.

 


Demétrio Magnoli: Gleisi, falemos sobre Ariana

Quando empresta sua solidariedade à ditadura de lá, perde o direito moral de denunciar a ditadura de cá

Na posse de Nicolás Maduro para um segundo mandato, compareceram apenas os líderes de Cuba, da Nicarágua, da Bolívia, de El Salvador e de alguns micro-Estados caribenhos.

Mas Gleisi Hoffmann esteve em Caracas para prestar “solidariedade ao povo venezuelano”, na senha ritual petista que significa, de fato, solidariedade à ditadura chavista.

A presidente do PT não se encontrou com Ariana Granadillo, sobre a qual possivelmente nada sabe. Sugiro-lhe uma rápida pesquisa no site do Foro Penal, organização independente venezuelana dedicada à defesa dos presos e perseguidos políticos no país. A história da jovem talvez propicie-lhe uma revisão de consciência.

Ariana tem 21 anos, estuda medicina e mora com um parente em Caracas, onde faz residência num hospital. Para seu azar, o parente é um oficial militar investigado sob a acusação de conspiração.

No último ano, ela foi presa três vezes, em fevereiro, maio e junho, sem qualquer ordem judicial. Na primeira, olhos vendados, sofreu maus-tratos durante dois dias, em interrogatórios nos quais indagavam-lhe sobre o paradeiro do proprietário da casa.

Na segunda, foi detida com seus pais, no estado de Miranda, e permaneceu incomunicável por uma semana. Submetida a tortura, inclusive asfixia temporária, reiterou que não tinha notícia do parente militar e acabou liberada sem acusações.

Finalmente, na última, policiais a retiraram de um ônibus e ela foi encaminhada a uma prisão, até ser transferida para o quartel-general da inteligência militar em Caracas. Em julho, perante um tribunal militar, ouviu a acusação de instigação de rebelião, por manter conversas telefônicas com a mulher do oficial militar e ter recebido dinheiro dela.

Ariana confirmou os contatos com a dona da casa onde reside e explicou que só recebeu valores relativos aos gastos com os cachorros do casal. Liberada condicionalmente, ela não pode deixar o país e deve apresentar-se a um oficial de justiça a cada oito dias.

A estudante não é caso isolado. Num relatório publicado há pouco, o Foro Penal e a Human Rights Watch analisaram os casos de 32 familiares de militares acusados de rebelião que experimentaram prisões arbitrárias e sevícias.

As vítimas sofrem espancamentos, choques elétricos, asfixia, cortes de lâminas nos pés e privação de alimentos. Vários desses civis são processados em tribunais militares por “traição” e “instigação à rebelião” por se recusarem a prestar informações sobre o paradeiro de seus parentes.

Os abusos policiais registrados no relatório seguem um padrão geral estabelecido desde 2014, amplamente descrito em investigações conduzidas por representantes de direitos humanos da ONU, da OEA e de organizações da sociedade civil.

A ditadura “de esquerda” opera com métodos similares aos da ditadura militar brasileira celebrada por Jair Bolsonaro. Até mesmo o termo “revolução” aproxima os dois regimes, com a exclusiva diferença do sinal ideológico que se atribui a ele.

“Deixar de ir seria covardia, concessão à direita”, justificou-se Gleisi num tuíte, empregando uma palavra que deveria evitar. Os covardes são os chefes do regime cívico-militar que prende e tortura.

Covardia é festejar com eles, ignorando suas vítimas. A covardia estende-se aos dirigentes do PT, inclusive Fernando Haddad, que deram amparo à viagem, e à miríade de figuras públicas de esquerda ligados ao partido, cujo silêncio pétreo acompanhou o périplo de Gleisi. O triste espetáculo desenrola um fio lógico de longo alcance.

Gleisi, falemos sobre Ariana. Quando aplaude Maduro, você aplaude Médici e Geisel. Quando ignora as torturas “deles”, ignora retrospectivamente também as “nossas”.

Quando empresta sua solidariedade à ditadura de lá, perde o direito moral de denunciar a ditadura de cá. No lugar de Bolsonaro, eu pagaria sua passagem a Caracas.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.