disputa judicial

Folha de S. Paulo: Votação do Colégio Eleitoral deve frear estratégia 'golpista 2.0' de Trump

Envio dos votos dos delegados marca fim do prazo para contestar resultados da apuração

Rafael Balago, Folha de S. Paulo

Nesta segunda (14), as tentativas de Donald Trump de mudar o resultado da eleição americana encontrarão uma espécie de muro: o prazo legal para resolver queixas sobre a apuração e para que os delegados enviem seus votos para Washington. São estes votos, afinal, que decidem o nome do novo presidente dos EUA.

Contagens, recontagens e dezenas de derrotas judiciais apontam que Trump perdeu para Joe Biden na votação popular de 3 de novembro. Mas o republicano não admite isso e segue tentando reverter o placar, em uma atitude que pode ser considerada uma nova forma de golpismo, avaliam vários especialistas ouvidos pela Folha.

Eles apontam que o conceito tradicional de golpe não se aplica plenamente ao caso atual, mas que tentar mudar as regras do jogo para se manter no poder, como Trump vem fazendo, não pode ser considerado algo normal, ou a sensação resumida na frase "as instituições estão funcionando".

"No contexto do populismo do século 21, vemos um novo tipo de ameaça interna, que são lideranças que corroem a democracia de dentro para fora. A democracia morre por meio de novos mecanismos, e Trump contribui para ser visto como um tipo de golpista '2.0', com roupagem diferente do que estávamos habituados", analisa Fernanda Magnotta, coordenadora do curso de relações internacionais da Faap.

A data de envio dos votos dos delegados é considerada o limite legal para questionamentos da apuração. "Depois do dia 14 de dezembro, não há mais o que fazer fora da institucionalidade", diz Felipe Loureiro, coordenador do curso de relações internacionais da USP.

“Se definirmos que um golpe envolve o desrespeito às leis, estamos caminhando para um cenário golpista, embora o conceito seja heterogêneo”, considera.

Em 2000, quando o resultado da eleição foi parar na Justiça, a Suprema Corte vetou uma nova recontagem na Flórida porque isso faria com que votos do Colégio Eleitoral fossem enviados depois do prazo máximo. Essa decisão, que confirmou a vitória de George W. Bush, foi baseada no Código Eleitoral de 1887, e virou jurisprudência.

Na eleição atual, a Suprema Corte se recusou a julgar um pedido republicano de recontagem. Semanas antes da eleição, Trump nomeou Amy Coney Barrett para aquele tribunal, e disse esperar que a maioria conservadora naquele tribunal pudesse ajudá-lo a vencer processos, caso a apuração fosse judicializada.

Nesta segunda (14), os delegados se reúnem nos estados e, em seguida, enviam seus votos para Washington. No entanto, as cédulas só serão somadas pelo Congresso em 6 de janeiro, em uma sessão conjunta, comandada pelo vice-presidente Mike Pence. Nesta data, Joe Biden será oficialmente proclamado como vencedor da eleição. A posse está marcada para 20 de janeiro.

Biden será eleito porque os votos dos delegados seguem a preferência mostrada nas urnas. Os resultados da apuração, certificados pelos estados, mostram que o democrata obteve 81,3 milhões de votos, contra 74,3 milhões de Trump. Com isso, Biden conquistou 306 delegados no Colégio Eleitoral. Seu rival, 232.

Na sessão de abertura dos votos, há uma brecha para que parlamentares questionem os resultados. Loureiro explica que, para pedir uma revisão da decisão de um estado, é preciso que ao menos um deputado e um senador daquele estado façam uma petição. Em seguida, o pedido é debatido em reuniões separadas da Câmara e do Senado, em até duas horas, e precisa ser aprovado em ambas as Casas para avançar. Como os democratas têm maioria na Câmara, a chance de que um esforço como esse prospere é nula.

No sistema eleitoral dos EUA, não há um órgão federal que centralize a apuração, como no Brasil. Cada um dos 50 estados soma seus votos de forma separada e declara o vencedor local. Assim, um candidato derrotado que se sinta injustiçado precisa reverter o resultado em vários lugares diferentes para obter uma vitória nacional.

O presidente entrou com dezenas de processos, mas não obteve nenhuma vitória significativa, porque não apresentou provas para as denúncias de fraude que fez. E mesmo nos estados onde houve recontagem, as vitórias de Biden foram confirmadas.

O republicano também fazendo tentativas reiteradas de pressionar autoridades estaduais a mudar resultados que apontam vitória de Biden. Segundo o jornal The Washington Post, ele telefonou ao governador da Geórgia, e pediu que ele anulasse a vitória do democrata no estado.

“Com suas ações, o que Trump está pedindo é que haja um golpe de estado, para que ele possa permanecer no poder”, diz Federico Finchelstein, professor da universidade The New School, em Nova York, e especialista em fascismo.

“Mas este é um golpe falido. As ditaduras triunfam quando as instituições, como a Justiça e o Congresso, falham e a população fica apática. Isso não aconteceu agora”, avalia Finchelstein.

"Tecnicamente é um autogolpe, uma tentativa de se manter no poder de forma ilegítima”, considera Jenna Bednar, professora de ciência política na Universidade de Michigan. “Ninguém produziu evidências de fraudes, então a Justiça não tem base para desqualificar os resultados eleitorais. E ele não tem apoio militar para seguir no poder usando a força", prossegue Bednar.

Para Juliana Cesário Alvim, professora de direito na UFMG, o conceito de golpe vem mudando a partir de casos como o da resistência de Trump. “A teoria ainda está correndo atrás de dar conta destes novos fenômenos. Esse cenário não pode ser considerado normal, mas há um uso político da palavra golpe", pondera.

"Enquadrar as ações de Trump em 'golpe' e 'não golpe' obscurece muitas das questões sociais e políticas importantes pelas quais os Estados Unidos têm passado nos últimos anos", questiona Celly Inatomi, pesquisadora do INCT-INEU (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA).

Os pesquisadores apontam que a recusa de Trump em aceitar a derrota é parte de uma estratégia de longo prazo, que não começou agora e deverá se estender pelo futuro, para buscar mantê-lo em evidência e manter seus milhões de apoiadores engajados.

“Ele tem um objetivo sub-repitício que é criar uma narrativa para tumultuar a democracia americana. Trump perdeu, mas continua a fazer discursos, no qual o assunto é a fraude na eleição”, diz Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP e colunista da Folha. “E é uma narrativa, um comportamento golpista, que ele vinha preparando bem antes da eleição.”

Durante a campanha, o presidente se recusou a dizer que reconheceria a derrota, caso perdesse. Também afirmou que só seria vencido em caso de fraude. E durante a apuração, houve protestos contra o resultado feitos por seus apoiadores. Em Nevada, foram feitos atos do lado de fora de um centro de contagem de votos, com discursos que chamavam os resultados de "roubo".

Há um consenso entre os pesquisadores de que as ações do presidente colocaram a democracia dos EUA em risco, ao questionar sua legitimidade de forma tão forte. "Ele exacerbou e esgotou as linhas morais e legais para questionar a eleição. Por mais que tenha direito de acionar a Justiça, questionar uma eleição tem uma repercussão muito grave. E ele fez isso com base em fofocas. É abusivo ao extremo", diz Mendes.

O Judiciário, os governos estaduais e o Congresso resistiram às pressões de Trump, mas a postura de parte do Partido Republicano gera preocupações. A legenda se divide entre alguns nomes que apoiam o presidente abertamente, outros que reconheceram a vitória de Biden e um terceiro bloco que prefere guardar silêncio e esperar.

Há também o debate se Trump poderá ser processado por agir desta maneira, após deixar a Presidência. Em seu mandato, o republicano premiou aliados com o perdão presidencial, e surgiu o debate se ele poderia dar um benefício do tipo a si mesmo, algo nunca feito na democracia americana. “Se ele se perdoar, assumirá que houve crimes", aponta Finchelstein.


PRÓXIMOS PASSOS DO CALENDÁRIO ELEITORAL

O que falta para Joe Biden se tornar o próximo presidente

14.dez
Delegados do Colégio Eleitoral se reúnem nos estados e enviam seus votos para Washington. Termina prazo de contestação legal do pleito

6.jan
Votos serão contados em sessão do Congresso, na qual Joe Biden será oficialmente proclamado vencedor

20.jan
Joe Biden tomará posse como novo presidente dos EUA


El País: Ofensiva judicial de Trump para reverter as eleições desmorona na Suprema Corte

A principal instância do Judiciário dos EUA rejeita o pedido de anulação dos resultados da Pensilvânia feito pelos advogados do presidente

A Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou na terça-feira uma solicitação apresentada por membros do Partido Republicano para que os resultados eleitorais da Pensilvânia ― já certificados em favor de Joe Biden ― sejam anulados. Desde a noite eleitoral de 3 de novembro, Donald Trump depositava suas esperanças em impugnar o resultado na principal instância judicial norte-americana, de maioria conservadora. Mas a primeira decisão do tribunal não foi favorável ao republicano, que insiste em apontar fraude nas eleições.

Os juízes da Suprema Corte votaram a favor de manter a sentença de um tribunal da Pensilvânia que havia rejeitado a ação dos republicanos relativa aos votos pelo correio. Os autores da ação, encabeçados pelo congressista republicano Mike Kelly, pediram à corte estadual que anulasse os 2,5 milhões de cédulas enviadas por via postal, por considerarem que são irregulares, ou então que ordenasse aos deputados estaduais que escolham eles próprios, independentemente do voto popular, os delegados que representarão o Estado na reunião do Colégio Eleitoral, em 14 de dezembro, que elegerá formalmente o próximo presidente do país. Esse cenário configurava uma tentativa de subverter o processo democrático, segundo argumentaram os advogados que representavam o Estado da Pensilvânia, pois seria ignorar o sentido do voto dos cidadãos locais.

A decisão da Suprema Corte publicada na tarde de terça-feira consistiu em uma só frase, aprovada de maneira unânime (não houve dissidências por escrito): “A solicitação de uma medida cautelar apresentada ao juiz [Samuel] Alito e por ele remetida ao Tribunal foi rejeitada”. Os autores da ação solicitavam que os magistrados obrigassem os funcionários do Governo estadual da Pensilvânia a deterem o processo de certificação dos votos ou “anular qualquer ação já adotada” enquanto os republicanos continuam apresentando novas ações e recorrendo das já rejeitadas nos tribunais de recursos estaduais. O governador democrata do Estado, Tom Wolf, já certificou a vitória de Biden, e os seus 20 eleitores se reunirão em 14 de dezembro para votar a favor do democrata.

A Suprema Corte da Pensilvânia rejeitou a ação republicana por entender que ela viola uma lei estadual de 2019 que permite votar por correio sem necessidade de dar explicações. “No momento em que se apresentou esta ação, em 21 de novembro de 2020, milhões de eleitores da Pensilvânia já haviam manifestado sua vontade tanto nas eleições primárias de junho de 2020 como nas eleições gerais de novembro de 2020”, observou o tribunal.

Os advogados do Estado acusaram os autores da ação de tentarem criar uma das disputas mais “dramáticas e perturbadoras do Poder Judiciário na história da República”. “Nenhum tribunal jamais emitiu uma ordem que anulasse a certificação dos resultados de eleições presidenciais por parte de um governador”, escreveram os juízes na sua sentença no final de novembro. A Suprema Corte dos EUA não costuma questionar sentenças dos órgãos estaduais em matéria eleitoral.

Biden teve 50% dos votos na Pensilvânia, contra 48,8% de Trump. O presidente-eleito somou 306 votos no Colégio Eleitoral, superando comodamente os 270 necessários para chegar à Casa Branca. Mesmo se o republicano tivesse conseguido reverter o resultado da Pensilvânia, com 20 votos eleitorais, o democrata continuaria como vencedor do Colégio Eleitoral.

Mais de um mês depois das eleições, Trump continua sem admitir sua derrota, e a ofensiva judicial por ele iniciada até agora só acumula derrotas, chegando a ser ridicularizada em alguns despachos. Antes da divulgação da sentença da Suprema Corte, Trump, em um ato na Casa Branca relacionado às vacinas contra o coronavírus, estimulou seus partidários a “terem a coragem” de reverter os resultados. “Vejamos se alguém tem a coragem, um parlamentar ou os Legislativos estaduais, um juiz da Suprema Corte ou vários juízes da Suprema Corte. Vejamos se terão a coragem de fazer o que todo mundo neste país sabe que é o certo”, disse.

Na tarde de terça-feira, o procurador-geral do Texas, Ken Paxton, moveu uma ação junto à Suprema Corte para impugnar os resultados das eleições na Geórgia, Michigan, Pensilvânia e Wisconsin, por supostamente descumprirem a legislação eleitoral e aprovar mudanças de última hora relativas ao voto postal ― as quais foram adotadas para facilitar a participação em meio à pandemia de coronavírus sem pôr o eleitorado em risco. Paxton, um grande defensor de Trump, acusou os quatro territórios que deram o triunfo a Biden de terem “inundado seus cidadãos com solicitações e cédulas ilegais”. A ação busca impedir que os eleitores dos Estados votem em 14 de dezembro seguindo o resultado de cédulas “ilegais e constitucionalmente contaminadas”. Não há nenhum indício que sustente essas acusações.