direitos políticos
Alberto Aggio: Ainda imersos na falácia do golpe
Faz algum tempo que estamos imersos numa hiperinflação do uso da palavra “golpe”. Mesmo após ser consumado o impeachment de Dilma Rousseff, parece que continuaremos a ter essa expressão, e seus derivados, a soarem em nossos ouvidos por algum tempo. Ainda mais agora que Dilma foi constitucionalmente destituída da presidência, mas não perdeu seus direitos políticos.
Quando aplicado à política, a palavra golpe é antes uma metáfora que carrega uma carga significativa de dramaticidade. Faz lembrar imediatamente soldados, armas e tanques, agressões e violência, imposição e repressão no sentido de silenciar opositores. Convencionalmente, a palavra “golpe” quer indicar uma ação incisiva, fulminante e até traiçoeira que visa constranger, agredir e, no mais das vezes, anular ou eliminar o adversário político. Chamar alguém de “golpista” não seria propriamente um xingamento, mas no contexto em que vivemos, efetivamente o é.
Em termos políticos, um “golpe” pode ser caracterizado como qualquer ação intencional de violação da legalidade que rompa com a representação soberana nas instituições políticas, notadamente no Estado. Uma ação impetrada em detrimento do andamento normal da vida institucional de uma comunidade política. Um “golpe de Estado” é convencionalmente entendido como um ato de destituição ilegal de um governante que chegou e ocupa legitimamente um determinado cargo e encontra-se no exercício pleno das funções estabelecidas por esse cargo. Um “golpe de Estado” ceifa o mandato desse governante de maneira ilegal e ilegítima.
Contudo, historicamente, há vários tipos de golpe. Pode haver golpes de Estado que impeçam a renovação da representação política, cancelando eleições, como fez Getúlio Vargas, em 1937, instalando o Estado Novo ou como fez Fulgencio Batista em Cuba, em 1952. No regime parlamentar, um golpe palaciano pode alterar regras de sucessão ou manipular o andamento político que levaria à efetivação dessa sucessão, por meio de ações conspiratórias, como fez Hitler para chegar ao poder. No regime presidencialista, os golpes são, em geral, aqueles que destituem os presidentes por meio da força. São os golpes considerados clássicos na América Latina, como aqueles que derrubaram João Goulart, em 1964, no Brasil, e Salvador Allende, em 1973, no Chile.
Nos últimos meses, o petismo e os filopetistas falaram ad nauseum que o impeachment da presidente Dilma Rousseff configurava-se num golpe. Entretanto, em todo esse tempo, não se tem noticia de tanques, soldados, pessoas presas, repressão, mortos, etc., nas ruas do país. Em razão da impossibilidade de alguém ser convencido de que estivesse havendo um golpe contra Dilma, eles mudaram o enfoque. Passaram a falar que o que estava em curso era um “golpe” adaptado aos nossos tempos. E essa fala Dilma Rousseff repetiu em sua defesa no Senado, sem entretanto convencer ninguém a não ser aqueles que já estavam convencidos. Escrevi sobre isso faz alguns meses, desmascarando essa nova retórica (veja aqui “O paradigma do golpe de novo tipo”)
Por ser logicamente difícil argumentar que havia golpe de Estado num processo conduzido inteiramente dentro dos marcos constitucionais, com amplo direito de defesa, o petismo foi variando a sua retórica. Agregou-se ao golpe a noção de que havia um “atentado” à democracia. Alguns chegaram a dizer que não era Dilma que estava sendo julgada e sim a democracia. Por sua vez, representantes da intelectualidade mais nobre do país saíram-se com a fórmula de um “golpe ético”, dando signos estéticos a uma tese estapafúrdia. O jornal francês Le Monde foi mais tímido e lascou: “se não é golpe, é uma farsa”, desconhecendo o que se passa do outro lado do Atlântico, ao sul do mundo, desrespeitando as instituições representativas do Estado brasileiro, além do Poder Judiciário que dirigiu a sessão de definição do impeachment.
Seguindo tais delírios, na sessão de defesa de Dilma eis que seus apoiadores explodem em sorrisos e, por algumas horas, a “carnavalização do golpe” se instaurou. Junto com sorrisos largos, óculos escuros em pleno Senado, selfies aos montes com Chico Buarque, Lula, seguiu-se uma confraternização geral dos “golpeados”. Talvez o que petismo chama de “golpe parlamentar” seja assim mesmo, uma espécie de “golpe do bem”, que permite aos “golpeados” sorrirem e festejarem em público. Acertou na mosca o jornalista Lauro Jardim quando agregou mais um qualificativo para o nosso golpe jabuticaba: trata-se de um “golpe risonho”. Ufa, podemos enfim dormir tranquilos, o “nosso” golpe, como dizem os jovens, “é de boa”!
Ao final do julgamento, na tarde de 31 de agosto, sabendo que a derrota era certa e Dilma seria destituída, o petismo reformulou sua estratégia: dividir a votação por meio de um destaque que mantivesse os direitos políticos a Dilma Rousseff. Com isso, poderiam garantir e ampliar a única conquista que tiveram nesse processo: a “vitória da narrativa”; não há golpe, mas a narrativa e os termos dela permanecerão.
A função da narrativa agora não é mais convencer que estava ocorrendo um golpe. Agora sua função será atacar os “golpistas”. Ampliou-se assim o escopo dessa formulação política. Nesse novo cenário, a narrativa do golpe só serve para uma única coisa: estabelecer um discurso de vitimização, tão comum ao PT, para ser usado como mantra acusatório, imputando àqueles que lutaram pelo impeachment a pecha de “golpistas”. Por isso, a reiteração dessa narrativa era tão necessária.
Há que se ter clareza dessa nova situação. O PT sai desse processo fora do poder, o que não é pouco. Derrotar a falácia do golpe não se dará apenas por meio de um discurso contraposto, uma contra narrativa, mas sim pela defesa do andamento normal da política e da democracia, com as eleições que estão aí e com propostas para enfrentar a crise e fazer o país voltar a crescer, superando o legado tenebroso do lulopetismo.
Alberto Aggio é historiador, professor da Unesp e presidente da FAP
Fonte: pps.org.br
Luiz Carlos Azedo: Dilma sabia de tudo
A presidente afastada, Dilma Rousseff, teve poucos interlocutores na “jaula de cristal” do Palácio da Alvorada para conversar sobre literatura. Um deles era o ex-ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, seu advogado no julgamento do impeachment. Um de seus romances favoritos é Crime e Castigo, de autoria do russo Fiódor Dostoiévski, cujo personagem principal é um jovem estudante chamado Raskólnikov. Neurótico, introspectivo, vivendo na miséria, o jovem tinha mania de grandeza e se julgava explorado pela proprietária do apartamento onde vivia. Matou-a e justificou o crime, em seus pensamentos íntimos, comparando-se a César e a Napoleão, que foram responsáveis por milhares de mortes, mas foram tratados como heróis.
Raskólnikov havia praticado o crime perfeito. Ninguém sabia que ele era o assassino da velhinha. Matar uma pessoa, porém, pode ser mais complicado do que ordenar um ataque maciço numa guerra. Raskólnikov começa a se enrolar ao ser interrogado pelo juiz Porfiri Pietróvitch. Culpa, remorso, sentimento de prazer e grandeza, tudo se mistura na cabeça do jovem que imagina duelar com o juiz e perde o controle da situação. Estimulado por Sônia, uma prostituta pela qual se apaixonara, e influenciado por uma passagem bíblica, Raskólnikov confessa o crime. Ninguém sabia quem era o assassino, mas ele sabia.
Na condição de ré, Dilma Rousseff prestará seu depoimento hoje no Senado para se defender das acusações de crime de responsabilidade, pelas quais pode ser condenada à perda do mandato e dos direitos políticos por oito anos, o chamado impeachment. Seu depoimento é aguardado por aliados e adversários e poderá ser bem mais longo do que os 30 minutos que lhe foram reservados, pois não poderá ser interrompida. O rito do impeachment estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) visa a garantir seu mais amplo direito de defesa. Há semanas, a presidente afastada prepara seu discurso com os ex-ministros que a acompanham desde seu afastamento do cargo. A versão final será do próprio punho.
Depois de seu pronunciamento, os senadores poderão fazer perguntas. A bancada de 20 senadores que apoiam a presidente da República reforçará seu discurso. A antiga oposição, pelas palavras do presidente do PSDB, Aécio Neves (MG), espera que o discurso tenha o “tom adequado”, ou seja, não quer ser acusada de golpista. Vai ser difícil. Toda a retórica dos aliados de Dilma Rousseff e a “trupe” que mobilizou para acompanhá-la durante o julgamento, liderada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, indicam que sua defesa será na linha dessa acusação.
Legado histórico
Nos bastidores, percebe-se um certo alívio dos petistas. Acreditam que Dilma Rousseff, ao depor no Senado, consolidará a narrativa do golpe e preservará o “legado histórico” da passagem do ex-presidente Lula pelo poder. As dificuldades de seu governo serão atribuídas à crise mundial, às forças ocultas que conspiram contra a soberania nacional, à mídia golpista e à atuação da oposição no Congresso para inviabilizar a saída da crise, além da traição do presidente interino, Michel Temer. Que ninguém espere uma autocrítica de seus erros no governo. Dilma dirá que está sendo deposta pelas suas virtudes e não pelos defeitos, como costumava dizer o ex-senador Darci Ribeiro ao defender o governo João Goulart.
Esse é o busílis. Dilma quer comparar o seu governo ao de Jango e o de Lula, ao de Getúlio Vargas, para que o PT possa ter uma plataforma política que possibilite a sobrevivência do partido nas eleições de 2018. É preciso varrer para debaixo do tapete todos os equívocos cometidos no poder, seja a condução dada à economia – a guinada começou no segundo mandato de Lula –, seja o espantoso estratagema montado pelo PT para se perpetuar no poder, que foi desnudado pela Operação Lava-Jato. Dilma sabia de tudo. Mas esse, ironicamente, é o conjunto da obra. Perderá o mandato por causa das “pedaladas fiscais”, que violaram a Lei de Responsabilidade Fiscal, e dos “decretos ilegais”, que desrespeitaram a Lei Orçamentária e usurparam atribuições do Congresso.
Essa enfadonha discussão técnica sobre pedaladas e decretos, objeto do processo de impeachment, porém, será deixada de lado. Dilma dirá que não houve crime de responsabilidade. Como todo governante isolado da sociedade, falará de coisas que estão no seu imaginário e de seus colaboradores, e não, da dura realidade enfrentada hoje pelo povo brasileiro, que é o resultado do seu fracasso político. Sabe que está derrotada, mas pretende discursar para a História. Alguém já disse, porém, que não se julga uma personalidade política pelo que ela imagina de si e das suas próprias circunstâncias. (Correio Braziliense – 29/08/2016)
Fonte: pps.org.br