direita

Rubens Barbosa: O governo Biden e o Brasil

As relações com os EUA começaram de forma tranquila, mas estamos apenas no início

O tom das relações entre o Brasil e os EUA, no início do governo Biden, foi definido pelas recentes declarações das porta-vozes da Casa Branca e do Departamento de Estado de que “a prioridade é manter o diálogo e buscar oportunidades para trabalhar conjuntamente com o governo brasileiro nas questões em que haja interesse nacional comum, pois existe uma relação econômica estratégica entre os dois países e o governo Biden não se vai limitar a tratar de áreas em que haja discordância, seja em clima, direitos humanos, democracia ou outros”. A atitude do governo dos EUA pode ser explicada pela decisão da Casa Branca de adotar uma postura inicial firme e assertiva em termos de política interna (combate à pandemia, vacinação, imigração) e uma posição cautelosa em política externa (acordo nuclear com o Irã, China, Rússia) para não confrontar seus críticos republicanos.

Nessa primeira fase do relacionamento com o Brasil, Washington decidiu adotar uma atitude de não confrontação, até mesmo na resposta de Joe Biden a Jair Bolsonaro, e iniciar conversas sobre diversos temas das relações bilaterais. Não deixa de ser uma atitude pragmática de ambos os lados e, do ponto de vista do governo brasileiro, a percepção de algum avanço. O governo americano, no entanto, não está alheio às manifestações públicas de grupos de pressão pedindo medidas duras contra o Brasil. O documento assinado por ex-ministros e negociadores norte-americanos critica a política ambiental brasileira e pede medidas contra o Brasil caso não haja mudança nas políticas de proteção da Amazônia e de mudança de clima. O trabalho Recomendações sobre o Brasil ao Presidente Biden, encaminhado por professores norte-americanos, brasileiros e diversas ONGs, faz duros reparos à política ambiental, a direitos humanos, democracia e pede a suspensão da cooperação com o Brasil em diversas áreas, como defesa, comércio exterior, meio ambiente e outras.

O presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado também enviou carta ao presidente Bolsonaro e ao ministro Ernesto Araújo pedindo explicações e retratação de declarações julgadas favoráveis à invasão do Congresso em Washington. Por fim, um grupo de deputados norte-americanos enviou correspondência ao Senado pedindo a suspensão de programas de cooperação na área de defesa por problemas com os quilombolas no Centro de Lançamento de Alcântara. O conteúdo dos documentos e dessas correspondências, combinado com o anúncio da política ambiental pelo presidente Biden, com referência específica à Amazônia, causou preocupação pelos eventuais impactos no Brasil.

Do lado do governo brasileiro houve três ações para tentar evitar medidas concretas contra o País: a carta de Bolsonaro a Biden em que manifesta a “disposição” de continuar “nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base em nosso Diálogo Ambiental, recém-inaugurado”; o telefonema do ministro Araújo com o secretário de Estado Blinken; e a reunião telefônica entre o chanceler, o ministro do Meio Ambiente e John Kerry, responsável pelos EUA. O setor privado também se manifestou com nota da Câmara Americana de Comércio e da US Chamber sobre as perspectivas favoráveis do intercâmbio comercial.

Uma segunda fase dos entendimentos começa a esboçar-se com os convites para a participação do Brasil, em nível presidencial, das conferências sobre clima e sobre democracia (em que terá destaque a questão dos direitos humanos), em abril, além da Cúpula das Américas. Nesses encontros, os assuntos mais importantes no contexto das relações bilaterais e hemisféricas deverão ser tratados e, dependendo da posições defendidas por Bolsonaro, começarão a aparecer as diferenças de políticas entre Brasília e Washington, em especial em mudança de clima e preservação da Floresta Amazônica.

Na terceira fase de negociação bilateral, Washington deverá reagir à posição brasileira, em especial quanto ao pedido de recursos financeiros para controlar o desmatamento. No telefonema entre Kerry, Araújo e Salles houve concordância em iniciar encontros regulares para examinar formas de colaboração mútua para preservação da Floresta Amazônica. O problema reside no fato de Bolsonaro e Araújo desejarem acreditar que, a partir das políticas apoiadas por Donald Trump, o diálogo com os EUA evoluirá com Biden em “atmosfera de total confiança e entendimento recíproco” e “as boas relações começaram pela discussão sobre meio ambiente e mudança de clima”. E que a “parceria vai continuar”, como mencionado na carta a Biden, o que poderá não ocorrer, dependendo da reação do governo brasileiro (defensiva ou com ajuste na retórica e algumas medidas, com resultados positivos verificáveis) às propostas americanas.

Todd Stern, um dos negociadores dos EUA, antecipou a posição de Washington nos próximos meses. “Os EUA usarão toda a força da diplomacia para conseguir atingir a meta: parar o desmatamento”. E mais: “Sem a Amazônia intacta o Acordo de Paris é impossível”.

As relações com os EUA, que começaram tranquilas, terão muitos outros capítulos em 2021. Estamos só no início.

PRESIDENTE DO IRICE


Folha de S. Paulo: Ataques de Bolsonaro a Lula com fala sobre 'bandalheira' reforçam polarização prevista para 2022

Assessores palacianos preveem enfrentamento eleitoral e apostam no antipetismo e em destaque de casos de corrupção de gestões petistas

Ricardo Della Coletta e Daniel Carvalho, Folha de S. Paulo

Após o reestabelecimento dos direitos eleitorais do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente Jair Bolsonaro disse que o ministro Edson Fachin (STF) é ligado ao PT, falou em “bandalheira” dos governos petistas e afirmou que os brasileiros não querem a volta do ex-mandatário ao poder.

As declarações do presidente foram na linha do que assessores palacianos preveem num eventual enfrentamento eleitoral entre Bolsonaro e Lula em 2022: a aposta no antipetismo e na polarização com a esquerda, com destaque para os casos de corrupção que marcaram as administrações petistas.

"As bandalheiras que esse governo [do PT] fez estão claras perante toda a sociedade. Você pode até supor a questão do sítio em Atibaia, do apartamento, mas tem coisa dentro do BNDES que o desvio chegou na casa de meio trilhão de reais, com obras fora do Brasil", afirmou Bolsonaro ao chegar ao Palácio da Alvorada. As falas foram transmitidas pela rede CNN Brasil.

"Os roubos, desvios na Petrobras, foram enormes, na ordem de R$ 2 bilhões que o pessoal na delação premiada devolveu. Então foi uma administração realmente catastrófica do PT no governo”, acrescentou.

"Eu acredito que o povo brasileiro não queira sequer ter um candidato como esse em 2022, muito menos pensar numa possível eleição dele".

Bolsonaro ressaltou ainda a reação negativa do mercado, com queda da bolsa e alta do dólar, e disse que todos sofrem com a decisão judicial. O mandatário também investiu contra Fachin, que expediu a decisão que anulou as condenações de Lula.

"O ministro Fachin sempre teve uma forte ligação com o PT, então não nos estranha uma decisão nesse sentido. Obviamente é uma decisão monocrática, mas vai ter quer passar pela turma, não sei, ou plenário [do STF] para que tenha a devida eficácia", declarou.

Ele defendeu que os demais ministros da corte revertam a decisão que reabilitou os direitos de Lula. O ex-juiz da Lava Jato Sergio Moro foi ministro da Justiça e da Segurança Pública do governo Bolsonaro, mas pediu demissão no ano passado acusando o presidente de tentativa de interferência na Polícia Federal.

Fachin foi indicado para o Supremo pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2015.

Nesta segunda, o ministro concedeu habeas corpus para declarar a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar quatro processos que envolvem Lula —o do triplex, o do sítio de Atibaia, o de compra de um terreno para o do ex-presidente e o de doações para o mesmo instituto.

Lula está, portanto, com os direitos políticos recuperados e pode se candidatar a presidente em 2022.

Na decisão desta segunda, Fachin argumentou que os delitos imputados ao ex-presidente não correspondem a atos que envolveram diretamente a Petrobras e, por isso, a Justiça Federal de Curitiba não deveria ser a responsável pelo caso. Na prática, ele devolveu os processos envolvendo à estaca zero.

Auxiliares de Bolsonaro destacam reservadamente que a decisão de Fachin —se mantida até o final do próximo ano— estabelece as bases de um processo eleitoral altamente polarizado entre Lula e Bolsonaro.
Conselheiros palacianos opinam que esse cenário tende a sufocar qualquer candidato de centro.

Também dizem que fere de morte a montagem de uma “frente ampla” contra o bolsonarismo.

Alguns aliados avaliam como positivo esse quadro: um postulante de centro no segundo turno poderia reunir apoios de diferentes segmentos, desde da direita desiludida com o estilo radical do mandatário quanto a esquerda.

Mas outros conselheiros pontuam que a recolocação de Lula no tabuleiro eleitoral pode deixar Bolsonaro numa situação incômoda.

Se por um lado permitiria ao presidente reeditar um discurso calcado no antipetismo e no medo da volta da esquerda, Lula é visto como um adversário bem mais competitivo do que o ex-candidato a presidente pelo PT em 2018, Fernando Haddad. Bolsonaro derrotou Haddad em segundo turno, com 55,13% dos votos contra 44,87%.

Além do mais, um Lula bem posicionado nas pesquisas de opinião de primeiro turno poderia atrair para sua coligação partidos de centro que hoje orbitam o Palácio do Planalto.

Por último a rejeição afetaria os dois postulantes. Lula tem o flanco exposto do antipetismo, mas Bolsonaro já não será um candidato de primeira jornada e terá o desgaste de quatro anos no poder, com uma pandemia que paralisou o país e deixou milhares de mortos.

Em outra entrevista concedida nesta segunda, para a Rede Bandeirantes, Bolsonaro deu nova ênfase a escândalos de corrupção da era petista.

“É muito ruim para o Brasil porque, a partir do momento que você diga que o Lula, [que] foi tudo anulado no tocante a ele, é sinal de que não houve petrolão, não houve roubalheira em várias estatais, em bancos oficiais como o BNDES, não houve nada isso”, disse o presidente.

“O governo do Lula funcionava, diferentemente do meu, na base da compra. Era uma festa. Você lembra, naquele tempo dele era muito comum, de acordo com o que estava sendo votado [no Congresso], uns partidos perderem ministérios, outros ganharem. Assim como bancos oficiais, assim como estatais, diretorias das mesmas. Essa fase de governar que ele fazia lá atrás, coisa que nós não fazemos aqui”, concluiu.

Questionado, Bolsonaro disse que “não tem problema” enfrentar Lula, mas voltou a bater na tecla na necessidade do voto impresso —uma bandeira do bolsonarismo, que ecoa teorias, sem provas, de fraude na urna eletrônica.

“Não tem problema. Gostaria de enfrentar qualquer um, se eu vier candidato, com um sistema eleitoral que pudesse ser auditado, no caso aí um voto impresso ao lado da urna eletrônica, e não apenas este voto eletrônico que está aí, porque muita gente, cada vez mais, reclama dele. E nós queremos umas eleições onde não deixe dúvidas. A preocupação nossa é enorme no tocante a isso aí.”


César Felício: Lula está de volta ao jogo

Anulação das condenações do petista, em tese, poderia ser comemorada pelo presidente Jair Bolsonaro

A decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, de anular as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na 13ª Vara Federal recoloca o petista na vida pública, deve levá-lo à sexta candidatura presidencial em 2022 e, em tese, poderia ser comemorada pelo presidente Jair Bolsonaro.

Ficaria desde já praticamente definido o segundo turno da eleição. Lula, com alta rejeição, concorrendo virtualmente sem alianças. Bolsonaro, com alta rejeição e a sustentação do centrão, por conveniência política, e do mercado, por exclusão.

Nestas circunstâncias - a da eleição se converter em um duelo de rejeições - Bolsonaro tem mais margem de manobra, por contar com todo o instrumental disponível a um presidente candidato à reeleição.

A carreira política de Lula é tão longa que o ex-presidente já encarnou vários papéis. Ele já foi o artífice do aliancismo, em 2002 e 2006, quando se compôs com setores do empresariado e da política presidencial. Já teve uma aliança limitada à esquerda, em 1998, quando Leonel Brizola se rendeu a ser vice em sua chapa. Caprichou na veia messiânica em 1994, antes de ser atropelado pelo Plano Real e por Fernando Henrique como a solução de todos os males do país. E viveu a fase radical em 1989, na sua primeira tentativa.

O Lula de 2022 tende a ser mais parecido com o do início da sua caminhada. Não pelo radicalismo, mas pelo isolamento. É uma candidatura em primeiro lugar de resgate histórico, de fazer prevalecer a narrativa que o país foi vítima de golpes entre 2016 e 2018 para alijá-lo da cena política.

Dele pode se repetir em parte o que Talleyrand falou a respeito de Luis XVIII, o Bourbon restaurado no trono da França após a queda de Napoleão Bonaparte: nada esqueceu e nada aprendeu. Que nada esqueceu é o que tudo indica. O ex-presidente, pelas suas colocações desde que saiu da prisão, parece mais disposto a promover um ajuste de contas do que promover uma conciliação nacional. Nada aprender, no sentido dado por Tallleyrand, é repetir as mesmas práticas que levaram à sua derrocada. Isso o tempo ainda dirá.


Vera Magalhães: Lava Jato vira letra morta, e 2018 parte 2 é logo ali

A inesperada decisão do ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, que anulou todas as condenações do ex-presidente Lula faz da Lava Jato letra morta e abre um caminho para que as eleições presidenciais de 2022 sejam um repeteco de 2018, com a polarização entre Jair Bolsonaro e Lula, desta vez sem intermediário.

Para além da discussão sobre se havia ou não provas para condenar Lula nos casos do triplex no Guarujá e do sítio em Atibaia, a decisão de Fachin é uma excrescência jurídica e institucional. Ele percebeu quatro anos depois de ser designado relator que a 13ª Vara Federal de Curitiba não era o foro adequado para julgar Lula não em um ou dois processos, mas em quatro?

Foram várias as vezes em que, em diferentes processos, o STF se debruçou sobre a questão da jurisdição de Curitiba na Lava Jato. Ficou decidido que tudo que tivesse conexão com a Petrobras ficaria lá. Nos casos de Lula, o Ministério Público Federal fez a conexão nas denúncias, os juízes de primeira instância a reconheceram e o tribunal de segunda instância, o TRF da 4ª Região, chancelou as decisões (em dois dos casos).

O STF julgou dezenas de habeas corpus da defesa de Lula. Inclusive decidiu mantê-lo preso preventivamente em 2018. Uma questão tão básica, inicial, passou ao largo da análise de tantas instâncias da Justiça?

A decisão de agora de Fachin não é só o atestado de óbito da Lava Jato -- que podemos discutir, em vários outros textos, e provavelmente vamos, se merece este fim. Ela é um atestado de falência de todo o sistema judicial brasileiro, uma vez que não houve instância do Judiciário que não tenha sido instado a analisar a situação do ex-presidente e de outros réus.

A nova decisão, e tomada de forma monocrática, deverá desencadear uma nova avalanche de recursos de diversos réus da operação, colaboradores ou não, para ter a favor de si o mesmo julgamento. 

Se Fachin tomou a decisão por medo de ficar vencido no julgamento do HC pela suspeição de Moro, então ele preferiu dar um tiro no coração da Lava Jato para evitar que ela fosse atingida no braço ou no pé. Não é compreensível.

Quando ele, na decisão, diz que a Justiça tem de ser imparcial e apartidária, está dando vazão para que a defesa e os apoiadores de Lula, com razão, apontem parcialidade e partidarização também em "n" decisões do Supremo, e não apenas de Sérgio Moro e Gabriela Hardt. Afinal, eles tiveram sentenças confirmadas.

Uma coisa seria anular as condenações à luz do que se descobriu na Vaza Jato. Os fatos ali demonstrados são posteriores às condenações, e suscitam uma complexa, porém compreensível discussão a respeito da legalidade das condenações. Esta análise deveria se dar pelo pleno da corte, e a partir de uma premissa: as provas obtidas na Operação Spoofing, que por sua vez analisou dados de uma interceptação ilegal de diálogos entre integrantes da Lava Jato e Moro, poderiam ser usados?

Fachin atravessou este samba para dizer: olha só, pessoal, esqueçam isso, porque tudo que fizemos até aqui estava errado, e a gente esqueceu de ver este detalhe. Risível! Joga por terra tudo que se descobriu no esquema de desvio de recursos da Petrobras, suas subsidiárias e demais empresas públicas por agentes públicos e políticos, em conluio com grandes empresas.

Do ponto de vista político, a decisão é tudo que Bolsonaro poderia querer neste momento. Desvia o foco da imprensa, da sociedade civil, da oposição e da Justiça da sua criminosa gestão da pandemia, lhe dá uma narrativa segundo a qual o "sistema" opera para beneficiar Lula e o PT e fazer letra morta da "roubalheira" na Petrobras e permite a ele reconquistar parte de seus apoiadores com base no discurso mistificador de que se não for ele o PT volta. Sopa no mel!


Merval Pereira: A suprema guerra

O debate político desde a divulgação pelo “Intercept Brasil” das conversas entre os procuradores de Curitiba e deles com o então juiz Sergio Moro, fruto da invasão por hackers de aplicativos de mensagem de autoridades em Brasília, desenvolveu-se entre os favoráveis ou contrários à Operação Lava-Jato, no meio político e também no Supremo Tribunal Federal (STF).

Embora as conversas não possam servir como prova, pois conseguidas de maneira ilegal, elas foram divulgadas amplamente, mesmo com a autorização do Supremo, e certamente influenciaram a mudança do ambiente político. Essa guerra de narrativas encontrou na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) sua representação nas pessoas dos ministros Gilmar Mendes, contrário, e Edson Fachin, favorável.

O que aconteceu ontem foi apenas mais uma etapa dessa disputa, que pode ter hoje, na reunião da Segunda Turma, seu prosseguimento. O ministro Gilmar Mendes estaria disposto a levar para o plenário da Turma a questão da parcialidade de Sergio Moro e provavelmente ganharia, pois, com a chegada do ministro Nunes Marques, a maioria contra a Lava-Jato ficou fixada antes mesmo de qualquer julgamento.

Daí o movimento brusco de Fachin de encaminhar os processos contra Lula para a Justiça Federal de Brasília, preservando os atos de investigação e acusação, mas anulando as decisões. Os movimentos de Gilmar Mendes e Edson Fachin têm pouco a ver com o ex-presidente, que acabou se beneficiando desse embate. Gilmar quer acabar com a Lava-Jato, que já apoiou enfaticamente, e Fachin quer preservá-la, mesmo abrindo mão dos processos contra Lula.

Se a votação da parcialidade de Moro fosse referendada pela Segunda Turma, todos os processos da Lava-Jato estariam em xeque. Nada é mais importante do que analisar a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos tempos no país para definirmos seu papel neste momento político. A suprema guerra se desenvolve às claras, nas reuniões plenárias, e sobretudo nos bastidores.

Fachin tentou uma manobra, colocando no plenário virtual uma ação da defesa de Lula pela parcialidade de dois ministros do Tribunal Regional Federal (TRF-4) que avalizaram a condenação de Lula no caso do sítio de Atibaia. Como as razões aventadas eram muito frágeis, provavelmente a defesa do ex-presidente perderia, o que levaria Fachin a argumentar que, como o TRF-4 havia julgado Lula, e inclusive aumentado sua pena, não poderiam ser anuladas as decisões de Moro.

O risco era grande, e a defesa de Lula retirou o caso do plenário virtual “para aperfeiçoá-lo”. O movimento de Fachin ontem talvez não impeça a decisão de Gilmar Mendes de levar à reunião de hoje a questão da parcialidade de Moro. Ele estaria disposto a arrostar a decisão de Fachin, e a disputa pode ter que ser resolvida pelo presidente Luiz Fux, adepto da Lava-Jato.

A pressão política para que o ex-juiz Moro seja julgado é grande, mesmo com a decisão do relator da Lava-Jato de considerar extinta a causa, por falta de objeto. Fachin alegou na sua decisão que, embora a questão da competência já tivesse sido suscitada indiretamente, “esta é a a primeira vez que o argumento reúne condições processuais de ser examinado, diante do aprofundamento e aperfeiçoamento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal”.

Ele se refere à jurisprudência que teria sido alterada nos últimos meses, restringindo o alcance da competência da 13ª Vara Federal e enviando para Varas de todo o país, e para Tribunais Eleitorais (TREs), os processos iniciados pela Lava-Jato, contra seu voto. Se a Justiça do DF confirmar as condenações e Lula for novamente condenado na segunda instância, voltaria a ser inelegível, mas isso dificilmente acontecerá, pois os crimes já devem estar prescritos, ou quase, e ninguém vai assumir o mesmo desgaste de conduzir essa batalha da Lava-Jato.

Nada que saiu de Curitiba, fora os processos do Rio de Janeiro, avançou. Os processos que não tenham vínculos claros com a Petrobras serão anulados. E Lula provavelmente será o candidato do PT em 2022. A não ser que o inesperado volte a fazer uma surpresa, como sói acontecer no Brasil.

Edson Fachin, que era ligado ao PT antes de ser indicado para o STF, beneficiou Lula, mas esse não era seu objetivo principal. Gilmar Mendes, que estava rompido com Lula, que fora seu amigo, também ajudou a libertar o ex-presidente. A suprema guerra escreve política por linhas tortas.


Míriam Leitão: As reviravoltas da terra redonda

O terremoto Fachin terá muitos efeitos secundários, mas começou mudando o dia de ontem. Havia amanhecido um tempo ruim para o presidente Bolsonaro, com o pacto entre governadores deixando claro que a sua inépcia agravava a tragédia da pandemia. No fim do dia, abrigado num guarda-chuva, Bolsonaro falou longamente sobre variados assuntos, reclamou até da alta do dólar provocada pela decisão que beneficiou o ex-presidente Lula. “A bolsa foi lá pra baixo, o dólar lá pra cima. Todos nós sofremos com uma decisão como essa”. Nos dias anteriores, o dólar subiu e a bolsa despencou por causa dele, Bolsonaro.

Um dos primeiros efeitos da decisão de Fachin de anular tudo o que foi decidido a partir da 13ª Vara Federal de Curitiba sobre Lula é mudar o cenário para a eleição de 2022, com Lula elegível. Outra consequência é que réus como o ex-governador Sérgio Cabral e o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha podem vir a se beneficiar da reviravolta. Todos que não forem diretamente ligados à Petrobras podem questionar seus processos. Cabral foi condenado pela Calicute e julgado pela 7ª Vara, no Rio, mas um ministro do Supremo me disse que, a partir de agora, tudo tem chance de ser revisto.

Bolsonaro voltou a ficar confortável para falar da “bandalheira” do PT. E afirmou que os desvios do BNDES haviam sido de “trilhão de real”. Ele nunca conseguiu, nem mesmo trocando o presidente do banco, abrir a tal caixa-preta do BNDES, mas cria uma cifra imaginária e assim pode fugir de temas incômodos, como a mansão comprada pelo seu filho Flávio. Ontem mesmo, o procurador junto ao TCU, Lucas Furtado, iniciou um procedimento questionando o fato de o senador Flávio Bolsonaro ter casa e usar apartamento funcional. Isso seria, segundo o procurador de contas, “crime e ato de improbidade”.

Uma das questões incômodas para Bolsonaro era o fim da Lava-Jato. Afinal, ele surfou na onda anticorrupção, sem qualquer relação prévia com essa agenda. Foram as decisões de seu governo, primeiro minando o pacote anticrime, depois instalando um inimigo da Lava-Jato na Procuradoria-Geral da República (PGR), que levaram ao desmonte das Forças-Tarefas. Portanto, a conta estava com ele. Ontem, ele jogou o peso sobre o ministro que anulou as condenações de Lula. “Luis Fachin sempre teve forte ligação com o PT. Então não nos estranha uma decisão nesse sentido”. Na verdade, Fachin tomou muitas decisões contrárias ao PT.

Um ministro do Supremo, surpreso com a decisão de Fachin, me disse o seguinte. “Ele negou tudo o que Lula pediu e agora, de repente, dá tudo de uma vez só”. Outro disse que era a “estratégia de desespero” do ministro, diante das várias derrotas recentes da sua relatoria.A decisão abala a confiança no próprio Supremo. Desde a primeira hora, a defesa do ex-presidente Lula arguiu a competência do tribunal de Curitiba, defendendo a tese de que Sergio Moro não era o juiz natural. Os fatos teriam ocorrido em São Paulo — Guarujá, Atibaia — e o acusado morava em Brasília, na época. Mas a competência da 13ª Vara foi confirmada inúmeras vezes, os processos foram julgados também na 2ª Instância. Houve recursos até ao STJ. Agora, anos depois de tudo, de Lula ter ficado quase dois anos preso, o ministro decidiu que Curitiba não era o foro competente.
Na política brasileira, que dá mais voltas que a Terra (redonda) em torno do Sol, o procurador Augusto Aras, mais precisamente a equipe da subprocuradora Lindora Araújo, a algoz da Lava-Jato, vai recorrer da decisão. Tudo o que ela não quer, evidentemente, é defender atos da Lava-Jato.

O Brasil, este país que não é para amadores, viveu ontem vários dias num dia só. De manhã, governadores articulavam com os presidentes da Câmara e do Senado a criação de um comitê de crise para a tomada de decisões coordenadas. Eu falei com dois governadores que estavam tentando negociar a coalizão mais ampla possível. Isso deixa evidente a total incompetência do presidente da República, que sabota as medidas de proteção da saúde dos brasileiros. “Nós estamos vivendo uma catástrofe”, desabafou um governador. Minutos depois, todas as atenções estavam voltadas para Lula e a disputa de 2022. Bolsonaro, que não sabe governar, voltou ao que se dedica desde o primeiro dia: a fazer campanha e contra o PT.


Carlos Andreazza: O mundo real se impõe (de novo)

Todo mundo viu o último chilique de Bolsonaro, na quinta-feira, 4 de março. Faz e avança — abrigando crimes de responsabilidade em seus pitis — porque nunca formalmente cobrado. Dirá um otimista — para quem o mito seria somente um fanfarrão — que ele estica a corda para logo soltá-la. Sim. Mas estará nosso tecido social — em tão esgarçada circunstância, sob a tensão de um espírito do tempo autoritário — com fibras para essa sucessão de estresses? O cético acrescentará que, uma vez relaxada, a corda nunca volta ao viço anterior; o fanfarrão — um populista autocrático cujos ataques influem — ganhando terreno, adiantando seus danieis-silveiras, sobre o chão da ordem política.

Tem sido assim há dois anos. E o homem vai à vontade. No último dia 6, fez um ano desde que afirmou ter provas de que a eleição de 2018 fora fraudada. Um investimento, de natureza golpista, contra o sistema eleitoral. E também um teste da disposição de Supremo e Congresso à acomodação. Omissas as instituições, captou o recado: convite a que comparecesse a uma manifestação que alvejaria STF e Congresso.

O faniquito da última quinta, como os outros, foi autorizado pela covardia institucional. Outros virão. Cada um com suas razões. A da semana passada, uma obviedade. Fôramos informados de que Flávio Bolsonaro — beneficiado por um financiamento que transformara banco em pai — havia comprado a mansão de R$ 6 milhões. O show do presidente pretendeu desconcentrar as atenções. Mas teve motivações adicionais. Todas derivadas de nova leva de imposições do mundo real sobre o discurso bolsonarista. (Há um ano, Bolsonaro projetava em 800 o número de brasileiros a morrer pela peste; e Guedes falava em domá-la com R$ 5 bilhões).

Afinal, na mesma semana passada, o governo, sob pressão dos governadores, anunciou que compraria imunizantes de um laboratório que, havia meses, desqualificava. E desqualificava com embustes como o argumento de que haveria impeditivos legais para que assumisse as responsabilidades em caso de efeitos adversos da aplicação. Uma mentira. A mesmíssima cláusula não impedindo que se assinasse contrato com a AstraZeneca.

Esculhambou-se essa vacina também porque exigiria uma rede de frio mui complexa. Refiro-me ao imunizante da Pfizer; aquela farmacêutica que, em agosto de 2020, oferecia 70 milhões de doses ao Brasil — para entrega a partir de dezembro, com 1,5 milhão de doses já naquele mês e outro volume igual até fevereiro. Mas que foi difamada pelo governo. Governo que ora anuncia a compra de 100 milhões de doses produzidas pelo laboratório — a ser entregues, contudo, a partir do segundo trimestre de 2021. (Governo que, fosse por seu exclusivo esforço, só teria oferecido — até hoje — quatro milhões de doses à população.)

Bolsonaro não quis ter vacinas já em dezembro, três milhões de ampolas até fevereiro. (Preferiu que o “meu Exército” — o dele — fabricasse milhões de cloroquinas com dinheiros do combate à pandemia.) O mesmo sujeito que agora grita — mandando o cidadão procurar vacina na casa da mãe — que “não tem pra vender no mundo”. Tinha. Não quis. Mas o mundo real se impôs. (A mamãe Bolsonaro já foi vacinada.) Como se impôs quando teve de adquirir — depois de haver afirmado que não o faria — a vacina de Doria; sem a qual não haveria vacinação em curso neste país. (A mamãe Bolsonaro foi imunizada com a vachina.)

O mundo real se impõe. E impôs a Bolsonaro mais um cavalo de pau; correndo para comprar vacinas — Covaxin e Sputnik (de lobby parlamentar espantoso) — ainda desprovidas de certificação pela Anvisa, outrora a condição fundamental, segundo o presidente, para que o povo não fosse cobaia e para que ele não fosse irresponsável com o dinheiro do povo, firmando contratos com laboratórios cujos imunizantes ainda não estivessem liberados pela agência. O que mudou?

Bolsonaro nega — na prática — o discurso de Bolsonaro; o que castiga a base social extremista difusora de seu negacionismo. Foi também para agradar a esses que rebolou na quinta. O bolsonarismo depende de gerar inimigos. Já foi a vacinação em massa; a respeito do que se inventou uma obrigatoriedade que invadiria nossas casas para nos imunizar à força. Mas o mundo real se impôs. E o governo não apenas compra as vacinas malditas como passou a defender, ontem, Guedes por porta-voz, a vacinação em massa.

A imposição do mundo real obriga Bolsonaro aos mimimis. Pura satisfação a seus reacionários, para cujo agrado, sempre que aperta, convoca outro velho inimigo imaginário: o lockdown. Que não existe no Brasil. Mas contra o que — a tirania de governadores que nos tomam o direito de ir e vir — lutam os patriotas defensores da liberdade. Batalha pela qual o presidente pode até colocar o “meu Exército” na rua — ameaçou. Aliás, um dos motivos para a pregação armamentista-miliciana de Bolsonaro: que o cidadão possa se proteger de medidas legais decretadas por governantes legitimamente eleitos, esses ditadores.

“Mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?” — perguntou o presidente em meio ao fricote.


Joel Pinheiro da Fonseca: Ninguém quer o segundo turno dos pesadelos, mas caminhamos para ele mesmo assim

Estamos tão viciados na dicotomia Bolsonaro-PT que não largamos dela

Em breve descobriremos se a decisão do ministro Fachin de anular quatro processos contra Lula por um erro de jurisdição (que já tinha sido discutido no passado) veio a favor ou contra Lula, a favor ou contra Moro, para salvar ou matar a Lava Jato.

Tudo está em aberto, a depender da velocidade do tribunal do Distrito Federal e da segunda instância. Se os julgamentos demorarem, a vitória é de Lula, que concorrerá em 2022. Se forem rápidos, Lula voltará a ser ficha-suja, dessa vez sem a esperança de uma reversão graças à suspeição de Sergio Moro. Uma decisão judicial deveria ser completamente alheia à política. Mas a instabilidade, arbitrariedade e casuísmo das decisões no Brasil obrigam que a gente as interprete apenas dessa maneira.

Seja como for, essa reviravolta monocrática, ainda que coloque tudo de volta no mesmo lugar, reacendeu nos corações e mentes aquela suspeita chata, que buscamos afastar e que, como uma mosca, se recusa a ir embora: a de que, em 2022, ficaremos entre Bolsonaro e PT.

Os males de Bolsonaro dispensam apresentação. Estamos há dois anos sob o governo mais inepto que este país já viu, com um presidente que é fonte constante de instabilidade e ataques às instituições. Educação, saúde pública e meio ambiente jogados ao fogo; o Brasil, um pária internacional; o debate público envenenado por mentiras numa escala inédita; perseguição à imprensa; a tal agenda de reformas já com o pé na cova.

Lula, por sua vez, traz um PT não só sem a famosa “autocrítica”, mas empedernido em seus piores crimes. Pelo discurso partidário, não houve mensalão nem corrupção na Petrobras ou junto às empreiteiras. Foi tudo uma criação da mídia e da direita e chegou a hora da desforra. Nas propostas, é populismo na veia: da economia ao controle da mídia.

É quase impensável Bolsonaro não ir pro segundo turno. Vivemos o pior momento da pandemia em que, sem figura de linguagem, Bolsonaro matou ao menos dezenas de milhares de pessoas. Se os seus 30% não o abandonaram até agora, é preciso muita fé para imaginar que o abandonarão depois. A chance de impedir o Bolsonaro-PT, portanto, está em alguém superar o candidato do PT no primeiro turno.

Pelo que as pesquisas mostram, há uma chance. Se o voto da esquerda for fragmentado e o centro se unificar em um candidato (que concentre os votos hoje pulverizados entre Moro, Doria, Mandetta, Huck) há um caminho para alguém de fora da polarização ir para o segundo turno. Outro caminho é Ciro conseguir alguns votos do centro e conquistar parte da esquerda que iria para o candidato do PT. Só não é provável.

Se Lula for candidato, fica ainda mais difícil. Lula concentra os votos que estariam dispersos na esquerda. Isso mata a chance de um nome de centro-esquerda como Ciro. Bolsonaro também se fortalece com Lula candidato, o que dificultará a vida dos demais nomes de centro.

O nome que poderia mais naturalmente se colocar ao mesmo tempo contra Lula e Bolsonaro e ainda reivindicar o legado da Lava Jato —hoje enterrada por uma combinação dos três Poderes— é Sergio Moro, mas ele parece determinado a se omitir do debate político.

PT e Bolsonaro, se acontecer, não será uma escolha difícil. Cada um de nós já sabe muito bem como votaria. Mas colocar-nos nessa escolha já é uma derrota. Estamos tão viciados na dicotomia e tão descrentes de qualquer terceira via que não largamos dela. Guiamos para o precipício, vemos o precipício na nossa frente, mas não mudamos a rota.

*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.


Hélio Schwartsman: Fachin tenta salvar a Lava Jato

A corrupção mostrada pela operação precisa ser julgada pelo processo legal

Ao anular processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e devolver-lhe os direitos políticos, o ministro do STF Edson Fachin tenta salvar o que for possível da Lava Jato. É um caso clássico de entregar os anéis para não perder os dedos.

Se a decisão de Fachin se mantiver, não há mais razão para o Supremo julgar a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro em relação a Lula. Evita-se assim que se abram comportas que poderiam levar à anulação de várias condenações de vários réus. A decisão permite até que os casos do tríplex no Guarujá e do sítio em Atibaia sejam julgados de novo, mas agora pela Justiça Federal de Brasília.

Objetivamente, o que Fachin fez foi acatar pedido da defesa para considerar a Justiça Federal de Curitiba incompetente para julgar os casos de Lula. Esse sempre foi o melhor argumento jurídico do ex-presidente.

O deslocamento de processos que corriam em São Paulo para as mãos de Moro sempre me pareceu forçado.

O problema é que a Justiça, em várias instâncias, já negara solicitações semelhantes da defesa. Aceitar a argumentação agora, após anos de tramitação e na iminência do que se afigurava como derrota certa para a ala lava-jatista do STF, soa como casuísmo.

Entendo a preocupação de Fachin em evitar que a Lava Jato desmorone numa reação em cadeia de anulações. O Brasil sofreria mais um vexame internacional se solicitasse às autoridades suíças que restituíssem o dinheiro desviado a seus ilegítimos donos. Receio, porém, que a opção de Fachin por evitar que enfrentemos as questões difíceis não seja uma boa estratégia.

Se Moro foi parcial em relação a Lula, esse não é um problema que devamos varrer para debaixo do tapete. Fazê-lo só aumenta o descrédito no Judiciário. Os casos de corrupção levantados pela Lava Jato são reais, mas precisam ser julgados segundo as regras do devido processo legal previstas na legislação.


Carlos Melo: Decisão de Fachin acelera o processo político

A decisão do ministro Edson Fachin traz um fato dentro do fato: foi tomada pelo maior aliado que os ex-membros da Operação Lava Jato possuem Supremo Tribunal Federal; aparentemente, aquele que guarda mais concordância com o que foi feito nos processos que condenaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não foram os tradicionais críticos e desafetos dos procuradores de Curitiba e de Sérgio Moro que se impuseram. Foi Edson Fachin. E isso dá maior força à decisão, tornando-a ainda mais simbólica.

Outra dimensão diz respeito ao jogo político: a condenação de Lula, desde sempre questionada por parcela da comunidade jurídica, mais uma vez se torna elemento de disputa política. Agora, com sinal trocado. Se antes, desafetos do ex-presidente usavam a Justiça para detratá-lo; neste momento, serão seus aliados que evocarão a mesma Justiça para erguer a bandeira de sua vitimização. Isso traz saldos.

Abre-se, assim, um novo campo na cena conjuntural. À parte de erros gritantes, Bolsonaro se dava ao luxo de ainda não ter um antagonista à altura, que se impusesse política e eleitoralmente. Um adversário de carne e osso. João Doria, é verdade, tem tentado. Mas, vindo de um apoio ao presidente em 2018, estava na defensiva. O resto do chamado centro se perde repleto de nomes e sem alternativa clara. Com Lula, é diferente.

O petista reemerge para o jogo político com pelo menos duas vantagens: a primeira, a narrativa do injustiçado, como já se disse. A segunda, beneficiado pelo pior momento e pelo desgaste amplo e geral do adversário. A lista é grande: a condução do governo na pandemia é literalmente uma tragédia, a crise econômica carece de rumo, já é reconhecido o estelionato eleitoral no combate à corrupção e na conversão ao liberalismo; os problemas com os filhos, a mansão de Flávio Bolsonaro, tudo faz sangrar.

Além, é claro, o mau humor da comunidade internacional com o Brasil. O temor do mundo de que o País possa, em razão das atitudes de Bolsonaro, significar o maior risco do planeta na proliferação de novas variantes do vírus.

Num cenário visto assim tão de perto, é difícil afirmar que a liberação de Lula possa de algum modo favorecer a Jair Bolsonaro. Contudo, há que se considerar que, é verdade, o presidente passa a ter a bandeira do antipetismo para empunhar novamente. Seus argumentos serão mais frágeis e sua credibilidade muito mais abalada do que em 2018, mas não deixará de ser oportunidade de um evocação às bases. Uma ordem unida para juntar a tropa.

Evidente que, ainda sob o impacto do fato novo, não se sabe como militares, eleitores e políticos de centro, além de setores da economia, reagirão a esse chamamento. Nem como Lula se comportará nesse primeiro momento: dará vazão ao ressentimento, articulará novos pactos e alianças, ou deixará que, por enquanto, Bolsonaro sangre na soma de seus erros? O certo é que a decisão de Fachin acelerou o processo.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Ricardo Noblat: Para estancar a sangria da Lava Jato, Fachin reabilita Lula

De volta à pergunta que não cala há dois anos

Salvo se recuar do que disse na última sexta-feira ao jornal El País, logo mais, a partir das 14h, quando concederá uma entrevista coletiva à imprensa na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Lula repetirá que só será candidato à sucessão de Bolsonaro se os brasileiros quiserem, mas que está disposto a isso e que fará política até seu último dia de vida.

Em outubro de 2022, ele completará 77 anos de idade. Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, estará com 78. Considera-se em boa forma para enfrentar mais uma campanha e afirma sentir-se como se tivesse apenas 30 anos – um exagero, por suposto, mas político costuma exagerar quando a seu favor. Tomará a primeira dose de vacina contra a Covid na próxima semana.

Tão logo tome a segunda dose e seja liberado pelos médicos, começará a viajar para fazer o que mais gosta – conversar. Falar mais do que ouvir. Relembrar as realizações dos seus governos. E bater duro em Bolsonaro, que ele considera um acidente na história do Brasil, um perigo à democracia, e responsável em parte pelas mortes da pandemia que deixou correr solta.

Em telefonemas, ontem à noite, trocados com amigos, Lula, que se emociona facilmente, pareceu chorar ou ter chorado. Não esperava a decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, de anular suas condenações. Espantou-se com ela. Punha mais fé, mesmo assim duvidando, que a Segundo Turma do tribunal aceitasse o pedido de suspeição do ex-juiz Sérgio Moro.

O ex-presidente não se cansa de dizer que não alimenta rancores, que ser refém de rancores faz mal a às pessoas, mas que abre uma exceção quando se trata de Moro. Vê-lo considerado suspeito pela mais alta corte de justiça do país lhe daria uma satisfação indescritível.  Talvez fosse a única maneira de recobrar a paz interior e de doravante limitar-se a olhar para frente.

A Segunda Turma do tribunal, presidida pelo ministro Gilmar Mendes, poderá presenteá-lo com isso. Talvez hoje mesmo ao voltar a se reunir. Se não, em breve, muito breve. Fachin pode ter reabilitado Lula com o propósito de estancar a sangria da Lava Jato que ele defende acima de tudo, Gilmar, porém, está disposto a enterrar a Lava Jato com desonra.

Dado à pandemia, 2020 foi mais um ano que não terminou. Com a decisão de Fachin, 2022 chegou mais cedo para os políticos e os que giram em torno da política. Apague tudo o que você já leu sobre a próxima eleição presidencial – possíveis candidatos, eventuais chances de cada um, como os principais partidos deverão se comportar até lá, o efeito do coronavírus…

Recomecemos. Dificilmente, até meados de 2022, haverá tempo para que o juiz federal que herdará os processos contra Lula o condene em algum deles, a instância seguinte da justiça avalize a condenação, de forma que o ex-presidente seja alçado novamente à condição de ficha suja, o que o impossibilitaria de ser candidato. Às vezes, a justiça aprende com seus próprios erros.

No PT não tem espaço para mais ninguém – o candidato será Lula. Não acabou, mas sofreu um duro golpe o sonho de partidos da esquerda de disputarem a eleição com outro nome, apartando-se do PT e atraindo partidos do centro. Ciro Gomes será candidato a presidente pela quarta vez – a última, caso perca. Se não viajar a Paris, apoiará quem for para o segundo turno, menos Bolsonaro.

A retroescavadeira usada por Fachin para desfigurar o que estava em construção fortaleceu a candidatura do apresentador Luciano Huck à sucessão de… Faustão, de saída da telinha da Rede Globo de Televisão. Dinheiro nunca é demais para ninguém, e a proposta que a emissora lhe fez é tentadora. Faz parte do pacote de benefícios um programa para Angélica, cobiçada pela Record.

Pela direita que se apresenta como centro para não ser confundida com o Centrão, quem se afirmará como candidato? João Doria (PSDB), governador de São Paulo, que por mais que vacine brasileiros continua sem decolar nas pesquisas de intenção de voto? Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde? Surgirá um novo nome? O tempo escasseia, o tempo urge.

A extrema direita já tem dono – Bolsonaro, que retomou os ataques a Lula e ao PT e incluiu Fachin entre seus alvos. O auxílio emergencial vem por aí para que ele reconquiste uma fatia da popularidade perdida. Bolsonaro foi visto negociando a compra de vacinas da Pfizer e despachou para Israel uma comitiva atrás de um milagroso spray nasal em fase de testes por lá.

À primeira vista, e enquanto a terra ainda treme, daqui a 19 meses poderá ganhar, enfim, uma resposta a pergunta que teima em não calar: Lula, que preso liderava todas as pesquisas, teria vencido ou sido derrotado por Bolsonaro em 2018? Nos seus cálculos, deixem a facada de fora, um ato insano e covarde do seu autor e de quem dele valeu-se para fugir aos debates.

Bolsonaro ofende a honra do governador do Rio Grande do Sul

Um presidente obsceno

O presidente Jair Bolsonaro descontrolou-se ao saber da decisão do ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, de anular as condenações de Lula, devolvendo-lhe as condições para que dispute as próximas eleições.

Seus auxiliares mais próximos não queriam que ele, por enquanto, comentasse a decisão. Achavam que nada teria a ganhar com isso. Ofereceram-se para plantar informações na imprensa dando conta de que a decisão o beneficiaria, e assim foi feito.

Mas Bolsonaro é Bolsonaro, fala quando quer e só dá ouvido a quem pensa como ele. Passou recibo partindo para cima do PT e de Lula, e não poupou sequer Fachin, acusando-o de ter sempre militado na esquerda, e atingindo assim, por tabela, o tribunal.

A falta de vacina tirou Bolsonaro do sério, se é que um presidente bem composto ele já foi um dia. Bolsonaro aproveitou também o embalo para fazer insinuações obscenas contra Eduardo Leite (PSDB), governador do Rio Grande do Sul, em entrevista à BAND:

Onde o governador, que fala muito manso, educadamente, uma pessoa até simpática, mas é um péssimo administrador. Onde ele enfiou a grana [das vacinas]? Não vou responder pra ele, mas acho que sei onde colocou a grana toda, não colocou na saúde”.


O Globo: Impacto de Lula no cenário eleitoral de 2022 vai depender do 'figurino' que petista adotar, dizem analistas

Segundo cientistas políticos, se ex-presidente adotar discurso mais próximo ao mercado, como fez em 2002, pode angariar votos do centro

Guilherme Caetano, O Globo

SÃO PAULO — A recuperação dos direitos políticos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, após decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, nesta segunda-feira, embaralha a disputa eleitoral de 2022. Pesquisas de opinião colocam o petista em um patamar de intenção de voto mais alto que o do presidente Jair Bolsonaro. Mas tudo vai depender do "figurino" que Lula escolher para a disputa, avaliam cientistas políticos ouvidos pelo GLOBO.

Bastidores:  Petistas adotam cautela, mas expectativa é que Lula assuma candidatura

De acordo com analistas, Lula pode beneficiar Bolsonaro se adotar uma postura tida como "radical". Por outro lado, pode ganhar votos do centro se fizer acenos ao mercado, como ocorreu em 2002. Não é automático, segundo os cientistas políticos, o ganho de Bolsonaro na polarização com Lula. Diferentemente de 2018, o presidente será cobrado pelas crises causadas pela pandemia do novo coronavírus.

Professor do Insper, o cientista político Carlos Melo diz que o ressurgimento de Lula na cena política se dá no momento de maior fragilidade do governo Bolsonaro, que enfrenta múltiplas crises. Além do descontrole da pandemia que já deixou mais de 260 mil mortos, riscos de uma nova recessão técnica no primeiro semestre de 2021 e credibilidade internacional em baixa, a aprovação do presidente caiu para 28% segundo o último levantamento do Ipec

— Bolsonaro até agora tinha uma vantagem, porque não tinha ninguém no páreo. Mas tudo vai depender de como Lula vai aparecer em cena. Bolsonaro está fragilizado. Lula pode capitalizar a tensão em torno das crises agora ou esperar, estrategicamente comedido, pelo adversário sangrar mais até encontrá-lo numa situação mais crítica lá na frente — diz ele.

De acordo com a última pesquisa do Ipec, instituto criado por ex-dirigentes do Ibope, metade dos brasileiros (50%) dizem que votariam com certeza ou poderiam votar em Lula, e 44% não o escolheriam de jeito nenhum. Bolsonaro aparece 12 pontos atrás de Lula em potencial de votos (38%) e 12 pontos à frente em rejeição (56%). Outros possíveis presidenciáveis, como o governador João Doria (PSDB), aparecem em patamar mais baixo.

Eleições:  Partidos de esquerda elogiam decisão a favor de Lula, mas aliança com PT em 2022 é difícil

Para Christian Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, Bolsonaro terá vantagem sobre Lula se o petista se comportar como em 2018, quando, preso pela Lava-Jato, manteve uma retórica mais beligerante para "tentar mostrar sua força". No entanto, o presidente poderá enfrentar um adversário competitivo se este souber com os setores que abandonaram o atual governo.

— A eleição ainda está longe. Do ponto de vista da ação política, a pergunta que importa é: vai ser o Lula de 1989 ou de 2002? Se for o de 1989, é bom para o Bolsonaro. Se for o de 2002 e se mover ao centro, é péssimo para Bolsonaro — declara.

Em 2002, Lula lançou a "carta ao povo brasileiro", documento no qual acenava para a moderação. O objetivo era tranquilizar o mercado financeiro, que temia a política econômica que seria implantada com uma vitória do petista, e mostrar que o PT, se chegasse ao poder, se comprometeria a seguir os pilares econômicos implantados no Plano Real.

Lauro Jardim:  'Bolsonaro sempre insistiu que o adversário dele em 2022 seria o PT', diz ministro

O cientista político José Álvaro Moisés, da USP, diz que o jogo eleitoral dependerá da disposição de Lula para constituir uma candidatura que agregue as forças de oposição, mas avalia a decisão de Fachin como uma oportunidade para Bolsonaro radicalizar. Segundo ele, o presidente "ganhou uma possibilidade de reinterpretar a polarização".

— A grande mudança que a viabilidade de Lula coloca é um desafio extremamente difícil para o chamado centro moderado. Não vai poder lançar três, quatro, cinco candidatos. Terá de ser um, capaz de enfrentar os dois principais problemas do país: a desigualdade social e o alto desemprego. Se o centro não for capaz de definir uma candidatura em torno desses temas, vai ficar isolado — diz Moisés.

Tanto para Melo quanto para Lynch, uma eventual disputa entre Lula e Bolsonaro permitirá que duas grandes forças políticas, o antipetismo e o antibolsonarismo, meçam suas grandezas eleitoralmente.

— O antipetismo ainda existe, mas o antibolsonarismo está forte. Dependerá do movimento de Lula, porque não vejo Bolsonaro conseguindo se flexibilizar. Ele governa para 25% do eleitorado e não vai mudar — diz Lynch.

Bela Megale:  Em reservado, aliados de Bolsonaro 'comemoram' decisão de Fachin

Melo diz que Bolsonaro poderá reavivar o antipetismo em benefício próprio, mantendo sua base energizada. Na última eleição, o então candidato pelo PSL apostou na aversão ao PT durante toda a campanha, e acabou derrotando Fernando Haddad com 57,8 milhões de votos (55,13%).

Ainda não está claro, no entanto, se Lula sairá candidato. A vaga de pré-candidato do PT vinha sendo ocupada pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, que já declarou em entrevistas que se Lula se livrasse da inelegibilidade, ele é que deveria disputar o Planalto em 2022. Desde a decisão de Fachin, petistas têm dito que Lula só não concorre à Presidência se não quiser.