direita
Míriam Leitão: Erro econômico na crise sanitária
O Ministério da Economia ficou ausente de questões decisivas para a economia no combate à pandemia. Na vacinação, os economistas poderiam ter induzido a estratégia de comprar mais vacinas e não menos, exatamente para não concentrar o risco. Em tempos de incerteza e de escassez, o certo a fazer é diversificar riscos e ampliar potenciais fornecedores. Em relação ao auxílio emergencial, era fundamental ter um plano para este momento em que as transferências vão secar.
Em conversa esta semana com o economista José Alexandre Scheinkman, ele me chamou a atenção para esse ponto:
— O Ministério da Economia deveria ter alertado o governo que precisava formar um portfólio diversificado. Nós economistas entendemos esse problema de risco e diversificação. O pessoal da saúde pode não pensar nessa estratégia de portfólio. O Canadá encomendou quatro vacinas para cada cidadão, de tipos diferentes. No programa americano também há várias vacinas encomendadas.Esta semana o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta explicou, numa entrevista na Globonews, como o governo errou nas negociações da Organização Pan-Americana de Saúde. Em vez de usar o fato de ser um país grande para aumentar sua capacidade de negociação, o Brasil se apequenou. Primeiro, disse que não entraria no consórcio, depois, que só compraria 10% da sua necessidade. Neste momento está havendo um choque na capacidade de oferta. Mas a equipe econômica se deixou convencer pela ideia de Bolsonaro, de que, por sermos grandes, somos um mercado desejado. Em momento de escassez de oferta e muita demanda, é o oposto.
O Ministério da Economia errou por se manter distante desta crise. E, desde o início, este é também um problema econômico. O equívoco veio de avaliações erradas. As primeiras análises feitas até o começo de março eram que a pandemia não se espalharia no país porque o Brasil seria “um país fechado”. Depois subestimaram a extensão do contágio, os estragos e o custo. Veio daí a já famosa frase do ministro Paulo Guedes de que com R$ 5 bilhões ele venceria o vírus. O custo ultrapassou R$ 600 bilhões. O governo gastou muito e mal.
No fim do ano o cenário com o qual o Ministério da Economia trabalhava era o de que a pandemia estava reduzindo sua intensidade e por isso não seriam necessárias novas medidas de socorro à economia. O indicador que os orientava era o de isolamento social. Como ele caía, concluíam que a economia iria recuperar o nível de atividade, principalmente o setor de serviços. A queda do distanciamento levou a um aumento da infecção. Sucessivas vezes durante esta pandemia a realidade contrariou o cenário no qual apostou o Ministério da Economia. Ele ficou, como se diz no jargão do mercado, todo o tempo behind the curve, ou seja, correndo atrás dos fatos.
Se avaliasse a evolução provável dos eventos com as ferramentas que os economistas têm, o Ministério teria concluído que o governo estava tomando riscos excessivos ao sustentar aquela visão de Bolsonaro de que o STF o impedia de tomar decisões federais de coordenação do combate à pandemia. Esse erro elevou os danos colaterais da crise sanitária.
Nos Estados Unidos, o presidente Biden tomou decisões que mostram como é largo o espaço para a coordenação da União, mesmo numa federação que sempre reconheceu a grande autonomia dos estados e das cidades. Biden convocou a Fema, a agência federal de administração de emergências, para fortalecer a vacinação. A Fema vai montar centros de imunização. Biden determinou que sejam feitas campanhas nacionais, algumas dedicadas exclusivamente às comunidades céticas. Vai fazer campanha pelo uso de máscaras, além de ter obrigado o uso nos prédios federais. O governo federal se ofereceu aos estados e cidades para “desenvolver, equipar, prover gerenciamento de informação, oferecer pessoal e locais” para vacinação. Enfim, a cada ato sensato de Biden, é inevitável ver a inação de Bolsonaro no Brasil e o espantoso custo disso em vidas humanas e perdas econômicas.
A falta de gestão da crise a aprofunda e prolonga. Isso eleva a necessidade de socorro financeiro às famílias e pequenas empresas. As quedas na saúde estão totalmente ligadas às quedas na economia. Por não preparar em tempo um substituto ao auxílio emergencial, o Ministério da Economia está se deixando empurrar para alguma solução que será de novo improvisada.
Ascânio Seleme: De costas para o Brasil
Ao que parece, mais uma vez o Congresso vai dar as costas aos brasileiros. Os números apurados pelo GLOBO e pela Folha de S. Paulo indicam que o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco devem ser eleitos presidentes da Câmara e do Senado. Os dois, como se sabe, são os candidatos apoiados por Jair Bolsonaro. Pacheco em duas entrevistas disse que até agora não viu crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente e que “erros do governo na pandemia são escusáveis”. Lira não precisa dizer nada, todo mundo sabe o que ele pensa e como ele age.
O que se desenha com a eleição destes dois senhores é que os evidentes crimes praticados por Bolsonaro, contabilizados já na casa das duas dezenas, serão ignorados pelo Congresso. E obviamente também não tramitará qualquer outra denúncia por novos crimes que certamente o presidente perpetrará. Até o momento, 61 pedidos de impeachment de Bolsonaro foram encaminhados ao Congresso por partidos políticos e entidades civis. O presidente deveria ser julgado por apoiar o golpe de 1964, apoiar motim da PM, tentar interferir na PF, apoiar manifestações antidemocráticas, se calar diante de declarações antidemocráticas de ministros, ameaçar o STF, ameaçar procuradores, atentar contra a vida na pandemia, entre outros crimes.
Como se vê, o presidente do Brasil é um criminoso contumaz. E a maioria dos 594 deputados e senadores que vão eleger os novos chefes das duas casas do Congresso tende a se alinhar àqueles que já disseram publicamente que os erros de Bolsonaro são desculpáveis ou que ele não cometeu crime. Não precisa ser muito esperto para entender o que a constatação explica. E a sua compreensão depõe ainda mais contra o Congresso brasileiro. Deputados e senadores estão trocando votos por cargos, vantagens e benesses do poder executivo, como sempre. Em alguns casos, compreende-se. Em outros, não.
Não surpreende, por exemplo, que mesmo alguns parlamentares do DEM de Rodrigo Maia, que apoia Baleia Rossi para dirigir a Câmara, votem em Arthur Lira. O Democratas é um partido de aglomeração. Reúnem-se nele políticos de centro, de centro-direita ou de direita. O partido não vota monoliticamente como orientação política, mas sempre apoia medidas de caráter liberal. Sucessor da Arena e do PDS, que dominaram o Congresso durante a ditadura, virou coadjuvante em todos os governos civis desde José Sarney. O DEM é conhecido pelo seu gosto de apoiar governos, não importa qual.
Os senadores do PT, por outro lado, anunciaram que vão votar em Rodrigo Pacheco. E não é por falta de opção. Significa que o maior partido de esquerda do país, teoricamente o principal opositor do governo de extrema direita de Bolsonaro, se alia a este e como consequência o auxilia a encobrir seus crimes de responsabilidade. Um petista que circula pelos altos escalões do partido diz que no Senado “o bicho é outro”, que as razões internas superam as questões partidárias. Como? Pois é. O partido que em 1985 expulsou os deputados Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes, que votaram em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, vai permitir agora que seus senadores votem com Bolsonaro.
No meio do caos que o governo promoveu no país, especialmente durante a pandemia que já matou mais de 210 mil brasileiros, é incrível que Bolsonaro ainda tenha prestígio no Congresso a ponto de conseguir eleger os presidentes de Câmara e Senado. Sob qualquer ângulo que se olhe, nenhum presidente desde Deodoro da Fonseca, que derrubou um império e instaurou uma república, tumultuou tanto o país quanto Bolsonaro. O Congresso é cego? Não, claro que não. Ele se faz de cego porque as votações para presidentes das duas casas serão secretas. E no escuro tudo fica mesmo muito embaçado.
Antes de a vaca ir de vez para o brejo, dá tempo para o presidente Rodrigo Maia cumprir seu papel histórico antes do fim do seu mandato, aceitando um dos 61 pedidos de impeachment de Bolsonaro que repousam em sua mesa. Não vale dizer que o processo daria em nada. Porque não é verdade. Impeachments são votados a plenos pulmões, a viva voz e com o rosto descoberto dos parlamentares, que usariam no máximo uma máscara profilática, pelo menos os não negacionistas. Aí a coisa muda, não é mesmo? Apoiar publicamente um presidente com popularidade de míseros 26% (Pesquisa Exame/Idéia) é diferente de votar num parlamentar bolsonarista, ainda mais protegido pela escuridão.
CONTANDO COM O OVO
A turma do deputado Arthur Lira, candidato de Bolsonaro à presidente da Câmara, garante que vai ganhar a eleição em fevereiro, quando os deputados voltarem do recesso parlamentar. Diz que vai fazer barba, cabelo e bigode.
Um dos mais fiéis deputados da base governista afirma que Lira fará maioria de votos até mesmo no DEM de Rodrigo Maia, o que seria um vexame para o filho de Cesar. O fato é que Lira está contando com o ovo mesmo sem antes ter combinado com a galinha.
A MELHOR ESCOLHA
Bolsonaro pode ter se frustrado com seus escolhidos para os ministérios da Justiça e da Saúde. Afinal, Sergio Moro e Luiz Mandetta não o obedeceram cegamente quando as primeiras demandas absurdas foram apresentadas. Moro não entregou o controle da PF ao presidente e Mandetta não endossou bestamente a cloroquina. Mas de onde menos se esperava é que veio o melhor cúmplice, quero dizer, o melhor aliado ou a melhor escolha de Bolsonaro. Trata-se do procurador-geral da República, Augusto Aras. Logo ele, quem tem mandato e prerrogativas.
BOBALHÃO
O chanceler Ernesto Araújo disse ao Congresso que não há nenhuma crise diplomática entre o Brasil e a China. As negociações entre os dois países seguem sem sobressalto, garantiu o ministro que apenas a ala fascista (que muitos chamam de ideológica) do governo apoia. Quem acha que a China é pragmática demais para retaliar, veja o que ela fez na quinta com líderes do governo Trump. Até Mike Pompeo, ex-secretário de Estado dos EUA, não pode mais entrar no país. Se alguma empresa americana o empregar, terá eventuais contratos com o gigante asiático suspensos. Outros 26 apoiadores ou membros da equipe de Trump receberam as mesmas sanções. Quem sabe Ernesto Araújo não toma emprestado o hipnotizador do general Pazuello para negociar com os chineses.
Vai ser bobo assim lá na China.
CARTA DO BOZO
Quem escreveu a carta que Jair Bolsonaro mandou para o recém empossado presidente dos Estados Unidos? Não importa, desde que seja imediatamente nomeado ministro das Relações Estrangeiras. Ou, não. Pode ser mais uma falsidade emanada daqueles porões escuros do Planalto.
SE FOSSE SERRA
Foi em 2001, na gestão do ex-ministro das Saúde José Serra, que o Departamento de Comércio dos Estados Unidos e os laboratórios globais produtores de medicamentos contra a Aids se dobraram ao Brasil e passaram a negociar preços. Depois de muita pressão de Serra no Congresso, tinha sido aprovada lei autorizando a quebra de patentes dos remédios que compunham o coquetel anti HIV. As negociações, que só ocorreram para evitar a quebra daquelas patentes, foram uma vitória brasileira e os preços despencaram. A lógica de Serra vale ainda hoje: o mercado nacional é muito grande para ser tratado com descaso e o Estado brasileiro é um dos maiores compradores globais de remédios. Depois da pandemia, o mundo continuará consumindo medicamentos para todas as outras doenças.
FALTAM LEITOS
Os dados são do IBGE. Enquanto a população brasileira cresceu 8,4% entre 2012 e 2019, o número de leitos do SUS, por mil habitantes, caiu 12,8%. No Rio, no mesmo período, a população cresceu 6,4% e os leitos do SUS diminuíram inacreditáveis 28,4%. Pode?
VACINA PRIVADA
Faz sentido impedir que clínicas e empresas privadas comprem diretamente lotes de vacinas para vender aos seus clientes ou para aplicar em seus empregados. Afinal, estamos falando de uma pandemia que alcança a todos indistintamente, mesmo os desempregados e aqueles que não teriam dinheiro para comprar uma dose privada. Mas há quem defenda a liberação, que poderia reduzir a pressão sobre a rede pública. Pode ser. Mas, talvez mais adiante.
AGORA VAI
Rebuliço no Palácio da Paz Celestial. Chegou a carta do deputado Fausto Pinato (presidente da Comissão Parlamentar Brasil/China) para o líder Xi Jinping pedindo prioridade para o Brasil na liberação das vacinas e dos insumos necessários para a sua produção. Não se fala de outra coisa em Pequim.
PAPO ADIADO
Algumas horas antes do início previsto, foi cancelado o bate papo organizado pela Lide Talks de Santa Catarina entre o governador Gean Loureiro e o deputado estadual Júlio Garcia, presidente da Assembleia Legislativa do estado. É que no amanhecer do dia do “talk”, Garcia foi preso pela PF numa operação contra uma organização criminosa especializada em fraudes, desvios de verbas públicas e lavagem de dinheiro. Fica para a próxima.
Marco Aurélio Nogueira: O presidente caricato
Democratas precisam evitar que Bolsonaro passe a controlar o Poder Legislativo
Surpreende que o mundo político, em sentido estrito – Congresso, parlamentares, partidos –, somente agora comece a cogitar de um possível impeachment presidencial por crimes de responsabilidade.
Quando o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ativo militante do moderantismo, veio a público declarar (15/1) que o afastamento de Bolsonaro do cargo de presidente da República “será debatido de forma inevitável no futuro”, ele deu o tom de uma inflexão que se poderá consolidar nos próximos meses. Aproveitou para chamar às falas o Congresso, que inexplicavelmente se mantém em recesso enquanto o País pega fogo.
Bolsonaro não havia sido, até agora, atingido por uma ameaça desse tipo. A primeira etapa de seu mandato foi um período de desgoverno e tragédia, em que ele pintou e bordou, agindo com uma mistura patética de tiranete, chefe de gangue e godfather tropical. O escárnio diante do vírus, do povo, da vacina e dos cientistas foi constante, mastigado com indiferença e como prova de “autenticidade” por uma população em grande parte anestesiada. Com a pandemia, sua personalidade desequilibrada e narcisista ganhou plena manifestação. Os meses foram se passando e os estragos, aumentando. Seu prontuário engordou.
O presidente fez política contra a política, empenhado em criar confusão para camuflar sua incompetência e atiçar seus seguidores. Em nenhum momento, porém, pôde proclamar-se vitorioso.
O padrão oposicionista seguiu roteiro conciliador, que travou os planos maléficos do presidente. Fez o rei ficar nu. Meio que em silêncio, com muito jogo de bastidores, possibilitou que houvesse alguma governação no Brasil, paralisando a Presidência da República.
Bolsonaro foi reduzido a uma caricatura de presidente, que fala compulsivamente, de modo agressivo, com cálculo de malandro, boca cheia de impropérios e grosserias, mas é inepto e pouco faz de positivo. Age como um animal encurralado, que ameaça sem morder. Continua a atacar as instituições, a instigar as Forças Armadas, a ameaçar retrocessos. Com os venenos que produz na cozinha do Palácio constrói um imaginário negativo, polarizador, que confunde e corrói. Suas orientações esvaziam e destroem setores estratégicos das políticas sociais, dos direitos humanos, da economia, da proteção ambiental. Sua indigência diplomática comprometeu até mesmo a produção das vacinas e a campanha de vacinação.
A oposição teve sucesso nessa que a mente afiada do cientista político baiano Paulo Fábio Dantas Neto chamou de “estratégia maricas”: o bolsonarismo foi forçado a negociar.
Os humores mudaram, porém. Quanto mais a pandemia se agravou, quanto mais os ministros de Bolsonaro mostraram sua desqualificação, quanto mais o País se foi marginalizando no sistema internacional e fracassando no comércio bilateral, mais aumentou a pressão para o encontro de uma solução.
Abriu-se assim uma nova etapa da luta política. Ainda que a “estratégia maricas” consiga continuar arrancando a fórceps decisões do governo federal, ela precisa ser complementada por uma estratégia mais contundente, que aperte o cerco, mas saiba evitar tentações polarizadoras, escolhos e armadilhas.
A nova fase transcorrerá em algumas frentes principais.
A primeira é a afirmação de um campo oposicionista democrático consistente, que consiga soldar os diferentes partidos e forças políticas numa unidade programática mínima, forjada sem vetos ideológicos, firulas acadêmicas e cálculos políticos sofisticados.
A segunda é a organização do clamor popular, com a invenção de formas de protesto que aumentem o som das panelas e contornem a dificuldade de se ter gente nas ruas.
A terceira é o processamento político das denúncias de crime de responsabilidade contra Bolsonaro. Disso dependerá a abertura ou não do impedimento constitucional do presidente. Por mais que esse seja um passo delicado, sobretudo quando se considera que o presidente tem apoio popular e parlamentar, há no Congresso lideranças com inteligência política e dignidade cívica para impedir que as labaredas da crise institucional incendeiem o País.
No curto prazo, uma quarta frente passa pelo desfecho da disputa pelas presidências da Câmara e do Senado. Muitos parlamentares estão em flutuação, marcando posição, sem compreender a importância de um evento que poderá definir muito do ritmo político daqui para a frente. Mas é o que se tem. Os operadores democráticos precisarão trabalhar dobrado, sensibilizar setores do Centrão e da esquerda para evitar que Bolsonaro passe a controlar o Poder Legislativo.
O recurso ao impeachment poderá catalisar o mal-estar que hoje, impregnado de horror, medo e repulsa, se espalha pela sociedade. Como está não pode ficar. A perspectiva conciliadora, vitoriosa em nossa História recente, só tem a ganhar se adquirir corpo e poder de direcionamento, contrapondo ao negativismo radical do presidente o ar renovado da política positiva. Sem o qual, aliás, nenhum vírus será derrotado.
*Professor titular de teoria política da Unesp
El País: Popularidade de Bolsonaro despenca ante piora da pandemia e fim do auxílio emergencial
Pesquisa Datafolha aponta aumento da desaprovação no Norte e no Nordeste, e levantamento da XP/Ipespe indica piora na percepção da atuação do presidente para enfrentar o novo coronavírus
Rodolfo Borges, El País
O presidente Jair Bolsonaro começou o ano dizendo que o país está quebrado e que, portanto, ele não consegue “fazer nada”. As últimas pesquisas de opinião de uma série de institutos indicam, contudo, que a população espera, cada vez mais, que o presidente faça alguma coisa. Um levantamento do Datafolha divulgado nesta sexta-feira aponta que a rejeição de Bolsonaro subiu para 40% desde dezembro, quando estava em 32%. já a aprovação caiu de 37% para 31% ―a maior queda desde o início de seu Governo. A última pesquisa XP/Ipespe, que circulou nesta semana, também mostra que o percentual de críticos do presidente (que foi de 35% para 40% em relação a dezembro) superou o de apoiadores (que caiu de 38% para 32%), algo que não acontecia desde julho do ano passado. Entre as razões apontadas por esses institutos de pesquisa para a mudança de humor dos brasileiros em relação ao presidente, estão o fim do auxílio emergencial e a forma como Bolsonaro tem lidado com a pandemia do novo coronavírus.
As análises são sustentadas pelos números das pesquisas. De acordo com o Datafolha, que ouviu 2030 pessoas em todo o Brasil por telefone, na região Nordeste, onde os moradores são mais dependentes do auxílio federal, a rejeição do presidente subiu de 34% para 43% ―até agora, a pior avaliação (ruim ou péssimo ) de Bolsonaro entre os nordestinos foi de 52%, em junho de 2020. Como se esperava, a retirada do auxílio emergencial para o enfrentamento da pandemia derrubou a última defesa de Bolsonaro contra o desconforto da população. Mas seu efeito na aprovação de Bolsonaro ainda pode ser sentido, como indica pesquisa PoderData divulgada na quinta-feira: entre aqueles que receberam o auxílio nos últimos meses, 52% aprovam o Governo, enquanto a maior parte do grupo que não o recebeu rejeita Bolsonaro (58%). O Instituto ouvi 2.500 pessoas por telefone.
Segundo o Datafolha, a maior queda na popularidade do presidente foi registrada no Norte, que, além de também depender mais do auxílio, viu a capital do Amazonas passar pelo desespero de não ter oxigênio para tratar seus pacientes. Desde de dezembro, o índice de ótimo e bom de Bolsonaro caiu de 47% para 36% por lá. Uma quarta pesquisa, da Exame/Ideia Big Data, deixa mais claro a influência da crise em Manaus na popularidade de Bolsonaro. Da semana passada para esta, a aprovação do presidente caiu de 37% para 26%, na maior queda semanal medida pelo instituto desde que ele assumiu o cargo ―60% dos entrevistados, aliás, consideram que o desempenho do presidente deve ser avaliado à luz do que acontece em Manaus.
“O movimento [de queda na popularidade] coincide com uma piora na percepção da atuação de Bolsonaro para enfrentar o coronavírus. São 52% os que a consideram ruim ou péssima, 4 pontos a mais que em dezembro”, diz o relatório da XP/Ipespe divulgado nesta semana ―o instituto ouviu 1000 pessoas por telefone entre 11 e 14 de janeiro. Não faltam exemplos para ilustrar esses números. Além de não ter conseguido prevenir a crise de saúde em Manaus, o Governo federal comprou todas as vacinas Coronavac produzidas pelo Instituto Butantan, mesmo depois de o presidente ter dito enfaticamente, três meses antes, que nunca o faria. Além disso, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que se mantém no cargo há meses porque, ao contrário dos dois antecessores, não ousa questionar as questionáveis posições do presidente, tentou convencer a população de que nunca tinha recomendado o controverso “tratamento precoce” contra a covid-19, apesar dos extensos registros de que o Ministério o fez.
O EL PAÍS publicou em primeira mão nesta semana um estudo em que Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos diagnosticaram “a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus, promovida pelo Governo brasileiro sob a liderança da Presidência da República”. Os pesquisadores analisaram 3.049 normas federais produzidas em 2020 e concluíram: “Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.
Tudo isso se soma às declarações desdenhosas de Bolsonaro sobre a pandemia e sobre as vacinas que podem ajudar a controlá-la. Nesta sexta-feira, em mais uma tentativa de atingir o governador de São Paulo, João Doria, que avança politicamente contra o presidente ao promover a Coronavac pelo país, Bolsonaro disse a jornalistas em Brasília que o imunizante do Butantan “não está comprovado cientificamente”, apesar do aval emergencial da Anvisa para a vacinação. O resultado das atitudes e afirmações de Bolsonaro durante a pandemia deve começar a ser sentido nas ruas neste fim de semana, para quando movimentos à direita, como o Movimento Brasil Livre (MBL), e à esquerda, como a Frente do Povo sem Medo, agendaram manifestações.
Protagonistas do clamor popular pelo impeachment de Dilma Rousseff, MBL e Vem pra Rua chamaram atos para o domingo. Já a Frente do Povo sem Medo convoca carreatas pelo país para o sábado. A pressão popular visa a tirar Brasília da letargia contra Bolsonaro. Nesta sexta-feira, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski encaminhou à Procuradoria Geral da União uma notícia crime oferecida pelo PCdoB contra o presidente. O partido pede que Bolsonaro e o ministro Pazuello sejam responsabilizados pelo colapso do sistema de saúde de Manaus. “O encaminhamento foi feito, pois apenas o PGR pode oferecer denúncia pela prática de crime comum contra o Presidente da República e Ministro de Estado,”, justificou Lewandowski.
O procurador-geral Augusto Aras avisou em nota divulgada na quarta-feira, entretanto, que “eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes da República são da competência do Legislativo”. Apesar do desconforto causado pela manifestação entre os subprocuradores e mesmo no próprio STF, o procurador-geral deixou claro que não pretende incomodar o presidente no âmbito de suas política de enfrentamento à pandemia. Enquanto isso, o Congresso Nacional se prepara para uma sucessão que encaminha-se para colocar no comando da Câmara e do Senado nomes da preferência do Palácio do Planalto. Caso isso se confirme, a pressão popular daqueles que desaprovam o presidente terá de se manifestar de forma muito expressiva para conseguir algum efeito prático na capital federal.
Folha de S. Paulo: Em eleição marcada por traições, deputados infiéis fazem ligações sigilosas e reuniões até de madrugada
Parlamentares se reúnem com bloco adversário em encontros reservados em hotéis e hangares de aeroporto; Lira e Baleia trabalham para reduzir margem de defecções
Gustavo Uribe e Julia Chaib, Folha de S. Paulo
Com uma eleição acirrada, os dois principais candidatos à presidência da Câmara dos Deputados têm adotado método pouco usual para garantir margem segura de vantagem na disputa.
Em uma corrida marcada por ameaças de defecções, tanto Arthur Lira (PP-AL) como Baleia Rossi (MDB-SP) têm recebido ligações sigilosas e participado de encontros reservados com deputados filiados a partidos do bloco adversário.
As reuniões discretas não são incluídas nas agendas oficiais dos candidatos, um pedido dos deputados infiéis para não sofrerem retaliações de seus partidos, e costumam ser solicitadas pelos próprios traidores.1 8
O objetivo deles ao declarar de maneira reservada apoio ao candidato rival é tanto garantir que nomeados políticos não sejam exonerados como assegurar um canal de diálogo caso o adversário ganhe a eleição a presidente.
Os encontros têm ocorrido durante as viagens de campanha dos candidatos.
Segundo relatos feitos à Folha, reuniões são promovidas nos apartamentos de deputados, nos hotéis onde os candidatos estão hospedados ou até mesmo em hangar de aeroporto.
Para garantir a discrição, alguns dos encontros são marcados em horários de pouco movimento, como de madrugada, e com a presença de pouca gente, para não chamar a atenção.
Os infiéis reclamam da marcação cerrada de governadores para apoiarem seus candidatos.
Uma dessas reuniões ocorreu neste mês em Fortaleza. Para evitar que o governador do Ceará, Camilo Santana (PT), ficasse sabendo, já que ele apoia a candidatura de Baleia, um encontro de Lira com deputados federais do PDT foi promovido no apartamento de um dos participantes.
No Ceará, o candidato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem a simpatia de parcela dos partidos de esquerda. Isso torna maior o risco de traições.
Nas conversas reservadas, Lira faz questão de lembrar que votou em Ciro Gomes (PDT) no primeiro turno da eleição presidencial de 2018.
Neste mês, outro encontro foi promovido em Florianópolis, desta vez pelo candidato do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Segundo relatos de aliados, Baleia se reuniu, em uma sala da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, com deputados federais do PSD, sigla que forma o bloco de apoio a Lira.
No estado, MDB e PSD têm uma relação de proximidade, apesar de os partidos terem lançado candidaturas próprias à Prefeitura de Florianópolis no ano passado.
Além do PDT, Lira também teve conversas individuais em São Paulo, Rio de Janeiro e Teresina com congressistas de PT, PSB e PSDB, siglas que apoiam Baleia. Já o emedebista teve reuniões discretas com deputados do centrão, bloco liderado justamente por Lira.
O candidato de Maia também tem sido obrigado a manter reserva em encontros com parlamentares que integram seu próprio bloco de apoio. Isso porque eles detêm indicados em cargos no governo federal e têm sido ameaçados de exoneração pelo Palácio do Planalto.
O deputado federal Flaviano Melo (MDB-AC), por exemplo, relatou a três colegas que o governo demitiu nomes apadrinhados por ele que estavam empregados em postos no Acre. Melo declarou apoio a Baleia e apareceu em fotos com ele.
Ainda no Acre, há deputados federais do PSDB que também possuem postos no governo e se reuniram de forma reservada com integrantes da campanha de Baleia pelo receio de serem retaliados.
Segundo relatos de aliados, ao tomar conhecimento das agendas dos candidatos, os deputados infiéis costumam telefonar para pedir audiências privadas. Com receio de serem descobertos, alguns deles optam por declarar apoio apenas pelo telefone.
Hoje, os dois blocos fazem um cálculo de que há um percentual de risco de defecção de pelo menos 20%. Ou seja, que no mínimo um quinto dos deputados federais que formam cada grupo partidário poderá votar no candidato adversário.
Para evitar uma margem grande de traições, tanto Lira como Baleia trabalham para reduzir esse percentual a 10%. Para isso, contam com a pressão de prefeitos e governadores, que sinalizam com a perda de cargos e liberação de obras.
Na tentativa de ter mais controle sobre a base de apoio, Lira e Baleia trabalham com um mapa de votações, que é dividido por partidos ou regiões.
Segundo relatos de deputados, cada grupo é delegado a um aliado, que tem o objetivo de checar e assegurar aquele apoio.
A contagem de votos é feita inclusive nos deslocamentos aéreos, realizados em jatinhos contratados pelas campanhas. Na tentativa de fidelizar apoios, Baleia conta com a atuação direta de seu padrinho eleitoral.
Maia tem participado de boa parte das viagens. Não só o presidente da Câmara dispara ligações para deputados como tem sido o principal responsável pelo contato com governadores, apoios considerados cruciais para evitar traições.
Bolsonaro expressa claramente a deputados a preferência por Lira. Além disso, o líder do centrão recebe apoio e ajuda de colegas cujos partidos integram o bloco antagônico, como Elmar Nascimento (DEM-BA) e Celso Sabino (PSDB-PA).
A vitória de Lira já era uma questão de honra para Bolsonaro, que deseja impor uma derrota política a Maia. Agora, porem, ganhou um peso maior.
Bolsonaro quer evitar que Baleia tenha o poder de decidir sobre a possibilidade de abertura de um processo de impeachment. Há 56 pedidos de impeachment contra Bolsonaro aguardando análise do presidente da Câmara.
O movimento tem ganhado força desde a semana passada, quando, além das siglas de oposição, entidades da sociedade civil encamparam a defesa da saída de Bolsonaro por causa da crise da Covid-19.
Apesar de a campanha legislativa não ter votação popular, Baleia e Lira cumprem agendas típicas de candidatos a cargos majoritários.
No Piauí, por exemplo, Baleia tomou cajuína, bebida típica do Nordeste. No Norte, Lira fez questão de comer chocolates de castanha e cupuaçu.
Além dos dois favoritos, candidatos avulsos também recebem ligações de infiéis. O deputado federal Fábio Ramalho (MDB-MG), por exemplo, teve sinalizações de apoio de parlamentares de partidos como PT e PSL.
RPD || Entrevista Especial - Marcos Nobre: 'Se Bolsonaro se reeleger, acabou a democracia no país'
Jair Bolsonaro “tenta destruir as instituições por dentro”, avalia o cientista social Marcos Nobre. Para ele, é preciso que as forças democráticas de direita, de centro e de esquerda se unam em torno da queda do presidente
Por Caetano Araujo e Vinícius Müller
O projeto autoritário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para o Brasil é de longo prazo e se a oposição insistir na estratégia de fidelizar parcelas separadas do eleitorado, sem pensar numa grande coalizão de forças, será impossível derrotar o atual presidente em 2022, avalia o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Marcos Nobre, entrevistado especial desta 27a edição da Revista Política Democrática Online (RPD).
Para Marcos Nobre, Bolsonaro governa para um terço do eleitorado, no qual se apoia para não sofrer impeachment e chegar ao segundo turno das próximas eleições. E faz um alerta: "Nós temos que conversar com esse eleitorado e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário votar em uma candidatura do campo democrático", acredita.
Marcos Nobre, entre outros, publicou, pela Companhia das Letras, Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma (2013) e, pela Todavia, Como nasce o novo. Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel (2018) e Ponto-final. A guerra de Bolsonaro contra a democracia (2020). A seguir, os principais trechos da entrevista.
Revista Política Democrática Online (RPD) - Como interpretar a mudança de comportamento do governo após a reação do Supremo Tribunal Federal às ameaças de manifestantes governistas radicais?
Marcos Nobre (MN): Acho importante ressaltar, em primeiro lugar, que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário, vale dizer, o confronto dele com as instituições, continua em curso. O que aconteceu foi que uma parte do sistema político decidiu apoiar um projeto de extrema direita. O que se chama de Centrão são muitos, como ficou claro nas eleições municipais e, agora, no processo conducente à eleição das mesas da Câmara e do Senado. Ainda não conhecemos o resultado dessa disputa, mas sabemos que o sistema político se dividiu em três: um bloco de apoio ao governo, ou seja, um bloco que decidiu apoiar um presidente de extrema direita; um outro bloco que está à direita, que chamaria de direita tradicional, que também se organizou de maneira independente do governo Bolsonaro; e existe a esquerda. Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista, com um projeto autoritário. Aí diz-se: "Não, mas as instituições estão segurando". Peço para se fazer uma única comparação, entre o Brasil de 2020 ou de 2021 com a Hungria de 2012 e 2013. Ou seja, naquele momento de primeiro mandato de Orbán, quantas pessoas achavam que a democracia estivesse de fato em risco na Hungria? Temos de ter clareza quanto à gravidade do momento.
RPD - Na conjuntura presente, quais são as tarefas imediatas das forças democráticas de oposição?
MN: Quando se tem uma situação como a nossa, o que se pode fazer é uma frente ampla em defesa da democracia, não existe outra saída. A não ser que se continue a subestimar, tanto o projeto autoritário do Bolsonaro, como a capacidade dele de se reeleger em 2022. Se todo mundo achar que as instituições estão funcionando, que a democracia não está em risco e que se o Bolsonaro se reeleger o Brasil vai continuar democrático, aí realmente não precisa fazer nada. O que tem que ser feito é um acordo para isolar Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas. Não vai poder mais acontecer o que aconteceu no Brasil desde a eleição de 2014, ou seja, não se pode dizer que a eleição foi fraudulenta, não se pode dar golpe, não se pode dar rasteira no adversário e tentar jogar o adversário para fora do campo político, de fora do sistema político. Isso tem reflexo eleitoral? Tem. Por quê? Terá de ser um acordo de reconstrução institucional, um pacto de convivência democrática entre as forças políticas. Qualquer que seja a candidatura que passar para o segundo, terá de contar com o apoio da integralidade do campo democrático, não importando se é da esquerda ou da direita.
É um projeto difícil, mas a alternativa é perder a democracia. Basta olhar para a eleição americana. O Trump tentou – e continuou tentando – dar golpe, ao insistir em manipular os resultados do pleito. Agora, vamos transferir isso para o Brasil. O Bolsonaro vai querer sair do poder tranquilamente? Ele sabe que o risco dele, da família e dele próprio irem para a cadeia é muito alto. Então ele não tem nada a perder. Se ele se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições, e o segundo será de implantação do autoritarismo, como o fez Viktor Orban, na Hungria. Esse é que é o script autoritário do populismo da década de 2010.
RPD: Quais os principais obstáculos à cooperação entre as diversas forças e oposição e como superá-los?
MN: Primeira coisa: o exemplo dos Estados Unidos não nos serve. Ou seja, nós não teremos uma candidatura única do campo democrático em 2022. Então não nos serve esse exemplo.
Mas há elementos que permitem pensar uma saída. Um sinal disso é o que se está insinuando na organização de forças para a escolha do novo presidente da Câmara dos Deputados. Uma direita tradicional se descolou da extrema direita e propôs à esquerda um acordo em torno da presidência, isso é muito importante. Não é pouco importante. Então talvez se possa pensar no seguinte. A pergunta central tem de ser formulada com clareza e a resposta dada com consciência: É grave risco para a democracia a reeleição de Bolsonaro? È preciso com que o campo democrático repactue entre si a democracia brasileira? Vejam bem; não é uma discussão a ser enfrentado no nível dos partidos, do sistema político, mas conduzida desde baixo. Caso contrário, a pretendida repactuação ocorrerá simplesmente no topo do sistema político, nas cúpulas.
Na democracia, só existem adversários, mas Bolsonaro é um inimigo, porque ele é um inimigo da democracia. Então como fazer para que essas forças aceitem se sentar para negociar? Primeira coisa, muita política, precisam conversar. Diante da atual correlação de forças, a julgar pelos resultados recentes das eleições municipais, o projeto de esquerda – se é que a esquerda tem um projeto – consegue se impor? Não é provável, a correlação de forças lhe foi claramente desfavorável, tendo alcançado algo como 25% dos votos.
Mas lembremos que um projeto de esquerda precisa da democracia, é um oxigênio sem o qual não dá para construir seu projeto político. A conversa à que me referi como caminho obrigatório para a repactuação tanto almejada terá, portanto, de consolidar a visão de que a democracia é também objetivo maior para a direita tradicional. Somente assim será possível construir algo como uma frente ampla comprometendo os campos da direita democrática e da esquerda democrática.
A direita democrática não pode atrapalhar a reconstrução da esquerda, assim como a esquerda não pode atrapalhar a reconstrução da direita, dessa direita democrática, não da extrema direita, que evidentemente, está fora da mesa de negociação. Esse é que é o ponto: não só fazer política, mas também discutir política, porque isso é que desapareceu. Não se pode mais ficar nesse joguinho de lacrar em rede, "Você me deu um golpe, não converso com você", "Você votou no Bolsonaro, não converso com você", pois isso é o levará exatamente à reeleição do Bolsonaro. É importante empurrar os partidos na direção de discutir política como gente grande, sem o quê não há saída.
Volto a mencionar o que estamos presenciando na disputa em torno do novo presidente da Câmara, para mim sinais alentadores de que, de alguma forma, já se vem insinuado uma frente ampla democrática no Congresso. Se não, como explicar a convergência de esforços que viabilizou a aprovação do FUNDEB e do auxílio emergencial? Isso é a frente democrática na prática. Para mim, pouco importa se a direita tradicional resolve fazer suas declarações de amor à democracia, por pragmatismo, ao não ter conseguido dirigir e ocupar o governo Bolsonaro, como achava que pudesse. Isso para mim pouco importa. O que importa é que demonstrou que está realmente preocupada com o que pode acontecer com uma reeleição do Bolsonaro, isso para mim está claro, e abandonou o barco do governismo.
A esquerda, por outro lado, considera necessário o impeachment, na avaliação de que não é possível deixar Bolsonaro chegar até 22, no exercício do mandato, porque concorreria com mais poder. Se a direita democrática vai topar um impeachment ou não, vai depender da esquerda convencer a sociedade. Esta, sim, é uma tarefa da esquerda - convencer a sociedade da necessidade do impeachment. Por quê? Porque as condições para o impeachment são muito exigentes. Será preciso subtrair apoio social do Bolsonaro, muito. E sabemos que a aprovação do governo Bolsonaro é altíssima, 37%, algo enorme, sobretudo depois de tudo o que aconteceu. Se formos capazes de convencer a sociedade dessa necessidade, se conseguirmos retirar apoio ao governo Bolsonaro, se conseguirmos fazer pressão sobre o Congresso, se conseguirmos convencer a direita democrática das vantagens do impeachment, teremos feito a coisa mais importante para a democracia brasileira, a mais importante de todas.
RPD: Estas dificuldades em mantermos um ambiente democrático não revelam, na verdade, um problema estrutural da sociedade brasileira? A ascensão de Bolsonaro não é fruto de uma combinação entre uma conjuntura - que vem sendo alimentada desde os anos 90 e que foi potencializada a partir de 2013 - , e traços estruturais e mais enraizados da sociedade brasileira?
MN: Para mim, o marco temporal é 2013, porque, em 2013, ficou claro que a democracia brasileira, tal como estava funcionando até ali, não estava mais funcionando para a população brasileira. Qual foi a resposta do sistema político a junho de 2013? Blindar-se. A resposta do sistema político foi lamentável, porque foi uma resposta de se blindar, de se fechar em si mesmo, colocando-se em um modo de autodefesa, de sobrevivência, e, com isso, permitindo que essa energia social, já dispersa, solta na rua, não fosse canalizada para o sistema político. E, não sendo canalizada para o sistema político, para onde foi, então? Foi, de um lado, para a Marielle Franco, para um monte de mandatos coletivos, para novas intervenções. Mas foi também, de outro lado, para a Lava Jato, para maneiras de vampirizar essa energia social difusa que vendiam a ilusão de que poderiam fazer a reforma que o sistema político se recusou a fazer. Foi uma vertente que favoreceu também Bolsonaro, que aproveitou para proclamar: ‘Esse sistema nunca vai se autorreformar, então você tem que votar em alguém que é contra o sistema, e o único que é contra o sistema sou eu’. Esse populismo antiestablishment é característico da extrema direita dos anos 2010.
RPD: Por que Bolsonaro, com seus ataques à democracia e às instituições e mesmo com uma conjuntura desfavorável - pandemia e crise econômica - mantém sua popularidade?
MN: Vamos fazer uma diferenciação no caso do Bolsonaro. É difícil estimar qual que é o núcleo duro de apoio ao Bolsonaro, é difícil. Mas é alguma coisa entre 12 e 15% do eleitorado. Estamos falando de uma coisa enorme, cerca de 20 milhões de votantes no núcleo duro do Bolsonaro. Agora, para chegar a 37%, faltam ainda 22%. Esses 22% não pertencem a esse núcleo autoritário do Bolsonaro, embora também comprem a história do antissistema. O Bolsonaro continua sendo, como presidente, contra o sistema, ele continua se colocando como outsider, e nós continuamos tratando o Bolsonaro como se ele fosse de fato um outsider. E isso é extraordinário, é a hegemonia total, a vitória total do Bolsonaro no campo cultural, se a gente quiser usar a expressão antiga. É isso, ele destrói as instituições porque as instituições devem ser destruídas porque elas são injustas. E ele tem apoio por isso.
Então o que a gente, como democratas, temos que fazer? Temos que conversar com esse eleitorado, esses 22%, que apoiam o Bolsonaro, mas que não pertencem ao núcleo duro, e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário, em 2022, votar em uma candidatura do campo democrático. Essa é a nossa tarefa política. Porque se a gente considerar que 37% são autoritários, então esquece, não tem mais saída. A tática do Bolsonaro sempre foi de governar para um terço, que é esse um terço do eleitorado que é claramente antissistema. Que vota em quem for antiestablishment, e como eles não têm alternativa, eles ficam com o Bolsonaro, porque não apareceu nenhuma alternativa. Então o Bolsonaro decidiu: "Eu vou governar para esse um terço, eu não vou governar para a maioria". Isso é uma tática, e por que é um terço? Porque com um terço você continua não dando maioria e, portanto, você convence todo mundo de que você é antissistema mesmo, porque você não consegue ter o apoio da maioria, então você só pode ser antissistema, certo? Segundo, você consegue com isso uma vaga no segundo turno em 2022 com um terço, e você tem um seguro anti-impeachment. Você tem as três coisas. Isso é muito relevante para entender como o Bolsonaro funciona. Sem entender bem como o Bolsonaro funciona, o campo democrático não vai saber onde tem que bater, porque precisa ter tática, precisa ter estratégia muito clara, porque se não nós vamos perder. E vamos perder feio.
O Estado de S. Paulo: Projeto que tira poder de governadores sobre polícias prevê status de secretário para comandante
Cargo teria prerrogativas equiparadas aos demais integrantes do primeiro escalão do governo; proposta foi revelada pelo ‘Estadão’
Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo
O projeto de lei orgânica da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros prevê ampliar o status político dos comandantes-gerais dessas corporações em todo o País. Além da criação do cargo de general nas PMs e nos bombeiros, uma patente mais elevada que a de coronel, como relevou o Estadão na segunda-feira, 11, os comandantes também serão equiparados aos secretários de Estado, com todas as prerrogativas a que têm direito os demais integrantes do primeiro escalão.
O projeto que trata da PM é antigo e foi apresentado pelo Executivo em 2001, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. O texto em discussão, porém, é uma proposta de substitutivo preparada pelo deputado Capitão Augusto (PL-SP), ouvindo associações e comandantes. Aliado do governo de Jair Bolsonaro, ele também é o relator do projeto.
O novo modelo é defendido por aliados do governo no momento em que Bolsonaro endurece o discurso da segurança pública para alavancar sua popularidade na segunda metade do mandato.
A inovação que dá mais poder às polícias está prevista nos casos em que o comandante da PM e dos bombeiros não ocupem um cargo de secretário. Atualmente, apenas alguns Estados têm uma estrutura semelhante à proposta. O Rio é um deles.
O governador em exercício, Cláudio Castro (PSC), manteve o modelo criado pelo governador afastado Wilson Witzel (PSC), eleito com discurso próximo ao governo Jair Bolsonaro de valorização dos policiais e endurecimento no combate à criminalidade. Witzel extinguiu a antiga Secretaria de Segurança Pública e transformou cada chefia de polícia em uma secretaria separada, dando prestígio político às duas corporações.
Uma antiga reivindicação em todo o País era uma elevação semelhante, para evitar atritos entre as instituições. Quando um secretário tinha uma delas como origem, era comum que a outra aumentasse as queixas de favorecimento. Assim, o comandante-geral da PM do Rio, coronel Rogério Figueiredo Lacerda, é secretário de Polícia Militar. E o delegado-geral, Allan Turnowski, é secretário de Polícia Civil.
Em Santa Catarina, o governador Carlos Moisés (PSL), coronel dos Bombeiros, também promoveu mudanças, dando autonomia a cada instituição. Ele acabou com a figura do secretário de Segurança Pública e deu autonomia aos chefes dos bombeiros, policiais militares, civis e peritos. Moisés criou o Colegiado Superior de Segurança Pública, formado pelo comandante-geral da PM, delegado-geral da PC, comandante-geral do Corpo de Bombeiros e perito-geral do Instituto Geral de Perícias. Eles se reportam diretamente ao governador, embora não tenham status de secretário.
Governadores atacam proposta
Como mostrou o Estadão, governadores já se mobilizam contra os projetos que restringem o poder político dos Estados sobre as tropas armadas e os bombeiros em todo o País. Parte dos chefes dos Executivos estaduais apontou inconstitucionalidade e interferência do Palácio do Planalto nas polícias, uma das bases de apoio do presidente Jair Bolsonaro. A reação mais forte partiu do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que acusou Bolsonaro de querer “intimidar governadores através de força policial militar”.
Os projetos limitam o controle político dos governadores sobre as polícias ao prever mandato de dois anos para os comandantes-gerais e delegados-gerais, e impor condições para que eles sejam exonerados antes do prazo. No caso da Polícia Militar, a sugestão é para que a nomeação do comandante saia de uma lista tríplice indicada pelos oficiais. O texto prevê que a destituição, por iniciativa do governador, seja “justificada e por motivo relevante devidamente comprovado”.
Na Polícia Civil, o delegado-geral poderá ser escolhido diretamente pelo governador entre aqueles de classe mais alta na carreira. A dispensa “fundamentada”, porém, precisa ser ratificada pela Assembleia Legislativa ou Câmara Distrital, em votação por maioria absoluta dos parlamentares.
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El País: Ameaças de neonazistas a vereadoras negras e trans expõem avanço do extremismo
Ataques contra vereadoras de várias cidades ocorreram em dezembro e polícia ainda busca autores. Vítimas relatam rotina de medo especialistas alertam para escalada das ameaças no país, enquanto os EUA refletem sobre banalização dos discursos de ódio nas redes
Injúrias raciais, infelizmente, não são uma novidade para a professora Ana Carolina Dartora, 37 anos. Primeiro vereadora negra eleita nos 327 anos da Câmara Municipal de Curitiba, e a terceira mais votada na capital paranaense nas eleições 2020, sua campanha foi permeada por ataques, sobretudo nas redes sociais. Até então, Carol Dartora ―como é conhecida a vereadora filiada ao Partido dos Trabalhadores (PT)― considerava as mensagens inofensivas. Mas no início de dezembro ―logo após uma entrevista do prefeito Rafael Greca (DEM) na qual o mandatário disse discordar da existência de racismo estrutural na cidade― ela recebeu por e-mail uma mensagem a ameaçando de morte, inclusive com menção ao seu endereço residencial.
No texto, o remetente chama a vereadora de “aberração”, “cabelo ninho de mafagafos”, e diz estar desempregado e com a esposa com câncer. “Eu juro que vou comprar uma pistola 9mm no Morro do Engenho e uma passagem só de ida para Curitiba e vou te matar.” A mensagem dizia ainda que não adiantava ela procurar a polícia, ou andar com seguranças. Embora Carol tenha ouvido de algumas pessoas que as ameaças eram apenas “coisas da Internet”, especialistas ouvidos pelo EL PAÍS ponderam que não se deve subestimar os discursos de ódio ―a exemplo de toda a discussão que permeiam os Estados Unidos desde a quarta-feira, 6 de janeiro, quando extremistas apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio em protesto contra a derrota do presidente, provocando cinco mortes.
O e-mail, com texto igual, também foi enviado para Ana Lúcia Martins (PT), também a primeira mulher negra eleita para vereadora em Joinville (SC). As vereadoras trans Duda Salabert (PDT), de Belo Horizonte, e Benny Briolly (PSOL), de Niterói (RJ), também foram ameaçadas pelo mesmo remetente. Até aqui, as investigações policiais dão conta de que o ataque orquestrado partiu de uma célula neonazista que atua sobretudo nas profundezas da internet, a chamada deep web. O provedor do qual a mensagem foi enviada tem registro na Suécia, o que dificulta o rastreamento por parte das polícias civis e, no caso do Paraná, do Núcleo de Combate aos Cibercrimes.
“Fiquei olhando para a mensagem perplexa, sem conseguir processar muito. O espanto de outras pessoas do partido me deu o alerta”, contou Carol ao EL PAÍS. “A violência não é só objetiva. A violência política acompanha a minha trajetória e a das outras vereadoras ameaçadas, com barreiras que vão se criando para que a gente não tenha êxito. Nenhuma mulher deveria enfrentar tanta coisa para exercer um direito básico da democracia”, frisa.
Desde então, o medo faz parte do cotidiano da vereadora de Curitiba. “Tô tentando ser mais discreta. Estou pensando até em mudar o meu cabelo. Isso é muito minimizado, desprezado. As pessoas pensam que é bullying, coisa de Internet. É muito nítida a questão de gênero, do sexismo aliado ao racismo.” Mas foi na Internet, por exemplo, que foi planejado, durante semanas, os ataques ao Capitólio dos EUA por grupos de extrema-direita que não aceitam a derrota de Trump para o democrata Joe Biden.
Ódio racial
Filiada ao PT desde os anos 1980, Ana Lúcia Martins, 54, foi a primeira mulher eleita pelo partido em Joinville (SC) e, assim como Carol Dartora, a primeira negra na Câmara Municipal. A professora, educadora física e alfabetizadora iniciou a sua formação e participação política ainda na adolescência, em grupos de jovens da Igreja do Cristo Ressuscitado, no bairro Floresta, onde nasceu e cresceu. Decidiu disputar o pleito após um longo amadurecimento junto aos movimentos negros e de mulheres.
Após sua vitória nas eleições 2020, as primeiras intimidações já surgiram pelo Twitter, quando ela ainda comemorava a vitória. “Uma conta fake veio e comentou: ‘agora a gente precisa matar ela para o suplente, que é um homem branco, assumir’. Então não era uma questão de ódio ao partido, ou somente machismo. O ódio era racial mesmo”, pontua. Dias depois recebeu o mesmo e-mail que a vereadora curitibana, do mesmo remetente. “Diante dessa denúncia a gente pensou que não podia mais descuidar” conta Ana Lúcia, que agora anda escoltada por seguranças pagos por membros do partido. Segundo ela, essas pessoas fizeram uma vaquinha para arcar com os custos.
Foi oferecido à vereadora integrar o Programa Federal de Assistência a Testemunhas. “Para nós isso não serve, porque aí não poderia exercer meu mandato, e queremos essa garantia” salienta Ana Lúcia. A Polícia Militar catarinense ofereceu rondas e viatura em eventos públicos, desde que a vereadora solicite com antecedência, via ofício.
Pressão internacional
Advogado do Diretório Municipal do PT em Curitiba e também professor da pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paulo Opuska disse acreditar que medidas mais assertivas em relação à proteção de Carol, Ana Lúcia e outras vereadoras ocorrerão por pressão de entidades internacionais. Ele, que acompanha o caso, fez um relatório a respeito para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Opuska procurou a Secretaria de Segurança Pública do Paraná (Sesp) para solicitar segurança à vereadora do Estado. “O secretário [Romulo Marinho Soares] não atendeu a Carol. Você não pode deixar que a responsabilidade saia da mão do agente [Estado]. Temos que ter o cuidado de não banalizar. Não é difícil acontecer o que aconteceu com a Marielle [Franco]em uma cidade como Curitiba, cujo racismo estrutural aparece no discurso do próprio prefeito.”
Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirma que “após haver solicitação de audiência para que o secretário atendesse a vereadora eleita, ele designou um delegado especializado, integrante da Segurança Pública, para recebê-la (tendo em vista que ele estava com outras agendas prévias e externas). Sendo assim, a vereadora teve o devido atendimento”, argumenta a pasta. Ainda de acordo com a entidade, o caso requer uma “investigação complexa”.
Necessidade de reação
Na análise da professora do Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), Megg Rayara Gomes de Oliveira, existe um consentimento por parte do Poder Público para que esses grupos neonazistas se movam com certa liberdade. Primeira travesti negra a obter o título de doutora pela universidade onde hoje leciona, Meggy fala que as denúncias de mulheres negras acabam sendo desacreditadas. “Para ter validade precisa passar pela tutela de pessoas brancas. As pessoas respeitam o cargo que ocupam nosso título. Quem é respeitada não é a mulher preta mas a vereadora eleita.”
Ela também critica a atuação dos partidos sobre a coação sofrida pelas vereadoras. “Elas são de três partidos de esquerda, que não estão dando importância para a gravidade dessas ameaças. Fica evidente que o PSOL não deu atenção para tudo o que acontecia com a Marielle. Parece que os partidos não estão muito preocupados em proteger esses corpos.”
Precursora no Brasil em pesquisas sobre grupos neonazistas que se movimentam na internet, a antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias fala que o neozanismo no Brasil é uma “miríade”. “Existem muitos grupos, cada um deles com uma ou várias células que às vezes partilham da mesma base”, explica.
Em sua tese de doutorado pela Unicamp, ela reúne mais de 15 anos de pesquisas junto a sites, fóruns, blogs e comunidades para descrever como pensam esses extremistas. “Há grupos antigays, de supremacia branca, hitleristas, os que tendem para um discurso nacionalista. No ferver dos ovos, o que está ali é o ódio. Que busca desmanchar a humanidade de uma pessoa, impedir que ela tenha a sua personalidade reconhecida”, explica.
De acordo a antropóloga Adriana, a situação no Brasil hoje é grave e houve um crescimento desses grupos após a eleição que elegeu Jair Bolsonaro presidente em 2018, com um discurso bastante violento. “Para se ter uma ideia, uma professora de ensino fundamental me disse que estava dando uma aula sobre o livro da Anne Frank [autora infantil judia assassinada na Segunda Guerra] e a videoconferência foi invadida. A situação está ficando grave no Brasil, e as pessoas não estão se dando conta. É preciso que a sociedade civil reaja de forma veemente. Não pode acontecer a essas vereadoras o que aconteceu com Marielle. Elas precisam ser protegidas pelo Estado. Como sociedade civil que pensa no processo civilizatório, temos que reagir.”
Sergio Lamucci: Problemas à vista na relação com os EUA
Governo brasileiro não fez nenhum gesto para se aproximar de Biden
A menos de dez dias da posse de Joe Biden como presidente dos EUA, o governo de Jair Bolsonaro segue distante da nova administração americana. Não construiu pontes com o novo líder americano, fazendo questão de reafirmar os seus laços com Donald Trump, que se recusa a reconhecer a derrota nas eleições e termina o governo apostando ainda mais na divisão do país, ao ter incitado a invasão do Congresso.
Essas atitudes de Bolsonaro vão dificultar a relação do Brasil com os EUA, por mais que Biden seja visto como um político pragmático. O Brasil ficará ainda mais isolado no cenário externo, enfrentando problemas especialmente por causa da atitude do governo Bolsonaro em relação ao ambiente, que será uma das prioridades do novo presidente americano.
Na semana passada, Bolsonaro voltou a questionar o processo eleitoral dos EUA, afirmando que a causa da crise americana é “basicamente a falta de confiança no voto”. Segundo ele, “lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia, e houve gente lá que votou três, quatro vezes, mortos que votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí.” A apoiadores, o presidente disse ainda o Brasil terá “um problema maior que os EUA” em 2022, caso não haja uma mudança no sistema eleitoral por aqui, com o voto impresso.
Bolsonaro usa o exemplo do pleito americano para mais uma vez colocar em xeque a credibilidade das eleições brasileiras, indicando que poderá repetir a estratégia de Trump no ano que vem, se o resultado for desfavorável a ele. O presidente já disse várias vezes que houve fraudes nas eleições de 2018, em que venceu Fernando Haddad (PT) com grande folga. Com essa estratégia, Bolsonaro subordina os interesses do país aos seus interesses pessoais.
Por mais que seja próximo de Trump, já passou da hora de Bolsonaro buscar uma aproximação com Biden. O brasileiro só foi cumprimentar o presidente eleito americano 38 dias após as eleições, sendo o último líder dos países que integram o G-20 a reconhecer a vitória do candidato democrata.
Em entrevista ao Valor em outubro, Thomas Shannon, ex-embaixador americano no Brasil entre 2010 e 2013, destacava que “a agenda do Partido Democrata não é favorável ao presidente Bolsonaro”, citando temas ambientais, por exemplo, embora tenha afirmado que Biden entende o valor estratégico do Brasil para os EUA.
Ex-subscretário de Estado dos EUA para Assuntos Políticos, Shannon conhece profundamente a política do Partido Democrata para a América Latina. Já em artigo para a revista “Crusoé”, publicado em 1º de janeiro, Shannon deixou claro o impacto que podem ter para as relações entre Brasil e EUA as declarações de Bolsonaro sobre o resultado das eleições americanas - e isso antes de o brasileiro repetir, na semana passada, as insinuações de fraude no pleito americano.
Shannon escreve que Biden “conhece a importância do Brasil e tem um conhecimento bem desenvolvido da trajetória histórica de nossa cooperação”, sendo ainda um político que “verá a relação com o Brasil não em termos pessoais, mas em termos dos interesses e valores que ligam nossas duas nações”.
Depois de apontar essas características de Biden, Shannon afirma que, “dito isso, o governo Bolsonaro tem feito quase todo o possível para complicar a transição na relação bilateral”, lembrando que o presidente e membros de sua administração expressaram preferência por Trump. Ele destaca ainda que Bolsonaro criticou Biden após comentários do então candidato democrata durante um debate, pedindo uma ação mais orquestrada do Brasil sobre o desmatamento”. Na ocasião, o americano disse que pretendia reunir outros países para garantir US$ 20 bilhões para preservar a Amazônia - caso contrário, o Brasil enfrentaria “consequências econômicas significativas”.
Segundo Shannon, “essa gafe, no entanto, perde relevância quando é comparada com a disposição do presidente Bolsonaro de repetir as alegações infundadas de fraude” feitas por Trump sobre as eleições dos EUA. “A preferência partidária baseada na amizade pessoal é perdoável, assim como a defesa da soberania nacional. No entanto, atacar a integridade e a credibilidade do processo eleitoral americano é um ataque à legitimidade da democracia americana e à Presidência de Joe Biden. É algo que não será facilmente perdoado e não será esquecido.”
Nesse cenário, “o tom da parceria única entre Brasil e Estados Unidos agora depende em grande parte do Brasil”. Pelo que se vê até o momento, porém, o governo Bolsonaro não está disposto a fazer gestos de boa vontade para a nova administração americana. Não foi apenas o presidente brasileiro que questionou as eleições americanas. No Twitter, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disse na semana passada que “há que reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral”. O líder da diplomacia brasileira também levanta dúvidas sobre o pleito que levou à vitória do novo presidente americano.
Nessa toada, o Brasil não deverá ter vida fácil com o governo de Biden. Na semana passada, o novo presidente indicou Juan Gonzalez para o cargo de diretor-sênior para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional. Em outubro, Gonzalez afirmou que “qualquer um, no Brasil ou em outro lugar, que pensa que pode avançar numa relação ambiciosa com os EUA enquanto ignora assuntos importantes como mudança climática, democracia e direitos humanos claramente não está ouvindo Joe Biden em sua campanha”.
O foco do americano em políticas ambientais, atuando possivelmente em conjunto com a União Europeia (UE), colocará mais pressão sobre o Brasil nesse campo. Isso poderá afetar as exportações brasileiras, assim como atrapalhar o fluxo de investimentos estrangeiros para o país. O governo Bolsonaro, porém, não parece preocupado em ter bom um relacionamento com Biden, como já não tem com boa parte dos países da UE e com a China. Sem aliados importantes no cenário internacional, o Brasil caminha em 2021 para ficar ainda mais isolado.
The Economist: Invasão do Capitólio é retrato de como Trump mudou o Partido Republicano
As cenas dantescas revelam como os republicanos ficaram reféns do presidente, e como será difícil se livrar de sua influência e dos extremistas em um futuro próximo
The Economist / O Estado de S. Paulo
O livro mais importante da era Donald Trump não foi Medo, de Bob Woodward, nem Fogo e Fúria, de Michael Wolff, nem qualquer um dos outros best-sellers que expuseram o circo da Casa Branca. Indiscutivelmente, o livro mais importante da era Trump foi a obra instigante de dois cientistas políticos de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, publicada um ano após a ascensão de Trump à presidência e intitulada Como as democracias morrem.
Depois de muitos anos pesquisando derrapagens democráticas no Leste Europeu e na América Latina, a dupla admitiu ter ficado surpresa ao voltar os olhos para seu próprio país: “Sentimos pavor (...) bem agora que estamos tentando nos tranquilizar, dizendo que as coisas não podem ser tão ruins assim por aqui”. A invasão do edifício do Capitólio em 6 de janeiro por milhares de seguidores de Trump brandindo tacos de beisebol e a bandeira dos confederadas mostrou que as coisas estão bem ruins, sim.
Convocados a Washington pelo presidente derrotado para protestar contra a sessão parlamentar que iria confirmar os resultados do colégio eleitoral, eles ocuparam o prédio por mais de quatro horas, obrigaram o vice-presidente Mike Pence e outros congressistas a fugir em busca de segurança e vandalizaram o escritório da presidente da Câmara dos Representantes.
Quatro pessoas morreram durante a violência, entre elas uma mulher baleada pela polícia. Jornalistas foram acossados e suas câmeras foram destruídas por delinquentes adeptos do Make America Great Again (MAGA) vestidos em trajes de camuflagem. Enquanto isso, Trump tuitava seu “amor” pelos insurgentes. “Pessoas muito especiais”, ele os chamou em um vídeo gravado na Casa Branca. Suas contas no Twitter e no Facebook foram suspensas pouco depois. Bombas caseiras foram encontradas perto das sedes dos partidos Republicano e Democrata.
Pode-se argumentar que a sessão do Senado interrompida pelos insurgentes seria ainda mais preocupante. Mais de dois terços dos membros republicanos da Câmara dos Representantes e mais de um quarto dos senadores republicanos estavam prestes a votar para magicamente reverter a derrota de Trump em vitória, rejeitando os votos do colégio eleitoral de um punhado de estados nos quais ele perdera.Naturalmente, com uma ladainha bem familiar aos golpistas, os parlamentares em questão alegavam que estavam tentando proteger a democracia, não a derrubar. Josh Hawley, do Missouri, que liderou a iniciativa no Senado, declarou que “as preocupações de milhões de eleitores quanto à integridade eleitoral merecem ser ouvidas”.
Aos 41 anos de idade, formado pela Universidade de Stanford e pela Escola de Direito de Yale, Hawley retocou sua própria imagem para se tornar um flagelo das elites sob o comando de Trump e, na quarta-feira, foi fotografado com o punho em riste diante da multidão MAGA pouco antes de os insurgentes romperem as barricadas.
A grande maioria dos eleitores republicanos que afirmam acreditar que Trump ganhou a reeleição em novembro não está respondendo a preocupações racionais. Se estivessem, deveriam ter se tranquilizado diante do número recorde de decisões judiciais, verificações de segurança e recontagens gerado pelos dois meses de esforços de Trump para reverter os resultados.
As sessenta e tantas contestações de sua equipe jurídica foram objeto de escárnio geral, até mesmo na Suprema Corte dos Estados Unidos. A equipe de segurança eleitoral de seu governo julgou que a votação foi “a mais segura da história americana”.
O Departamento de Justiça e seu ex-diretor, Bill Barr, até pouco tempo atrás leal a Trump, concluíram que não houve fraude significativa. Ainda assim, a crença de que Trump foi roubado se recrudesceu entre o eleitorado republicano. Uma pesquisa do YouGov encomendada pela Economist nesta semana apontou que 64% queriam que o Congresso revogasse o resultado da eleição em favor de Trump.
Para ilustrar a profundidade dessa ilusão, veja o sentimento entre os republicanos do Wisconsin, estado em que Biden venceu por 20.608 votos. Os advogados do presidente entraram com seis contestações judiciais ao resultado, até mesmo junto à Suprema Corte dos Estados Unidos. Eles também instigaram uma recontagem nos condados mais populosos do estado, Milwaukee e Dane, o que adicionou 87 votos à soma de Biden.
O senador republicano do Wisconsin, Ron Johnson, realizou uma investigação no comitê do Senado sobre as alegações de Trump; e posteriormente disse à Economist que não via razão para questionar os resultados em seu estado natal. No entanto, Terry Dittrich, presidente do Partido Republicano do Condado de Waukesha, o maior de Wisconsin, afirma que Trump venceu, que a eleição foi repleta de fraudes e que não conhece nenhum republicano que pense o contrário.Como evidência, o senador, profissional do setor imobiliário de 59 anos de idade, apresentou uma lista de preocupações quanto à votação, todas rejeitadas pelo procurador-geral do estado, entre elas o grande aumento na votação por correspondência, a qual Dittrich taxou de “absolutamente fraudulenta”.
Ele também mencionou o simples fato de Biden ter apresentado um desempenho digno de nota no frondoso condado de Waukesha, nos arredores de Milwaukee, exatamente como o democrata de fato teve nos ricos subúrbios brancos de todo o país. “Não tem absolutamente nenhuma possibilidade de Biden ter superado Barack Obama no condado de Waukesha pelos números que eles estão divulgando”, disse Dittrich. “Não vamos desistir disso. Não somos um bando de bebês chorões, nem de perdedores ressentidos. Somos cidadãos cumpridores da lei que só querem uma eleição limpa”.
William F. Buckley Junior, um dos arquitetos do movimento conservador moderno, chamou o conservadorismo de “política da realidade”. Agora parece justamente o contrário. A maioria dos eleitores republicanos aceitou a afirmação de Trump de que os democratas não podem ganhar legitimamente e de que a falta de provas de suas tramoias é prova de que houve alguma ocultação.
“É difícil imaginar um ato mais antidemocrático e anticonservador”, foi o veredito do sempre reticente Paul Ryan, ex-líder republicano na Câmara, sobre a decisão de tantos congressistas republicanos de apoiar essa ficção.
A votação final do Congresso, realizada depois que os insurgentes foram expulsos do Capitólio e que seus corredores foram vasculhados em busca de explosivos, certificou os resultados do colégio eleitoral, com objeções de 130 deputados republicanos e meia dúzia de senadores.
De sua parte, Ziblatt disse que vê essa manobra como um “ensaio geral” para um esforço republicano mais sério de derrubar alguma eleição, possibilidade que ele agora considera provável.
Há razões para esperar que essa previsão acabe se provando pessimista demais. Os republicanos que votaram para anular os resultados o fizeram de maneira imprudente e cínica, mas sabendo que não teriam sucesso. As autoridades republicanas que realmente poderiam ter mudado o resultado da eleição seguiram a Constituição.
Entre elas se encontra o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, objeto de uma campanha de intimidação e abuso por parte do presidente e seus comparsas. Esta semana, Raffensperger divulgou uma gravação na qual o presidente tentava convencê-lo a “encontrar 11.780 votos”, pouco antes do segundo turno das eleições para o Senado da Geórgia, em 5 de janeiro.
Os ataques de Trump contra Raffensperger e outras autoridades georgianas parecem não ter surtido nenhum efeito positivo para seu partido. Os candidatos democratas, Raphael Warnock e Jon Ossoff, venceram as duas disputas, dando a seu partido as primeiras cadeiras do estado no Senado em 20 anos, o controle do Senado e um governo unificado.No dia seguinte, Mitch McConnell, assim despojado de sua maioria no Senado, emitiu uma repreensão contundente contra Hawley e os demais. Derrubar os votos do colégio eleitoral “causaria danos à nossa república para sempre”, disse McConnell, que raras vezes é acusado de agir com base em princípios. Minutos depois, as “pessoas especiais” de Trump se lançaram à invasão do Capitólio - o que, por sua vez, encorajou os republicanos mais experientes a criticar o presidente de maneira mais direta do que jamais haviam ousado.
O senador Tom Cotton, do Arkansas, antigo defensor de Trump, disse que “já era hora” de ele “parar de enganar o povo americano”. Liz Cheney, a terceira na hierarquia republicana da Câmara, disse que “não há dúvidas” de que Trump “incitou a multidão”. Até mesmo alguns trumpistas mais ferrenhos se juntaram ao coro. Uma declaração notável feita pela Associação Nacional de Fabricantes, até então pró-Trump, pediu a Pence que considerasse invocar a 25ª Emenda para remover o presidente do cargo.
Ainda está longe de ser um repúdio generalizado a Trump por parte do establishment republicano. E, sem esse repúdio, é difícil imaginar que o presidente abrirá mão de sua força dentro do partido, o que daria a este a oportunidade de voltar a se comprometer com as normas democráticas.
No entanto, esse repúdio agora parece mais imaginável. As líderes de torcida do presidente na mídia conservadora, todas obcecadas por lei e ordem, talvez achem difícil ignorar as imagens do Capitólio invadido por delinquentes MAGA. Talvez tenham dificuldade até de atribuir a culpa à esquerda democrática (embora algumas já tenham tentado).
O americano médio, ainda que sob intensa polarização, não gosta de violência de turbas e preza pelos símbolos de sua democracia. Um comentarista lembrou a mudança no apoio da população aos republicanos em 1995, depois que Timothy McVeigh, integrante do tipo de milícia que diz amar a liberdade até então defendida pela direita, explodiu um prédio federal em Oklahoma, matando 168 pessoas. O paralelo é inexato, mas indica até que ponto Trump e suas tropas de choque parecem ter ultrapassado os limites.
Antes mesmo dos eventos desta semana, entre a maioria dos republicanos mais experientes parecia muito forte a convicção de que Trump manteria sua preeminência sobre o partido - um caso de síndrome de Estocolmo, talvez. “A base acha que Trump é um mártir”, disse um senador republicano. “Pelos próximos dois anos, talvez quatro, ele vai conseguir ferrar todo mundo nas primárias, sem levantar um dedo”. Isto pode se revelar correto.
Ainda assim, os eleitores querem um vencedor, e é por isso que Grover Cleveland foi o único presidente com mandato único a ter sido reeleito para o cargo, em 1892. E, depois que Trump deixar a Casa Branca e desaparecer da vista diária, mais e mais republicanos talvez comecem a enxergar aquilo que o mito da eleição roubada pretende ocultar: sua fraqueza eleitoral.
Os proponentes do mito citam os muitos novos eleitores que ele atraiu em novembro para explicar por que Trump não poderia ter perdido. Mas para tanto seria necessário fechar os olhos (como faz Dittrich) para o fato de que Biden atraiu muito mais gente. Em uma eleição que teve comparecimento recorde para ambos os partidos, o democrata ganhou os 6 milhões de eleitores que já haviam votado em algum candidato de outro partido por uma proporção de 2 para 1. E conquistou eleitores de primeira viagem pela mesma proporção.
Trump também impulsionou a maioria dos candidatos republicanos ao Congresso. Seu partido teve um ganho líquido de dez cadeiras na Câmara e quase manteve a maioria no Senado, mesmo que ele tenha perdido a disputa presidencial por uma margem considerável. Isto sugere que os republicanos podem ter um belo futuro pós-Trump.
Apesar de suas derrotas esta semana na Geórgia - estado cujo eleitorado jovem e plural há muito tem apresentado tendências democratas - a marca republicana não foi muito prejudicada pelos anos Trump. O partido também tem uma grande vantagem na toxicidade contra a esquerda democrática, sobre a qual seus candidatos falaram incessantemente durante a campanha, o que parece ter sido especialmente eficaz na conquista dos latinos.
Carlos Curbelo, ex-congressista do sul da Flórida, onde novos apoiadores latinos ajudaram o partido a ganhar duas cadeiras na Câmara, descreve esse avanço como “um grande processo, a coisa pela qual os republicanos estão mais animados”. Ele o considera um indicador do futuro ideal para o partido: uma coalizão multiétnica dedicada a fornecer soluções de mercado para os grandes problemas - como, por exemplo, a mudança climática - que a esquerda tende a lançar sobre os ombros do governo.
Estas são conjecturas razoáveis. Sublinham o fato de que a trajetória futura do partido ainda não está definida. Ninguém previu Trump em 2012. E o efeito perturbador de seu desprezo pelas verdades conservadoras provavelmente aumentou as possibilidades ideológicas da direita. A maioria de seus 16 oponentes nas primárias de 2016 repetia os mesmos slogans do reaganismo.
Uma disputa equivalente hoje poderia apresentar o conservadorismo pragmático do governador de Maryland, Larry Hogan, a sinofobia febril de Cotton e o populismo governamental do senador Marco Rubio, todos os quais, até certo ponto, foram moldados ou promovidos em resposta a Trump. Mas esse futuro pós-Trump mais feliz para o partido do presidente até agora é só uma possibilidade teórica.
A realidade do populismo de Trump não é o pensamento conservador heterodoxo - que produziu poucas políticas dignas de menção nos últimos quatro anos -, mas as fúrias dos populares que irromperam no Capitólio esta semana. E reprimi-los não será fácil, mesmo se Trump for embora. Na verdade, eles são anteriores ao presidente.
Movimentos populistas de base vêm emergindo na direita ao longo das décadas, por razões diferentes, mas com o compromisso característico de purgar o establishment conservador e a tendência de cair na paranoia e nas teorias da conspiração. A Ameaça Vermelha de Joseph McCarthy na década de 1950 deu lugar ao movimento de Barry Goldwater na década de 1960, ao reaganismo mais apresentável na década de 1970 e aos seguidores de Gingrich na década de 1990.
O padrão normal, observa o historiador da política Geoffrey Kabaservice, era que os insurgentes se levantavam, conquistavam o poder e então se acomodavam ao governo. Com isso, eles se tornavam o novo establishment e, por sua vez, eram também desafiados e derrotados. Mas, na última década, à medida que a insegurança econômica se cruzou com a polarização política e a aceleração da mudança cultural e demográfica, as ondas insurgentes de direita ficaram mais frequentes e mais radicais.
O Tea Party, que estourou no ano de 2010 em resposta a uma economia difícil e a Barack Obama, levou 87 conservadores radicais ao Congresso. Mas, uma vez ali dentro, eles não demonstraram nenhum interesse em se acomodar. Ao contrário, propagaram a conspiração racista quanto ao local de nascimento de Obama.
Atacaram o bipartidarismo, o governo em geral e até mesmo seus líderes partidários (expulsando o ex-presidente da Câmara, John Boehner, antigo seguidor de Gingrich). A paralisação do governo em 2013 e a campanha para “revogar e substituir” o Obamacare por absolutamente nada tiveram suas assinaturas.
Em vez de serem derrotados, eles se transformaram na multidão MAGA que desde então disseminou versões mais radicais de si mesma, como os ultra-trumpistas do QAnon, movimento comprometido com a missão de farejar círculos de pedófilos socialistas em Washington. “Desapareceu aquele velho padrão de avanço, consolidação, acomodação e renovação do conservadorismo”, escreve Kabaservice. “Em seu lugar se colocou uma coisa que parece #MAGAparaSempre”.
Esse processo também pode ser visto de perto em Wisconsin, onde a onda do Tea Party ajudou a levar ao poder, pelas mãos de Scott Walker, aquilo que a princípio parecia um novo e ousado experimento de governo conservador. No entanto, a base republicana do estado, incitada pela mídia conservadora, acabou se mostrando menos movida pelo sistema de vouchers escolares de Walker do que por uma hostilidade racial contra o outro lado.
Em um estado-pêndulo, até então conhecido por uma espécie de cortesia bipartidária, uma extrema manipulação dos distritos eleitorais perpetrada pelos republicanos em 2011 deu ao partido uma supermaioria na legislatura estadual. Isto desobrigou os republicanos do Wisconsin de falar aos eleitores indecisos, a tradicional força de moderação.
Eles aprovaram medidas de identificação de eleitores que diminuíram a participação de não brancos na diversa Milwaukee, ajudando Trump a ganhar o estado em 2016. Quando Walker e o procurador-geral do estado perderam as eleições em 2018, a legislatura aprovou leis para retirar os poderes de seus cargos antes que seus substitutos democratas pudessem assumir. Este foi um estudo de caso sobre o abandono dos republicanos de duas normas que Levitsky e Ziblatt consideram essenciais para uma democracia segura: tolerância e respeito mútuo.
Enquanto isso, a base republicana estava ficando mais radical. Os republicanos de Waukesha, até então um baluarte do reaganismo rico, foram transformados por um influxo de superfãs de Trump. Muitos são brancos da classe trabalhadora, sem nenhum vínculo anterior com o partido, que acham que Trump está em guerra contra o establishment corrupto de Washington.
Dittrich diz que esses eleitores agora respondem por 70% de seus membros. “Eles não reclamam de serem chamados de republicanos porque apoiam o presidente Trump”, diz ele. “Mas, se sentirem que o partido não está apoiando o presidente Trump, eles provavelmente não serão tão leais quanto os republicanos foram no passado”. Em setembro, a mãe de Kyle Rittenhouse - miliciano de 17 anos acusado de matar duas pessoas durante um protesto Black Lives Matter em Kenosha, Wisconsin, no mês anterior - participou de um jantar da organização Mulheres Republicanas do Condado de Waukesha. Ela foi ovacionada de pé.
Isto ilustra por que os eleitores republicanos podem, de fato, continuar excepcionalmente fiéis ao seu líder derrotado - e como será difícil trazê-los de volta à moderação, mesmo que não o façam.
Eles são uma nova base, dominada por homens brancos da classe trabalhadora que ouvem a raiva do presidente contra os establishments liberal e conservador como uma expressão de suas próprias frustrações em um país sob rápida mudança. Eles fazem o Tea Party parecer construtivo.
Trump introduziu na corrente conservadora dominante uma política de emoção e oposição estúpida, tão distante do comunismo quanto da filosofia de governo do reaganismo. “Se Reagan estivesse por aqui hoje, seria muito difícil convencer o Partido Republicano de que ele era um conservador ferrenho”, admite Dittrich sobre seu antigo herói. Por sua vez, o simpático presidente do partido afirma ter “ficado um pouco mais conservador”, uma evolução que ele acha difícil de explicar, embora a contraste com seu antigo entusiasmo pelo bipartidarismo.
É bem difícil imaginar a direita voltando deste estado fanático para o reaganismo moderado de Hogan, governador de Maryland. A ideia de Rubio - que é essencialmente manter os eleitores da classe trabalhadora a bordo de políticas econômicas populistas e, ao mesmo tempo, baixar o volume da mensagem cultural o suficiente para atrair de volta alguns suburbanos - pode ser mais promissora.
Ainda não se sabe se as políticas mais sérias desse populismo industrial diferem muito das da centro-esquerda, só despojadas de suas preocupações ambientais. Elas também não geraram quase nenhum entusiasmo entre o establishment pró-negócios do partido. Mas existe aí uma lógica política convincente. E está claro que quase qualquer trajetória que possa levar o Partido Republicano de volta ao governo, até mesmo o ressentimento cultural, deve ser bem-vinda.
McConnell e sua facção republicana deveriam ver a iminente possibilidade de cooperação com o governo Biden como uma oportunidade para este fim.
O presidente eleito é um veterano negociador do Senado, disposto a governar a partir do centro. E a estreita maioria democrata no Senado não dará ao seu partido outra opção a não ser tentar fazer exatamente isto.
O senso comum diz que McConnell, veterano da oposição desleal, não vai querer participar desse processo - assim como ele obstruiu o governo Obama. Mas, em retrospecto, talvez ele calcule que essa estratégia não funcionou muito bem para seu partido.
Essa dinâmica empurrou Obama para a esquerda e ajudou a alimentar a crescente fúria partidária da direita. O que, por sua vez, acabou gerando o Tea Party, Trump e a vergonhosa guinada antidemocrática entre os republicanos do Senado - à qual, é preciso reconhecer, McConnell se opôs firmemente.
É de se imaginar que ele e seus colegas republicanos machucados por Trump não queiram passar por tudo isso mais uma vez. Trabalhar com Biden para consertar alguns dos problemas mais graves do país seria um sinal de que eles de fato não querem. / Tradução de Renato Prelorenzto
El País: Norte-americanos vivem apreensão e ansiedade com os últimos dias de Trump na Casa Branca
Trump não irá à posse de Biden em 20 de janeiro, a primeira vez que isso acontece desde 1869
Donald Trump está cada vez mais sozinho e, ao se sentir quase encurralado, é possível que em vez de lamber as feridas ao final de sua presidência, decida que a melhor defesa diante da enxurrada de críticas é um bom ataque. Trump provou ao longo dos últimos quatro longos anos que pode ser imprevisível e errático em suas decisões. A oposição democrata e um número cada vez maior de republicanos que começam a abandoná-lo vivem com incerteza, ansiedade e até medo os 12 dias que restam até que no próximo dia 20 o presidente Trump deixe definitivamente a Casa Branca.
Ele já deu vários murros no tabuleiro internacional. Há pouco mais de um ano, o mandatário republicano surpreendeu ao ordenar um ataque com drones contra o poderoso general iraniano Qasem Soleimani, desatando tensão máxima no Oriente Médio ao acabar com um dos homens fortes do aiatolá Ali Khamenei, em um golpe duríssimo a Teerã. Além disso, Trump se lançou a desenhar um novo mapa geopolítico acabando com décadas de diplomacia com a China e inaugurando uma nova Guerra Fria com a grande potência em ascensão. Há mais exemplos: como mudar a posição internacional sobre Jerusalém, ao mudar à cidade santa a embaixada dos EUA, e talvez a última mudança drástica da política em Washington, com o apoio ao Marrocos ao reconhecer sua soberania sobre o Saara Ocidental, o que significou ignorar as resoluções da ONU.
Diante das dúvidas sobre o que ainda pode ordenar um presidente ferido, que deixará como legado uma tentativa de insurreição insuflada por ele mesmo contra a democracia dos Estados Unidos, os líderes democratas estão tentando adotar medidas sérias. Além de seu pedido para que seja aplicada a 25° emenda e a realização de um impeachment a toda pressa do mandatário, a presidenta da Câmara de Representantes, Nancy Pelosi, se movimentou no terreno do prático e explicou na sexta-feira que conversou com o chefe do Estado Maior Conjunto, o general Mark Milley, para manter “um presidente instável” longe dos códigos nucleares que controla.
Proteger a população
“A situação desse presidente volátil e instável não poderia ser mais perigosa e devemos fazer todo o possível para proteger a população americana de seu desequilibrado ataque ao nosso país e nossa democracia”, escreveu Pelosi em uma carta. A presidenta da Câmara de Representantes afirmou que recorreria ao julgamento político contra Trump se o vice-presidente, Mike Pence, não iniciasse o processo para que seu Gabinete retirasse Trump do poder com a emenda constitucional por incapacidade.
Enquanto isso, o presidente flerta com a ideia de conceder um perdão a si mesmo para evitar possíveis investigações judiciais quando abandonar a Casa Branca. Um presidente perdoar a si mesmo seria algo inédito na história dos Estados Unidos, mas Trump já falou em público diversas vezes sobre essa opção, defendendo que tem o “direito absoluto” a fazê-lo. O republicano colocou essa opção durante a investigação da chamada trama russa, que verificou as supostas ligações entre a Rússia e sua campanha nas eleições de 2016.
O caso foi fechado sem que Trump fosse acusado por qualquer crime. Mas o promotor especial da investigação, Robert Mueller, afirmou o tempo todo que o mandatário não foi eximido, o que faz com que potencialmente possa ser processado quando deixar a Casa Branca. A maior ameaça legal que Trump enfrenta hoje é uma investigação por fraude do Estado de Nova York relacionada aos seus negócios. Ainda que esse seja um caso de alcance estadual que não estaria protegido por um perdão presidencial, uma vez que Trump é investigado como pessoa particular, sem vínculo com as decisões tomadas desde sua chegada ao poder em 2016.
A agenda diária de Trump até o dia da posse de seu sucessor, o democrata Joe Biden, é uma incógnita. “O presidente trabalhará do começo da manhã até tarde da noite. Fará muitas ligações e muitas reuniões”, disse a mensagem de sexta-feira enviada à imprensa pela Casa Branca.
Apesar de seu pedido para cicatrizar as feridas após o ataque ao Capitólio, Trump estaria supostamente planejando sigilosamente viajar na semana que vem à fronteira sul de seu país para lembrar em seus últimos dias, ao lado do muro que queria ampliar com o México, sua posição de falcão na política migratória. Também estaria pensando, de acordo com o The New York Times, em conceder uma entrevista antes de deixar o poder.
No Twitter, antes de sua conta ser suspensa definitivamente, o mandatário anunciou que não irá à posse de Biden, a primeira vez que isso acontece desde 1869. Quebrando a tradição, a família Trump sairá da Casa Branca rumo a sua residência da Flórida no dia 19, e não no 20. Quase uma saída pela porta dos fundos.
Cristovam Buarque: Basta e basta
União contra Bolsonaro
Basta do governo insano e da oposição dividida. O maior erro dos democratas foi não manterem a unidade da luta contra a ditadura, na hora de construir a democracia, com eficiência econômica, justiça social, sustentabilidade ecológica, fiscal e educacional. Continuamos divididos, mesmo diante do risco de reeleger um regime miliciano no lugar do antigo regime militar.
Em 1985, os democratas se uniram para barrar a continuação do regime militar com o civil Maluf; com exceção do PT, que não votou contra a ditadura, para não se aliar a democratas conservadores. Com poucos deputados, sua opção não impediu a vitória da democracia. Quase quarenta anos depois, outra vez os democratas têm a chance de deixar suas divergências para barrar um regime militarista, obscurantista, candidato a autoritarismo. Desta vez o PT não é mais o pequeno partido de antes. Apesar de todo seu desgaste, por seus erros ou por manipulações na justiça, o PT é um partido grande o suficiente para definir o rumo das eleições em 2022: unindo-se aos demais democratas para barrar a continuação do atual governo, ou repetir o isolamento e correr o risco de reeleger o governo atual, com todas as consequências.
Se repetirmos agora o divisionismo, seja porque o PT não se alia aos demais democratas ou porque estes não aceitam se unir ao PT, há grande chance de outra vez chegarmos ao segundo turno com um nome que não entusiasma ao conjunto dos democratas, e, ainda mais grave, um nome ou um partido com mais rejeição do que o atual presidente. Como aconteceu em 2018, onde Fernando Haddad era muito mais preparado, mas perdeu por causa da rejeição ao PT.
Basta deste governo insensato.
Basta também da insensatez dos democratas que se dividem.
Em 1985, Brizola, Arraes, Ulisses, deixaram de lado suas divergências mútuas e abriram mão da proposta nobre das eleições diretas, adiando-a por quatro anos; se aliaram a Sarney e Marco Maciel, que até a véspera estavam aliados a ditadura mas aceitaram a aliança com seus adversários para iniciar a redemocratização, que sem eles teria sido adiada por anos. Foi a aliança entre adversários discordantes e o nome sem rejeição, do Tancredo, que permitiu barrar a ditadura. Outra vez precisamos que nossos líderes de hoje barrem a reeleição deste presidente que se reelegeu por causa de nossa divisão em 2018. Para tanto, precisam fazer como fizeram aqueles outros 40 anos atrás: explicitarem a unidade, os motivos dela, e escolherem um nome com pequena rejeição na opinião pública. Que assuma o compromisso de abolir o negacionismo, aceitar diálogo e tolerância, respeitar a democracia, rechaçar o armamentismo e conduzir o país por quatro anos. É como se estivéssemos outra vez adiando as Diretas, mas abrindo o debate sobre o progresso futuro, graças a barrar a decadência que o Brasil sofre.
Basta da insanidade do desgoverno ou do divisionismo das oposições.