direita

Elio Gaspari: A Lava-Jato morreu na infância

Acabou-se a força-tarefa de Curitiba que durante sete anos mostrou ao país o maior esquema de corrupção de sua História. Morreu sem choro nem vela. Empreiteiros corruptos e onipotentes foram para a cadeia, suas empresas encolheram, milhares de empregos sumiram, e nenhum deles ficou pobre. O juiz Sergio Moro tornou-se uma celebridade nacional, mumificou-se indo para o Ministério de Bolsonaro e de lá para a humilhação pública. Alguns procuradores lambuzaram-se com a fama. Ninguém saiu da Lava-Jato como entrou, e ninguém saiu bem dela.

Só a poesia de Paulinho da Viola captura o tamanho dessa tragédia:

“A marca dos meus desenganos ficou, ficou. (...)

Foi um rio que passou em minha vida, e meu coração se deixou levar.”

A Lava-Jato prendeu um ex-presidente da República e destruiu a máquina do comissariado petista que havia se associado a caciques do Centrão. Em 2004, antes que a Lava-Jato surgisse, o juiz Sergio Moro escreveu um artigo louvando a campanha de combate à corrupção que deslegitimou o sistema partidário da Itália. Com a fama que conquistou, aninhou-se num governo, que prometia uma “nova política”. Podia-se fazer tudo pelo juiz de Curitiba, menos o papel de bobo. Enquanto ele dava esse salto, seus colaboradores concebiam uma fundação bilionária. A “nova política” tornou-se o novo nome do Centrão, com suas obras e suas pompas.

Numa trapaça da História, a Lava-Jato de Curitiba morreu nos mesmos dias em que voltam a ser conhecidos, com mais detalhes, as conversas promíscuas e primitivas que tinham em suas redes. (Eles continuam dizendo que os diálogos são “supostos”. Supostas foram as falas messiânicas com que embrulhavam o devido processo legal).

Em seus quase 200 anos de História, o Brasil teve solavancos e ditaduras, mas nunca teve um governo internacionalmente comprometido com o atraso. (D. Pedro II nunca saiu pelo mundo defendendo a escravidão).

Em 1831, depois de ter assinado um tratado com a Inglaterra, o governo brasileiro proibiu a importação de escravizados. O Centrão daquele tempo mastigou a lei, e o tráfico só foi suspenso em 1850. Nesse período entraram no Brasil 800 mil escravizados. O contrabando alimentava uma economia que cevava a política de senhores vestidos como europeus. Como ensinou Mark Twain, a história não se repete, mas às vezes rima.

Registro

Sumiu do radar a privataria dos quatro milhões de vacinas que seriam comprados por um clube de empresários.

Fica o registro de que no escurinho da rede, nas conversas que envolviam o presidente da Fiesp, doutor Paulo Skaf, um magano disse que estava disposto a entrar na operação, pois havia recebido telefonemas de Fábio Wajngarten, chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência, e do senador Flávio Bolsonaro.

Harvard fez o certo, 38 anos depois

Lawrence Bacow, presidente da veneranda universidade Harvard, dirigiu-se à sua comunidade para reconhecer e condenar os assédios sexuais do professor Jorge Dominguez contra jovens colegas e alunas.

Terminou assim um caso que começou em 1983. Sempre que possível, ele foi varrido para baixo de um tapete. Dominguez, conhecido historiador da América Hispânica, assediou a jovem colega Terry Karl durante dois anos. Ela denunciou-o, ele foi afastado de decisões que a envolvessem e tirou uma licença. Karl foi para Stanford, o caso foi mantido em sigilo, e o professor seguiu sua carreira, com sucesso. Chegou a vice-diretor de assuntos internacionais da universidade.

A presidente de Harvard, a professora Drew Faust, visitou o Brasil em 2011 em grande estilo e trouxe Dominguez em sua comitiva. À época, o historiador Kenneth Maxwell expôs a bizarrice.

Em 2018, eram 18 as denúncias contra Dominguez, e ele aposentou-se. No ano seguinte, foi destituído de todos os títulos e convidado a não frequentar o campus. Resolvera-se uma questão, a dos assédios.

Faltava enfrentar a cultura do abafa de Harvard. Ela foi resolvida agora, 38 anos depois da denúncia de Terry Karl. Felizmente, as mulheres não desistiram.

Amil

Na segunda-feira, uma senhora de 90 anos, cliente da Amil há 20, pagando R$ 4 mil mensais, chegou com dores à emergência do Hospital Santa Teresa, em Petrópolis.

Ficou duas horas numa sala de espera cheia, e sua acompanhante ouviu que o sistema da operadora estava fora do ar, sem previsão de retorno.

Tentaram falar com a Amil por telefone e ouviram gravações. Conseguiram uma maca e um cubículo.

Quatro horas depois, transferiram-se para um outro hospital particular.

Estavam lá quando, às 23h55m, a Amil finalmente autorizou a internação.

Em 2014, a mão invisível das operadoras enfiou um jabuti numa Medida Provisória, graças ao qual o valor das multas cobradas às operadoras seria decrescente. Quanto mais delinquissem, menor o valor da multa. Dilma Rousseff vetou a gracinha.

À época, o pai do jabuti, dono da Amil, se explicava:

“O sistema caiu e foram negados centenas de procedimentos, não é justo que por causa disso se cobrem centenas de multas.”

“Você demitiu o diretor de TI?”

“Não.”

Esses sistemas são espertos, caem para negar atendimento, mas nunca erram concedendo-os por engano.

Eremildo, o idiota

Eremildo é um idiota e ouviu o presidente da Anvisa, o médico-contra-almirante Barra Torres, dizer o seguinte:

“A Anvisa tem 22 anos. Nesses 22 anos, pouquíssimas vezes houve necessidade de tamanha movimentação política. E é necessário isso? Não é, porque no final quem define são os técnicos.”

O cretino desconfia que Barra Torres não lê jornal. No dia 21 de outubro, o capitão Jair Bolsonaro escreveu um texto no qual se referia ao que chamaria de “a vacina chinesa do João Doria”, assegurando: “NÃO SERÁ COMPRADA”. (Maiúsculas dele.)

Felizmente, o Brasil já comprou mais de dez milhões de vacinas chinesas.

Ulysses Guimarães dizia que as pressões políticas lhe faziam bem. Mal, fazem a ignorância ou as malfeitorias.

Arremate

Na terça-feira, a menina Ana Clara Machado, de cinco anos, brincava na porta de sua casa, em Niterói, levou um tiro e morreu.

A versão da Polícia Militar foi a de sempre: confronto. Ana Clara foi a quarta criança morta neste ano.

Em setembro de 2019, num episódio semelhante, a menina Ágatha Félix, de oito anos, estava com a mãe dentro de uma Kombi quando foi morta por um tiro disparado por outro PM. Era a quinta criança morta no Rio.

O poeta Armando Freitas Filho contou esse caso no seu recente livro, “Arremate”:

“Rio

Só podia ser de ágata

De ferro e de esmalte

Como todos os demais.

Colegas, amiga de tantas

Outras e outros — meninas.

Meninos — que são perfurados.

Nenhuma bala é perdida.

Através dos dias são certeiras.

Não erram nunca ninguém:

Os que matam e morrem”.


Eliane Cantanhêde: Amigos e ministros são paus, pedras e vitrines para pandemia, vacinas, Manaus, combustíveis...

Que o digam Pazuello, Barra Torres, Ricardo Barros, Ernesto Araújo, Guedes, os novos presidentes do Congresso e, dizem as más línguas, Augusto Aras

Nada melhor, e às vezes bem fácil, do que sair do alvo terceirizando culpas e responsabilidades, dando voltas, avançando e recuando, desqualificando os que denunciam, atiçando os cães de guarda, rindo dos indignados e enganando os trouxas. O presidente Jair Bolsonaro é craque nisso, mas ele só acerta porque há quem faça o jogo dele.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, diz que abriu nove “investigações preliminares” sobre a ação, ou inação, de Bolsonaro na pandemia. Motivos não faltam, culminando com o atraso das vacinas, mas as investigações nunca saem das preliminares e quem está objetivamente na mira é o general Eduardo Pazuello. Ele bate no peito para dizer que negocia vacinas em várias frentes, sem se penitenciar por fazer em fevereiro de 2021 o que 50 países sérios fazem desde meados de 2020. Além de submisso e atrasado, ele é atrapalhado.

Em ofícios de julho, agosto e outubro de 2020, revelados pela revista Piauí, o Butantan tentou acordar Pazuello para a corrida das vacinas. Ele não deu bola, como não deu para o oxigênio de Manaus, milhões de testes que perderam a validade, a falta de seringas e agulhas, mais a MP que destinava R$ 37 milhões para a pandemia. Um espanto! Mas ele foi posto na Saúde para isso, para deixar para lá. “E daí?”

Agora, os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, pressionam o ministro Paulo Guedes para reavivar o auxílio emergencial, enquanto Bolsonaro fica de espectador, falando o que o mercado quer ouvir, agradando os dois lados e pronto para capitalizar no final, como na primeira vez. O Congresso impôs, ele ficou com os louros.

Bolsonaro também foi rápido no gatilho ao dar uma “solução” para os preços dos combustíveis: mexer no ICMS, que é... estadual. Assim, lava as mãos e empurra a culpa, e a conta, para os governadores, que ficam cara a cara com caminhoneiros em pé de guerra e com a classe média estupefata diante dos R$ 5,15 da gasolina comum nos postos. Alguém tem que dizer não.

Bolsonaro também acusou a “vacina chinesa do Doria” de “mortes e invalidez”, cancelou a compra de 46 milhões de doses, não negociou nada e anunciou que não vai se vacinar, ponto final. Mas, dessa vez, pegou mal. Até seus seguidores acharam um pouco demais. Qual a saída de Bolsonaro? Consertar o discurso, repetindo o tempo todo que sempre quis comprar vacinas, desde que a Anvisa autorizasse. Então, de quem é a culpa pelo descaso e atraso? O Centrão diz que é da... Anvisa.

Na manhã de quinta, o líder do governo, Ricardo Barros, disse ao Estadão que a Anvisa “não está nem aí para a pandemia” e iria “enquadrá-la”. À noite, o Senado aprovou MP dizendo que a agência “concederá” autorização de vacinas em cinco dias. Logo, ela deixa de analisar e passa a só carimbar os pedidos. É obrigada a autorizar, mas, se houver reações adversas graves depois, é ela que responde. 

O líder do governo poria a faca no pescoço do contra-almirante Barra Torres, amigo de Bolsonaro, sem avisar ao presidente? E foi coincidência Bolsonaro incluir Barra Torres na sua live, horas depois da ameaça do líder e da aprovação da MP, para dizer que não interfere na Anvisa? Logo, Congresso e Anvisa se engalfinham, Bolsonaro finge que não é com ele e a falta de vacinas é culpa da... Anvisa.

Amigos são paus para toda obra, mas os de Bolsonaro são paus, pedras e vidraças. Que o digam Pazuello, Barra Torres, Ricardo Barros, Ernesto Araújo, Guedes, os novos presidentes do Congresso e, dizem as más línguas, Augusto Aras. Perguntei a ele sobre a versões de que as investigações são só “preliminares” para não dar em nada. Ele reagiu: “Segundo meus adversários...” Soou como “eu não estou aqui para brincadeira”. A conferir.


Folha de S. Paulo: País tem 1 novo pedido de impeachment de Bolsonaro a cada 11 dias; processos se acumulam pulverizados na Câmara

Foram 68 desde que presidente tomou posse; motivos são diversos, mas nada aponta para uma grande articulação entre setores da sociedade

Danielle Brant e Renato Machado, Folha de S. Paulo

A rejeição de setores da sociedade ao governo de Jair Bolsonaro tem se refletido no número de pedidos de impeachment protocolados na Câmara dos Deputados: em média, cidadãos brasileiros protocolaram um processo contra o presidente a cada 11 dias.

Foram 68 desde que Bolsonaro tomou posse até a primeira semana de fevereiro. São de uma maneira geral pedidos independentes, apresentados em momentos distintos e por motivações diversas, mas nada que aponte para uma grande articulação entre esses setores da sociedade contra Bolsonaro.

Se por um lado essa situação reflete um descontentamento mais generalizado, por outro, essa pulverização pode ser um fator contra o crescimento da pressão contra o governo.

Nas últimas semanas, houve intensificação nos debates a respeito de um impedimento, principalmente por causa do repique da Covid-19, do colapso da saúde em Manaus e o atraso do Brasil na vacinação.

Chegou-se a cogitar que o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) abriria o processo em seus últimos dias à frente da Casa, possibilidade que não se concretizou.

Os pedidos de impeachment foram escritos e protocolados por pessoas das mais diversas regiões.

Há juristas conceituados, como a ex-vice-procuradora-geral da República Deborah Duprat, e dois detentos do estado de São Paulo, que enviaram seus pedidos por cartas. Um deles, João Pedro Bória Caiado de Castro, que cumpre pena em São Vicente, já inclusive havia pedido impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Pessoas de uma mesma família escreveram pedidos, assim como dezenas de artistas reunidos em um movimento social.

No universo político, figura obviamente a oposição, mas também ex-aliados do governo, como os deputados Alexandre Frota (PSDB-SP) e Joice Hasselmann (PSL-SP).

O ritmo de pedidos apresentados ganhou força em 2020. No ano anterior, haviam sido cinco, sendo que o primeiro, protocolado em 5 de fevereiro, foi arquivado por Maia.

O restante teve como destino a gaveta do ex-presidente da Câmara —e agora do novo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL)—, formalmente classificados como "em análise".

As denúncias do primeiro ano de Bolsonaro foram motivadas por episódios controversos, como o fato de o presidente ter compartilhado em uma rede social um vídeo em que um homem urina em outro em um bloco de Carnaval, em prática conhecida como "golden shower".

Outro processo foi ancorado na decisão de Bolsonaro de comemorar a data do Golpe Militar no país, 31 de março de 1964.

Em 2020, o número de pedidos explodiu: foram 54 —quatro arquivados.

Alguns tiveram os mesmos autores, como o militar aposentado João Carlos Moreira, que protocolou dois. Um deles, de fevereiro do ano passado, tinha como pano de fundo as investigações envolvendo a morte da vereadora Marielle Franco e supostas interferências no caso.

O outro, de março, citava declarações de conotação sexual contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha, e até o episódio envolvendo o transporte de 39 quilos de cocaína em um avião presidencial.

Bolsonaro também motivou pedidos de impeachment por ter incentivado manifestações que pediam o fechamento do Congresso e do STF (Supremo Tribunal Federal), por ter declarado que as eleições de 2018 foram fraudadas e por ataques à imprensa.

Há pedidos que criticam a política neoliberal do governo, acusações de práticas de homofobia e de misoginia e incentivo à posse de armas, o que demonstraria a supressão do Estado democrático de direito —o processo foi protocolado em setembro do ano passado, ou seja, bem antes de o governo encaminhar à nova cúpula do Congresso, formada por Lira (Câmara) e Rodrigo Pacheco (Senado) uma lista de pautas prioritárias com pedido para votar projeto que amplia o uso de armamentos.

Boa parte das ações tem relação com ações e omissões de Bolsonaro no combate à pandemia do novo coronavírus. São documentos que criticam a postura negacionista do presidente, ao menosprezar o impacto da Covid-19 e minimizar cuidados para evitar a disseminação do vírus.

Essa foi a motivação de alguns dos pedidos apresentados por PSOL, PT e outros partidos da esquerda.

"Os diversos pedidos refletem as dezenas de crimes já cometidos pelo presidente e também uma posição nossa, de que não há mais possibilidade de um presidente negacionista, responsável direto por 230 mil mortes pela Covid-19, um presidente que incentivou atos autoritários, seguir conduzindo os rumos do Estado brasileiro", afirma a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), líder do partido na Câmara.

Na avaliação da parlamentar, a correlação de forças piorou na Casa após a vitória de Lira, eleito com a ajuda da promessa de cargos e emendas por parte do governo federal.

Petrone, porém, vê um aumento da pressão popular, principalmente em decorrência do aumento do desemprego e do fim do auxílio emergencial. "Isso, com certeza, vai abrir os olhos do povo em relação a essa necessidade de interromper o presidente da República", diz.

Mas não é só a oposição que busca abrir processos contra o presidente.

O advogado Adriano Oliveira da Luz, de Cachoeirinha (RS), votou em Bolsonaro e usou suas redes sociais para influenciar eleitores a favor do capitão reformado. Decepcionou-se com algumas de suas ações durante a pandemia e por isso decidiu ingressar com pedidos.

"Tu não tem noção do quanto eu apanhei nas redes sociais por causa do pedido de impeachment", afirma.

"As pessoas não conseguem ver que não sou contra o presidente e sim contra o que ele fez. Antes era o PT que era uma seita, que não se podia falar mal do Lula. Mas a mesma coisa está acontecendo com eleitores do Bolsonaro", afirma.

O ato que motivou seu pedido foi a decisão em junho de mudar a forma de divulgação dos dados referentes a mortos em decorrência da Covid-19, omitindo o total de casos registrados em determinado dia. Após pressão, o governo voltou atrás.

Em 2021, já há nove pedidos aguardando análise do novo presidente da Câmara, mas nenhuma sinalização de que o destino será diferente dos demais.

"Evidentemente que sou favorável a qualquer pedido de impeachment, mas agora com esse Congresso nas mãos do centrão e ainda a indicação da lambe-botas Bia Kicis para a CCJ [Comissão de Constituição e Justiça], creio que as chances do presidente sair antes de 2022 diminuíram muito", diz o cineasta Fernando Meirelles.

O cineasta indicado ao Oscar integra a Coalizão Negra por Direitos, que ingressou com um pedido em agosto de 2020, com base, entre outros motivos, nos ataques de Bolsonaro às instituições democráticas, as ações e omissões do governo durante a pandemia e o racismo no discurso do presidente.

Pela legislação, cabe ao presidente da Câmara decidir, de forma monocrática, se há elementos jurídicos para dar sequência à tramitação do pedido.

O impeachment em seguida só é autorizado a ser aberto com aval de pelo menos dois terços dos deputados (342 de 513) depois de votação em comissão especial. Após a eventual abertura pelo Senado, o presidente é afastado do cargo.


Luciano Huck: Sistema imunológico da sociedade brasileira dá respostas à altura das agressões do bolsonarismo

Para cada negacionista que orbita o poder no Planalto, há milhares de cidadãos empenhados em combater os efeitos da maior crise sanitária da história

O Brasil será vacinado contra a Covid mesmo com as omissões, os erros e os arbítrios do governo federal. Entramos no terceiro ano da Presidência de Jair Bolsonaro, mas no 33º ano do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Para cada negacionista que orbita o poder no Palácio do Planalto, há milhares de brasileiros empenhados em combater de peito aberto os efeitos da maior crise sanitária da história.

São os médicos, enfermeiros e profissionais de saúde na trincheira para salvar vidas e que estoicamente ignoram os delírios obscurantistas de seus superiores. Gente que há quase um ano se desdobra no atendimento dos doentes e agora tocam a campanha de vacinação.

São os cientistas e técnicos nas frentes de pesquisa, garantindo que as vacinas sejam produzidas e aplicadas com toda segurança.

São nossos diplomatas mundo afora que não se deixaram capturar pelo tradicionalismo, como o diligente time da representação na Índia, que assegurou as importações de vacina apesar do disfuncional que os lidera em Brasília.[ x ]

Butantan e Fiocruz financiados pelos nossos impostos se tornaram merecidamente o símbolo dessa resistência humanitária.

Mas os heróis da resistência democrática são muitos. Incluem os jornalistas que nunca trataram a doença como uma “gripezinha”. Os líderes comunitários que organizam exércitos de mobilização. Os políticos verdadeiramente comprometidos com o povo sem cair no populismo. Os empresários que entenderam a gravidade do contexto e abraçaram a agenda da inclusão, sem filas paralelas ou qualquer outro privilégio.

Muita gente fez —e faz— a diferença ao enfrentar a miopia e a descoordenação apesar da insistência em atrapalhar de quem deveria liderar o país atualmente.

Temos de reverenciar a resposta diária dos professores nos estados e municípios e aplaudir os projetos públicos de ensino digital como, por exemplo, do Maranhão e do Rio Grande do Sul, que são ações bem sucedidas, apesar de a educação ter sido jogada às traças por ministros extremistas e alienados do marco democrático.

É necessário reconhecer o amadurecimento do debate nacional sobre renda básica e, da mesma maneira, é justo louvar o esforço do Congresso em 2020, que aprovou o auxílio emergencial, apesar da insensibilidade social de um governo que nunca priorizou os mais pobres.

Precisamos celebrar ainda os avanços dos movimentos feministas, LGBTQIA+ e antirracistas, que conquistaram inédita centralidade na discussão pública apesar da misoginia, da homofobia e do racismo da narrativa desvairada palaciana desde a posse.

A discussão nas redes sociais apodreceu de vez? Não se a gente se lembrar do inquérito das fake news no STF, da atuação das agências de checagem, da autocrítica das próprias plataformas e da posição esclarecida de muitos influenciadores digitais.

​Os ataques contínuos esvaziaram a grande imprensa? Não se a gente verificar que o jornalismo festeja audiências sem precedentes.

Nossas contas públicas foram totalmente comprometidas por um governo avesso à transparência? Estão aí os portais especializados e os tribunais de contas para mostrar que é difícil esconder até suspeitas de leite condensado superfaturado.

O momento é crítico, mas temos de manter acesa a chama da esperança.

Apesar da situação calamitosa na Amazônia devido ao negacionismo presidencial, o Brasil tem tudo para reverter as curvas do desmatamento na região.

Aos poucos e aos trancos, produtores rurais percebem que a rastreabilidade e o plantio/pecuária sustentável são imperativos no mercado global. O sistema financeiro começa a estrangular o crédito de quem insiste em desmatar e ignora as diretrizes ESG, que cobram uma postura moderna em relação ao meio ambiente, ao desenvolvimento social e às práticas de governança.

Nossas exportações vão bater recorde, nossa agroindústria se fortalece, debates sobre produção e sustentabilidade seguem mais vivos do que nunca apesar da tenebrosa política externa atual e da orientação federal de fazer “passar a boiada”.

Apesar de esforços técnicos, o descompromisso com a pauta verde cria atrito com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Ao ponto de o comitê de política ambiental da OCDE cancelar a deliberação sobre elevar o status do Brasil —de convidado a participante— no órgão internacional.

Há quem cometa crimes nas florestas? Há. Em contrapartida, há muita gente disposta a se sacrificar em defesa do meio ambiente.

E se as autarquias hoje estão politicamente diminuídas, a maioria dos funcionários públicos continua cumprindo sua missão de fiscalizar, alertar, denunciar. A voz dos climatologistas nunca foi tão amplificada.

Falam que a PGR hoje oscila entre silêncios constrangedores e pareceres equivocados apesar de manifestações recentes do Conselho Superior do Ministério Público que mostram parte da corporação vigilante e pronta a responder.

Dizem que as Forças Armadas estão desmoralizadas. Quem conhece de perto os quartéis, os oficiais da ativa e a rotina das tropas, porém, sabe da contínua e inestimável contribuição dos militares para o país —sobretudo nos rincões mais pobres.

As Forças Armadas não têm um só sobrenome e nem são reféns do familismo. Prefiro enaltecer figuras honradas como o general Antônio Miotto, que perdeu a batalha para a Covid e não para a vaidade.

Não menciono aqui todos esses casos com propósito acomodatício. Moderação não é passividade. Não dá para tapar o sol com a peneira. A realidade brasileira não admite ingênuos. Não sugiro, portanto, guardar as panelas, engavetar o debate do impedimento, banalizar os crimes de responsabilidade, normalizar a dor e a violência, deixar de lado a indignação.

Pelo contrário, faço aqui o devido registro da potência do nosso sistema imunológico, celebrando nossa capacidade de reagir.

É importante fazer uma análise em perspectiva, especialmente nesta conjuntura tão polarizada, conturbada e por vezes contaminada por interesses mesquinhos.

O vírus expôs a fragilidade do nosso contrato social, que precisa ser repactuado. E as instituições estão sofrendo em mãos irresponsáveis. Mas os pilares da nossa democracia seguem de pé graças à intervenção de muitos.

Se é verdade que a sociedade agora está machucada e traumatizada, também é fato que temos tudo para sair dessa e emergir mais zelosos com nossos direitos, fortalecidos pelas conexões que realizamos e tonificados pelas novas reflexões que fazemos. A mudança depende de nós. Somos nós que construímos nosso destino coletivo.

Projetos políticos autoritários e truculentos têm problemas inerentes de sustentabilidade. Num país como o Brasil, imenso em seu território, imenso em suas desigualdades e imenso em suas potências criativa e empreendedora, autocratas acabam quebrando a cara e ficando impopulares.

Uma presidência desprovida de razão e de coração não tem como vingar por muito tempo entre nós. Por isso, este governo —sem querer— na sua trajetória errática vai ajudar a revitalizar a sociedade civil e a consolidar a percepção de que o messianismo nunca foi – nem nunca será – um atalho para a prosperidade do país.

O brasileiro voltará a sonhar quando a boa política sacudir a poeira da polarização e dos “ismos” e, assim, ajudar a nação a dar a volta por cima.

Então chegará a hora da generosidade, de reconectar as pessoas, de ouvir e acolher quem pensa diferente, de buscar pontos em comum e transformar as melhores ideias em realidade.

Chegará a hora de ouvir, unir e agir! Estou entre aqueles que se engajam nesta construção. Amanhã há de ser outro dia apesar da triste realidade de hoje. Jamais vamos desistir do Brasil. Sabemos que mesmo a pior das tempestades ajuda a florescer o jardim.

*Luciano Huck é apresentador de TV e empresário


Fernando Henrique Cardoso: As difíceis escolhas

Além da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre de quem manda

Dias difíceis estes pelos quais passamos. Além da pandemia, o jogo do poder. Eu não me posso queixar: fique em casa, dizem os que mais sabem sobre os contágios. Isso é possível... para quem tem casa, como eu. E os que não a têm, ou a têm precária, e são muitos, na casa dos milhões? E os que estão no poder e, diferentemente de minha situação atual, precisam meter-se no dia a dia da política?

O bichinho persistente, o novo coronavírus, mata indiscriminadamente, é verdade, jovens ou velhos, ricos e poderosos tanto quanto pobres e sem alavancas de poder nas mãos. Mesmo assim, na minha faixa de idade, quando os 90 anos se aproximam celeremente, é triste viver dentro de casa, por mais confortável que seja, e ver a cidade murchando. E é tristeza para todos.

Mas não desanimemos. Se algo o tempo ensina, é como diz o velho ditado: não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe.

Às vezes, raramente, sinto certo desânimo. Olho em volta e vejo: meu Deus, outra vez! É o Congresso em seu ritmo habitual: dá cá, toma lá. Certa vez perguntei a Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos: mas é sempre assim? Tratava-se da prática de pegar no telefone e falar com cada um dos deputados que o apoiavam, para pedir: é preciso votar a favor, ou contra, tal ou qual projeto.

Era o habitual. Mas vale a pena. Sem democracia é pior: a barganha, quando existe, não é vista nem comentada. Mas existe. Melhor que se a faça às claras.

Digo isso não para referendar o que está acontecendo (nem sei de fato), e sim para dizer que é melhor suportar tanto horror perante os céus do que amargar a falta de liberdade. Mas é preciso lutar. Por mais que se “entenda o jogo”, é necessário repudiá-lo do fundo da alma. Se for indispensável jogar, que se limite a barganha ao máximo. Fácil dizer, difícil fazer.

Ainda assim, com o peso dos anos e a experiência de haver passado pelos altos e baixos do poder, não deixa de ser triste ver isso a que estamos assistindo: o poder, nu e cru, com suas mazelas expostas. Ainda que se dê o desconto e se imagine que “a mídia” exagera (pobre dela, paga o preço), a cada episódio de mudança de comando no Congresso vê-se pouco uma luta de ideais, e se vê, a perder de vista, um jogo de interesses. Eu sei que a tessitura da política não é feita só com valores e que os interesses contam; mas a cada vez que tudo isso aparece dá vontade de fechar-se na vida pessoal e ponto.

Só que ninguém é de ferro e no dia seguinte, novamente, volta o “interesse público”. Sejamos francos: mesmo entre os que barganham, nem por isso o interesse público desaparece ou deixa de contar. A realidade cobra o seu preço, os fatos falam mais alto, as urgências se impõem. O que parece ser diferente em nossas plagas, comparando com outras (que talvez tenhamos a sorte de conhecer menos), é que nas democracias, imagina-se, existem mais valores do que interesses. Será? Espero, mas não sou ingênuo (gostaria de o ser). Acho melhor olhar para o que, apesar dos procedimentos criticados, se pode fazer em liberdade, em contraposição ao que é feito em regimes autoritários, por mais “fazedores” que sejam.

Espero, apesar de tudo, que os novos dirigentes do poder parlamentar não se esqueçam de que, além de colaborar com o que lhes pareça positivo no governo federal, continuem fazendo o que dizem ser necessário: as reformas (dependendo sempre de quais e para quê) e, sobretudo, projetos para a volta dos empregos, com uma nova onda de crescimento da economia. E, por favor, sem esquecer que a tão falada redistribuição de renda não ocorre sem que haja (perdoem-me a má palavra) vontade política.

E isso – a tal vontade política – é necessário em qualquer forma de poder. A diferença entre elas é que, quando são democráticas, o cidadão comum fica sabendo o que acontece, pois a mídia anuncia e denuncia. Eventualmente, ele pode reagir nas eleições futuras. Enquanto, sem liberdade, os donos do poder mandam mais “à vontade”, ou seja, fazem das suas e ninguém toma conhecimento.

Não convém, portanto, apenas se recolher. Ao contrário, já que pelo menos temos liberdade, não compactuemos com erros e exerçamos, dentro da lei, o poder de escolha. Se errarmos, pagaremos o preço. Pior, quem escolhe é a maioria, que nem sempre acerta. Se é que acertar quer dizer estar de acordo com o ponto de vista de quem hoje reclama. Mais do que nunca, precisamos de lideranças. Na política não adianta o sentimento sem ter quem o expresse. Líder é quem simboliza um sentimento.

Não escrevo para me consolar, nem para consolar os leitores. Creio que é assim mesmo: a democracia é sempre imperfeita, embora melhor que as outras maneiras de governar. Verdade simples e fácil de ser enunciada. Mas difícil, reconheço, de ser vivida. Pior ainda, como agora, quando, além da pandemia, temos de vivenciar o jogo degradante de sempre, sejam quais forem, tenham sido ou vierem a ser “los que mandan”.

Livremo-nos ao menos do vírus (se possível), já que do poder ninguém escapa, seja exercendo-o, seja sofrendo-o.

*Sociólogo, foi presidente da República


Reinaldo Azevedo: Dois eventos nesta semana evidenciam um país que se acanalhou

Precisamos recuperar, na vida pública, uma hierarquia do saber

Vivemos uma espécie de apagão de critérios. Como o Estado de Direito e o devido processo legal estão sob vara desde, ao menos, 2013, as mentes foram ficando confusas, atrapalhando-se, perdendo a noção de hierarquia.

Assistiu-se, nesse tempo, a cada dia, a um tantinho de abuso impune. E fomos nos abastardando. Ou, nas palavras de Graciliano Ramos em “Memórias do Cárcere”, nós, como povo, “nos acanalhamos”. E, nesse ambiente, começamos a conviver com o “tudo é possível”, dizendo a nós mesmos: “Vá lá, isso não é tão grave”.

Nesta semana, dois eventos ilustram essa decadência, vamos dizer, civilizacional. Só para lembrar: em 1995, FHC apanhou severamente da imprensa porque disse que as críticas que lhe faziam as oposições eram “nhenhenhém”. Viu-se ali desrespeito ao contraditório. Bem mais rascante, Lula chamou seus críticos de “babacas”. Apanhou. Inclusive deste escriba. Já fomos melhores, como se vê.

Alguns ficaram um tantinho chocados com o fato de deputados do PSOL terem homenageado Bolsonaro, na quarta, com palavras como “genocida” e “fascista”. Também levantaram pequenos cartazes, em tamanho de papel ofício, que traziam essas palavras, acompanhadas de um “Fora”. Não me choquei. O que me preocupou foi o fato de tão poucos terem protestado de maneira evidente e clara.

Sei que alguns preferem debater se, afinal, Bolsonaro é mesmo um “fascista” e “genocida”; se os termos não traduzem mera “lacração”; se não faltam os requisitos históricos que definem uma coisa e outra. Assim que o genocídio (querem aspas?) dos pobres de tão pretos e pretos de tão pobres chegar ao fim —ao menos em razão da Covid-19—, prometo que topo fazer esse debate.

Enquanto pessoas morrerem asfixiadas por falta de oxigênio, na reta dos 250 mil cadáveres antes que fevereiro chegue ao fim, os que exibem tal sede de precisão busquem aí como definir um presidente que incentiva —e pratica— todos os comportamentos de risco e que sabota os meios para reduzir o contágio. Acrescentem à soma de características para chegar ao nome adequado —que seja, por ora, “O Coiso— o fato de que este mesmo presidente criou as dificuldades que estavam ao seu alcance para impedir o início da imunização.

Fascista? Atendendo, então, à objetividade dos sufixos, serviria “fascistoide”? Participou de atos que pregavam abertamente o fechamento do Congresso —ali onde a Paz Perpétua era celebrada na quarta— e do Supremo. Discursou em frente ao QG do Exército, num incentivo claro à intervenção militar.

Estranho seria que participasse de uma solenidade no Congresso sob o silêncio ou cúmplice ou acovardado de todos os parlamentares. Digamos que fosse pertinente agora um debate sobre a criação de um Selo de Origem Controlada para definir um “fascista” e um “genocida”. Ainda assim, seria incontroverso que os oposicionistas estavam obrigados a encontrar palavras para designar “O Coiso”.

Tratei até aqui de Bolsonaro e das palavras que alguns pretendem ser as historicamente incorretas para defini-lo. Esta foi também a semana em que a Lava Jato de Curitiba chegou ao fim, sob muitas lágrimas. As 105 reportagens da Vaza Jato já fizeram a anatomia da criação do Estado paralelo —que, ora vejam!, resultou justamente na eleição de Bolsonaro.

Parte do que foi recolhido pela Operação Spoofing começa a vir à luz. Reitera os descalabros e acrescenta novos assombros. Sergio Moro constituiu a própria mulher como advogada para ver se substitui Ricardo Lewandowski por Edson Fachin na relatoria do caso na esperança de que se submeta também a verdade a um apagão.

Os que se fizeram sócios da empreitada que corrompeu o direito penal no Brasil, inclusive na imprensa, corrompem agora os fatos para ligar o tal “desmonte da Lava Jato” —que não existe— aos supostos interesses de Bolsonaro. Trata-se de uma fraude histórica, intelectual e moral.

Precisamos recuperar, na vida pública, uma hierarquia do saber. Proponho a Constituição e o devido processo legal acima de todos. Que tal?


George Gurgel: O Brasil real e o desejado - As eleições na Câmara e no Senado

Há um mal estar na sociedade brasileira.

As eleições na Câmara e no Senado Federal constituem a mais perfeita tradução do Brasil real, da elite política que temos em todas as esferas da Republica, eleita para nos representar.

Os episódios revelados nos meios de comunicação, durante o recente processo eleitoral, atestam a maneira subalterna como se comporta o Legislativo frente ao Executivo, refletindo uma práxis política que se repete há décadas, ad náusea, nos poderes republicanos. 

Essas eleições evidenciaram, mais uma vez, de maneira inequívoca, quais são os valores culturais, econômicos e sociais da nossa elite política, demonstrando a distância dessa elite política com os anseios da população que a elegeu.

O que já foi revelado, nessas eleições recentes no Congresso Nacional, deve ter a repulsa de toda a sociedade brasileira. O Governo Bolsonaro cooptou setores do campo democrático, que se diziam oposição, vencendo nas duas casas legislativas, com resultados além das expectativas do próprio Governo Federal.

Prevaleceu o espírito de sobrevivência política de cada parlamentar, de olho nas eleições de 2022, preocupados com os resultados eleitorais de 2020: a renovação dos mandatos é uma tendência a ser considerada no cenário político brasileiro, em função do descrédito da população nos partidos e na maneira de fazer política das suas tradicionais lideranças.

O que queremos e podemos fazer diante deste cenário político após as eleições na Câmara e no Senado, frente ao Governo Bolsonaro? Qual o Brasil desejado?

As forças políticas responsáveis pela transição e reconstrução da democracia brasileira, conquistas consolidadas na Constituição de 1988, não foram capazes de  uma unidade política e programática que nos levasse a um projeto de nação moderna, socialmente inclusiva, econômica e ambientalmente sustentável.

São os nossos desafios históricos que continuam atuais. A República está por ser construída. Qual Federação?

Impõe-se o fortalecimento e a autonomia dos poderes republicanos que continuam subordinados aos ditames do Executivo federal, o que vem acontecendo desde o Governo Sarney, dificultando o avanço da democracia e as reformas tão necessárias à sociedade brasileira.

Entre avanços e recuos, com discursos e narrativas radicais, a maioria do espectro político acabou de maneira pragmática se encontrando nessas eleições, apoiando o Governo Bolsonaro, na Câmara e no Senado.

O campo democrático, de oposição, foi derrotado nessa disputa eleitoral. Continua a ser desafiado a construir sua unidade programática para uma efetiva ação política, tendo como principal objetivo apresentar uma alternativa ao Bolsonarismo, na disputa das eleições de 2022.

A Cidadania deve continuar comprometida com o enfrentamento sistemático dos graves problemas sociais, econômicos e ambientais vividos no cotidiano da sociedade, agravados com a pandemia que se estende neste ano de 2021, cujo recrudescimento deve preocupar a todos nós – cada um tem que fazer a sua parte, até que toda a população esteja vacinada.

Portanto, frente a esta realidade, continuamos a ser desafiados, em 2021, a persistir e continuar a trabalhar para superar a triste e desoladora realidade social de uma parcela majoritária da população brasileira, desrespeitada nos seus direitos básicos, consolidados na nossa Constituição, a saber: de ir e vir, moradia, educação, saúde, trabalho e renda, ainda uma agenda primordial, a ser conquistada.

Quais as questões estruturantes a serem consideradas neste contexto frente a essa realidade?   

No Brasil, a melhoria da qualidade das políticas públicas atuais e as que deveriam ser construídas levaria  às mudanças políticas, econômicas e sociais na medida em que sejam construídos novos conteúdos e pactos entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais.

A ampliação da Democracia e a consequente participação da Cidadania são instrumentos fundamentais no caminho dessas mudanças desejadas.

Os brasileiros estão convocados a ter uma efetiva participação na defesa e na ampliação dessas conquistas democráticas, cobrando a necessária autonomia e harmonia entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

A insustentabilidade política, econômica e social, em que vivemos no Brasil, reflete as disfuncionalidades e limites das atuais estruturas políticas, econômicas e sociais responsáveis pela formulação e implementação dessas políticas nacionais.

        O funcionamento e as relações estabelecidas entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, atualmente no Brasil, é a mais completa tradução dessas disfuncionalidades. A autonomia dos entes federativos em relação ao corporativismo do Estado e do Mercado é um dos desafios a serem perseguidos no dia a dia da sociedade brasileira.

A construção e os resultados de uma Governança Democrática estão relacionados com os meios, os modos de construção, de implementação das políticas nacionais e regionais, em cooperação com os entes da federação nos planos nacional, estadual e municipal.

Os avanços da Democracia, com conquistas efetivas para toda a sociedade, vão acontecer na medida que for possível a construção de pactos políticos, econômicos e sociais que garantam a construção e a implementação de políticas públicas inclusivas para a maioria dos brasileiros.    

Ainda é importante destacar, nesse contexto, os limites do próprio Estado Nacional, em uma sociedade cada vez mais global, ampliados com as crises política, econômica, social e de valores que estamos enfrentando nesses tempos de pandemia, evidenciando a interdependência e a complementariedade entre o Nacional e o Internacional, desafiando o Brasil a um maior protagonismo no cenário global, como caminho de afirmação da nossa nacionalidade.

Assim, os presidentes recém-eleitos para a Câmara dos Deputados e para o Senado Federal, assim como seus pares, devem ter a consciência e a dimensão das suas responsabilidades constitucionais frente à sociedade brasileira, devendo estar comprometidos com a autonomia dos poderes Executivo, Legislativo e  Judiciário, pré-requisitos de funcionamento de uma República Democrática, almejada por todos nós.

Há muito, alguns representantes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são fortemente criticados nas redes sociais - alguns, inclusive, não podem circular nas ruas das cidades brasileiras.  Hoje, regra geral, existe um clima de desconfiança permanente em relação ao comportamento de uma boa parte de seus integrantes, particularmente em relação a alguns membros do Judiciário.  

Portanto, sempre é bom lembrar: os eleitos nas distintas esferas da Federação são para representar os interesses de toda a Sociedade, garantindo o funcionamento do Estado de Direito e da Constituição. A Sociedade e o exercício pleno da Cidadania são os principais instrumentos de pressão e vigilância frente a essa preocupante realidade  vivida pelos poderes da Federação brasileira.

Há que haver uma maior articulação entre os discursos e as ações das forças democráticas no Congresso Nacional e na sociedade em geral, no caminho de uma alternativa para a superação da crise política, econômica,  social e de valores que estamos vivendo,   buscando o fortalecimento da Sociedade Civil, no caminho da consolidação e ampliação da Democracia, construindo as bases de um novo pacto político, econômico e social, vislumbrando as eleições de  2022.  

Seremos capazes?

*George Gurgel, Universidade Federal da Bahia, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade.


Sergio Lamucci: A volta do auxílio emergencial

Retorno faz sentido, com piora da pandemia e vacinação incerta

A volta do auxílio emergencial se torna cada vez mais provável, devido ao recrudescimento da pandemia e ao ritmo lento e incerto da vacinação contra a covid-19. A economia brasileira vai sofrer o golpe dessa combinação, devendo encolher no primeiro trimestre. O aumento do número de casos e mortes começa a levar a medidas mais fortes de restrições à mobilidade, como as anunciadas pelo governo de São Paulo na sexta-feira. As perspectivas para o mercado de trabalho, que já não eram das melhores, tendem a piorar, afetando o consumo das famílias. O quadro também é negativo para o investimento, dadas as incertezas sobre a vacinação e a possibilidade de que outros Estados e municípios adotem novas medidas de isolamento social, ainda que menos rigorosas do que as implementadas em março e abril do ano passado.

Com isso, as perspectivas para o crescimento em 2021 começaram a se deteriorar, e números na casa de 2% a 3% já aparecem em algumas estimativas de bancos e consultorias, apesar da elevada herança estatística que 2020 deixará para este ano. Nesse ambiente, cresce a pressão pela renovação do auxílio, uma medida que faz sentido, num ambiente de desemprego altíssimo. A volta do benefício, porém, precisa ser muito bem comunicada e acompanhada por medidas que indiquem o compromisso com a sustentabilidade fiscal, com reformas que enfrentem o aumento das despesas obrigatórias, como os gastos com pessoal.

O Ministério da Economia resiste ao retorno do auxílio, encerrado em dezembro. O risco é ser atropelado pelo Congresso e ver aprovado um benefício de valor mais alto, por um prazo longo e para um público mais amplo do que o recomendável num momento em que a dívida bruta é de quase 90% do PIB, enquanto a média dos emergentes é um pouco menor que 63% do PIB.

Na declaração da equipe do Fundo Monetário Internacional (FMI) ao fim da missão que fez o raio-X da economia brasileira no ano passado, divulgada em outubro, ficou evidente o dilema para a política fiscal do país. O Fundo elogiou o compromisso do governo com o teto de gastos e ressaltou a importância do mecanismo. Ao mesmo tempo, afirmou que, se “a evolução das condições sanitárias, econômicas e sociais” fosse “pior do que o esperado pelas autoridades”, elas deveriam “estar preparadas a prestar mais apoio fiscal”.

O FMI sugeriu a realocação de recursos dentro do teto, para fortalecer a rede de proteção social de modo permanente. Essa teria sido a melhor solução, unificando programas sociais como o Bolsa Família, o abono salarial, o salário família e o seguro-defeso, conforme a proposta dos economistas Fernando Veloso, Marcos Mendes e Vinicius Botelho. Isso exigiria, porém, a disposição para tomar medidas corajosas e politicamente difíceis, algo que não faz parte do repertório do presidente Jair Bolsonaro.

O problema é que a pandemia não acabou com o ano-calendário, como tem dito o diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), Felipe Salto. Há uma segunda onda em curso, provavelmente mais grave que a primeira, o que também se observa em diversos outros países, com impactos sobre o ritmo de crescimento global no primeiro semestre. O dramático no Brasil é a atitude de Bolsonaro, que não reconhece a gravidade da doença, questiona a eficácia das vacinas e não planeja a imunização.

Com o recrudescimento da epidemia e as incertezas sobre a vacinação, retirar os estímulos fiscais abruptamente tende a levar a uma desaceleração expressiva da economia. Sem o auxílio, haverá uma queda de renda significativa dos grupos mais vulneráveis. Isso justifica mais apoio fiscal, como recomendado pelo próprio FMI, insuspeito de leniência fiscal. Além da volta do auxílio, podem ser necessários mais recursos para a saúde e para a compra de vacinas.

A questão é como fazer isso num país que tem de fato uma situação fiscal delicada. O comportamento do câmbio e das taxas de juros de longo prazo reflete a incerteza sobre a trajetória das contas públicas. A renovação do auxílio e eventuais novos gastos com saúde precisam ser comunicados com cuidado, ou o impacto sobre as condições financeiras vai dificultar ainda mais a retomada da atividade. Além disso, um câmbio muito desvalorizado colocará mais pressão sobre os preços, podendo exigir do Banco Central (BC) elevações mais fortes dos juros.

A situação exige uma sintonia fina. É preciso cautela ao retirar os estímulos fiscais, sem que isso seja visto como o fim do compromisso com o ajuste das contas públicas. Uma opção é usar a abertura de créditos extraordinários para financiar despesas como o auxílio. Salto observa que se trata de um instituto previsto na Constituição e que pode ser utilizado mesmo sem a presença do decreto do estado de calamidade pública, “como acontece em maior ou menor grau todo ano”. Segundo ele, o crédito extraordinário, desse modo, pode resolver a questão do teto, que limita o crescimento das despesas da União à inflação.

“O problema é que o déficit público previsto já é alto”, diz Salto. “Para o déficit, são necessárias outras medidas, ou pelo menos contas mostrando como ele seria afetado e como o país voltará, e em que prazo, à estabilidade da relação dívida/PIB.” Com isso, o crédito extraordinário poderia ser um caminho para a volta do auxílio, desde que acompanhado por outras medidas mostrando a sustentabilidade da dívida, como reformas que apontem para redução de gastos obrigatórios, caso das despesas com pessoal, avalia Salto, ressaltando que essa é uma das opções na mesa. “A falta de planejamento é um pecado mortal quando se está numa crise como esta. Em tempos normais, passa como um pecado venial, mas, no quadro atual, tudo muda de figura.”

O orçamento deste ano, ainda não aprovado, não tem espaço para mais gastos. O risco de paralisação dos serviços públicos já é elevado mesmo sem novas despesas, diz Salto. Para acomodar novos gastos, uma outra saída terá que ser adotada, além do corte de despesas discricionárias, como o custeio da máquina e os investimentos.

Os candidatos à presidência da Câmara e do Senado têm se mostrado a favor da volta do auxílio, em maior ou menor grau, indicando que ele deverá ser renovado. O benefício terá que ser menor que os R$ 600 que vigoraram de abril a agosto - de setembro a dezembro, o valor foi de R$ 300 -, e voltado a um grupo mais restrito. Em alguns meses, ele chegou a quase 68 milhões de pessoas. O prazo também não poderá ser dos mais longos.

Para que seja viável um auxílio por um período menor, porém, é fundamental que a vacinação deslanche. Sem isso, a economia não voltará à normalidade.


Catarina Rochamonte: Direita sem Bolsonaro

Liberais e conservadores precisam avançar pelo caminho da racionalidade que exige o respeito às instituições

O campo liberal-conservador engajou-se outrora na campanha pelo impeachment de uma presidente de esquerda. Agora, não faltam razões para se posicionar contra um presidente de direita que fez retroceder as pautas anticorrupção e que —em momento de clamor nacional devido à pandemia— após ter demitido dois ministros da Saúde que não se curvaram às suas idiossincrasias, ocupa-se em questionar a eficácia das vacinas, atrasar sua compra, reforçar narrativas conspiratórias que põem em xeque as instituições, alimentar a histeria nas redes sociais e bajular com oferta de cargos a ala fisiológica e podre da política (o tal do establishment que prometeu combater).

Ainda pior que Bolsonaro é o bolsonarismo, ideologia que, à semelhança do lulismo, mantém-se com base no culto à personalidade do líder. Esse fanatismo bizarro —que foi a estranha resposta dos brasileiros à hipocrisia da esquerda, aos excessos do progressismo e à avassaladora corrupção da era petista— tem se expressado pela incivilidade, boçalidade, selvageria e intolerância.

Os liberais e os conservadores precisam se afastar dessa ideologia malsã e avançar pelo caminho da racionalidade que exige o respeito às instituições e a preservação da saúde coletiva, ameaçada pela incúria presidencial. Caso contrário, a centro-direita deixará a esquerda oportunista confortável na prática da sua política nebulosa, que levanta a bandeira do impeachment ao mesmo tempo em que PT e PDT fazem o jogo de Bolsonaro, apoiando seu candidato a presidente do Senado.

Felizmente cresce o engajamento nesse sentido, como se pode notar pelo abaixo-assinado lançado por João Amoêdo, Vem pra Rua e MBL e pela carreata realizada domingo (24), em prol do impeachment. É lamentável, porém, que nomes respeitáveis, fortes e promissores do espectro político mais à direita permaneçam reticentes. A direita liberal humanista não pode restar ao lado de Bolsonaro com os sectários de sempre e os cúmplices de ocasião.


João Gabriel de Lima: A Terra volta a ser redonda. Hora de o Brasil embarcar

Foi semana de benditas obviedades. Só falta o Brasil ajustar sua rotação com a do planeta

Stefani Germanotta, a Lady Gaga, cantou o hino dos Estados UnidosJennifer Lopez deu um twist latino à sua interpretação de God Bless America; e, no encerramento, a poeta Amanda Gorman, de 22 anos, declamou versos que resumem o sentimento da nova geração. Na posse do presidente Joe Biden, as três mulheres nos lembraram que os Estados Unidos são um país ítalo-americano, hispano-americano, afro-americano – sem contar outras etnias e misturas. Muito de sua força e riqueza se deve à bênção de ser uma nação de imigrantes.

Parece óbvio. É como dizer que a Terra é redonda.

No momento-chave de seu discurso, Biden disse: “Nós devemos tratar os outros com dignidade e respeito. Juntar forças, parar o tiroteio e baixar a temperatura. Sem unidade não há paz – só amargor e fúria. Não há progresso – só ultraje exasperante. Não há nação – só um estado de caos”.

Dignidade e respeito. Condições óbvias para o debate inteligente nas democracias. A Terra é redonda.

No mesmo dia da posse de Biden, Portugal assumiu a presidência rotativa do Conselho da União Europeia. Em Bruxelas, o primeiro-ministro António Costa traçou as linhas gerais dos próximos seis meses: foco no social, na economia digital e no combate às alterações no clima. “Temos um planeta para proteger, e não podemos perder mais tempo,” disse Costa em seu discurso.

A Terra é redonda, e temos que cuidar dela.

Aqui em Portugal vivemos o momento mais dramático da pandemia. O governo decretou confinamento total. A trajetória da covid no país confirma o mantra dos cientistas: as duas únicas formas de controlar uma pandemia são vacina e distanciamento social. Portugal achatou a curva quando optou pelo confinamento, em março passado e no início de dezembro. Quando abriu mão dele, no “alívio” de Natal e ano-novo, deu-se o inverso. Turbinados pela variante inglesa, os casos explodiram.

Seguir o que diz a ciência: outra obviedade.

Enquanto isso, no Brasil, as obviedades são colocadas em dúvida todos os dias. O distanciamento social é minimizado, a floresta que ajudaria a deter a mudança climática enfrenta recordes de desmatamento e o “tiroteio” e o “ultraje” se tornam a regra em Brasília. Em ensaio publicado recentemente, o cientista político José Álvaro Moisés – personagem do minipodcast da semana – examina as razões de vivermos em permanente crise política. Uma delas pode ser o sistema de governo. Segundo Moisés, o semipresidencialismo – que vigora em Portugal e na França – distribui melhor o poder e facilita a negociação.

Portugal vai às urnas neste domingo para escolher o presidente. O atual ocupante do cargo, Marcelo Rebelo de Sousa, é o favorito à reeleição. Marcelo, que os portugueses chamam pelo primeiro nome, é de centro-direita, e divide o poder com o primeiro-ministro Costa, de centro-esquerda. Eles conversam “com dignidade e respeito” – e, pela saúde dos cidadãos, foram capazes de unificar o discurso durante a pandemia, em pleno tiroteio eleitoral.

Respeito aos que pensam diferente e aos que vêm de países diferentes. Respeito à ciência. Foco no social num momento em que muitos ficam sem empregos. Foco no combate à mudança climática – se ela ocorrer, nada restará para nossos filhos e netos.

Foi uma semana de benditas obviedades. Como se a Terra, depois de um momento de loucura, tivesse voltado a ser redonda.

Só falta o Brasil ajustar sua rotação com a do planeta.


Monica de Bolle: A posse e seus símbolos

Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos

Foram quatro anos de “meu jeito”. Se “meu jeito” tivesse alguma relação com o mundo real, talvez esses anos tivessem sido ligeiramente mais toleráveis, ainda que não muito menos terríveis. Mas, não. O jeito de Trump foi constituir uma realidade alternativa desde o início. Fatos alternativos, a expressão e a insistência na fantasia, começaram no dia da posse, e ele agiu todos os dias para implantá-los. Pois hoje, no tão esperado dia da partida do pior presidente dos Estados Unidos na história recente, o avião decolou para Mar-a-Lago ao som de “My way”, na voz de Frank Sinatra. Assisti à cena com uma alegria feroz e uma ponta de decepção, porque adoro Frank Sinatra. Mas esse foi tão somente o início do dia.

Na sequência da partida, que fez pensar como ética e estética se relacionam, vieram outras cenas. Solenes, esperançosas, alegres, até, apesar da tragédia, das mortes, das desavenças, de uma crueldade orgulhosa. Como normalmente ocorre em solenidades, foram vários os momentos marcantes da posse de Joe Biden e não tenho a pretensão de cobrir todo o seu simbolismo. O Mall, área central de Washington, D.C., que reúne seus monumentos e prédios históricos, parques, museus e galerias, aparecia na TV coberto de bandeiras dos Estados Unidos. Cada uma representava uma pessoa morta pelo vírus causador da Covid-19. Foi uma forma simples e eficaz de comunicar o valor da vida individual para o país. Lady Gaga, um ícone LGBT, cantou o hino com seu estilo inigualável. Já a cantora de origem porto-riquenha Jennifer Lopez clamou “justicia para todos”, após quatro anos de injúrias de Trump contra negros e latinos. Kamala Harris se tornou, no ato, a primeira vice-presidente: uma mulher, negra e filha de imigrantes. Joe Biden e seu discurso em prol da democracia, da união e da justiça foi radicalmente distinto das alusões à carnificina feitas por Trump há 4 anos.

Quem capturou a atenção na cerimônia, entretanto, foi Amanda Gorman, jovem poetisa de 22 anos, que declamou seu poema “O monte que galgamos” com alegria e bravura. Foi emocionante, e não houve sentimentalismo em suas palavras ou sua postura. Por isso foi tão impactante. Como ela disse, “nós, sucessores de um país e de uma época em que uma menina negra magricela, descendente de escravos e criada por uma mãe solteira pode sonhar em ser presidente, apenas para se ver recitando para um presidente”. Há promessa e poesia nessas palavras: promessa da política, pelo novo que irrompe anunciando aos que vieram antes que o mundo não perecerá, e poesia da política também. O poema de Gorman deixou claro que um ciclo se encerrava para que outro se abrisse. Novo. O novo como cumprimento da promessa, ainda que em situação de crise.

Os ritos pareciam encerrar a transição que se iniciou logo após a eleição. A seu término, Biden partiu para a Casa Branca com o propósito de desfazer males feitos por Trump.

O novo presidente vinculou os Estados Unidos de novo ao Acordo do Clima de Paris, tomou medidas para frear a pandemia e assinou decretos se comprometendo com a proteção social.

Comunicou por atos três pilares de seu governo: a proteção social, o meio ambiente e a saúde pública, além do multilateralismo. Sem ter tido muito tempo para refletir sobre o que tudo isso representa, fui chamada para uma entrevista. Nela me perguntaram: “Como ficam as relações entre o Brasil e os Estados Unidos”. Relações? Que relações? O Brasil de Bolsonaro tem relações frágeis com uns Estados Unidos imaginários, pois o amigo fantasia do presidente brasileiro, Trump-My-Way, jamais deu a mínima para ele ou para o país. De bate-pronto, respondi: vejamos os decretos que Biden acaba de assinar, os compromissos que acaba de assumir e os comparemos com o Brasil. Proteção social? Bolsonaro extinguiu o auxílio emergencial. Meio ambiente? Bolsonaro tem criado condições propícias ao desmatamento, com desmonte institucional e restrições orçamentárias. Saúde pública? Bolsonaro deixou morrerem centenas de milhares de brasileiros e fez de tudo para que a pandemia chegasse a seu pior momento. Multilateralismo? Seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto, é, ao mesmo tempo, antiglobalista e árduo defensor de um liberalismo econômico sem peias. Trata-se da política do “E daí?” em todas as áreas que são caras para Biden. Portanto, que relação Brasil-EUA?

É preciso muito pensar. Pensar nesse 20 de janeiro, nas promessas da política. Cultivar esse momento em que as possibilidades são muitas e estão em aberto a quem tem disposição para disputá-las.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Ricardo Noblat: Acendeu a luz vermelha para a reeleição de Bolsonaro

Se tiver impeachment ainda vai demorar

Uma notícia boa para o presidente Jair Bolsonaro: a Câmara dos Deputados não deveria abrir um processo de impeachment contra ele. É o que pensam 53% das 2.030 pessoas em todo o Brasil entrevistadas por telefone pelo Datafolha nos últimos dias 20 e 21. O percentual era de 50% no início de dezembro. Os que defendiam o impeachment caíram de 46% para 42%. Parabéns, presidente!

Quanto ao mais descoberto pelo Datafolha, só tem notícia ruim – com efeito, em linha com pesquisas divulgadas nesta semana pelos institutos Paraná, Ipespe e IDEIA. Subiu de 32% para 40% os que avaliam o desempenho de Bolsonaro como ruim ou péssimo. Os que avaliam como ótimo e bom diminuíram de 37% para 31%. É a maior queda desde o começo do seu governo há dois anos.

Metade dos brasileiros considera que ele não tem capacidade para governar e não merece confiança. Nunca confiam em sua palavra 41% (eram 37% em dezembro) dos entrevistados, enquanto 38% o fazem às vezes (eram 39%) e 19%, sempre (eram 21%). Também pudera. Bolsonaro, hoje, diz uma coisa e amanhã o seu oposto. Fala mal das vacinas, depois as compra e fala mal outra vez.

As pessoas que têm medo de pegar o novo coronavírus estão entre as que mais rejeitam o presidente. A rejeição a ele entre os que têm muito medo de ser infectados pelo vírus saltou de 41% em dezembro para 51%. A aprovação caiu de 27% para 20%. Entre quem tem um pouco de medo de infectar-se, a rejeição subiu de 30% para 37%. A parceria com o vírus fez mal a ele.

O presidente é mais rejeitado entre os que ganham mais de 10 salários mínimos (52%), com curso superior (50%), mulheres e jovens de 16 a 24 anos (46%). Os mais ricos e instruídos são os que menos confiam nele, bem como os jovens. Os empresários – sabe como é… – seguem sendo o grupo profissional mais fiel a Bolsonaro. 58% acreditam na sua capacidade de governar.

O que explica a quantidade de más notícias para o presidente? O recrudescimento da pandemia com o aumento de casos e de mortes em todo o país, a crise da falta de oxigênio em Manaus, a performance desastrosa do governo neste início da vacinação em massa e o fim do pagamento do auxílio de emergência em 31 de dezembro aos brasileiros mais pobres.

No Nordeste, por exemplo, a rejeição a Bolsonaro passou de 34% para 43%, e tende a aumentar. Em junho do ano passado foi de 52%. O maior tombo ocorreu no Norte, onde fica Manaus, e no Centro-Oeste, região que sempre foi um reduto dos bolsonaristas. Bolsonaro amarga 44% de rejeição no Sudeste, a região mais populosa do Brasil, 10 pontos percentuais a mais do que no Sul.

Sempre poderia ser pior, e é nisso que se agarram os ministros de Bolsonaro e os políticos do Centrão gulosos por mais cargos no governo. Quanto mais crescerem as dificuldades para o presidente renovar seu mandato, mais o Centrão se oferecerá para ajudá-lo. Caso se convença mais adiante que Bolsonaro será derrotado, o Centrão negociará com quem possa se eleger.

Quem dispensa máscara e se aglomera é burro

Desabafo de prefeitos aflitos

Nas últimas 48 horas, dois prefeitos de grandes cidades perderam a paciência e chamaram de burros os que dispensam o uso de máscara, engrossam aglomerações e não querem se vacinar..

Um foi Alexandre Kalil (PSD), prefeito reeleito de Belo Horizonte no primeiro turno com a maior votação do país – 63,36% dos votos válidos. Foi curto e grosso, bem ao seu estilo:

 “Eu confio 200% na vacina, eu confio na ciência. Nós temos uma tradição de vacinas no Brasil. Todo mundo tem de se vacinar, quem não quer é negacionista, idiota e burro.”

O outro, Eduardo Paes (DEM), prefeito do Rio, eleito no segundo turno com 64,7% dos votos válidos, quase o dobro de Marcelo Crivella (Republicanos), seu adversário. Disse Paes:

“Para vocês que sabem que não vão pisar nas baladas, nas festas, deixem de ser burros. Vocês estão matando as pessoas”.

No Rio, todas as 33 Regiões Administrativas da cidade têm, agora, risco alto de contágio. Eram 25 na semana passada. Em São Paulo, só os serviços essenciais poderão abrir nos fins de semana.

Enquanto isso… No dia em que o governo federal celebrou a chegada de 2 milhões de doses de  vacinas da Índia, o presidente Jair Bolsonaro voltou a falar mal das vacinas. Faz sentido?

Antes, Bolsonaro falava mal apenas da Coronavac, a vacina chinesa bancada pelo governador João Doria (PSDB), de São Paulo, e produzida pelo Instituto Butantan. Agora, não faz distinção.

Esta semana, à falta do que fazer ou de querer fazer alguma coisa, Bolsonaro passou um largo pedaço de tarde assistindo ao treino do Flamengo que enfrentaria o Palmeiras em Brasília. Foi vaiado.

Se a Índia não se dispuser a vender mais vacinas da Astra/Zêneca, as que chegaram ontem aqui darão para imunizar apenas 1 milhão de pessoas. São duas doses por pessoa.

A China prometeu doar 1.700 cilindros de oxigênio para que Manaus volte a respirar relativamente em paz. Sobre a remessa de insumos para a fabricação da Coronavc, nada por ora.

Nesse ritmo, o Brasil entrará em 2022 vacinando e com mais mortos e doentes. Culpa do governo federal – e também dos milhões de burros que pastam por aí.