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Bernardo Mello Franco: Suprema loteria: azar de Lula, sorte de Dirceu
Antes de ser preso pela última vez, em maio, José Dirceu organizou um jantar de despedida. Aos 72 anos, o ex-ministro temia não sair nunca mais da cadeia. Hoje se vê que ele exagerou no pessimismo. Logo mais, deve receber amigos em casa para assistir ao duelo entre Brasil e Sérvia.
A reviravolta aconteceu na Segunda Turma do STF, onde se decide o futuro dos réus da Lava-Jato. Nos últimos tempos, o colegiado tem sido mais generoso com os acusados do que com os acusadores. Ontem, deu decisões favoráveis a políticos do PT, do PSDB e do PP.
O caso de Dirceu seguiu a regra. O relator Edson Fachin, que tem sofrido derrotas em série, ficou isolado mais uma vez. Os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski aprovaram a soltura do petista por três votos a um. O decano Celso de Mello não estava presente.
A sessão foi tensa. Ao perceber que perderia a disputa, Fachin pediu vista do processo, numa tentativa de adiar a conclusão do julgamento e, ao mesmo tempo, a libertação do ex-chefe da Casa Civil.
Toffoli se antecipou e concedeu o habeas corpus “de ofício”, alegando que a situação era excepcional. Os dois ministros engrenaram uma discussão, que por pouco não descambou em novo bate-boca.
O resultado deu um sinal claro de que a Segunda Turma estava pronta para tirar Lula da cadeia. Isso não ocorreu ontem devido a outra manobra explícita de Fachin. Para evitar a derrota, o ministro direcionou o recurso do ex-presidente ao plenário do tribunal. Desta vez, conseguiu empurrar a decisão para agosto, o que manterá o petista preso em Curitiba.
Dirceu teve sorte, Lula teve azar. Assim tem se decidido a vida dos réus no Supremo, onde decisões importantes passaram a obedecer à lógica da loteria. A depender do sorteio inicial, os advogados costumam saber de antemão o que vai acontecer com seus clientes.
Alguns ministros falam abertamente sobre a divisão da Corte. A Primeira Turma, mais rígida, é chamada de “câmara de gás”. A Segunda Turma, mais garantista, de “Jardim do Éden". Quase todos fazem política com a toga, o que aumenta a sensação de que a balança da Justiça anda desregulada.
Vera Magalhães: 'Tinindo nos cascos'
A visível hostilidade com que Lewandowski e companhia trataram Fachin mostra que a trinca da Segundona estava disposta a estender o puxadinho para Dirceu ao ex-presidente Lula
No dia 28 de agosto de 2007, flagrei um desabafo telefônico do ministro Ricardo Lewandowski, do STF, com seu irmão, Marcelo. Jantando num restaurante em Brasília, ele dizia ao interlocutor, pelo celular, que o Supremo havia recebido a denúncia do mensalão, naquele dia, porque votara “com a faca no pescoço” graças à pressão da imprensa. Antes de jornais revelarem o teor de conversas dos ministros combinando votos pelo sistema interno de mensagens da corte, a tendência, dizia Lewandowski, era “amaciar para o Dirceu”. Ele mesmo, disse ao irmão, estava “tinindo nos cascos” para não abrir a ação penal contra o ex-ministro petista.
Passados 11 anos, e duas condenações de Dirceu depois, o que se viu foi um Lewandowski de novo “tinindo nos cascos” na Segunda Turma da Corte, acompanhado de Dias Toffoli e de Gilmar Mendes – que, à época do mensalão, não formava com a dupla na maioria dos votos.
O que o trio fez não tem nada a ver com garantismo constitucional. Foi uma baciada de puxadinhos do qual o exótico habeas corpus de ofício – ou seja, sem pedido da defesa – para Dirceu à revelia de um pedido de vista foi a cereja do bolo.
A visível hostilidade com que Lewandowski e companhia trataram Fachin, que na véspera remetera para apreciação do Ministério Público Federal, e de lá ao plenário, recurso de Lula, mostra que a trinca da Segundona estava disposta a estender o puxadinho ao ex-presidente. Isso a despeito da fragilidade jurídica de pedir a soltura do petista depois de o provimento do recurso extraordinário ter sido negado pelo TRF-4.
De que garantismo se pode falar diante de uma clara tentativa de driblar a vontade do plenário, manifestada por 6 a 5 quando da análise do HC de Lula em abril, e a jurisprudência da Corte a favor da execução provisória da pena a partir da condenação em segunda instância, fixada desde 2016 e reiterada sucessivas vezes?
Também se trata de manobra a decisão de Fachin, isolado na Turma, mandar ao plenário o caso de Lula – o que Lewandowski chamou de “usurpação de poderes” do colegiado.
O que o Supremo tem de fazer urgentemente, sob pena de continuar a encenar esse espetáculo triste de desmoralização diária, é unificar os entendimentos e os procedimentos. O saldão de recesso da Segundona mostra que é urgente que os ministros deem um passo atrás no ativismo, de todos os lados.
DISCURSO X PRÁTICA
Bolsonaro abre flancos para os adversários
Jair Bolsonaro vem resistindo às investidas dos adversários e mostrando resiliência nos índices de intenção de votos. Dois movimentos recentes do deputado do PSL, no entanto, abrem flancos pelos quais ele pode ser alvejado. Um deles foi dizer em discurso gravado que irá a “todos os debates televisivos”. Basta não ir a um para Bolsonaro ser desmentido da bravata pelos rivais. O outro foi o pedido de casamento ao PR. Recentemente, em entrevista à rádio Jovem Pan, Bolsonaro disse que faria uma aliança com o PR do senador Magno Malta, não com o do mensaleiro Valdemar Costa Neto. Falácia. O PR é uma repartição com um dono: Valdemar. Qualquer acordo que faça de Malta vice de Bolsonaro passará pelo carimbo do cacique. Isso põe em xeque o discurso de Bolsonaro de que não transige com a corrupção. Mostra um candidato disposto a negociar com siglas envolvidas em escândalos, em nome de tempo de TV e estrutura de campanha. Mais velha política impossível.
Luiz Carlos Azedo: Lula, Dirceu e Palocci
O mito fundador do PT foi a ideia de um partido operário que chegasse ao poder pela via eleitoral e fosse capaz de construir uma alternativa socialista com base na democracia. Reuniu em torno de um líder sindical operário, que aparecera na cena política nacional com a eclosão das greves dos metalúrgicos do ABC, em 1982, correntes de esquerda que haviam participado da luta armada, lideranças estudantis, o clero progressista e intelectuais marxistas que divergiam da linha do velho PCB, que aderiu ao reformismo, e sua antiga dissidência stalinista, o PCdoB. A fundação do PT foi viabilizada na brecha aberta pela reforma partidária de João Figueiredo, em 1979, enquanto a fracassada concorrência comunista somente conquistou a legalidade em 1985, em razão da estratégia bem-sucedida de abertura gradual e segura adotada pelos militares para se retirar do poder, cujo nó górdio foi a anistia ampla, mas recíproca, ou seja, dos torturadores aos ex-guerrilheiros.
O sucesso do PT foi garantido pelo ambiente favorável, tanto no plano internacional — o chamado “socialismo real” dava sinais de esgotamento na União Soviética e seus satélites do Leste europeu desde as greves operárias de Gdansk, na Polônia, e o surgimento do Solidariedade —, como no plano interno, com a crise do modelo de “capitalismo de Estado” adotado pelos militares (baseava-se no tripé investimentos estrangeiros, setor produtivo estatal e concentração de capital nacional) e as sucessivas vitórias eleitorais da oposição. O método de construção do PT foi uma inovação: a convivência pluralista entre suas correntes internas, algumas das quais oriundas de antigas organizações trotskistas ou da luta armada. O conceito que serviu de base para a essência do partido e a inspiração de seu nome, porém, não era novo, mas é o que mantém o partido unido até hoje. Tem inspiração no velho Manifesto Comunista de 1848, de Marx e Engels: a ideia do ser operário como “classe geral”, que, ao se libertar, é capaz de libertar todos os explorados e oprimidos da sociedade.
Quando o PT finalmente chegou ao poder, em 2002, a esquerda mundial estava impactada pelo fim da União Soviética e o colapso do socialismo no Leste Europeu. A ofensiva neoliberal comandada pelo presidente norte-americano Ronald Reagan e pela primeira-ministra inglesa Margareth Tatcher havia sido um sucesso. Mesmo nos países onde a social-democracia europeia era hegemônica, houve reformas do “Estado do bem-estar social”. A nova realidade imposta pela terceira revolução industrial era implacável com as velhas ideias de pleno emprego e redistribuição da riqueza pela via do setor produtivo estatal e da seguridade social. Os primeiros sinais de que uma quarta revolução estava se iniciando também não foram devidamente percebidos pela esquerda. Pelo contrário, a eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi comemorada como uma espécie de ascensão de um novo Salvador Allende, capaz de liderar uma nação em desenvolvimento no rumo do socialismo democrático. Teve tanta repercussão que o presidente democrata Barack Obama, ao receber a visita de Lula nos Estados Unidos, saudou com entusiasmo a presença do petista na cena mundial: “Esse é o cara!”.
Implosão
A eleição de Lula resultou de seu enorme carisma popular, mas também de uma estratégia eleitoral concebida e comandada por dois quadros do PT que ocupariam lugar de destaque no seu governo: os ex-ministros José Dirceu (Casa Civil) e Antonio Palocci (Fazenda). O primeiro era ex-guerrilheiro; o segundo, ex-militante trotskista da Libelu. Ambos foram responsáveis pela nova clivagem da campanha de 2002, que derrotou o candidato governista José Serra (PSDB), graças à ampliação das alianças do PT em direção às oligarquias políticas articuladas pelo ex-presidente José Sarney e dos grupos empresariais descontentes com o governo de Fernando Henrique Cardoso. Nessa operação, uma mão lavava a outra, ou seja, os grupos empresariais que desejavam se beneficiar das benesses do Estado financiavam os políticos ligados às oligarquias, o que não era nenhuma novidade, pois o PSDB e o DEM também recorriam ao mesmo expediente. A diferença foi a entrada do PT como eixo organizador de todo o sistema, o que nunca havia ocorrido antes. O resto é consequência.
Lula, Dirceu e Palocci estão muito enrolados na Operação Lava-Jato, assim como Aécio Neves e Eduardo Azeredo, do PSDB. Mesmo o presidente Michel Temer, que assumiu o poder como o impeachment de Dilma Rousseff, padece na crise ética, como outros caciques do PMDB, PP, DEM etc. Entretanto, Lula é o único cuja liderança ainda não foi parar no fundo do poço. A explicação para isso é a resiliência de seu partido, que preserva o seu velho mito fundador como ideia-força. As injustiças sociais e desigualdades no Brasil também realimentam essa crença na base social do PT, enquanto seus intelectuais e artistas ainda acreditam na existência de uma “classe geral”, mesmo que o “ser operário” como materialização dessa tese esteja em extinção. José Dirceu acredita na energia que isso ainda desperta e na possibilidade de o PT voltar ao poder, por isso, admite mofar na prisão; Palocci, não, ao fazer sua delação premiada, para se livrar da cadeia, se dispôs a implodir o que restou do partido como encarnação desse mito fundador.