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Nova ofensiva de Bolsonaro contra Moraes amplia abismo entre Poderes
Alex Mirkhan, Brasil de Fato*
A queixa-crime apresentada por Jair Bolsonaro contra o ministro Alexandre de Moraes, nesta segunda-feira (16), deflagrou uma nova crise na sua já conturbada relação com o Superior Tribunal Federal (STF). Embora a alegação de abuso de autoridade tenha sido rechaçada apenas dois dias depois, o clima continua tenso entre os dois poderes da República, trazendo ainda mais preocupação com os rumos das eleições majoritárias deste ano.
Nesta quinta-feira (19), o presidente manteve o tom beligerante ao reclamar de “interferências indevidas” do STF durante um evento no Rio de Janeiro. Para a oposição e juristas ouvidos pelo Brasil de Fato, o ataque faz parte da estratégia de Bolsonaro para desestabilizar as instituições democráticas, criar uma “cortina de fumaça” sobre problemas mais graves para o país e uma batalha de versões sobre o sistema eleitoral.
Frente ao rolo compressor bolsonarista, que reverberou a ofensiva contra Moraes, principalmente, membros da principal Corte do país saíram em defesa do colega. Como já era esperado, nesta quarta-feira (17), o ministro Dias Toffoli, sorteado para apreciar a denúncia feita pelo presidente, rejeitou as cinco justificativas apresentadas por Bolsonaro.
“Não há nenhum fato concreto que permita ao Bolsonaro dizer que o Alexandre de Moraes está agindo com abuso de autoridade. O que ele quer, na verdade, é afastar o Alexandre de Moraes de todos os seus processos; alegar depois que há uma inimizade pessoal do ministro contra ele, o que o tornaria suspeito para julgar qualquer processo”, afirma Felippe Mendonça, advogado especialista em Direito Constitucional.
A reação de Bolsonaro, então, foi levar os argumentos de sua tese contra Moraes para seus discursos e também replicar o mesmo processo na PGR, órgão que também foi acionado nesta quarta pela ministra do STF Rosa Weber. Na contramão do presidente, a juíza encaminhou um novo pedido de investigação de condutas do presidente feita pelo deputado federal Israel Batista (PSB-DF).
Batista cobra a apuração de falas de Bolsonaro contra as urnas e o sistema eleitoral feitas durante o evento "Ato Cívico pela Liberdade de Expressão", realizado em abril no Palácio do Planalto. Na oportunidade, o discurso presidencial contou com sugestão para as Forças Armadas realizarem uma “apuração paralela” das eleições e a acusação de que os votos totais são contabilizados pelos ministros do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) dentro de “uma sala secreta”.
“Nós estamos acompanhando todas as falas do presidente, estamos anotando as falas do presidente, e adicionando à notícia-crime”, disse Batista com exclusividade ao Brasil de Fato. “O presidente já passou há muito tempo dos limites constitucionais. Ele anuncia que não pretende reconhecer o resultado da eleição. E isso por si só já precisa ser julgado, tratado com toda urgência.”
Unificação de processos no STF encurrala Bolsonaro e militares
Após conceder indulto ao deputado Daniel Silveira, em meados de abril, afrontando condenação decidida pelo próprio Moraes, a nova empreitada de Bolsonaro foi motivada pela unificação de dois inquéritos que o atingem frontalmente: um que apura a ação de milícias digitais, e outro que trata de notícias falsas sobre o sistema eleitoral, divulgadas pelo presidente durante uma live em 29 de julho de 2021.
A decisão de Moraes atende a um pedido da PGR, que alegou a necessidade de agrupar os dois inquéritos antes de tomar uma decisão sobre se procede, ou não, com a abertura do processo. A fundamentação também se baseia em informações obtidas durante investigação da Polícia Federal sobre o uso de instituições públicas para buscar informações e efetuar ataques contra as urnas e adversários políticos.
“É importante lembrar que o STF não age por conta própria, e sim a partir de estímulos. Por isso, a conduta do Moraes está totalmente em conformidade à lei”, ressalta Mendonça. O jurista também considera acertada a estratégia jurídica de somar os dois processos para tentar aumentar seu alcance e impacto. “Como são casos que se conectam, de fato é melhor que seja apurado tudo junto, analisado em conjunto, não separadamente”.
Já o advogado Cláudio Vilela, especialista em direito eleitoral, desaprova a unificação dos inquéritos. “Pela minha experiência, é possível que se perca o foco, que o enquadramento legal acabe ficando mais frágil. Acredito que você só pode unificar quando existe uma conexão absoluta, o que não vejo nesse caso, que além de tudo é complexo e envolve as mais altas autoridades do país”, defende.
Evidências apontam para crimes continuados praticados por “milícias digitais”
Para juristas, são vastas as provas colhidas sobre os casos, que também colocam na mira da PF outras autoridades do mais alto escalão do governo, como os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência da República) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional).
Outros nomes que passam a ser ameaçados são os de Alexandre Ramagem, ex-diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), do atual ministro da Justiça, Anderson Torres, e do coronel do Exército Eduardo Gomes da Silva, que também participa na live.
“A grande tarefa do inquérito que analisa essa questão é realmente mostrar o vínculo entre esses elementos e de dar nomes aos bois. De fato compreender, no caso das milícias, de onde parte essa estrutura, a mando de quem, com qual estratégia. No âmbito das fake news, de que forma isso é disseminado, se é de forma estratégica”, pontua Vilela.
A participação da Polícia Federal foi fundamental para expandir o alcance do processo de relatoria de Alexandre de Moraes. Em relatório assinado pela delegada Denisse Ribeiro, são apontados ganhos não apenas político-ideológicos, mas também monetários.
“Quanto mais polêmica e afrontosa às instituições for a mensagem, (...) maior o impacto no número de visualizações e doações, reverberando na quantidade de canais e no alcance do maior número de pessoas", diz o relatório.
Para políticos da oposição, Bolsonaro quer melar as eleições
O embate entre os poderes Executivo e Judiciário atende à estratégia governista de “criar fantasmas” para desviar de problemas que certamente trariam prejuízos na campanha de Bolsonaro à reeleição. É o que pensa parte da oposição que se manifestou sobre o assunto nas redes sociais.
O senador Fabiano Contarato (PT-ES) considera a ação por abuso de autoridade contra Moraes uma denuncia caluniosa, passível de punição. Ele também acredita que a desconfiança com as urnas é nutrida por paixões e pelo sequestro do debate racional.
“É sintomático que o principal eixo da campanha de Bolsonaro seja questionar os resultados: é como se passasse recibo antecipado da ruína de seu Governo, que será devidamente julgado e condenado pelas urnas em outubro”, afirma.
Já o deputado federal Bira do Pindaré (PSB-MA) enxerga os ataques ao STF como uma nova “cortina de fumaça”. “Enquanto o povo brasileiro enfrenta o desemprego, a fome e a miséria, o presidente da República insiste em criar um clima de beligerância, de ataque às instituições, para animar a sua claque e desviar dos verdadeiros problemas”, ataca.
*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato (Título editado)
Pablo Ortellado: A normalização de Bolsonaro
Concessões ao establishment podem desmotivar base militante do presidente
Existe um equilíbrio difícil entre o que é necessário para governar e o que é necessário para se eleger, sobretudo com plataforma populista.
A indicação de Kassio Nunes para o STF, o jantar de Bolsonaro com Toffoli e Alcolumbre e a retomada do diálogo entre Paulo Guedes e Rodrigo Maia são os sinais mais visíveis da normalização de Bolsonaro que abandonou o discurso golpista e fez sucessivas concessões ao establishment.
As duras críticas que recebeu da militância mostra que os movimentos necessários para estabelecer as bases políticas para a governabilidade podem comprometer a disposição e o entusiasmo dos apoiadores. Será que Bolsonaro vai conseguir equilibrar os pratos?
Dois fatores contribuíram para a mudança de atitude do presidente.
O primeiro foi a agressiva reação de Alexandre de Moraes que conduziu com mão dura dois processos que envolviam apoiadores de Bolsonaro —aquele que investigava os atos antidemocráticos e aquele que investigava ataques à corte nas mídias sociais.
O segundo foi a descoberta tardia e fortuita de que boas políticas públicas —sobretudo políticas sociais —rendem votos. Bolsonaro descobriu esse princípio patente por acaso, quando as circunstâncias da pandemia o forçaram a implementar um programa amplo de transferência de renda.
Bolsonaro pode ser bronco e obtuso, mas tem instinto de oportunidade.
Seu compromisso com o radicalismo online veio do reconhecimento de que sua eleição se deveu à agitação de Carlos Bolsonaro no WhatsApp. E sua nova postura parece vir do reconhecimento de que no momento em que a agitação militante foi contida, sua aprovação cresceu com a implementação do auxílio emergencial.
Mas nem tudo o que o ajuda a governar, o ajuda a se reeleger.
Como Bolsonaro bem demonstrou nas eleições de 2018, uma militância entusiasmada e enraizada na sociedade pode derrotar campanhas adversárias com mais recursos. Sua recondução em 2022 depende de uma base motivada e continuamente mobilizada.
Bolsonaro não pode se dar ao luxo de deixar a militância esmorecer. Ele vai precisar fazer como Lula, que enquanto governava com um pragmatismo desavergonhado, distribuía migalhas à militância de esquerda que passou oito anos acreditando que seu governo estava em disputa.
É o que parece que Bolsonaro já começou a fazer com a promessa feita à base evangélica de que, embora não tenha sido dessa vez, sua próxima indicação ao STF será de um ministro, não apenas evangélico, como pastor —e acendeu a fantasia dos fanáticos com a imagem de sessões do Supremo precedidas por uma oração.
*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia
Carlos Andreazza: O padrinho faz o currículo
Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar
Sabe-se — informaram-nos os senadores Ciro Nogueira, Flávio Bolsonaro e Renan Calheiros — que o presidente da República não indicou Kassio Nunes Marques ao Supremo pela qualidade de seu curriculum vitae. Informou-nos também a respeito o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, dependente do aval do STF para avançar no golpe — contra a Constituição — que lhe permitiria concorrer à reeleição, também ele um dos graúdos que, com foro e interesses naquele tribunal, apadrinham Marques; a quem, no entanto, deve-se fazer justiça. Não terá sido o primeiro escolhido assim; por virtudes outras que não derivadas do tal notório conhecimento jurídico. Aí está Dias Toffoli para encarnar o precedente exemplar.
Sejamos, porém, igualmente justos com Toffoli, indicado pelo currículo, o real, que tinha — ou: indicado pelo que era, apesar do currículo. Tempos românticos — dirá o cínico. Aqueles, tempos raiz, em que um agente político ganhava a toga por ser agente político, com missão dada (e logo a ser traída), sem precisar se inflar de pós-graduações cumpridas em cinco dias.
Ou, talvez, tempos em que a transparência não era uma cultura estabelecida — imposta mesmo — pelo avanço da tecnologia. Parece mais difícil enganar hoje; donde o cético se vê obrigado a questionar se não terá sido sempre desta maneira, séculos de currículos fraudados e protegidos por raros e modestos mecanismos de acesso à informação. Neste caso, estando correto o desconfiado (ele costuma estar certo no Brasil), faria água a ideia de que a liquefação da verdade — o processo, em pleno curso, de desmaterialização dos fatos — chegara até ao pobre currículo; essa velha afirmação, ato de crença na palavra, da história individual… Mas já divago.
Vamos ao fato. Um raro fato ainda não tornado versão: o currículo do ora desembargador federal Kassio Nunes Marques nem pôde ser examinado. Refiro-me a um currículo — rico ou pobre — que não seja obra de ficção. Não ao currículo farsante de uma autoridade contra cuja dissertação de mestrado — a cada enxadada, uma minhoca — há a acusação, bastante carnuda, de plágio. E é esse senhor — mesmo diante de tudo quanto se levanta — que Jair Bolsonaro empurra para quase 30 anos de STF. Esse senhor: indivíduo que tira de uma imaginação pobre para dar a um currículo paupérrimo. (Não sou eu, por favor, quem classifica o CV do doutor como miserável; mas ele próprio — o inchamento artificial da peça sendo a admissão da pindaíba.)
O episódio — a maneira indecorosa como processo se dá, minimizando, ignorando mesmo, a exposição da fraude curricular — é eloquente de como ter padrinho basta no Brasil patrimonialista; em cujo corpo, registre-se, Bolsonaro constituiu bem-sucedida empresa familiar. Consagração que faltou — quem se lembra? — a Carlos Alberto Decotelli, nomeado ministro da Educação, mas ceifado em decorrência de haver recorrido ao mesmo expediente do currículo criativo. Qual a diferença?
Leia-se o início da nota divulgada pela assessoria de Marques — obra-prima da distorção de valores: “Além da formação em Direito, não há requisitos mínimos acadêmicos para a posição de desembargador federal ou para a indicação ou nomeação de ministro do STF. A apresentação de um currículo, portanto, é um ato de boa fé, possibilitando à sociedade conhecer as áreas de interesse e especialização do servidor público”.
Ninguém ora questiona o cumprimento de requisitos formais nem qualquer indigência curricular, mas tão somente a difusão de um currículo falso. Se apresentar o documento — verdadeiro — seria, segundo Marques, ato de boa-fé, como definir o expediente de divulgar um fraudado?
Estamos, pois, num lugar anterior; numa fase decisivamente anterior àquela em que Toffoli, então advogado-geral da União apontado para o Supremo, teve sua miúda formação escrutinada pela sociedade. Quem dera — devaneará o sonhador conformado — estivéssemos discutindo, na página das exigências constitucionais para um ministro de corte constitucional, sobre o saber jurídico de Marques…
Não estamos. Mas estamos, sim, na página das (poucas) exigências constitucionais para um ministro de corte constitucional. Daí por que pergunto, sendo generoso no verbo: alguém — ademais um desembargador federal — que manipula o currículo tem reputação ilibada? Hein?
Essa, sonhará o delirante, deveria ser a questão fundadora — a pedra fundamental — da sabatina de Marques no Senado. Para tanto, porém, num ato de ineditismo, os senadores teriam de transformar o que conduzem, historicamente, como reunião de confrades em pleno exercício do equilíbrio impessoal entre Poderes — com o que também, implicará o cínico, fundariam um pouquinho de República entre nós.
Não fundarão.
Por fim, não sem uma nota de humor, registro a passagem curiosa em que consiste observarmos a última esperança do reacionarismo bolsonarista — por ver cair a indicação de um tipo “pouco conservador” — depender do trabalho do jornalismo profissional.
Merval Pereira: De corpo e alma
Nada mais exemplar do establishment que Bolsonaro prometeu destruir do que a reunião promovida pelo ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal em sua casa em Brasília nesse domingo. O almoço, que em qualquer país civilizado provocaria escândalo, começou às 14 horas e foi até a noite, com futebol e pizza. A fauna brasiliense presente ia de advogados que atuam no Supremo, políticos de vários matizes, presidente do TCU e, por último, mas não menos importante, o presidente da República em pessoa, que está sendo investigado pelo STF.
Bolsonaro tenta separar o corpo da alma, pelo menos finge querer. De um lado, entendeu que precisa de acordos políticos e aproximações com o Congresso e o STF; e de outro, enfrenta os radicais que querem afrontar o Congresso e o STF, na batida do início do governo, o que não é possível numa democracia.
Bolsonaro entendeu que por esse caminho ia acabar sofrendo impeachment, porque não há possibilidade de governar em guerra com o Congresso e o STF. E a guerra com os dois outros poderes pressupõe uma visão democrática deformada. Os três poderes são equivalentes, e é preciso obter uma posição majoritária através de negociações.
Como só sabe fazer a baixa política, do toma lá, dá cá, que viveu durante os 30 anos como parlamentar do baixo clero, e prometeu acabar quando Presidente, aproximou-se da ala mais conservadora do STF e do Centrão, que sempre está com todos os governos em troca de favores, poder, emprego.
Atacado por seus próprios aliados nas redes sociais, acusado de ter feito acordo com o diabo, ou seja, a esquerda, Bolsonaro tenta se defender como se sua alma estivesse onde sempre esteve, junto aos radicais da extrema-direita, enquanto seu corpo circula pelos bastidores do establishment “porque tenho que governar”.
A indicação do desembargador Kassio Marques, escolhido por Dilma Rousseff para o TRF-1, e a amizade repentina com Dias Toffoli, ex-advogado do PT, mostram para seus radicais uma promiscuidade inaceitável, embora aceitem sem grandes protestos os acordos políticos com o Centrão, que significam abandonar definitivamente o combate à corrupção.
Toffoli à frente do Supremo, cargo que deixou recentemente, marcou sua gestão pela proximidade com o presidente Bolsonaro, com quem assinou um pacto político totalmente inadequado. Os então presidentes do STF Nelson Jobim e Gilmar Mendes firmaram pactos republicanos com os poderes Executivo e Legislativo, mas com o objetivo de tornar a Justiça brasileira mais eficiente.
Nada semelhante ao pacto firmado por Dias Toffoli, à frente do Supremo, com o objetivo de apoiar as reformas que tramitam no Congresso, sobretudo a Previdenciária, que estava em discussão naquele momento. Não há na história recente exemplo de pacto político de que tenha participado o Poder Judiciário. Por uma razão muito simples: é nele que desaguarão as demandas dos que se sentirem afetados pelas reformas. O Judiciário não pode fazer pactos sobre assuntos que vai julgar.
Aliás, foi o que disse o novo presidente do Supremo, ministro Luis Fux, ontem em uma palestra. Fux ficou de fora dos convescotes de Brasília desde o primeiro dia em que o desembargador Kassio Marques foi com Bolsonaro à casa de Gilmar Mendes ser oficializado como o candidato a substituir Celso de Mello.
Ao assumir o cargo, disse que o Supremo terá “autoridade e dignidade” fortalecidas, e advertiu que a harmonia entre Poderes “não se confunde com subserviência”. A relação de Fux com o presidente Bolsonaro começou marcada pela liturgia do cargo, o que só fará bem à democracia brasileira.
O abraço fraternal dado em Bolsonaro não seria mais apertado em Lula, antigo mentor de Toffoli que, cedo, descobriu que tem mais anos pela frente de Supremo do que Lula de expectativa de poder.
Celso Rocha de Barros: Se o risco à democracia era baixo, Toffoli pode ter encorajando os golpistas
Ex-presidente do STF nunca foi à guerra pelas instituições como fez, por exemplo, Celso de Mello
A passagem de Dias Toffoli pela presidência do STF foi característica de uma época de democracia em crise. À medida que mais bastidores dos últimos anos forem revelados, os historiadores debaterão que papel o ministro teve na gestão dessa crise.
Se as coisas estavam tão degeneradas que foi necessário ao presidente do STF costurar um acordão, Toffoli desempenhou um papel importante. Afinal, acordão ainda é melhor do que golpe. Mas se o risco à democracia era baixo, Toffoli pode ter piorado as coisas encorajando os golpistas com concessões.
O que é claro é que Toffoli nunca aceitou o risco de tornar-se um mártir da democracia, nunca foi à guerra pelas instituições como fez, por exemplo, Celso de Mello. Sua estratégia foi a acomodação com a ameaça bolsonarista, com uma exceção importante, que também é controversa.
Os analistas que defendem a tese do "risco zero" para a democracia precisam começar sua explicação com o seguinte: o que o general Fernando Azevedo e Silva estava fazendo como assessor do presidente do STF durante a campanha de 2018? Quantos generais já haviam ocupado essa posição?
Que tipo de assessoria ele prestava a Toffoli? Não é relevante que, naquela eleição, Lula estivesse a uma decisão do STF de poder ser candidato? Não é relevante que, com Lula fora do páreo, o favorito fosse o candidato dos militares? Quando Toffoli mentiu que 1964 não foi um golpe, mas um "movimento", isso não tinha nenhuma relação com a provável vitória de Bolsonaro? É normal que Azevedo e Silva tenha saído do lado de Toffoli para o Ministério da Defesa de Bolsonaro? Alguém é capaz de me apresentar uma eleição transcorrida em uma democracia consolidada em que algo semelhante tenha ocorrido?
Na semana passada, Toffoli declarou que nunca havia visto Bolsonaro ameaçar a democracia. Talvez tenha visto apenas risco de "movimentos" como o de 1964.
Mas, se não viu nada, sua passagem pela presidência do STF foi um absoluto desastre: se Bolsonaro não representava risco à democracia, as decisões de Toffoli sobre o Coaf, por exemplo, que beneficiaram Flávio Bolsonaro, foram, além de juridicamente erradas, desnecessárias à defesa da democracia.
Eu acho que o risco de golpe foi real. Acho que as instituições deveriam ter enfrentado Bolsonaro de frente. Mas se eu, que sempre alertei para o risco de golpe, mesmo assim o tiver subestimado, se um confronto direto tivesse como resultado provável a vitória dos golpistas, talvez Toffoli tivesse razão.
De qualquer forma, a exceção nessa estratégia de acomodação, o inquérito das fake news, funcionou. Em um artigo para o site de notícias jurídicas Jota, o jornalista Felipe Recondo lembra que o inquérito "revelou seu poder de dissuasão e deu ao cenário político-institucional de Brasília algum grau de normalidade e racionalidade".
O inquérito também foi alvo de muitas críticas por juristas respeitáveis. Novamente: se ajudou a evitar um golpe, valeu a pena.
Mas se fizemos esse tipo de cálculo —acordão ou golpe, inquérito heterodoxo ou golpe— a democracia andou bem mal. Resta torcer para que Fux navegue águas mais tranquilas, mas esteja disposto a reagir se as tentativas de intimidação —como a visita surpresa à despedida de Toffoli— continuarem. Haja jiu-jítsu.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Míriam Leitão: O ministro que não viu o visível
Jair Bolsonaro, no dia 28 de maio, amanheceu querendo dar ordens ao Supremo Tribunal Federal. Foi quando ele berrou na porta do Alvorada aquele ultrajante “acabou, porra”. O que o irritara era a decisão do ministro Alexandre de Moraes de expedir mandados de busca em endereços de empresários e blogueiros amigos do governo, investigados pela suspeita de ameaçar ministros do STF, disseminar fake news e financiar crimes digitais. “As coisas têm um limite. Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas”, disse o presidente. Era uma ameaça ao Judiciário e, portanto, à democracia. Mas Dias Toffoli não viu.
“De todo o relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e com seus ministros de Estado, nunca vi da parte dele nenhuma atitude contra a democracia”, disse Dias Toffoli. O ataque descrito acima fora contra o inquérito que o próprio Toffoli abrira. Um dos seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro, postou que era preciso uma “atitude enérgica” do presidente, acrescentando que não era uma questão de “se” mas “quando” ocorreria uma ruptura. O presidente continuou: “Repito, não teremos outro dia igual a ontem. Chega. Chegamos ao limite. Estou com as armas da democracia nas mãos”. Era uma ameaça, mais uma, mas Dias Toffoli não viu.
Bolsonaro atacou a imprensa de todas as formas, como naquele 23 de agosto em que diante da pergunta de um repórter deste jornal disse que queria “encher sua boca de porrada”. Era o valentão, cercado de seguranças e de imunidades presidenciais, fazendo ameaças físicas a um profissional no exercício da profissão. Não foi o primeiro ataque. Ele escolheu alguns jornalistas para ofender, injuriar e caluniar. Ameaçou também órgãos de imprensa que não o bajulam. Editou uma MP dizendo que o objetivo dela era prejudicar o jornal “Valor”. De variadas formas ele ameaçou a liberdade de expressão, um dos pilares da democracia. Isso também Toffoli não viu.
O presidente participou de passeatas antidemocráticas. Muitas. Foram domingos consecutivos em que, aproveitando-se do distanciamento social que mantinha em casa tantos brasileiros, convocou seus apoiadores. Eles foram com faixas pedindo o fechamento do Congresso, do Supremo e uma intervenção militar “com Bolsonaro e AI-5”. Numa delas foi para a frente da sede do Exército em Brasília e discursou aos brados para a multidão:
“Acabou a patifaria. Não queremos negociar nada, agora é o povo no poder”. Disse que as Forças Armadas estavam com eles. Em outro domingo, sobrevoou a multidão num helicóptero da Força Aérea com o ministro da Defesa a bordo. Usar as Forças Armadas para intimidar é subversão da ordem democrática. Todas aquelas manifestações foram um ataque explícito à democracia. Nem isso, contudo, o ministro Dias Toffoli viu.
O presidente fez ameaças em postagens e em declarações ao ministro Celso de Mello, disse que não respeitaria ordem judicial e publicou numa de suas redes que a decisão do ministro de divulgar o vídeo da reunião ministerial poderia ser enquadrada como abuso de autoridade passível de prisão. O ministro fez bem ao divulgar o vídeo porque nessa reunião claramente se conspirou contra as instituições. Integrantes do governo pediram prisão de ministros do Supremo, o presidente disse que era preciso armar a população para resistir às ordens dos governadores, e citou o artigo 142 da Constituição que, segundo interpretação canhestra que endossava, permitiria a intervenção militar. O presidente postou um vídeo repulsivo em que ele é um leão atacado por hienas e uma delas era o STF. O decano Celso de Mello reagiu. Soltou uma nota dizendo que “o atrevimento presidencial parece não encontrar limites” e lembrou que o presidente desconhecia o princípio da separação dos poderes. Ainda bem que tivemos os olhos de Celso de Mello, porque Dias Toffoli nada viu.
Houve nestes um ano e oito meses homenagens a ditadores, como Stroessner e Pinochet, que nos constrangeram no exterior, exaltação da ditadura, endosso a textos apócrifos claramente golpistas, disseminação de fake news. Bolsonaro colocou em dúvida o processo eleitoral brasileiro, dizendo que houve fraude na última eleição sem apresentar qualquer prova. Nada disso o presidente do STF viu. E tudo era tão visível.
Bruno Boghossian: Toffoli absolveu BolsonaroToffoli absolve Bolsonaro e passa verniz democrático numa conduta delinquente
Só faltou oferecer um troféu ao presidente por ainda não ter dado um golpe de Estado
Na última semana, Jair Bolsonaro e Dias Toffoli fizeram uma dobradinha. Questionado sobre críticas feitas por ministros do STF a seus ataques à democracia, o presidente protestou. “Eu queria que essas pessoas apontassem um ato meu, uma ação antidemocrática. Só isso, mais nada”, disse, na quinta-feira (3).
“Quando é que eu tentei censurar a mídia?”, emendou Bolsonaro. Ele deve se lembrar do dia em que disse ter vontade de encher de porrada a boca de um repórter que perguntou o motivo dos depósitos de R$ 89 mil na conta da primeira-dama, mas essa é outra história.
Horas depois, Toffoli decidiu absolver o colega do Planalto. Ao fazer um balanço de sua gestão, na manhã seguinte, o presidente do Supremo disse nunca ter visto “nenhuma atitude contra a democracia” partindo de Bolsonaro e seus ministros.
Toffoli poderia ter ficado no papo do equilíbrio institucional ou até repetido a propaganda sobre seus esforços para reduzir a tensão entre os Poderes. Mas o chefe do Judiciário preferiu passar um verniz democrático numa conduta delinquente.
Bolsonaro é o presidente que, irritado com um punhado de decisões do STF, passou a divulgar uma teoria segundo a qual as Forças Armadas poderiam fechar o tribunal.
Ele também já ameaçou descumprir decisões da corte e disse que não aceitaria determinações de seus ministros. “Acabou, porra!”, gritou o democrata depois que a Polícia Federal acordou extremistas que apoiam o governo nas redes sociais.
Quanto aos ministros do governo, Toffoli deve ter esquecido que a Esplanada tem integrantes que falam com despreocupação sobre a edição de um novo AI-5 e gente que promete “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” quando se vê sob a mira do tribunal.
Com certo orgulho, Toffoli afirmou ter feito o presidente “compreender que cabe ao Supremo declarar inconstitucionais determinadas normas”. Só faltou oferecer um troféu a Bolsonaro por ainda não ter dado um golpe de Estado.
Bernardo Mello Franco: Só Toffoli não viu
Existem figuras que não veem e figuras que não querem ver. Quando chamou o golpe militar de “movimento de 1964”, o ministro Dias Toffoli não padecia de cegueira histórica. Estava distorcendo os fatos para agradar Jair Bolsonaro, então favorito na eleição presidencial.
Toffoli deixa o comando do Supremo Tribunal Federal na próxima quinta-feira. Em sua gestão, o governo atacou e ameaçou a Corte de forma inédita desde o fim da ditadura. O ministro fingiu não perceber o que ocorria. Calou-se diante das ofensas e se comportou como um aliado do capitão.
A Constituição afirma que os Poderes devem funcionar de forma independente e harmônica. Toffoli ignorou a independência e radicalizou na harmonia. Chegou a se outorgar um certo “papel moderador”, a pretexto de “oferecer soluções em momentos de crise”. A oferta só serviu à família presidencial, que encontrou proteção jurídica nas horas de aperto.
No início do mandato de Bolsonaro, o presidente do Supremo anunciou um “pacto” entre Poderes. Ele se voluntariou a favor de reformas que poderiam ter sua legalidade questionada no tribunal. Um despropósito que irritou ministros mais preocupados com a autonomia da Corte.
Em julho de 2019, Toffoli suspendeu as investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro, suspeito de desviar verbas na Assembleia Legislativa do Rio. A canetada aliviou o Zero Um e paralisou centenas de outros inquéritos que usavam dados da Receita e do antigo Coaf.
O refresco ajudou o primeiro-filho a escapar da polícia e do Ministério Público do Rio. Enquanto Flávio aproveitava a blindagem de Toffoli, seu amigo Fabrício Queiroz se escondia na chácara do advogado do clã.
Em 20 meses no poder, Bolsonaro fez quase tudo para minar a autoridade do Supremo. Ofendeu ministros, ameaçou descumprir decisões e participou de manifestações que pediam o fechamento da Corte. Em maio, o deputado Eduardo Bolsonaro declarou que uma “ruptura” era apenas questão de tempo. Seu pai sugeriu o mesmo em falas públicas e reuniões privadas.
Diante do silêncio de Toffoli, o decano Celso de Mello liderou a defesa do Judiciário. Em mensagem enviada aos colegas, ele descreveu a ofensiva autoritária e avisou que o “ovo da serpente” parecia “prestes a eclodir no Brasil”. O presidente do Supremo desprezou o alerta e manteve a linha colaboracionista. Há cinco dias, ele voltou ao Planalto para uma cerimônia que prometia levar cabos de fibra ótica à Região Norte. Seu discurso estava afinado com a propaganda do governo.
Na sexta, o ministro usou uma entrevista coletiva para enaltecer a própria gestão e se gabar do “diálogo intenso” com o chefe do Executivo. “De todo o relacionamento que tive com o presidente Jair Bolsonaro e com seus ministros de Estado, nunca vi diretamente da parte deles nenhuma atitude contra a democracia”, disse.
O golpe passou na janela, e só Toffoli não viu.
Cristina Serra: No STF, o 'legado' de Toffoli
Diálogo entre Poderes pressupõe altivez, e a simples percepção de tutela militar é anomalia
O mandato do ministro Dias Toffoli na presidência do STF termina nos próximos dias deixando um enigma. Por que ele teve dois generais da reserva no cargo de “assessor especial” no seu gabinete? O primeiro foi Fernando Azevedo e Silva, por indicação de ninguém menos que o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, o general “influencer”.
Villas Bôas foi quem, na véspera do julgamento do pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula, no STF, em abril de 2018, fez ameaças numa rede social dizendo que o Exército repudiava a “impunidade” e que estava “atento às suas missões institucionais”. O STF rejeitou o pedido de Lula por 6 x 5, ele foi preso, bem, o resto você sabe.
Azevedo ficou dois meses no cargo e saiu para ser ministro da Defesa do candidato vencedor na disputa presidencial. Para a vaga, Toffoli acolheu outro general bolsonarista, Ajax Porto Pinheiro. Num vídeo, durante a campanha de 2018, em meio a raciocínios tortuosos, Pinheiro fala dos perigos do comunismo e diz que, se o PT voltasse ao poder, o Exército seria “a principal vítima”. Desconhece-se a contribuição do general ao Judiciário, ao custo mensal de R$ 12.940 para o contribuinte.
Indicado por Lula em 2009 para o STF, Toffoli fez um grande esforço para se distanciar da esquerda e mostrar-se confiável aos militares. Antes de assumir a presidência, num exercício de contorcionismo semântico e impropriedade histórica, chegou a dizer que preferia chamar o golpe de 1964, que instaurou 21 anos de ditadura no Brasil, de “movimento de 64”.
Há quem interprete a contratação dos generais como uma tentativa de manter canais abertos com as Forças Armadas em tempos turbulentos. Se foi esse o intuito, mostrou-se malogrado. O Supremo vive sob ataque, e o próprio Bolsonaro já quis dar um golpe e substituir os 11 ministros. Diálogo entre Poderes pressupõe altivez. Tutela militar —ou a simples percepção dela— é uma anomalia a ser evitada. Não é um legado do qual se orgulhar.
Bernardo Mello Franco: Fachin antecipou o fim da Era Toffoli
O ministro Edson Fachin cassou a liminar de Dias Toffoli que obrigava a Lava-Jato a enviar informações sigilosas para a Procuradoria-Geral da República. A decisão não influi apenas na guerra interna do Ministério Público Federal. Na prática, também antecipa o fim da Era Toffoli no Supremo Tribunal Federal.
Toffoli assumiu a presidência da Corte em 2018, depois de um período marcado por crises na gestão da ministra Cármen Lúcia. Ele prometeu pacificar o Supremo e reduzir o protagonismo do Judiciário. Não fez uma coisa nem outra. O tribunal continuou dividido, e agora vive em tensão permanente com o governo.
O presidente da Corte buscou se aproximar de Jair Bolsonaro. Não convenceu o Planalto a baixar as armas e ainda se desgastou com parte dos colegas. Os ministros que enfrentaram a ofensiva autoritária tiveram que se defender sozinhos. Enquanto Toffoli frequentava o palácio, eles eram alvejados pelas milícias virtuais.
No mês passado, o presidente do Supremo abriu novas frentes de atrito. Em seu último plantão no cargo, ele concedeu uma série de decisões favoráveis a figurões sob investigação. Soltou Geddel Vieira Lima, barrou uma operação contra José Serra, suspendeu o processo de impeachment contra Wilson Witzel e arquivou inquéritos contra ministros do STJ e do TCU.
Para completar, Toffoli tomou partido do procurador-geral Augusto Aras em sua cruzada contra a Lava-Jato. Ao suspender o compartilhamento de dados da força-tarefa no primeiro dia após o recesso, Fachin mostrou seu descontentamento. E ainda abriu caminho para a derrubada de outras decisões do plantão.
Com o fim das férias de inverno, o presidente do Supremo volta a dividir poder com os outros dez ministros. Os holofotes se viram para Luiz Fux, que assumirá a chefia da Corte em 10 de setembro.
Em princípio, a nova gestão tende a ser mais alinhada com a Lava-Jato. Numa célebre mensagem para o procurador Deltan Dallagnol, revelada pelo Intercept, o então juiz Sergio Moro escreveu “In Fux we trust” (“Em Fux, nós confiamos”). Mas há ministros que se transformam ao assumir a presidência do tribunal.
Carlos Andreazza: Supremo editor e a Constituição lavajatista
Uma bomba se arma, a da mentalidade autoritária
Quero alertar — sobretudo aos que ora celebram atalhos ao estado de direito — que os precedentes arbitrários estabelecidos pelo STF poderão ser, e serão, usados pelos dois (ao menos) ministros do Supremo indicados por Jair Bolsonaro, ambos decerto terrivelmente bolsonaristas; e que um inquérito sem objeto investigado definido, como o chamado das Fake News, amplo a ponto de impor censura, e que ora se move contra aqueles cujo comportamento desprezamos, tende a ser gatilho para que a perigosa combinação de autoritarismo, ressentimento e revanchismo resulte em descontrole e na multiplicação de canetadas, como a que retirou do ar uma reportagem da revista “Crusoé”.
Uma bomba se arma; a da mentalidade autoritária, que nos dirige desde há muito, aplicada — na prática — a uma estrutura em que o togado seja vítima, investigador, acusador e juiz. Que tal? Se não por amor ao estado de direito, que se projete — por medo, por zelo ao próprio escalpo — o futuro desarranjado desses processos excêntricos. Não fica bonito.
Quero alertar — sobretudo aos que cobram provas do autoritarismo do presidente da República — que Bolsonaro, aquele que tem, segundo confessou, um esquema particular de informações e que trabalha, talvez já com êxito, para que a Polícia Federal lhe sirva como polícia política, comanda um Poder em cujo Ministério da Justiça está montado um sistema de investigação e monitoramento contra policiais, professores e intelectuais críticos do governo; e que o titular dessa pasta, André Mendonça, cotadíssimo para uma cadeira no Supremo, é, antes de tudo, terrivelmente bolsonarista.
Daí por que se pergunte: e quando estiver ao alcance de um André Mendonça — cuja atuação já depredara a advocacia pública, pervertendo a AGU em banca de defesa personalista para Bolsonaro, família e amigos — ser um Alexandre de Moraes? E quando estiver a uma canetada de distância de um Mendonça — talvez também de um Augusto Aras, o procurador-geral do bolsonarismo — ser editor de um país inteiro, conforme Dias Toffoli definiu o papel de ministro do STF?
Toffoli conhece a função do editor. Talvez saiba também qual é a de um ministro do Supremo. Ocorre que escolheu ocupar aquela cadeira para exercitar seus vícios de agente político, não sendo surpreendente que deturpasse o ofício da edição para justificar as exorbitâncias — inclusive as engenharias sociais — promovidas pela corte que preside. Ele tem linha editorial — e essa não é aquela, a única, que deveria regê-lo e limitá-lo: a Constituição Federal.
Ministro de corte constitucional que se enxerga como editor, cedo ou tarde, avança sobre prerrogativas de outros poderes e reescreve a Constituição. E não nos faltam editores nem linhas editoriais disputando terreno no Brasil.
O lavajatismo — o próprio espírito do tempo — está em todos os espaços em que se exerça poder. É a força dominante entre nós. Em resumo: aquela que, modelando as leis e os ritos para além das margens do estado de direito, justifica-se porque, afinal, para deter os que consideramos bandidos — o objetivo virtuoso legitimando o caminho. Então, claro: para combater as ameaças de um projeto de poder autoritário, respostas autoritárias. E, de puxadinho em puxadinho jurídico, vemos se erguer o edifício da insegurança; ali onde bandido — a depender do editor — logo pode virar sinônimo de inimigo… O fetiche do combate à corrupção pode sair de moda, mas os meios empregados para tocar o combate ficam.
Se um ministro do STF, editor do povo inteiro, avalia que indivíduos ou grupos que atacam a instituição cometem crimes não tipificados nos códigos, por que não tipificá-los no ato? Obra em construção. Por que não lhes bloquear as contas em redes sociais — por que não a censura prévia — para se precaver contra as calúnias, injúrias e difamações que poderão praticar?
Sergio Moro, aquele que simboliza o lavajatismo (mas que não lhe é a única encarnação), também foi — como juiz — um editor. (Alguns maldosos dirão — lembrando a Vaza-Jato — que editor de ficção.) O editor Alexandre de Moraes — é provável — desaprova os métodos da República de Curitiba e decerto tem ressalvas a expedientes exóticos daquela força-tarefa e à linha editorial do doutor Moro; mas é um lavajatista, impregnado pela cultura justiceira que normalizou entre nós que se driblem procedimentos (que protegem garantias individuais) e se saltem as leis ordinárias para forjar, no caso, um inquérito obscuro destinado a caçar milicianos digitais. Alguém dirá que vale.
Toffoli, presidente do poderoso conglomerado editorial em que se transformou o STF, também é um lavajatista; um de tipo curioso, que odeia a Lava-Jato, operação que quer aterrar (pacote em que inclui o projeto para tornar Moro inelegível), mas lhe absorve a natureza jacobinista.
O cala a boca tinha morrido; mas nem tanto. Alguém dirá que por boa causa.
Vera Magalhães: Uma moda que passou
Tão em voga nos palanques em 2018, combate à corrupção vira estorvo
“Fim ‘do’ Lava Jato! Fim ‘do’ Lava Jato!”. Com uma pandemia que já matou mais de 95 mil brasileiros ainda no auge, empregos minguando e economia à deriva, foi esse o coro com que Jair Bolsonaro, eleito, entre outros fatores, de carona no lavajatismo, foi recebido no interior do Piauí, escoltado justamente por um réu na Lava Jato, o senador e presidente do PP, Ciro Nogueira.
A nova onda de críticas, reações e ofensivas contra a mais notória força-tarefa de combate à corrupção já montada no Brasil une o presidente, o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, e o procurador-geral da República, Augusto Aras.
Bolsonaro iniciou seu divórcio do lavajatismo com a saída de Sérgio Moro do governo. O deputado que nunca deu a mínima para combater a corrupção, enfiou a família toda na política, enriqueceu graças a ela, praticou toda sorte de petecagem miúda e já esteve em todos os partidos fisiológicos do abecedário, de repente virou o “capitão” que ia banir os malfeitores. Um enredo pobre e falso como uma nota de R$ 200 com a estampa da ema do Alvorada, mas muita gente embarcou na fantasia.
Com Moro fora do barco, o lavajatismo virou criptonita capaz de enfraquecer o “Mito” e criar um adversário poderoso. De quebra, a saída de Moro coincidiu com a chegada dos novos amigos de infância do Capitão, aquelas figuras mais carimbadas do antes demonizado Centrão, o seguro anti-impeachment tão sonhado. Réus, condenados, ex-presos, cabe todo mundo no barco.
O coro que recepcionou Bolsonaro não tinha nada de espontâneo. Para ajudar o governo, réus como Nogueira deixam claro que aguardam um acordão “com o Supremo, com tudo” para que as ações que lá tramitam dormitem, se possível para sempre.
Um Bolsonaro sem os arroubos de outrora contra o STF ajuda. Basta ver que o presidente não deu um “pio” de solidariedade aos fanáticos banidos das redes sociais por ordem de Alexandre de Moraes. Os novos amigos do Centrão ocupam aos poucos o lugar vago do olavismo tresloucado à mesa do bolsonarismo. Até Carluxo anda quietinho, quietinho.
Aí temos o plantão de Toffoli no recesso do STF. Num ímpeto produtivo, o presidente respondeu sozinho pelo plantão, contrariando a prática de dividi-lo com o vice (o lavajatista Luiz Fux). E que produtividade! Em quatro semanas, ele mandou a Lava Jato compartilhar informações com Augusto Aras, suspendeu buscas e duas investigações contra o senador tucano José Serra, arquivou três inquéritos contra ministros do STJ e do TCU abertos a partir da delação de Sérgio Cabral, suspendeu depoimento de Aécio Neves e dissolveu a comissão do impeachment de Wilson Witzel no Rio. Ufa!
Outro bastante ativo no recesso, e pra lá de destemperado, foi Aras, que se lançou na cruzada contra a Lava Jato e ainda assumiu ares de ditador no Ministério Público Federal, investindo com grosserias contra colegas na reunião do Conselho Superior do MPF.
É certo que o combate à corrupção tem de se dar dentro de balizas e marcos de legalidade e institucionalidade, e que operações como a Lava Jato muitas vezes se arvoraram poderes acima desses limites, e têm de ser controladas e fiscalizadas.
Outra coisa bem diferente, porém, é um ataque orquestrado para fazer letra morta de tudo que se avançou na revelação de crimes e para mitigar o poder de órgãos independentes como o Ministério Público.
Esse tipo de iniciativa combinada mostra que o figurino do arauto do combate à roubalheira foi só uma das muitas lorotas que Bolsonaro enfiou goela abaixo dos eleitores. Assim como mostra dia a dia não ser um liberal, não ter compromisso com a democracia nem a menor condição de governar o Brasil, também essa fantasia do capitão decente foi rasgada, saiu de moda.