Dia D

Ricardo Noblat: O Dia D e a Hora H da Operação Ponte-Aérea da Vacina

Coisas de quem usa farda

Em um governo que emprega mais de 3 mil militares em funções tradicionalmente reservadas a civis e que alçou ao comando do Ministério da Saúde um general que não sabia o que era o SUS (Sistema Único de Saúde), é natural o uso de expressões que remetem a atos de guerra para anunciar suas intenções. 

O general Eduardo Pazuello havia dito que a vacinação em massa contra o coronavírus teria início no Dia D, que lembra a data do desembarque dos países aliados nas costas da Normandia durante a Segunda Guerra Mundial para libertar a França ocupada pelo Exército alemão do ditador nazista Adolph Hitler.

Agora, Pazuello diz que haverá uma Operação Ponte-Aérea para distribuição da vacina aos Estados. Como a Alemanha, ao fim da guerra, fora dividida em dois Estados – um administrado pelos aliados ocidentais e outro pelos soviéticos -, Berlim, a capital, ficou dividida em duas partes – a oriental e a ocidental.

No final de junho de 1948, Josef Stalin, chefe do Estado soviético, ordenou o bloqueio de rodovias e ferrovias e do transporte fluvial para Berlim Ocidental. A resposta dos aliados ganhou o nome de Operação Vittles. Foi a maior operação área de ajuda humanitária jamais vista até então. Ela salvou os berlinenses da fome.

Faltava Pazuello dizer quando seria o Dia D do início da vacinação – não falta mais. Na próxima terça-feira, em um evento cercado de muita fanfarra no Palácio do Planalto e transmitido ao vivo pela televisão, o país assistirá à imunização do primeiro brasileiro. No dia seguinte, a Operação Ponte-Aérea será deflagrada.

Campanhas de vacinação no Brasil sempre começam ao mesmo tempo em todos os lugares, mas desta vez não será assim. O governo federal despertou tarde para o fato de que a vacina é a salvação. E o presidente Jair Bolsonaro, favorável à morte de quem tiver de morrer, sabotou a vacinação o quanto pôde.

Há outra razão para que a Operação Ponte-Aérea por enquanto só contemple as capitais: não há vacina suficiente. O Estado de São Paulo tem 8 milhões de doses estocadas, por ora, sem licença para aplicá-las. E o governo federal só irá dispor de 2 milhões de doses buscadas às pressas na Índia e que chegarão neste sábado.

De resto, apenas neste domingo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reunirá sua diretoria para decidir se libera ou não o uso das duas vacinas – a Oxford/Astra Zeneca importada da Índia, e a CoronaVac, a vacina chinesa que aqui já começou a ser produzida pelo Instituto Butantan, em São Paulo.

Quanto a seringas e agulhas sem as quais não haverá vacinação, o Ministério da Saúde informou ao Supremo Tribunal Federal que caberá a Estados e municípios providenciá-las. Não será surpresa para este blog se 2021 terminar sem que termine a vacinação de todos os brasileiros que queiram ser imunizados.


Ricardo Noblat: O Dia D e a Hora H do impeachment de Bolsonaro

O que é certo deve ser feito

Em uma democracia, um chefe de Estado só cai quando as ruas se voltam contra ele. Então os partidos o abandonam, ele perde as condições de governar, e acabou. É assim mais no presidencialismo do que no parlamentarismo.

Eleito em 1989, Fernando Collor de Mello foi à lona no final de 1992, acusado de corrupção. Dinheiro sujo pagou a compra de um Fiat Elba para uso dele e a reforma da Casa da Dinda, residência oficial de Collor enquanto ele foi presidente.

Eleita em 2010 e reeleita dali a quatro anos, Dilma Rousseff terminou deposta porque gastou mais do que o Congresso autorizara, desrespeitando assim a Lei de Responsabilidade Fiscal. A isso se deu o nome de “pedaladas”.

Por duas vezes, Temer, o vice que substituiu Dilma, escapou de ser denunciado por corrupção pelo Supremo Tribunal Federal, o que o afastaria do cargo enquanto durasse o processo. A Câmara negou licença para a apresentação das denúncias.

Derrubar um presidente não é fácil. Requer dois terços de um total de 513 votos de deputados e dois terços dos votos de 81 senadores. A insatisfação popular está na raiz de qualquer tentativa bem-sucedida de tirar um presidente.

As pesquisas de opinião pública ainda conferem a Jair Bolsonaro um elevado grau de apoio dos brasileiros. As pessoas se mostram dispostas a desrespeitar as regras de isolamento social para se divertirem, mas não para comparecer a protestos.

A situação era assim também nos Estados Unidos no ano passado quando o Partido Democrata aprovou na Câmara o pedido de impeachment de Donald Trump. Sabia de antemão que ele seria rejeitado no Senado de maioria republicana.

No entanto, foi em frente. Levou em conta que seria um ano de eleição e que isso de todo modo desgastaria Trump. O desgaste não foi tão grande. Mas antes de tudo, pesou na decisão dos democratas que o certo sempre deve ser feito.

Essa é a razão pela qual outra vez o Partido Democrata quer aprovar o impeachment de Trump, embora ele esteja a poucos dias de deixar a Casa Branca para o presidente eleito Joe Biden. Dificilmente haverá tempo para isso, mas valeria pelo exemplo.

Uma vez que no próximo dia 1º sejam eleitas as novas direções do Congresso brasileiro, certamente deputados e senadores se verão diante do desafio de refletir sobre a abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro.

Alega Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual presidente da Câmara, que não haveria tempo até lá para que o processo fosse aberto. Bobagem! Maia guarda na gaveta mais de 20 pedidos que recebeu. Só depende dele escolher um e aceitá-lo.

Não o fará sob a alegação de que isso tumultuaria a eleição do seu sucessor. A questão será enfrentada pelo novo presidente da Câmara. Se Arthur Lira (PP-AL), candidato de Bolsonaro, se eleger, não haverá processo tão cedo.

Se o eleito for Baleia Rossi (MDB-SP), apoiado por Maia, partidos do centro e da esquerda, o processo poderá ser aberto. Motivos para isso não faltam. Há aos montes. Se o processo não vingar, é o que menos importa. O certo deve ser feito.

A esse respeito, em conversa, ontem, com um grupo de devotos, Bolsonaro comentou: “Vocês não sabem o tamanho da minha paciência. Eu sou imbrochável, tá ok? Então, vão ter que me aturar. Só papai do céu me tira daqui, mais ninguém”.

Paciência é tudo o que ele não tem. Ninguém é “imbrochável”. Se por “papai do céu” quis se referir a Deus, fique sabendo que Deus, também citado no preâmbulo da Constituição que vige, deu autonomia aos humanos para que façam suas escolhas.

Melhor deixar Deus de fora disso. Fazer o certo só dependerá do Congresso.