desvalorização do real
André Lara Resende: Obsessão em atar as mãos do Estado paralisa o Brasil há três décadas
Alta dos juros leva a efeitos distributivos perversos
Neste EU& Fim de Semana, de 16 de abril, José Júlio Senna faz uma crítica ao meu artigo “A quem interessa a alta dos juros”, também aqui publicado. O artigo de José Júlio merece um elogio logo na partida pois, coisa rara no debate econômico de hoje, é uma resposta civilizada e racional. Dito isso, passo a expor por que discordo dos seus argumentos e os considero um exemplo dos problemas da retórica dos economistas.
José Júlio concorda que não há hoje pressão de demanda sobre os preços. Discorda que a alta dos preços internacionais das commodities, associada à desvalorização do real, seja o principal fator por trás do aumento da inflação. Atribui a alta mais aos gargalos de oferta criados pela pandemia do que à pressão das commodities. Sustenta que a pandemia desorganizou a oferta, o que é incontestável, e que houve um desvio da demanda de serviços para bens, o que é uma mera conjectura.
De toda forma, o ponto central de seu argumento não depende disso. Reconhece que o núcleo da inflação não saiu de controle, está apenas ligeiramente acima da meta, aponta para 5,5% no fim do ano, mas pode chegar a ser mais alto a partir de maio, antes de voltar a cair. Sustenta que a alta dos preços no atacado, agravada pelos problemas de logística na pandemia, pode não ser transitória.
Segundo ele, o que poderia ser considerado um mero fenômeno estatístico é preocupante, pois corre-se o risco de influenciar as expectativas. Para José Júlio, a razão pela qual o Banco Central deve elevar os juros é justamente para evitar a perda de controle sobre as expectativas. Reconhece que a alta dos juros não irá reverter a alta dos preços, mas sustenta que irá impedir a propagação dos seus efeitos secundários, através das expectativas.
Paremos aqui um instante para perguntar como a alta dos juros irá reverter as expectativas. Os economistas concordam, coisa rara, que as expectativas são fator importante na formação de preços e na evolução da inflação, mas não têm nenhuma vantagem comparativa na explicação de como as expectativas são formadas. Expectativas de inflação são um fenômeno de psicologia coletiva, o que não é bem o campo dos economistas. Ao reconhecer sua incompetência, coisa ainda mais rara, os economistas resolvem o problema presumindo que as expectativas são formadas de acordo com as premissas do seu próprio modelo.
A hipótese de “expectativas racionais”, hoje praticamente hegemônica na macroeconomia, é exatamente isso: a realidade pouco importa, supõe-se que as expectativas são um mero espelho da formação de preços no modelo teórico utilizado. Resolve-se assim o problema de nada ter a dizer sobre a formação das expectativas, desconsidera-se a realidade e as circunstâncias, e de quebra, tem-se uma solução formalmente elegante.
Demonstrando sensibilidade para a realidade, José Júlio reconhece que as circunstâncias hoje nada têm de normais, o ambiente fiscal e político do país representa um terreno fértil para que as expectativas se deteriorem. O que ele fica devendo é explicar como a alta dos juros irá reverter este ambiente fiscal e político.
É possível argumentar que a alta dos juros pode agravar o ambiente político. Quando o comércio, a indústria, os restaurantes, os hotéis e todas as atividades ligadas ao turismo e ao entretenimento estão praticamente paralisados pela pandemia, passam por sérias dificuldades e são obrigados a se endividar para sobreviver, elevar o custo do crédito não é exatamente um elixir para a paz política e social.
Concentremo-nos no que José Júlio afirma ser o delicado ambiente fiscal. Aqui está o ponto central de meu artigo: a elevação dos juros aumenta a despesa financeira do governo e agrava o desequilíbrio fiscal. Repito aqui o ponto que José Júlio, consciente ou inconscientemente, optou por desconsiderar em seu comentário.
Dado que a dívida pública é hoje 90% do PIB, uma elevação de 4 pontos de percentagem na taxa básica, como antecipa o mercado para o fim do ano, implica um aumento de 3,6% do PIB nas despesas do governo. São aproximadamente R$ 267 bilhões, valor apenas ligeiramente inferior aos R$ 294 bilhões da totalidade do auxílio emergencial até o fim do ano passado. Esse valor é equivalente a mais do dobro de todo o investimento público anual dos últimos anos.
O auxílio emergencial exigiu uma emenda constitucional para ser aprovado. Sua extensão, em valores muito reduzidos neste ano, provocou um acalorado debate sobre se poderia ou não ser excluído do teto dos gastos. Já a alta dos juros depende apenas de uma decisão do Banco Central. O teto não vale para as despesas financeiras do Tesouro, que são determinadas pela taxa de juros fixada pelo Banco Central. Enquanto o auxílio emergencial vai para a população necessitada, desamparada pela perda do emprego e da renda, o aumento das despesas financeiras do governo vai para os detentores da dívida.
A dívida pública hoje é uma divida interna, expressa em moeda nacional e carregada essencialmente por brasileiros. É um passivo do Estado e um ativo do setor privado brasileiro. O aumento dos juros é uma transferência direta do Estado para os detentores da dívida, para aqueles a quem a fortuna, vamos dizer assim, deu renda superior às suas necessidades e lhes permitiu acumular riqueza em títulos públicos.
Ainda que se desconsiderem os efeitos distributivos perversos da alta dos juros, como compatibilizá-la com a tese de que é preciso equilibrar o orçamento fiscal, a qualquer custo, para evitar o “abismo fiscal”? A explicação para um tratamento tão diverso entre as despesas financeiras e as outras despesas públicas, inclusive em investimentos essenciais, está na suposta inevitabilidade das “leis” da economia e das finanças.
É possível falar em leis da física e das demais ciências exatas, mas nas humanas, e economia é uma disciplina social, não existem leis imutáveis. As relações humanas são resultado da combinação de fatores psicológicos e ideológicos definidos num contexto cultural sempre em evolução. O arcabouço analítico dos economistas, que pretende se espelhar na física, pode ser circunstancialmente útil, mas não tem validade científica. É um modelo mental, baseado em postulados sobre o comportamento dos indivíduos, que em circunstâncias altamente idealizadas, batizadas de competição perfeita, justifica o cerceamento da intervenção do Estado na economia. Sob aparência de isenção científica, é uma ideologia conservadora, usada para justificar a impossibilidade de fazer diferente. As coisas são como são e não podem ser diferentes, porque assim determinam as leis da economia1.
Voltemos ao artigo de José Júlio. Segundo ele, o Banco Central atua com “certa liberdade para reagir às mudanças de cenário”, mas sujeito a um “arcabouço teórico rigoroso”. Este arcabouço teórico, formulado numa linguagem algébrica inacessível à grande maioria das pessoas, rigorosamente irrealista, serve para justificar a excepcionalidade dada ao Banco Central. Mas vejamos se o que diz José Júlio, sobre os objetivos do BC, segue o mesmo rigor.
Afirmações como “o BC procura manter a projeção de inflação o mais próximo possível do objetivo, no horizonte relevante de tempo” e “na situação atual, a projeção encontra-se na meta, e o risco de eventual desvio para cima supera o risco de eventual desvio para baixo” não são exatamente exemplos de rigor científico. Ao contrário, deixam claro o grau de inevitável subjetivismo na condução da política de juros do BC.
A recém-aprovada lei que deu autonomia ao BC acrescentou entre os seus objetivos a suavização dos ciclos econômicos e o estímulo ao pleno emprego. Ninguém em sã consciência irá afirmar que, nas atuais circunstâncias, a alta dos juros atende a esses objetivos.
José Júlio considera que a alta dos juros de longo prazo, assim como a pressão exercida pelos analistas para que o BC eleve a taxa básica, são meramente um “movimento antecipatório”, que aumenta a eficácia da política monetária. Como, ele não explica. Provavelmente por elevar o déficit do Tesouro e agravar a recessão e o desemprego. Considera que não há espaço para que o BC influencie diretamente a taxa de câmbio, que se o BC atuasse, como já faz o Banco do Japão, para balizar as taxas futuras, estaria “tabelando” o mercado e “quebrando o termômetro”.
Mais uma vez, sob a pretensão de conhecimento técnico, são meras opiniões, baseadas na ideologia de que o mercado está sempre certo e que toda intervenção de políticas públicas cria distorções em relação ao melhor dos mundos. Mas quando o mercado provoca grandes crises como a de 2008, o BC e o Tesouro são chamados a intervir. O “quantitative easing”, QE, foi uma emissão de mais de 20% do PIB nos EUA para salvar o sistema financeiro de seus excessos. Aí sim, o BC e o Tesouro podem emitir e gastar, mas nunca para enfrentar a pandemia e o desemprego.
A ideologia do fiscalismo, a obsessão em atar as mãos do Estado, inclusive para investir em áreas essenciais, como infraestrutura, saúde, educação, segurança, pesquisa e desenvolvimento, paralisa o país há pelo menos três décadas. A má governança do Estado brasileiro, agravada por um governo verdadeiramente catastrófico, justifica o receio de que dar espaço ao Estado para gastar estimule a irresponsabilidade.
Repito então o que disse ao concluir o meu artigo: é evidente que o Estado deve ser responsável e gastar bem. Restrições institucionais e administrativas para os gastos públicos são necessárias, para evitar abusos e distorções, mas precisam ser desenhadas com base no entendimento correto da importância do Estado, como prestador de serviços e como investidor. A teoria econômica convencional, uma ideologia que se pretende ciência, é hoje o principal empecilho ao entendimento correto do papel do Estado.
1 O irrealismo e a incapacidade do instrumental analítico da economia convencional têm sido alvo de críticas contundentes de alguns de seus mais ilustres nomes. Para os que se interessarem, recomendo a leitura do artigo de Paul Romer “The Trouble with Macroeconomics” (2016) e dos recém-publicados de W. Brian Arthur, “Economics in Nouns and Verbs” (2021), e de S. Bichler e J. Nitzan, “The 1,2,3 Toolbox of Mainstream Economics” (2021).
*André Lara Resende é economista