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Henrique Herkenhoff: O gato de botas
Quase toda semana aparece a notícia de alguém morto por um tiro que errou o alvo. Torna-se particularmente simbólico quando se atinge uma criança, não apenas porque é mais comovente, mas também porque não é possível justificar de maneira alguma, então não cabem raciocínios escapatórios de nossa realidade. Disparos de armas de fogo podem acertar quem não tinha nada a ver com a história, mas sempre havia um destinatário; vítimas de balas perdidas e criminosos mortos não são acontecimentos separáveis; então, se quisermos “brincar de faroeste”, devemos admitir também em que Alice nunca viveu no país das maravilhas.
Há duas questões bem diferentes envolvidas, e não podemos misturá-las: uma coisa são confrontos entre policiais e suspeitos, outra são disputas entre criminosos. No primeiro caso, pode haver um controle mais direto de nossos governantes, que podem escolher estratégias menos agressivas ou arriscadas para a população. Não que seja fácil, mas há um domínio direto por parte de quem toma as grandes decisões políticas. Já os duelos entre traficantes que disputam território ou acertam contas parecem – apenas parecem – fugir inteiramente à influência de nossas opções. No ES, felizmente, temos percorrido caminhos bem mais racionais e efetivos do que em outros estados e não é à toa que, embora muito longe do ideal, estamos melhorando sistematicamente nossa segurança.
De um lado, tem prevalecido o profissionalismo de nossas autoridades, e o número de vítimas da atividade policial, suspeitas ou não, vem sendo baixo. De outro, ainda que com muitas vozes contrárias, temos seguido de maneira consistente a máxima de que uma vida sempre vale... uma vida. Mais uma vez, é preciso chamar a atenção para a falsa oposição entre garantir direitos humanos ou dar tranquilidade à população. A única maneira de evitar que uma menininha seja apanhada numa troca de tiros entre traficantes é diminuir a quantidade desses combates urbanos. Ponto final. Ao mesmo tempo, se você não sabe aonde quer chegar, nenhum caminho serve.
Priorizar a preservação da vida, reprimir preventivamente o porte ilegal de armas, investigar a fundo os homicídios – cada um deles – e outras medidas semelhantes são o único caminho e têm claramente funcionado para os capixabas. Não há maneira de proteger só os “cidadãos de bem”; a violência aumenta ou diminui para todos, mocinhos e bandidos, xerifes e pistoleiros, crianças e adultos. E já que está dando certo, vamos seguir aquele velho ditado: não se mexe em time que está ganhando.
*Henrique Geaquinto Herkenhoff é professor do mestrado em segurança pública da UVV
IHU Online: Fim do piso para a saúde é o divórcio definitivo da economia dos problemas sociais, diz Ligia Bahia
Por Ricardo Machado, IHU Online
No centro do alvo das políticas administrativas e econômicas do atual governo estão as políticas sociais. Os três pilares que sustentam o austericídio das políticas públicas são as Reformas da Previdência e Trabalhista e a Emenda Constitucional – EC 95, que congelou os investimentos em áreas fundamentais para o país, como saúde, educação e segurança. Uma nova ofensiva visa desmantelar ainda mais o Sistema Único de Saúde – SUS. “A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência. A economia se divorciou definitivamente dos problemas sociais”, ressalta a professora doutora e pesquisadora Ligia Bahia, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
“O subfinanciamento crônico da saúde pública poderia se tornar desfinanciamento do governo federal. Estados e principalmente municípios teriam que fazer das tripas coração para impedir o caos completo na saúde e possivelmente não conseguiriam evitar a deterioração radical dos serviços de saúde”, avalia a pesquisadora. No fundo há uma visão, por parte de quem defende o corte de recursos para a saúde, vulgarizada do que é o SUS, ao mesmo tempo que se romantizam os planos privados, que, atualmente, devem mais de R$ 1,7 bilhão aos cofres do Sistema Único de Saúde. “A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita”, critica.
O ataque à saúde pública e universal é mais um capítulo no processo contínuo de destruição das conquistas sociais da Constituição Federal de 1988, que tem ocorrido, de forma explícita, desde 2016. Ao projetar o futuro, Ligia Bahia faz um balanço sobre os investimentos na área nos últimos dez anos. “A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública. No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil”, projeta.
Ligia Bahia é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui graduação em Medicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Políticas de Saúde e Planejamento, principalmente nos seguintes temas: sistemas de proteção social e saúde, relações entre público e privado no sistema de saúde brasileiro, mercado de planos e seguros de saúde, financiamento público e privado, regulamentação dos planos de saúde. Entre suas publicações, destacamos Planos e seguros de saúde. O que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil (São Paulo: Unesp, 2010) e Saúde, desenvolvimento e inovação (Rio de Janeiro: Cepesc, 2015).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que a extinção dos pisos para investimento nas áreas de saúde e educação está no raio de ação da PEC do Pacto Federativo?
Ligia Bahia – A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência. Ambas políticas foram justificadas com o argumento que poderia haver aumento dos recursos para a saúde e o que ocorreu foi o contrário. A economia se divorciou definitivamente dos problemas sociais. Essa ameaça de “liberação” das amarras do orçamento é o ponto máximo dessa ruptura onde haveria um orçamento extraído de impostos, taxas e contribuições que não dialoga com as necessidades sociais do país. Em tempos de Coronavírus ao invés dos esforços para ampliar recursos para a saúde pública o governo anuncia que irá restringir as respostas para a melhoria da saúde.
A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência – Ligia Bahia
IHU On-Line – Em específico para a área da saúde, quais os riscos da extinção do piso mínimo de investimento? Como isso se materializaria no cotidiano do SUS?
Ligia Bahia – O financiamento do SUS dependeria exclusivamente da boa ou má vontade de cada governo e assim fica tudo ainda mais difícil. O subfinanciamento crônico da saúde pública poderia se tornar desfinanciamento do governo federal. Estados e principalmente municípios teriam que fazer das tripas coração para impedir o caos completo na saúde e possivelmente não conseguiriam evitar a deterioração radical dos serviços de saúde.
IHU On-Line – O senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC do Pacto Federativo, já declarou que além de educação e saúde, estuda incluir o setor de segurança pública no pool de áreas que devem ter o piso mínimo para investimentos extinto. Quais podem ser as consequências de medidas como essas?
Ligia Bahia – São proposições diretamente derivadas de acepções completamente errôneas sobre as relações entre economia e questões sociais. Nós nunca defendemos engessamento do orçamento, os pisos foram adotados como estratégias de resistência às políticas sucessivas de ajustes fiscais e subfinanciamento do SUS. Os pisos se confundem com tetos exatamente porque os governos não priorizam políticas essenciais para a efetivação de direitos básicos de cidadania. O núcleo do problema nunca foi a “reserva” de recursos e sim a negligência com as políticas sociais.
IHU On-Line – Em mais um verão, o Brasil vê aumentar a incidência de doenças causadas por vetores, como a Dengue. O que esses dados revelam acerca dos investimentos estatais em saúde pública e na própria concepção do SUS nesse último ano?
Ligia Bahia – As arboviroses, entre as quais a Dengue, se tornaram endêmicas no Brasil. O país realizou investimentos na produção de vacinas e mantém esforços em relação à vigilância epidemiológica. Entretanto essas iniciativas sempre foram insuficientes e uma parte delas está sendo descontinuada. A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita. A acepção sobre as relações entre saúde e desenvolvimento econômico e social está soterrada sob o cimento da indiferença de autoridades governamentais pelo sofrimento da população com doenças que poderiam ser evitadas.
A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita – Ligia Bahia
IHU On-Line – Como avalia atualmente a estrutura e ações de saúde preventiva no Brasil, desde a ação de agentes comunitários de saúde, a unidades de atenção básica?
Ligia Bahia – Estamos certamente diante de uma retração do SUS e de sua possibilidade de resolver problemas de saúde. A prevenção no sentido literal sempre foi frágil e está evidente, desde os casos de febre amarela, que temos problemas muito graves que incluem desde qualidade e transporte adequado de vacinas até a oferta de unidades de saúde abertas limpas e dotadas de profissionais de saúde e medicamentos.
IHU On-Line – Em agosto de 2019, o governo federal encerrou o programa Mais Médicos e abriu, em substituição, o Médicos pelo Brasil. Pouco mais de meio ano depois, como avalia essa mudança?
Ligia Bahia – O programa Mais Médicos foi um marco no Brasil, demonstrou ser possível alocar profissionais de saúde em lugares distantes e inóspitos. O Ministro Mandetta não suprimiu a política de interiorização de médicos. Considero que a continuidade deva ser comemorada como uma conquista da saúde pública. É importante dar seguimento a uma política que busca uma distribuição mais homogênea de recursos. Certamente houve perdas de traços importantes do programa mais médicos relacionados com a presença dos profissionais cubanos: disposição para trabalhar sob condições muito precárias em áreas remotas. Mas houve também o reconhecimento, ainda que não explícito, de seus acertos. Os desafios agora estão explicitados: 1) a alternativa carreira de Estado para médicos é de difícil viabilização, requer formulação e decisão política que são incompatíveis com o sentido e direção da reforma administrativa pretendida pela área econômica; 2) os postos de trabalho em áreas remotas e perigosas não são preenchidos mediante editais de convocação, será necessário encontrar alternativas estruturais e sustentáveis para manter a oferta de serviços nessas localidades.
Os postos de trabalho em áreas remotas e perigosas não são preenchidos mediante editais de convocação, será necessário encontrar alternativas estruturais e sustentáveis – Ligia Bahia
IHU On-Line – O ano de 2019 encerrou com um verdadeiro caos na saúde pública do Rio de Janeiro. O que esse caso revela acerca da política de saúde pública no Brasil? Como conceber saídas para casos como esse do Rio de Janeiro?
Ligia Bahia – O Rio pode estar na “vanguarda” do caos. A queda de arrecadação, repasse irregular e insuficiente de recursos conjugada com a ausência de liderança de autoridades sanitárias e presença de milícias em unidades de saúde plasmam uma crise de enormes proporções. As saídas requerem reconhecimento dos problemas, transparência e participação e mobilização social para a definição de prioridades e monitoramento permanente da execução de políticas.
IHU On-Line – Quais os desafios para o fortalecimento e manutenção do SUS agora em 2020? E, além da PEC do Pacto Federativo, qual a maior ameaça?
Ligia Bahia – O SUS está de pé, ficou de pé. As principais ameaças são a expansão do setor privado. Os lobbies mais ativos na saúde concentram-se em torno da desregulamentação das coberturas dos planos privados. Empresas privadas querem vender mais planos. Do lado governamental, a principal ameaça é o desestímulo completo das carreiras públicas (um ministro que considera que servidores púbicos são parasitas). Não existirá um SUS abrangente e de qualidade sem servidores públicos muito bem formados, sem uma burocracia moderna e eficiente. A PEC do pacto federativo, a extinção dos mínimos orçamentários são ameaças que poderão ser revertidas por governos que priorizem a saúde, a acepção do SUS como política negativa, fracassada, ultrapassada causa danos irreversíveis.
A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública – Ligia Bahia
IHU On-Line – Como o Brasil encerra a década de 2010 na área da saúde? E o que se projeta para a próxima década?
Ligia Bahia – A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública. No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil. Iniciamos a década com uma baita crise na saúde em várias cidades brasileiras.
No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil – Ligia Bahia
IHU On-Line – Este ano tem eleições. Como a pauta da saúde deve emergir nesse contexto?
Ligia Bahia – Nas eleições municipais a saúde tem presença garantida nas plataformas eleitorais. Possivelmente haverá novidades porque as velhas soluções mágicas como os corujões, mutirões, atendimento móvel, nada disso deu certo, mostraram-se insuficientes. Temos que contribuir para a elaboração de programas e debates eleitorais que vinculem os temas sociais aos econômicos, buscando impedir que as promessas de campanha sejam meramente retóricas.
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Luiz Carlos Azedo: Encosta abaixo
“Não sei se Buarque se inspirou em Tony Judt, mas, com certeza, a esquerda brasileira tem as mesmas dificuldades de Eric Hobsbawm para fazer autocrítica. Persiste nos próprios erros”
Autor da grande trilogia Era das revoluções (1789-1948), A era do capital (1848-1875) e A era dos impérios (1875-1914) —, Eric John Hobsbawm fez a cabeça da esquerda brasileira sobre o mundo atual, com A era dos extremos: o breve século XX. O historiador nasceu em Alexandria, Egito, quando o país se encontrava sob domínio britânico, passou a infância entre Viena e Berlim e migrou para Londres aos 14 anos. Quando jovem, ingressou no Partido Comunista britânico; durante a II Guerra Mundial, cavou trincheiras no litoral do Canal da Mancha e fez parte da inteligência do Exército britânico.
Após a guerra, Hobsbawm voltou para Cambridge, onde se tornou um expoente da historiografia mundial, ao lado de Christopher Hill, Rodney Hilton e Edward Palmer Thompson. Sua Era dos extremos é o livro mais lido sobre a história recente da humanidade, e Tempos interessantes, de 2002, recebeu o Prêmio Balzan para a História da Europa. Membro da Academia Britânica e da Academia Americana de Artes e Ciência, lecionou na Universidade de Londres e na New School for Social Research, de Nova Iorque. Morreu em Londres, em 2012.
Nascido em 1948, o londrino Tony Judt era neto de russos e rabinos lituanos. Aos 15 , aderiu ao sionismo e quis emigrar para Israel, contra a vontade dos pais. Em 1966, foi passar o verão num kibbutz machanaim e acabou servindo como motorista e tradutor no Exército de Israel, na Guerra dos Seis Dias. No fim da guerra, porém, voltou para Inglaterra. Judt graduou-se em história na Universidade de Cambridge (1969), mas realizou suas primeiras pesquisas em Paris, na École Normale Supérieure, onde completou seu Ph.D., em 1972.
Em outubro de 2003, publicou um artigo na New York Review of Books, no qual recriminou Israel por se tornar um Estado étnico “beligerante, intolerante, orientado pela fé” e defendeu a transformação do Estado judeu num estado binacional, que deveria incluir toda a atual área de Israel, mais a Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental e a Cisjordânia. Nesse novo Estado, segundo sua proposta, haveria direitos iguais para todos os judeus e árabes residentes em Israel e nos territórios palestinos. Seu artigo causou um terremoto na comunidade judaica e lhe valeu a expulsão do conselho editorial da revista.
Judt lecionou na Universidade de Nova York, na cadeira de Estudos Europeus. Seu livro Pós-guerra — uma história da Europa desde 1945 é monumental. Em março de 2008, foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA). Um ano depois, estava tetraplégico; faleceu em 2010, depois de um calvário no qual escreveu três livros: O mal ronda a Terra, O chalé da memória e Pensando o século XX, baseado em conversações com Timothy Snyder. Judt fez parte do que chamou de “geração Hobsbawm”, homens e mulheres que começaram a se ocupar do estudo do passado em algum momento da “longa década de 1960” (entre 1959 e 1975), cujo interesse “foi marcado de forma indelével pelos escritos de Eric Hobsbawm, por mais que eles agora discordem de muitas de suas conclusões”.
Autocrítica
No ensaio Encosta abaixo até o final (Quando os fatos mudam, editora Objetiva, publicado no New York Review of Books, em maio de 1995, como uma resenha de A era dos extremos: O breve século XX, 1914-1991, de Eric Hobsbawm), Judt criticou duramente o seu mestre: “Ainda que escreva sem nenhuma ilusão a propósito da antiga União Soviética, ele se mostra relutante em admitir que ela não tinha aspectos que a redimissem (inclusive o de desempenhar o papel de manter ou impor a estabilidade no mapa da Europa)”. Judt também critica Hobsbawm por justificar o terror stalinista e as coletivizações forçadas com o esforço de guerra.
Segundo Judt, era difícil para Hobsbawm fazer autocrítica da própria fé: “Contudo, há duas ou três mudanças cruciais que tiveram lugar no mundo — a morte do comunismo, por exemplo, ou a relacionada perda de fé na história e nas funções terapêuticas do Estado a respeito da qual o autor nem sempre se mostra satisfeito. Isso é uma pena, já que forma e, às vezes, deforma seu relato de maneiras que podem diminuir seu impacto sobre aqueles que mais precisam lê-lo e aprender com ele. E senti falta, em sua versão do século XX, do olhar impiedosamente crítico que fez dele um guia tão indispensável para o século XIX”.
Em janeiro de 2018, o ex-senador Cristovam Buarque foi convidado a uma palestra em Oxford para falar sobre por que Bolsonaro venceu. Agora, voltou à universidade britânica para lançar a versão em inglês do pequeno livro Onde erramos: de Itamar a Temer, publicado como e-book pela Tema Editorial, no qual o ex-governador de Brasília e ex-reitor da UnB faz uma polêmica autocrítica a partir daquela palestra. Não sei se Buarque se inspirou em Tony Judt, mas, com certeza, a esquerda brasileira tem as mesmas dificuldades de Eric Hobsbawm para fazer autocrítica. Persiste nos próprios erros.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-encosta-abaixox/
Luiz Sérgio Henriques: Quando os bárbaros bateram em retirada
Um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é improvável que se repita...
No tempo em que a luta final parecia ser entre sistemas irremediavelmente contrapostos, a cultura bolchevique, tradução arriscada para o “Oriente” político de um pensamento claramente ocidental, como o de Marx, protagonizou não poucos episódios de fechamento sectário sobre si mesma. Exemplar, nesse sentido, o combate prioritário que em certo ponto os partidos comunistas deram aos “social-fascistas” – rótulo infame dado à esquerda social-democrata –, mesmo diante do avanço do nazismo e do fascismo. Ou, ainda nos anos 1930, a política interna da URSS stalinizada, que proclamava estar a caminho do socialismo e contraditoriamente apregoava o acirramento incessante da luta de classes, com processos falsificados, fuzilamento de velhos bolcheviques e afirmação de uma implacável estrutura verticalizada de mando.
Evidentemente, esse poder monolítico não duraria para sempre. Em face da vida política do capitalismo avançado, muito mais articulada e complexa, mesmo a versão atenuada do comunismo no poder, com a queda do ditador e a denúncia (parcial) dos seus crimes em 1956, mostrava-se primitiva e destituída de atração. Como no poema de Kaváfis, aquela constelação de partidos-Estado era como que a fonte e a razão de ser dos bárbaros à porta da cidade, que ameaçavam invadi-la e só provocavam reações irracionais, como a dos macarthistas e demais anticomunistas de profissão. Em 1989, por isso, entre esses setores atrasados da “cidade” capitalista viria a instalar-se um sentimento de frustração: para tais setores, os bárbaros eram uma “solução”, uma motivo de viver, um pretexto para cerrar fileiras e golpear os fantasmas prediletos. E agora batiam em retirada...
Ainda na última década do século 20 um novo e estridente grito de guerra se faria ouvir. É que o inimigo, sempre igual a si mesmo, mas ainda mais insidioso, teria passado a disputar corações e mentes com as armas mais lentas e, decerto, mais letais da cultura. Em consequência, gente treinada na linguagem da guerra fria reciclou-se rapidamente, apetrechando-se para ruidosas e intermináveis “guerras culturais”. Uma situação, aliás, que se agravaria exponencialmente no novíssimo ambiente das redes “sociais”, com sua capacidade inaudita de dinamitar pontes, criar tribos irascíveis e minar o terreno comum da convivência civilizada. E isso a ponto de se poder prever que minas potentes continuarão a explodir e causar danos no futuro, ainda depois de os guerreiros culturais ensarilharem as armas ou deixarem de fazer parte da corrente principal dos acontecimentos, ao contrário do que acontece hoje.
O alvo de tais guerreiros – que dão cobertura ideológica ao “populismo”, palavra ambígua e escorregadia, mas cujo conteúdo essencial consiste num ataque à democracia representativa tal como a conhecemos – deslocou-se: o comunismo perde a dimensão de desafio estatal e identifica-se sumariamente com o legado de 1968 e com a New Left multicultural. O ano que faz questão de não terminar, na frase de Zuenir Ventura, aparece agora como um nó a atar coisas díspares, mas todas muito “perigosas”: a rebelião antiautoritária, o feminismo, o pacifismo, o ambientalismo, tudo isso reunido numa crítica aos modelos de vida e consumo das sociedades desenvolvidas. Para os populistas de direita, eis a nova face do comunismo, empenhado como sempre em destruir a propriedade, mas desta vez, sobretudo, preocupado em corroer os valores familiares e os da tradição.
Como se trata de uma visão marcadamente ideológica, construída para organizar uma extrema direita de cunho anti-institucional, nada importa que o nó representado por 1968, no contexto real das coisas, não tenha muito em comum com a antiga posição comunista. Afinal, a Primavera de Praga também incendiou a imaginação de 1968. No clima da época, o velho ascetismo revolucionário sofreu golpes fatais. E num sentido que, na verdade, os enaltece, os comunistas da tradição se chocaram com uma derivação marginal, mas extremamente problemática, do espírito soixante-huitard, a saber, a trágica sedução da violência política.
Numa avaliação mais realista, um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é altamente improvável que se venha a repetir num mundo interdependente em termos não mais só econômicos. E a New Left “multicultural”, mesmo quando vocaliza exigências essenciais, como o combate ao racismo e a defesa do ambiente, muitas vezes reproduz a própria superfície fragmentada da vida, sem estabelecer conexões entre os variados grupos que poderiam expressar alguma hipótese de ruptura. Se este diagnóstico sumário fizer sentido, então o agressivo populismo de direita dos nossos dias aparecerá como o que de fato é: um desses fenômenos regressivos que de tempos em tempos reagem virulentamente a mudanças havidas na estrutura do mundo e tentam restaurar um passado de papelão pintado. Para quem não aceita tal regresso, trata-se de uma oportunidade e tanto para alianças que defendam e aprofundem a experiência democrática em toda a sua plenitude.
Míriam Leitão: Não se enganem. Nada disso é normal
Presidência militarizada, Câmara sendo palco de calúnia sexista, ministro ofendendo grupos sociais, livros censurados. Nada disso é normal
Há quem prefira o autoengano. O governo hostiliza a imprensa, e o filho do presidente dá sequência a uma difamação sexista contra uma jornalista, da tribuna da Câmara. O presidente se cerca de militares da ativa. O ministro da Economia ofende grupos sociais. A Educação está sob o comando de um despreparado. Alguns ministros vivem em permanente delírio ideológico. Os indígenas são ameaçados pelo desmonte da Funai e pelo lobby da mineração e do ruralismo atrasado. Livros são censurados nos estados. A cultura é atacada. Há quem ache que o país não está diante do risco à democracia, apenas vive as agruras de um governo ruim. E existem os que consideram que o importante é a economia.
Existe mesmo uma diferença entre governo ruim e ameaça à democracia, mas, no caso, nós vivemos os dois problemas. As instituições funcionam mal até pela dificuldade de reagir a todos os absurdos que ocorrem simultaneamente. Quando um tribunal superior decide que uma pessoa que ofende os negros pode ocupar um cargo criado para a promoção da igualdade racial, é a Justiça que está funcionando mal. O Procurador-Geral da República, desde que assumiu, tem atuado como se fosse um braço do Executivo. O Supremo Tribunal Federal (STF) parece às vezes perdido no redemoinho de suas divergências.
A calúnia contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da “Folha de S.Paulo”, foi cometida dentro do Congresso Nacional. O depoente de uma CPI praticou o crime diante dos parlamentares. Um deles, filho do presidente, reafirmou a acusação sexista. É mais um ataque à imprensa, num tempo em que este é o esporte favorito do presidente. Mas é também uma demonstração prática dos problemas do país. Alguém se sente livre para mentir e caluniar usando o espaço de uma comissão da Câmara e é apoiado por um parlamentar.
Não é normal que um general da ativa, chefe do Estado Maior do Exército, ocupe a Casa Civil, nem que o Planalto tenha apenas ministros militares e dois deles da ativa. Não é bom para as próprias Forças Armadas. Essa simbiose com o governo seria ruim em qualquer administração, mas é muito pior quando o chefe do Executivo cria conflitos com grupos da sociedade, divide a nação, faz constante exaltação do autoritarismo e apresenta projetos que ofendem direitos constitucionais. As Forças Armadas são instituições do Estado, com a obrigação de manter e proteger a Constituição. Deveriam preservar sua capacidade de diálogo com todo o país, neste momento de tão aguda fratura. O trauma da ruptura institucional comandada por generais é recente demais.
Não é normal que um governo estadual se sinta no direito de retirar das mãos de estudantes livros clássicos, um deles escrito pelo mestre maior da nossa literatura. A leitura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, do genial Machado de Assis, precisa ser estimulada e não proibida. É tão despropositada a ideia de colocar livros em um índex que muitos reagem apenas com incredulidade e desprezo. O obscurantismo, a censura, o retrocesso são graves demais.
A economia nunca poderá ir bem num país enfermo. Não há uma bolha em que se possa isolá-la. Mesmo se houvesse essa capacidade de separação da realidade, é preciso entender que a economia não está nada bem. Se no mercado financeiro, se alguns líderes empresariais querem vender esse otimismo falso é porque têm interesses específicos. A verdade, que bons empresários e economistas lúcidos sabem, é que o mercado de trabalho exclui um número exorbitante de brasileiros, o país ainda tem déficit em suas contas, a alta excessiva do dólar cria distorções e a incerteza tem aumentado.
A crise econômica foi herdada por este governo, mas ele está cometendo o erro de subestimar os desafios. O ambiente de conflito constante com diversos grupos da sociedade, provocado pelo governo, esse clima de estresse permanente, não é bom para quem faz projetos de longo prazo no país. Quando o cenário de ruptura tem que ser considerado, os investidores se afastam.
Quem prefere o autoengano pode viver melhor no presente, mas deixa de ver os avisos antecedentes do perigo e, portanto, não se prepara para enfrentá-lo. Manter a consciência dos riscos é a atitude mais sensata em época tão difícil quanto a atual. Nada do que tem nos acontecido é normal.
Ricardo Westin: O ano em que os militares sequestraram um avião com passageiros para derrubar JK
A tentativa fracassada de golpe contra o presidente, no ano de 1959, durou só dois dias e acabou conhecida como Revolta de Aragarças
Há 60 anos, um avião da Panair que havia decolado do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, rumo a Manaus, com escala em Belém, desapareceu durante a madrugada em pleno voo. A bordo, entre passageiros e tripulantes, viajavam 46 pessoas, incluindo o senador Remy Archer (PSD-MA).
Notícias desencontradas logo começaram a correr. Nas primeiras horas da manhã de 3 de dezembro de 1959, um desnorteado senador Victorino Freire (PSD-MT) subiu à tribuna do Palácio Monroe, a sede do Senado, no Rio, para expor sua aflição: “Preparava-me para sair de casa quando soube que havia desaparecido o Constellation da Panair em que viajavam o senador Remy Archer, meu amigo, e a filha do jornalista Carlos Castello Branco [importante colunista político da época]. Aqui permanecemos numa verdadeira tortura de espera e ansiedade. O Repórter Esso chegou a divulgar que o avião havia caído. A senhora Archer, com três filhinhos pequenos, em pranto, estava certa de que o marido havia morrido. No mesmo desespero se encontrava aqui nesta Casa o jornalista Castello Branco, também meu velho e querido amigo”.
A fala de Freire está catalogada no Arquivo do Senado. De acordo com documentos do mesmo acervo histórico, os senadores Otávio Mangabeira (UDN-BA) e Afonso Arinos (UDN-RJ) interromperam o colega e avisaram que haviam acabado de receber, de mensageiros anônimos, cópias mimeografadas de um manifesto que explicava tudo, assinado por um grupo que se intitulava Comando Revolucionário.
Não se tratava de desastre aéreo. O avião da Panair, na realidade, havia sido sequestrado no ar — o primeiro sequestro de avião da história do Brasil. Estava em curso uma tentativa de golpe de Estado para derrubar o presidente Juscelino Kubitschek, fechar o Congresso Nacional e instaurar uma ditadura militar. O Comando Revolucionário era formado essencialmente por oficiais da Aeronáutica e do Exército.
LUTA DEMOCRÁTICA/BIBLIOTECA NACIONAL
A conspiração teve mais duas frentes. Na noite do dia 2 de dezembro, poucas horas antes de o piloto da Painair ser rendido quando atravessava a Bahia, outro grupo roubou da Base Aérea do Galeão, no Rio, três aviões da Aeronáutica repletos de armas e explosivos, e um terceiro grupo levou do Aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte, um teco-teco pertencente a uma empresa privada também carregado de armamento.
De posse dos cinco aviões, os rebeldes voaram para Aragarças, uma cidadezinha dos confins de Goiás, na divisa com Mato Grosso, assim chamada por localizar-se na confluência dos Rios Araguaia e das Garças. Aragarças seria o quartel-general da revolta. O plano mais imediato era bombardear o Palácio do Catete e matar JK. O movimento, que duraria só dois dias e acabaria fracassando, ficou conhecido como Revolta de Aragarças.
“Proclamo meu desacordo com essas situações violentas. Sejam quais forem as falhas do Governo, por mais graves e angustiosos que sejam os problemas brasileiros, não será à custa de movimentos de indisciplina, subversivos, revolucionários, que iremos ao encontro das legítimas aspirações do povo. Somente dentro da lei removeremos as dificuldades”, discursou o senador Lameira Bittencourt (PSD-PA), líder do Governo no Senado.
“Quero deixar patente a reprovação da bancada udenista a qualquer movimento subversivo. A nação precisa de paz e ordem para prosseguir no exercício da sua vida democrática. Qualquer perturbação trará profundos prejuízos não à política ou aos partidos, mas à pátria brasileira”, concordou o senador João Villasbôas (UDN-MT), líder da oposição ao Governo.
A aliança partidária PSD-PTB governava o Brasil desde 1946. Setores das Forças Armadas estavam insatisfeitos com a hegemonia ininterrupta do getulismo e do trabalhismo e ansiavam por ver no poder a UDN, partido oposicionista que havia perdido as três eleições presidenciais posteriores à ditadura do Estado Novo. Esses militares já haviam planejado golpes para destronar a dobradinha PSD-PTB em 1954, 1955 e 1956, nas três vezes sem sucesso.
Em dezembro de 1959, o estopim da Revolta de Aragarças foi a repentina decisão de Jânio Quadros, o presidenciável apoiado pela UDN, de renunciar à candidatura. A eleição estava marcada para outubro de 1960. Os militares que se aferravam a Jânio e à UDN entenderam que a desistência permitiria a JK eleger seu sucessor e perpetuar a chapa PSD-PTB no controle do Brasil.
Antes da renúncia de Jânio, o autointitulado Comando Revolucionário já estava em alerta por causa de dois boatos fortes. O primeiro dava conta que JK negociava uma emenda constitucional que lhe permitiria a reeleição. O segundo boato dizia que o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, expoente do PTB, orquestrava um golpe para barrar a provável vitória de Jânio e da UDN e instaurar uma ditadura sindicalista no país. “Não tenhamos dúvida de que a revolução, a revolta, o motim ou golpe frustrado de Aragarças foi muito fruto da decepção causada pela retirada da campanha do senhor Jânio Quadros”, afirmou o senador Afonso Arinos.
O manifesto divulgado pelo Comando Revolucionário descrevia o Poder Executivo como corrupto, o Legislativo como demagógico e o Judiciário como omisso. E citava o risco de o Brasil cair nas garras do comunismo: “Em face desse estado de degeneração e deterioração, os adeptos do comunismo infiltrados nos mais variados setores, dentro e fora da administração pública, procuram tirar o máximo benefício da situação de miséria e de fome das populações para implantar o seu regime de escravidão do ser humano”.
A Revolta de Aragarças falhou porque os insurgentes não conseguiram o apoio imaginado. Eles esperavam que levas de militares de todos os cantos do Brasil se somariam ao movimento assim que o manifesto fosse divulgado. Entretanto, soldado nenhum saiu dos quartéis. Também contavam com a adesão de políticos da UDN. Os udenistas, contudo, calcularam que uma revolta militar nesse momento daria motivo para JK decretar estado de sítio, cancelar a eleição de 1960 e, aí sim, apossar-se de vez da cadeira presidencial.
No fim, Aragarças envolveu cerca de 15 rebeldes apenas, incluindo três civis. Dado esse pífio contingente, as forças militares do Governo sufocaram a insurreição rapidamente, já no dia seguinte ao sequestro do voo da Panair. Não houve mortes. Um dos aviões militares roubados foi metralhado na pista de pouso de Aragarças e pegou fogo. Os revoltosos que estavam a bordo se renderam e foram presos. Os demais usaram os outros aviões para fugir para a Bolívia, o Paraguai e a Argentina. Os reféns do avião da Panair, inclusive o senador Remy Archer, foram libertados em Buenos Aires, sãos e salvos.
Apesar de o líder da UDN no Senado ter repudiado a Revolta de Aragarças, houve senadores do partido que não endossaram a condenação e, em vez disso, aplaudiram os insurretos. O senador Otávio Mangabeira afirmou que concordava plenamente com o diagnóstico da situação nacional descrito no manifesto do Comando Revolucionário: “Confesso que amo as rebeldias legítimas. O que eu detesto são as acomodações exageradas. A nação que se habitua a acomodar-se a tudo é uma nação que se educa na escola da fraqueza. No dia em que for chamada a defender a pátria, não estará moralmente habilitada a fazê-lo. Apesar de divergir deles no ponto em que pedem a demolição da estrutura constitucional e a implantação da ditadura militar, trago minha palavra de compreensão para aqueles jovens militares levados pelo arroubo de seu temperamento e pelo fogo natural de sua idade.”
O senador Afonso Arinos comparou Aragarças com a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, ocorrida em 1922: “Fui testemunha pessoal. Eu era adolescente e morava ao lado do Forte de Copacabana. Assisti na noite de 4 para 5 de julho àquele pugilo de jovens passar de réprobos [malvados] de uma repressão brutal à condição de heróis impolutos de uma geração. Não podemos agora saber se Aragarças se trata de uma Copacabana aérea. É melhor não tomarmos aqui uma atitude de condenação de que depois venhamos a nos arrepender."
Mangabeira gostou da comparação histórica e citou personagens inicialmente tidos como vilões e depois transformados em heróis: “Por que esquartejaram Tiradentes? E quem é Tiradentes hoje? Que fez Deodoro a 15 de novembro de 1889? Onde está ele agora? Que fez Getúlio Vargas a 3 de outubro de 1930? Ninguém, tampouco eu, tem autoridade para condenar golpistas só pelo fato de serem golpistas".
O senador Daniel Krieger (UDN-RS) acrescentou: “Sentir-me-ia diminuído perante mim próprio se assistisse calado tachar-se de covardes aqueles que, ainda que erradamente, dão exemplo de coragem e desprendimento a este país”.
A Revolta de Aragarças foi uma reedição de outro movimento militar bastante parecido, inclusive com o uso de aviões militares, que havia ocorrido em fevereiro de 1956, apenas duas semanas após a posse de JK: a Revolta de Jacareacanga, no sul do Pará. Em 1959, os senadores não puderam deixar de fazer comparações. Eles mencionaram o major-aviador Haroldo Veloso, que havia sido líder revoltoso de Jacareacanga e, após ser anistiado pelo presidente, voltou à cena em Aragarças.
“Da primeira loucura, a de Jacareacanga, disse eu [em 1956] nesta Casa e ao senhor presidente da República que o sistema de se conceder anistia a criminosos políticos antes de a Justiça se pronunciar era muito perigoso. Anistiados, foram endeusados, voltaram à Aeronáutica e foram promovidos! Agora fazem esse segundo movimento. Estamos verificando quão acertado eu estava”, criticou o senador Caiado de Castro (PTB-DF).
“Atos de sedição devem ser punidos com rigor. Se não o forem, ensejam a repetição a que agora assistimos”, concordou o senador Lima Teixeira (PTB-BA). “Fique a advertência para que não se deixe passar em branca nuvem um episódio que poderá ser mais grave da terceira vez. Que a punição se concretize, a fim de que o povo se tranquilize e confie na autoridade do chefe da nação”.
JK seguiu os conselhos. Ao contrário do que fizera em 1956, o presidente não concedeu anistia aos golpistas em 1959.
De acordo com o jornalista Wagner William, autor da biografia O Soldado Absoluto (Editora Record), sobre o marechal Henrique Lott, o ministro da Guerra que sufocou Aragarças, o presidente JK enxergou a malograda revolta como sinal de que o clima político se tornaria explosivo e o país ficaria ingovernável caso a sua adversária UDN não chegasse logo ao poder.
“Foi pensando dessa forma que Juscelino lançou Lott como o candidato presidencial do PSD na eleição de 1960. Ele sabia que o marechal não tinha chance de vencer. A estratégia de Juscelino era que a UDN o sucederia, mas, por causa da crise econômica do país, governaria com muita dificuldade e se desgastaria. Numa frente, Juscelino aplacaria o desejo de poder da UDN. Em outra, ele próprio se apresentaria na eleição de 1965 como o candidato da salvação nacional”, explica William.
Poucos dias depois de Aragarças, Jânio Quadros anunciou que era de novo candidato presidencial ― “Jânio renuncia à renúncia”, noticiou um jornal. Ele venceu a disputa eleitoral de 1960, marcando enfim a chegada da UDN ao poder e esfriando os ânimos conspiratórios das Forças Armadas. Mas a paz não duraria. A famigerada renúncia de Jânio à Presidência da República, em agosto de 1961, e a tumultuada posse do vice João Goulart, no mês seguinte, despertariam os golpistas. A resposta deles viria em 1º de abril de 1964. Dessa vez, não falhariam.
A reportagem, publicada originalmente aqui, faz parte da seção Arquivo S, resultado de uma parceria entre o Jornal do Senado, a Agência Senado e o Arquivo do Senado brasileiro. Reportagem e edição: Ricardo Westin | Pesquisa histórica: Arquivo do Senado | Edição de fotografia: Pillar Pedreira | Infográfico e vídeo: Diego Jimenez
José Márcio Camargo: A polêmica do Copom
Os efeitos da queda de juros estão por vir. Interromper o ciclo agora não significa parar de forma definitiva
Em sua última reunião, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central do Brasil cortou a taxa básica de juros da economia brasileira (Selic) em 0,25 ponto de porcentagem (p.p.), para o nível mais baixo da série histórica: 4,25% ao ano. No comunicado e na ata da reunião, os diretores anunciaram que, em razão das incertezas quanto à potência da política monetária e das defasagens entre as decisões de política e seus efeitos sobre o nível de atividade e a taxa de inflação, iriam interromper o ciclo de cortes de juros na reunião de março.
A ata deixa claro que uma das preocupações dos diretores do Banco Central é o nível de capacidade ociosa existente hoje na economia brasileira. Após uma recessão extremamente perversa, com grande perda de capacidade produtiva, destruição e má alocação de capital, ainda que a produção e o Produto Interno Bruto (PIB) continuem muito abaixo dos níveis recordes de 2012/2013 e o desemprego em 11,0% da força de trabalho, a pergunta que ficou no ar é quanto de ociosidade ainda existe na economia, após três anos de crescimento de 1,1% ao ano.
Alguns dias após a decisão, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou a taxa de inflação de janeiro de 2020, que surpreendeu positivamente os analistas, mostrando o menor número para janeiro desde a implantação do Plano Real, 0,21%. Ao mesmo tempo, os dados de crescimento da atividade do último trimestre de 2019 mostraram desaceleração em relação ao terceiro trimestre, gerando revisões para baixo das estimativas de crescimento em 2020.
Imediatamente, alguns analistas se prontificaram a anunciar que o Copom havia se precipitado ao anunciar o fim do ciclo de queda da Selic e que, quem sabe já na próxima reunião, tenha de voltar atrás e continuar o ciclo de reduções. Afinal, com desemprego em 11,0% da força de trabalho e a economia crescendo a uma taxa mais próxima de 2,0% do que de 3,0% e as expectativas para a inflação abaixo da meta em 2020 e 2021, certamente há, ainda, muita capacidade ociosa para ser utilizada antes que pressões inflacionárias apareçam no horizonte.
Porém, depois do conjunto de reformas que foram implementadas ao longo dos últimos 3,5 anos – o teto para o crescimento do gasto público, a troca da Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) pela Taxa de Longo Prazo (TLP), a reforma trabalhista, a liberalização da terceirização, a Lei da Liberdade Econômica, a reforma da Previdência, entre outras – e das reformas microeconômicas em implementação pelo Banco Central, ninguém sabe com certeza o efeito de uma redução da taxa Selic em 2,25 p.p., ou seja, 35% de seu valor inicial (6,5% ao ano), nem quanto tempo vai levar para que a decisão de política monetária (redução dos juros) comece a ter efeitos sobre o nível de atividade e a taxa de inflação.
O Copom iniciou o ciclo de queda da Selic em 31 de julho de 2019, ou seja, há seis meses. Antes das reformas, as estimativas indicavam que a defasagem era de aproximadamente nove meses. Caso não tenha ocorrido nenhuma mudança, o que é pouco provável, ainda assim os efeitos da queda de juros estão por vir. Portanto, interromper o ciclo de queda neste momento significa parar para ver como vai reagir a economia diante do volume substancial de estímulos já implementados, e não necessariamente parar de forma definitiva.
Antes da reunião do Copom, nossa avaliação era de que o Banco Central deveria manter a Selic em 4,5% ao ano, exatamente por causa das incertezas levantadas no comunicado e na ata. Nossas estimativas (que, óbvio, não são exatas) apontam para uma taxa neutra (que nem gera pressão inflacionária nem deflacionária) de 2,1% real ao ano e, em decorrência das reformas, caindo 0,31 p.p. por trimestre. Como a previsão de inflação é 3,5% em 2020, a Selic real estaria em 1,0% ao ano, provavelmente abaixo da neutra. Neste cenário, seria mais adequado esperar que os efeitos das quedas já realizadas e as novas reformas em andamento se manifestassem, antes de continuar a reduzir os juros, provavelmente no segundo semestre. A queda de 0,25 p.p. não muda este cenário.
* Professor do Departamento de Economia da PUC/Rio, é economista chefe da Genial Investimentos
Demétrio Magnoli: Repórter cometeu o pecado capital de expor fábrica da 'guerra da informação'
Nesse passo, Patrícia Campos Mello mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver
O governo Bolsonaro odeia o jornalismo profissional. No caso da jornalista Patrícia Campos Mello, porém, o caso é visceral. Na campanha de 2018, Bolsonaro declarou uma “guerra” à imprensa, dando a senha para uma enxurrada de calúnias e ameaças à repórter que investigava a máquina eleitoral de difusão de fake news.
Agora, na CPMI das Fake News, Eduardo Bolsonaro apoiou-se nos ombros de um pulha para, num exercício de covardia, atingir sua integridade pessoal. Não é casual: Patrícia cometeu o pecado capital de invadir uma redoma proibida, expondo os contornos da fábrica da “guerra da informação”. Nesse passo, mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver.
Fake news são o complexo de notícias falsas, operações de difamação e campanhas de promoção do ódio que ganhou dimensões inéditas com a universalização da internet. O fenômeno novo é a sofisticação do arsenal empregado na guerra virtual da informação.
No início, mais de uma década atrás, tudo se resumia a blogueiros de aluguel recrutados por partidos políticos para o trabalho sujo na rede. A imprensa, ainda soberana, decidiu ignorar o ruído periférico. Hoje, o panorama inverteu-se: a verdade factual sucumbe, soterrada pela difusão globalizada de fake news.
Os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet. Nos EUA, entre 2007 e 2016, a renda publicitária obtida pelos jornais tombou de US$ 45,4 bilhões para US$ 18,3 bilhões. Em 2016, o Google abocanhava cerca de quatro vezes mais em publicidade que toda a imprensa impressa americana —e isso sem produzir uma única linha de conteúdo jornalístico original.
O novo sistema, baseado na elevada rentabilidade da fraude, descortinou o caminho para a abolição da verdade factual na esfera do debate público.
A fabricação de fake news tornou-se parte crucial das estratégias de Estados, governos, organizações terroristas e supremacistas. A China, que prioriza o público interno, e a Rússia, que se dirige principalmente à opinião pública europeia e americana, são atores centrais nesse palco.
Graças ao Facebook, as forças armadas de Mianmar deflagraram uma eficiente campanha de limpeza étnica contra a minoria rohingya e o governo nacionalista indiano consegue inflamar a xenofobia contra os muçulmanos de Assam.
Perde-se no passado o esforço amador do PT para criar um Pensador Coletivo por meio de núcleos de militantes treinados no que o responsável pelo setor classificou como “guerra de guerrilha da internet”.
Atualmente, no mundo todo, governos e partidos populistas, na direita e na esquerda, empregam aparatos especializados na difusão massiva de fake news. O governo Bolsonaro estabeleceu, com verba pública, dentro do Planalto, um “gabinete do ódio” destinado a coordenar sua “guerra da informação”. No fim, o que está em jogo é o funcionamento da democracia, como explica o jornalista Eugênio Bucci no livro “Existe Democracia sem Verdade Factual?”.
A imprensa também está em perigo, junto com a democracia. Se, no plano dos fatos, verdade e falsidade tornam-se narrativas indistinguíveis, o jornalismo profissional perde seu objeto. Daí, emerge uma nova missão jornalística: pautar as fake news, como se pautam políticas públicas, eleições, debates parlamentares, guerras reais, inundações.
A checagem ritual de notícias falsas, iniciativa útil, é totalmente insuficiente. No campo analítico, trata-se de iluminar os sentidos políticos das campanhas de fake news, evidenciando suas estruturas de linguagem, seus alvos imediatos e suas metas estratégicas. No campo investigativo, é preciso descerrar o véu que cobre as engrenagens de fabricação das fake news, expondo os atores políticos e empresariais envolvidos na guerra contra a verdade. Patrícia engajou-se nisso —e, por isso, virou alvo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Luiz Carlos Azedo: O outro lado da praça
“Com o deslocamento da ala mais ideológica do centro do poder, o Palácio do Planalto deve ganhar mais coordenação e eficiência, porém, reforça seu distanciamento do campo político”
A confirmação da nomeação do general Braga Netto como novo ministro da Casa Civil, com o deslocamento do deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS) dessa pasta para o Ministério da Cidadania, reforça o viés bonapartista do governo Bolsonaro, o que não significa que esse seja o caráter do regime político brasileiro. Como se sabe, o bonapartismo se caracteriza pela centralização do poder na figura de um líder populista que se coloca acima das classes sociais e procura se legitimar através da comunicação direta com as massas. Estamos longe, porém, de um regime autoritário e militarista, porque o Brasil é uma democracia de massas, na qual o Congresso e o Judiciário têm grande protagonismo.
A mudança no Palácio dos Planalto completa uma troca de guarda: saiu a tropa de assalto e entrou a de ocupação. Os militares que darão as cartas no Palácio do Planalto — além do general Braga Netto, o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva — sempre trabalharam juntos e são mais novos e bem mais moderados do que o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, que já não tem a mesma ascendência sobre Bolsonaro do começo do governo.
Em termos de imagem, a ida de mais um general para o Planalto agrega ao governo valores identificados pela opinião pública como atributos positivos dos militares, como austeridade, competência e patriotismo. Com o deslocamento da ala mais ideológica do governo do centro do poder, o Palácio do Planalto deve ganhar mais coordenação e eficiência, porém, reforça seu distanciamento do campo político propriamente dito.
Entretanto, as pesquisas de opinião estão mostrando que a estratégia de Bolsonaro de manter a polarização com a esquerda, ignorar a imprensa e manter distância dos políticos está dando resultados positivos em termos eleitorais. O presidente da República mantém grande vantagem em relação aos seus principais adversários nas pesquisas, como candidato à reeleição, enquanto o governo, que sofre desgastes por causa de suas crises, recupera pontos na aprovação. Manter-se como um político antissistema não deixa de ser uma proeza de Bolsonaro, já que está no vértice do próprio sistema.
O outro lado dessa moeda, porém, é o fortalecimento do Congresso como poder político. A postura avessa às articulações políticas de Bolsonaro levou de volta ao Congresso a negociação dos interesses da sociedade e a liderança das reformas. O presidente da República já deu demonstrações de que sua agenda prioritária é a dos costumes e de combate aos movimentos identitários, não só com declarações, mas com atos administrativos. Mas essa pauta não prospera no Congresso, muito menos no Judiciário.
Disneylândia
Bolsonaro também não se entusiasma com as propostas de reformas que podem causar desgastes com os setores que o apoiam, como policiais, caminhoneiros e evangélicos. O ministro da Economia, Paulo Guedes, que lidera as reformas econômicas no governo, também não ajuda muito, por causa de declarações bombásticas, como comparar os servidores públicos a parasitas. A última de Guedes foi um comentário desastroso sobre o câmbio, que revelou grande preconceito em relação aos mais pobres.
“Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Vou exportar menos, substituição de importações, turismo, todo mundo indo para a Disneylândia. Empregada doméstica indo pra Disneylândia, uma festa danada. Mas espera aí? Espera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai ali passear nas praias do Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeiro do Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu. Vai passear no Brasil, vai conhecer o Brasil, que está cheio de coisa bonita para ver”, disse.
Com essas e outras, o fato é que o Congresso ganha cada vez mais protagonismo, porque os políticos sabem agarrar as oportunidades com as duas mãos e resolveram assumir como bandeiras as reformas da economia, principalmente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Vão matar no peito a reforma tributária e a reforma administrativa, das quais o governo já abriu mão. A ironia, porém, é que o grande beneficiário das reformas, em termos eleitorais, será Bolsonaro. Enquanto o Congresso arcará com o desgaste das maldades, o presidente da República colherá os louros dos seus benefícios para a economia. Mas é do jogo.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-outro-lado-da-praca/
Arnaldo Jardim: Política Nacional de Resíduos Sólidos completa uma década
Distribuiu obrigações para o lixo. Mas ainda falta muito a ser feito. Facilitar reciclagem é imperativo
Neste ano, em 2 de agosto, a Política Nacional de Resíduos Sólidos completará 10 anos de vigência. Depois de longa tramitação no Congresso Nacional, conseguimos aprovar uma lei revolucionária, em termos ambientais, para enfrentar um problema antigo do país, e do mundo –o que fazer com todo o lixo gerado pela atividade humana.
O Brasil produz 166 mil toneladas de lixo por ano e, o brasileiro, quase 1kg por dia. O grande dilema é como estimular a produção e o consumo de bens, mas agora com menor impacto ambiental. Para isso, a PNRS criou o conceito da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, distribuindo a “obrigação de fazer” entre os setores envolvidos.
Para os governos federal e estaduais, a lei atribuiu a obrigação de estabelecer os planos de resíduos, de garantir a infraestrutura para sua disposição adequada e de fiscalizar a lei. A gestão integrada dos resíduos sólidos, incluído a implantação da coleta seletiva, é de responsabilidade dos governos municipais.
Para o setor privado, atribuiu-se a obrigação da “logística reversa”, ou seja, recuperação dos resíduos produzidos pelo setor e sua destinação adequada. E à população, o papel de acondicionar de forma diferenciada seus resíduos e rejeitos, descartando-os corretamente.
A aprovação da PNRS colocou o País, relativamente aos instrumentos disponíveis para a gestão de resíduos sólidos, no mesmo patamar que os países desenvolvidos. O desafio seria a sua implementação.
Apesar das enormes dificuldades, muitos avanços foram alcançados. Mais de a metade dos municípios brasileiros (64%) já disponibilizam informações sobre sua gestão de resíduos sólidos. Os Planos Municipais de Gestão de Resíduos Sólidos já são elaborados por 1.765 municípios. Esses planos estabelecerão as metas de redução, reutilização, coleta seletiva e reciclagem.
Que pese os lixões ainda fazerem parte da realidade brasileira, já contamos, segundo o Ministério do Meio Ambiente, com 55% dos municípios depositando seus resíduos sólidos urbanos em aterros sanitários. A coleta seletiva, segundo dados da Ciclosoft/2018 do Cempre (Compromisso Empresarial para a Reciclagem), já estava implementada em 1227 cidades (22% dos municípios brasileiros).
A evolução é lenta, mas consistente, e passou a priorizar a participação das cooperativas de catadores. Em relação à logística reversa, implementada por meio dos Acordos Setoriais, muito já se avançou. O índice de coleta de embalagens plásticas de óleos lubrificantes já alcança 86%.
No setor de lâmpadas, verifica-se a recuperação de 657 toneladas em 1.636 pontos de coleta instalados em 257 municípios. O compromisso do setor das embalagens em geral (alumínio, papel e plástico) encerrou sua 1ª fase no final de 2017, reduzindo em 21,3% a quantidade de embalagens dispostas em aterro.
Avançamos muito, mas ainda há muito para ser feito. A implementação da lei tem sido um aprendizado para todos e trouxe inúmeros ensinamentos, dentre os quais a necessidade de maior integração entre os poderes constituídos de forma que Executivo, Judiciário e, especialmente, o Ministério Público adotem uma visão comum para a implementação da política.
É importante também estarmos abertos à incorporação de novos princípios, haja vista que a busca pela sustentabilidade passa obrigatoriamente pela adoção de um modelo que ultrapassa o foco estrito das ações de gestão de resíduos e de reciclagem.
O modelo da “Economia Linear” de extrair, transformar e descartar, ainda que de forma ambientalmente adequada, atingiu seus limites. A PNRS deve incorporar os princípios da Economia Circular –um novo pensar sobre a produção que promova a dissociação entre o crescimento econômico e o aumento do consumo de recursos.
Além disso, é imperativo buscar uma sustentabilidade econômica, haja vista que um dos principais entraves para o crescimento da cadeia da reciclagem é a carga tributária. Não faz sentido o setor de reciclagem pagar a mesma carga tributária que o restante da indústria, ou multitributado.
Nesse sentido, criamos, ao lado de 27 entidades representativas do setor privado, a Frente Parlamentar pela Criação de Estímulos Econômicos para a Preservação Ambiental –a Frente da Economia Verde–, com o objetivo de buscar o desenvolvimento de um sistema tributário que leve em consideração o impacto ambiental dos diversos bens e serviços.
Esperamos que a resposta dos agentes econômicos a estes estímulos venha na forma de incremento da atividade industrial ambientalmente responsável.
Luiz Carlos Azedo: A militarização do Planalto
“Os militares no governo têm revelado mais bom senso diante das crises e conflitos do que a ala ideológica e religiosa que cerca o presidente Jair Bolsonaro”
A queda do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, era pedra cantada. A surpresa é a sua substituição por mais um oficial de quatro estrelas da ativa, o que significará a completa militarização do Palácio do Planalto. O presidente Jair Bolsonaro convidou para o cargo o general Braga Neto, chefe do Estado-Maior do Exército e ex-interventor na segurança do Rio de Janeiro, função que exerceu com discrição e habilidade política. Caso não aceite o convite, o nome mais cotado para o cargo é o do almirante de esquadra Flávio Rocha, atual comandante do 1º Distrito Naval, recém-promovido a quatro estrelas, que já havia sido convidado para uma assessoria especial da Presidência.
Aliado de primeira hora na campanha presidencial, Onyx deverá ser deslocado para o Ministério da Cidadania, no lugar do emedebista Osmar Terra. A troca de guarda na Casa Civil era esperada, mas não ocorreu ainda por causa da relação de amizade entre ambos. A pasta foi completamente esvaziada, principalmente depois da perda do Programa de Privatizações e Investimentos (PPI). A gota d’água foi o desempenho de Onyx na negociação com o Congresso, na qual o governo acabou cedendo R$ 30 bilhões em emendas impositivas do relator e das comissões, que foram vetadas por Bolsonaro —o Palácio do Planalto teve que negociar um acordo com os partidos da sua própria base para recuperar R$ 11 bilhões, por causa da derrubada dos vetos.
A substituição de Onyx pelo general Braga Neto pode melhorar o funcionamento interno do governo. Essa será a sua missão principal. A doutrina de organização vigente no Exército se baseia na cooperação e coordenação entre suas unidades, mas nunca superou completamente as tendências autárquicas de suas grandes unidades, e da própria Força em relação à Marinha e à Aeronáutica. O outro lado da moeda é a “militarização” dos processos decisórios, confinados a círculos restritos e de cima para baixo, o que vem se traduzindo na exclusão da sociedade civil e dos demais níveis de governo dos fóruns de discussão e deliberação sobre políticas públicas, mesmo em questões nas quais esse tipo de concepção induzem ao erro.
O Estado brasileiro precisa ser enxugado, é verdade, mas seu caráter democrático está consagrado pela Constituição de 1988. É um “Estado ampliado”, em razão da autonomia de muitos de seus órgãos e da participação colegiada da alta burocracia e de representantes da sociedade nas decisões. Nos governos do PSDB e do PT, pela própria natureza social-democrata desses partidos, esses fóruns e organismos foram, num primeiro momento, normatizados e consolidados. Num segundo, porém, foram instrumentos de aparelhamento partidário, cooptação de lideranças e abdução de interesses que, a rigor, deveriam ser negociados no âmbito do Congresso, e não nos gabinetes da Esplanada.
Burocracia
Agora, há um movimento inverso, cujo desfecho não está suficientemente claro. Mas caminha numa direção de completo apartamento do processo decisório do governo de instâncias de participação da sociedade e representação subnacional — como governos estaduais e municipais —, ainda que alguns desses fórum subnacionais sejam poderosíssimos, como é o caso do conselho de secretários de Fazenda. O outro lado da moeda será a reorganização autônoma da sociedade civil e o fortalecimento do poder de negociação do Congresso, para onde convergirão todas as demandas e reivindicações dos governadores e prefeitos — além de entidades da sociedade civil. Resta saber como o governo lidará com isso.
A presença de militares no governo por si só não significa a “militarização” das políticas públicas, o que não teria a menor chance de dar certo. Mas essa tendência existe, sobretudo quando as concepções dos militares sobre certos assuntos, como a Amazônia, por exemplo, convergem com grandes interesses econômicos (como no caso da mineração) ou de natureza ideológica e religiosa (caso da política indigenista). Entretanto, é inegável que os militares no governo têm revelado mais bom senso diante das crises e conflitos do que a ala ideológica e religiosa que cerca o presidente Jair Bolsonaro.
Uma outra questão é a relação dos militares com os servidores civis, que têm cultura completamente distinta e mais experiência na gestão da máquina pública. A cooperação entre ambos pode dar mais eficiência à máquina do governo, mas os conflitos e tensões serão inevitáveis em razão dessas diferenças. Todos os estudos sobre a burocracia mostram que a sua eficiência depende da confiança e da observação das normas. E que o “espírito de corpo” dos servidores, sobretudo em funções essenciais do Estado, reage às mudanças de rotina quando impostas sem discussão e negociação.
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William Waack: A bomba acima de todos
O governo está em dificuldades para tocar um projeto político central
A ação do governo em torno de um grande eixo estratégico – reduzir o balofo Estado brasileiro – tem sido em parte uma lição de oportunidades perdidas. Vendo o Estado brasileiro como principal entrave ao crescimento, a equipe de Paulo Guedes colocou a reforma administrativa no centro do foco. Tratar do funcionalismo público seria a maneira direta de lidar com contas públicas, eficiência e gestão.
Conforme já assinalado aqui, está na elite do funcionalismo público brasileiro (especialmente federal), por sua capacidade de organização e influência, o grande adversário da proposta de Paulo Guedes de uma ampla reforma do Estado, começando pela administrativa. Nesse sentido, do ponto de vista político, a operação toda começou mal.
Em parte pelo próprio ministro, que parece subestimar como se propagam na esfera legislativa e político-partidária (fortemente influenciada pelo funcionalismo em Brasília) palavras que ele profere em público sem calcular consequências. Ao adversário neste momento ele entregou a bandeira de “vítima”, que é nas narrativas políticas sempre uma posição confortável.
No fundo está, porém, uma outra questão política mais abrangente e profunda. É o tamanho do empenho do Executivo em levar adiante de forma coordenada e organizada no Legislativo uma operação para alterar substancialmente o serviço público, que justamente ali tem um de seus mais importantes pilares de sustentação. É difícil fugir à constatação de que o problema central é a dificuldade do próprio presidente em ditar a agenda política (aliás, seu grande e pouco usado instrumento de poder).
Por detrás da “fumaça” sobre o campo de batalha da reforma administrativa, está uma realidade crítica. Que deveria robustecer o governo com argumentos imbatíveis. De fato, existe no Brasil um “prêmio salarial” pago pelo contribuinte ao servidor público, prêmio que não encontra comparação nas principais economias.
Os números são de diversas instituições, como Banco Mundial, FGV ou Ipea, que compararam remunerações nos setores público e privado levando em consideração a semelhança entre funções. No Brasil, esse prêmio chega a 96%, enquanto a média mundial (setor público melhor remunerado que o privado) é de 21%. Nos Estados esse “prêmio” é menor e, nos municípios, praticamente se equivalem as remunerações.
O problema, assinalam esses estudos, não está no atendente do posto de saúde ou no agente penitenciário, mas, sim, na elite do funcionalismo. E vem de longe, não pode ser atribuído a um só governo. Servidores públicos no topo conseguiram até melhorar seu rendimento em período de grave crise econômica: durante a recente recessão, a diferença a favor dessa categoria frente ao setor privado aumentou (segundo o Ipea). É o resultado evidente alcançado pela sua capacidade de articulação política.
Em estudos do Banco Mundial, a equipe de Guedes foi buscar recomendações que parecem sensatas: as mais de 300 carreiras do funcionalismo público brasileiro necessitam ser sistematizadas e reorganizadas; o tempo médio para que um funcionário chegue ao topo da carreira precisaria ser esticado; a taxa de reposição deles precisaria ser reduzida. A situação só se agravou nos últimos tempos. A pressão desse setor sobre as contas públicas se juntou ao precário estado delas: 12 dos Estados brasileiros não vão conseguir respeitar um dos dispositivos essenciais da Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe gastos acima de 60% com folha de pessoal.
Com o que chegamos à famosa bomba fiscal – no fundo, o fator central condicionando os acontecimentos. Não é apenas uma questão técnica. É política no seu significado mais amplo, como ficou mais uma vez demonstrado para Guedes e Bolsonaro.
O governo está em dificuldades para tocar um projeto político central
A ação do governo em torno de um grande eixo estratégico – reduzir o balofo Estado brasileiro – tem sido em parte uma lição de oportunidades perdidas. Vendo o Estado brasileiro como principal entrave ao crescimento, a equipe de Paulo Guedes colocou a reforma administrativa no centro do foco. Tratar do funcionalismo público seria a maneira direta de lidar com contas públicas, eficiência e gestão.
Conforme já assinalado aqui, está na elite do funcionalismo público brasileiro (especialmente federal), por sua capacidade de organização e influência, o grande adversário da proposta de Paulo Guedes de uma ampla reforma do Estado, começando pela administrativa. Nesse sentido, do ponto de vista político, a operação toda começou mal.
Em parte pelo próprio ministro, que parece subestimar como se propagam na esfera legislativa e político-partidária (fortemente influenciada pelo funcionalismo em Brasília) palavras que ele profere em público sem calcular consequências. Ao adversário neste momento ele entregou a bandeira de “vítima”, que é nas narrativas políticas sempre uma posição confortável.
No fundo está, porém, uma outra questão política mais abrangente e profunda. É o tamanho do empenho do Executivo em levar adiante de forma coordenada e organizada no Legislativo uma operação para alterar substancialmente o serviço público, que justamente ali tem um de seus mais importantes pilares de sustentação. É difícil fugir à constatação de que o problema central é a dificuldade do próprio presidente em ditar a agenda política (aliás, seu grande e pouco usado instrumento de poder).
Por detrás da “fumaça” sobre o campo de batalha da reforma administrativa, está uma realidade crítica. Que deveria robustecer o governo com argumentos imbatíveis. De fato, existe no Brasil um “prêmio salarial” pago pelo contribuinte ao servidor público, prêmio que não encontra comparação nas principais economias.
Os números são de diversas instituições, como Banco Mundial, FGV ou Ipea, que compararam remunerações nos setores público e privado levando em consideração a semelhança entre funções. No Brasil, esse prêmio chega a 96%, enquanto a média mundial (setor público melhor remunerado que o privado) é de 21%. Nos Estados esse “prêmio” é menor e, nos municípios, praticamente se equivalem as remunerações.
O problema, assinalam esses estudos, não está no atendente do posto de saúde ou no agente penitenciário, mas, sim, na elite do funcionalismo. E vem de longe, não pode ser atribuído a um só governo. Servidores públicos no topo conseguiram até melhorar seu rendimento em período de grave crise econômica: durante a recente recessão, a diferença a favor dessa categoria frente ao setor privado aumentou (segundo o Ipea). É o resultado evidente alcançado pela sua capacidade de articulação política.
Em estudos do Banco Mundial, a equipe de Guedes foi buscar recomendações que parecem sensatas: as mais de 300 carreiras do funcionalismo público brasileiro necessitam ser sistematizadas e reorganizadas; o tempo médio para que um funcionário chegue ao topo da carreira precisaria ser esticado; a taxa de reposição deles precisaria ser reduzida. A situação só se agravou nos últimos tempos. A pressão desse setor sobre as contas públicas se juntou ao precário estado delas: 12 dos Estados brasileiros não vão conseguir respeitar um dos dispositivos essenciais da Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe gastos acima de 60% com folha de pessoal.
Com o que chegamos à famosa bomba fiscal – no fundo, o fator central condicionando os acontecimentos. Não é apenas uma questão técnica. É política no seu significado mais amplo, como ficou mais uma vez demonstrado para Guedes e Bolsonaro.