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Folha de S. Paulo: Manifestos pró-democracia buscam recriar clima de Diretas Já após ataques de Bolsonaro

Textos defendendo Constituição e separação de Poderes unem adversários ideológicos

Fábio Zanini, do UOL

Uma profusão de manifestos em favor da democracia após ataques do presidente Jair Bolsonaro a instituições tomou as redes sociais e as páginas de jornal nos últimos dias, buscando recriar um certo clima de Diretas Já.

Se a comparação com o movimento de 1984 ainda pode soar um tanto exagerada, há um paralelo evidente entre os dois momentos.

O principal, a união de adversários ideológicos contra um inimigo comum, associado ao autoritarismo. Em geral, contudo, não há defesa explícita do afastamento do presidente.

A maior iniciativa é o Movimento Estamos Juntos, lançado no sábado (30) e que resgata a cor amarela —símbolo do Diretas Já. No fim de semana, arrebanhou assinaturas online ao ritmo de 8.000 por hora e reunia mais de 150 mil até a noite deste domingo (31).

“Como aconteceu no movimento Diretas Já, é hora de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum”, afirma o texto.

A lista de signatários vai de apoiadores do socialismo a defensores do Estado mínimo. Os manifestantes afirmam representar mais de dois terços da população, referindo-se ao apoio de cerca de 30% a Bolsonaro registrados em pesquisas do Datafolha e outros. Há até mesmo um movimento chamado “Somos 70 porcento”, que ganhou as redes sociais.

No entanto, entre os nomes mais reconhecíveis, parecem raros os conservadores e dissidentes do bolsonarismo —o músico Lobão é um deles.

O texto não cita o presidente, mas manda recado claro a ele ao cobrar respeito à Constituição e à separação dos Poderes.

Uma das apoiadoras, a socióloga Maria Victoria Benevides, tem larga experiência em outras mobilizações. Em abril de 1984, participou de uma foto histórica no topo do prédio da Folha, no centro de São Paulo, em que 61 personalidades pediam eleições diretas.

“Estávamos numa situação de quem está saindo de uma ditadura e agora nosso medo é estarmos entrando numa. Por isso que é mais fácil essa união de tucanos com petistas e o PDT, ou economista ortodoxos que se aliam a outros de esquerda”, diz.

Benevides, que é membro da Comissão Arns de Direitos Humanos, diz ter assinado incontáveis manifestos no passado e nota uma diferença para os dias atuais. “Antigamente eu conhecia todo mundo. Hoje participo com gente que nem conheço, ou gente que eu vejo e digo: ‘Puxa, nunca pensei que essa pessoa poderia estar assinando um manifesto junto comigo’.”

Outro que figura na histórica foto de 1984, o economista e ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira também assinou o novo manifesto. “O Brasil tem uma democracia consolidada, mas um presidente psicopata que a está ameaçando diariamente com palavras e atos”, diz ele.

Defensor do impeachment, Bresser afirma que a importância de manifestos e abaixo-assinados é mostrar a deputados que o afastamento do presidente é possível.

“Hoje há dúvidas sobre a viabilidade do impeachment, mas ela vai se dar à medida em que um número cada vez maior de pessoas se manifestarem. No mínimo, isso mostra aos deputados que Bolsonaro não tem condição de se reeleger.”

Neste domingo (31), outro manifesto surgiu, voltado ao meio jurídico. Com o título de Basta!, reúne cerca de 720 profissionais do direito.

“O Brasil não pode continuar a ser agredido por alguém que, ungido democraticamente ao cargo de presidente da República, exerce o nobre mandato que lhe foi conferido para arruinar com os alicerces de nosso sistema democrático”, afirma.

Uma das apoiadoras, a advogada e professora Flávia Rahal, da Fundação Getulio Vargas, diz que o manifesto reúne “vozes em defesa da democracia”.

“Esse e os outros manifestos são a união de pessoas que podem ter posturas ideológicas diferentes, mas veem na manutenção da democracia a peça principal para o respeito à Constituição e às instituições”, afirma.

Chama a atenção, segundo ela, a velocidade com que esses documentos têm obtido apoio. “Em pouco tempo reuniram muita gente. Isso mostra um desejo das pessoas de saírem da inércia e agirem pelo respeito à democracia.”

O fato de a crise ocorrer em meio a uma pandemia torna mais fácil reunir apoios online, já que manifestações de rua ou em ambientes universitários não são uma opção. Isso pode ajudar a explicar a multiplicação de iniciativas.

No sábado (30), outro documento com expoentes do direito foi lançado, reunindo 170 assinaturas em defesa de que as Forças Armadas respeitem a Constituição.

Houve ainda posicionamentos mais específicos, como o do Colégio de Presidentes de Tribunais de Justiça, que se manifestou em defesa do STF (Supremo Tribunal Federal) na última sexta (29).

Na quinta (28), um manifesto assinado por 535 integrantes do Ministério Público Federal defendeu emenda obrigando o presidente a escolher para a Procuradoria-Geral da República nome a partir de lista tríplice. O atual PGR, Augusto Aras, não fez parte da lista e é visto por parte dos procuradores como pró-Bolsonaro.

No mesmo dia, um documento com 650 assinaturas, encabeçado pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares e contendo apoios como os dos músicos Chico Buarque e Caetano Veloso, pediu a formação de uma "unidade antifascista".

"É imperioso que cada um de nós adie seus legítimos projetos próprios e se abra, desarmado, para uma grande concertação de todas as forças antifascistas, as quais, vale enfatizar, não se esgotam nas esquerdas", diz o documento, que menciona uma "dupla catástrofe, a pandemia e Bolsonaro".

Também houve manifestos recentes de caráter setorial, em áreas como meio ambiente e relações exteriores.

Para José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça no governo FHC e presidente da Comissão Arns, é preciso consolidar uma maioria de democratas no país, mesmo levando em conta que um terço da população segue apoiando o presidente.

A última pesquisa Datafolha mostrou que 43% dos brasileiros consideram o governo ruim ou péssimo, recorde na gestão, mas a aprovação a Bolsonaro seguia estável em 33% —e 22% o consideravam regular.

“Temos que ter união. As forças democráticas de várias tendências políticas devem estar presentes neste momento, como nas Diretas, em que subiram no mesmo palanque Tancredo, Ulysses, Fernando Henrique e Lula”, diz.

Em 17 de maio, a Comissão Arns defendeu em texto na Folha a saída de Bolsonaro. “Ao semear a intranquilidade, a insegurança, a desinformação e, sobretudo, ao colocar em risco a vida dos brasileiros, o seu afastamento do cargo se impõe”, disse. Não há menção de como isso ocorreria, no entanto, se por impeachment ou outra via legal.

Segundo Dias, o novo vale do Anhangabaú, ao menos enquanto durar a pandemia, são as redes sociais. “Temos que atuar em defesa da imprensa livre, das instituições e da liberdade. Somos muitos”, afirma.

A razão para a ojeriza a Bolsonaro, dizem os apoiadores dos manifestos, vem do que se poderia caracterizar como “conjunto da obra”, que reúne ataque a instituições e menosprezo ao coronavírus.

“A gente concorda em poucas coisas, mas nesse momento estamos unidos no fundamental. Não é possível a continuidade de um governo que promove a morte”, diz Douglas Belchior, membro da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos.

Segundo ele, que também assinou o manifesto do Estamos Juntos, a situação dos negros piorou na atual crise. “Estamos defendendo ideias iluministas, olha o absurdo. Não acho que a condição anterior a Bolsonaro estava boa. Mas a de agora é muito pior”, diz.

Estamos Juntos 
Reúne artistas e intelectuais de campos ideológicos diversos, como Lobão e Caetano Veloso. Até a noite deste domingo tinha mais de 150 mil assinaturas.

Basta! 
Organizado por juristas e advogados e lançado neste domingo (31), o movimento tem aproximadamente 700 assinaturas, que incluem nomes como Antonio Claudio Mariz de Oliveira e Claudio Lembo.

As Forças Armadas e a Democracia 
Manifesto assinado por 170 profissionais ligados ao direito, entre eles três ex-ministros da Justiça, pede que as Forças Armadas respeitem a democracia.

Presidentes dos TJs 
Presidentes dos 27 Tribunais de Justiça do país manifestaram “integral apoio” ao STF (Supremo Tribunal Federal), alvo de ataques do presidente Jair Bolsonaro

Procuradores
Manifesto assinado por 535 integrantes do Ministério Público Federal, na quinta-feira (28), pediu a aprovação pelo Congresso de uma proposta que obrigue o presidente da República a escolher a chefia da PGR por meio de uma lista tríplice votada pela categoria.

Comissão Arns de Direitos Humanos 
Entidade divulgou manifestação na qual afirma se preocupar com “manifestações desestabilizadoras feitas por agentes públicos” e que atingem o STF e seus ministros.​

Somos 70 por cento 
Campanha contra o presidente com apoio de celebridades como a apresentadora Xuxa


Cristovam Buarque: Reunião de horrores

Ministro da Educação de Hitler sentia horror às simples expressões ‘povo judaico’ ou ‘povo cigano’ ou ‘comunista’

Bernhard Rust foi ministro de Hitler para a Educação. Nomeado no primeiro dia do governo nazista, foi fiel até a morte, por suicídio, na rendição da Alemanha. Não se pode dizer que Rust era culpado pela situação da educação alemã em 1933. Apesar de muito melhor que a nossa hoje, a educação alemã sofria consequências da Primeira Guerra e dos fortes constrangimentos impostos pelo acordo de paz que comprometeu as finanças públicas. Tudo isso agravado por hiperinflação e caos político ao longo da década de 1920.

Rust não era o culpado da herança que recebeu, mas, em vez de montar um sistema educacional competitivo na Europa, concentrou-se na ideologia para desarticular o que chamava de cultura comunista e influência de judeus na vida intelectual da Alemanha. Ele via a universidade como antro do marxismo cultural. Einstein era recusado como judeu e a teoria da relatividade vista como parte da conspiração internacional comunista.

Rust não fez parte da engenharia do Holocausto, mas foi um dos criadores do pensamento que serviu de base à execução da solução final para extinguir povos não arianos que faziam parte da Alemanha, especialmente judeus. Ele sentia horror às simples expressões “povo judaico” ou “povo cigano” ou “comunista”. Seu tipo de patriotismo achava que na Alemanha havia um único povo, palavra que só se aplicava aos alemães. Para isso, demitiu professores, impediu escolha de reitores pela comunidade, vetou ideias incompatíveis com a tradição cristã.

Lembrei de Rust ao ouvir a participação do ministro da Educação do Brasil, na reunião de gabinete de 22 de abril. Ele não incentivou solução final para nossos índios, mas lançou a base para que isso ocorra. Não por morte em câmaras de gás, mas por morte lenta devido à negação dos direitos básicos de cada povo indígena. Ao sentir horror, sua cara passou a sensação de nojo ao povo indígena, passou a ideia de que o conceito de povo brasileiro nega permissão para a convivência fraterna com outros povos dentro do Brasil.

Ao dizer que tinha horror ao conceito de povo indígena, e manifestar que apenas o povo brasileiro com sua aparente identidade ocidental e cristã lhe interessa, ele repete o que dizia o ministro nazista para os judeus. Quase 100 anos depois, o ministro da Educação do Brasil senta a base ideológica para a ideia da pureza, se não racial, ao menos cultural, do povo brasileiro cristão e ocidental.

Não é por acaso que, logo após, o ministro do Meio Ambiente declarou que o governo deve aproveitar a atenção da mídia voltada aos mortos pela epidemia, para simplificar procedimentos que permitirão ocupar terras e destruir florestas onde vivem o que seu colega considerou “não povo” indígena. Dizimar as florestas onde vivem os índios é como colocá-los em “câmara de gás” que mata lentamente. Foi isso o que os dois ministros combinaram ser feito sem grandes dificuldades burocráticas, um sentando base ideológica pelo horror ao povo indígena e o outro definindo os meios administrativos para o genocídio. Diga-se a favor deles que talvez não tivessem consciência do que diziam, sem saberem quem foi Rust.

Por isso, nenhum outro ministro, nem o presidente, nem o vice, chamaram a atenção deles para o horror do que tinham dito. Acharam natural os sentimentos de horror com o conceito de povo indígena e com as amarras burocráticas que impedem derrubar florestas.

A reunião de 22 de abril passa a sensação de um ministério unido no uso de palavrões e na concepção de Bernhard Rust. Igualmente triste é imaginar que depois de nossos “Rusts”, dificilmente teremos um presidente com a visão do chanceler Adenauer, que, na primeira reunião para definir as prioridades do Plano Marshall, afirmou que a prioridade na reconstrução da Alemanha seria a educação, para recuperar o tempo perdido em décadas anteriores e corrigir o desastre nos anos nazistas.

*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília


Eleições 2020: Jornada destaca dados importantes aos futuros candidatos

Realizado pela FAP, curso de formação política chega à penúltima aula e explica fim das coligações proporcionais

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Informações importantes sobre as eleições municipais de 2020, como prazos, normas de financiamento de campanha e prestação de contas, são explicadas na penúltima aula multimídia da Jornada da Cidadania, disponibilizada, a partir desta quarta-feira (6), na plataforma de educação a distância. O novo pacote de conteúdo do curso de formação política, realizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), apresenta outros dados importantes a quem tiver interesse na disputa para vereador ou prefeito nos 5.570 municípios do Brasil.

O acesso à plataforma da Jornada da Cidadania é exclusivo a alunos matriculados com login e senha. Na principal videoaula do novo pacote de conteúdo, o advogado Arlindo Fernandes de Oliveira, especialista em direito eleitoral, destaca a nova regra do jogo. “O sistema eleitoral é o mesmo há muito tempo, mas, agora, nesta eleição, pela primeira, há uma novidade importante, uma vez que cada partido deve sair sozinho, sem coligações proporcionais, nas eleições municipais”.

Em seguida, o jornalista e colunista político Luiz Carlos Azedo explica o que é o Cidadania, que apoia a Jornada da Cidadania, apresentando o partido político que ele define como “pluralista”. Depois, o secretário-geral do partido, Davi Zaia, dá dicas sobre o papel do bom vereador, e o diretor de Treino da empresa Ideias Radicais, Renato Diniz, explica os níveis de abstração da liderança.

O novo pacote de aula também indica aos alunos que assistam ao filme a Voz da Igualdade (2008). A obra cinematográfica estadunidense tem direção de Gus Van Sant. É baseada na vida do político e ativista gay Harvey Milk, que foi o primeiro homossexual declarado a ser eleito para um cargo público na Califórnia, como membro da Câmara de Supervisores de São Francisco.

Os alunos também deverão ler o primeiro capítulo do livro Coronelismo, Enxada e Voto, que aborda indicações sobre a estrutura e o processo do coronelismo. O autor é Victor Nunes Leal. Em seguida, no podcast, o advogado eleitoral que ministrou aula de abertura comenta a possibilidade de adiamento das eleições municipais e as possíveis consequências da pandemia sobre o pleito de 2020. Para finalizar, os alunos também deverão responder à prova e ao questionário de satisfação.

Didática do curso

No total, o curso tem 36 horas de duração, distribuídas ao longo de 14 semanas. De acordo com o coordenador da Jornada da Cidadania, o advogado Marco Marrafon, o objetivo é formar e capacitar cidadãos acerca de conteúdos relevantes à política, além de fornecer bases fundamentais para possíveis candidatos que pretendem disputar as eleições municipais deste ano.

O conteúdo programático da Jornada da Cidadania está dividido em cinco pilares: ética e integridade na ação política; comunicação eficaz; fundamentos de teoria política e democracia; comunicação eficaz e casos de sucesso. Sempre às quartas-feiras, a plataforma disponibiliza novo pacote de aula multimídia. Dessa forma, o aluno pode se organizar ao longo da semana para aproveitar todos os conteúdos de cada aula.Leia mais:

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William Waack: A sofisticação de Bolsonaro

Presidente está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados

Jair Bolsonaro bradou que o “povo está no poder” ao discursar numa manifestação abertamente golpista em frente do QG do Exército, e se empenha em provar o que disse. Está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados.

Para seus padrões, é a mais sofisticada jogada política desde que assumiu. Tentar arrebanhar uns 200 deputados da confusa e amorfa massa de parlamentares identificada como “Centrão”. Em busca do que até agora dizia não ser necessário para governar, ou seja, uma base razoavelmente ampla e coordenada na Câmara dos Deputados.

Os motivos para proceder de forma que prometeu jamais empregar – trocar cargos por apoio político – são dos mais diversos, inclusive a vontade pessoal de “punir” quem considera chantagista, conspirador e traidor, o atual presidente da Câmara, de quem Bolsonaro pretende tomar parte efetiva do controle do “Centrão”. Um dos mais relevantes motivos para a ação do presidente, porém, é o reconhecimento tácito de que o poder do chefe do Executivo diminuiu desde que ele assumiu.

Outro motivo é o efetivo cerco que esferas políticas e institucionais impuseram ao presidente via STF. Bolsonaro tem razão em apontar para o outro lado da Praça dos Três Poderes ao se dirigir por redes sociais a apoiadores e dizer que “eles” (ministros do STF) o impedem de fazer o que quer. Reconhece que, sem o Supremo e o Legislativo, nada vai.

A outra operação política sofisticada (para padrões bolsonaristas) encabeçada pelo Planalto lembra fortemente o que se fez nos tempos da tal “velha política”, que, teoricamente, teria deixado de existir. É sacar praticamente a fundo perdido dos cofres públicos, investir em grandes obras e ver no que dá.

A possibilidade surgiu com a tal ajuda de emergência a governadores e prefeitos que o próprio ministro da Economia chamou de “farra fiscal aproveitando-se de uma crise de saúde pública”. As modalidades desse socorro estão em negociação, mas já abriram uma avenida que permitiria ao Executivo utilizar um “orçamento de guerra” praticamente sem limites e sem restrições do tipo Lei de Responsabilidade Fiscal.

Claro, enquanto for tudo “temporário”, isto é, enquanto durar o estado de calamidade. Sabe-se que, no Brasil, “temporário” em questões fiscais é termo elástico – desonerações “temporárias” de folhas de pagamento, por exemplo, já duram uns 10 anos. E a julgar pelo que se ouve falar no Planalto, o “temporário” entraria pelo próximo ano (para provável desespero do secretário do Tesouro) e abriria a janela para execução de um plano de recuperação baseado em investimentos públicos com foco central em infraestrutura.

É um tipo de intervenção estatal que requer centralização e coordenação e a tarefa foi atribuída a um oficial de Estado-Maior, general Braga Netto, ministro da Casa Civil. Talvez uma pitada de oportunismo político (quem não tem?) tenha levado o ministro Paulo Guedes, um dedicado aluno de Milton Friedman, a cooperar estreitamente nessa empreitada e abraçar-se a John Maynard Keynes. Famoso pela frase, entre outras, de que “se mudam os fatos, eu mudo de opinião” (Guedes, tal como os clássicos Friedman e Keynes, gostaria que os políticos o ouvissem mais).

Os fatos que mudaram são de enorme magnitude. A crise do coronavírus tornou imprevisível o tamanho da tragédia de saúde pública e econômica no mundo e no Brasil. Ela escancarou a falta de liderança no topo do Executivo, a profunda disfuncionalidade do sistema de governo brasileiro e agravou a situação de um país já prisioneiro da armadilha da renda média, com produtividade estagnada – e sem ter conseguido levar adiante o essencial das reformas estruturantes.

Sim, não há manuais prontos para lidar com uma crise dessas. Que já é uma lição prática do esqueçam o que eu disse antes.


Vera Rosa: Bolsonaro quer aliado na presidência da Câmara; Marcos Pereira é cotado

Planalto age para atrair partidos e fazer sucessor de Rodrigo Maia

BRASÍLIA - A estratégia do presidente Jair Bolsonaro para formar uma base de sustentação parlamentar passa pela eleição para o comando da Câmara, hoje nas mãos de Rodrigo Maia (DEM-RJ), seu desafeto. Ao tentar atrair o Centrão com a oferta de cargos – que vão de diretorias do Banco do Nordeste a secretarias em ministérios –, Bolsonaro também procura construir uma candidatura à sucessão de Maia.

Nos bastidores, o presidente se movimenta para impulsionar a campanha do deputado Marcos Pereira (SP) nessa disputa, marcada para fevereiro de 2021. Vice-presidente da Câmara, Pereira comanda o Republicanos, partido que recentemente abrigou o senador Flávio Bolsonaro e o vereador Carlos Bolsonaro, ambos do Rio. Os dois se filiaram temporariamente, enquanto o Aliança pelo Brasil não consegue as assinaturas suficientes para sair do papel.

Pastor licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, Pereira é um dos postulantes do Centrão ao comando da Câmara. A bancada evangélica leva hoje o título de principal avalista de Bolsonaro no Congresso. Outro candidato que conta com a simpatia do presidente é o deputado Arthur Lira (AL), líder do PP e réu em processo por corrupção passiva. A ideia de Bolsonaro é observar, mais adiante, qual dos dois será fiel a seu projeto e terá mais viabilidade.

Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), não poderão concorrer à reeleição, se não houver mudanças de regras. Motivo: a Constituição impede que os presidentes da Câmara e do Senado sejam reconduzidos aos cargos na mesma legislatura. Antes da crise do coronavírus, no entanto, havia uma articulação nesse sentido, principalmente por parte de Alcolumbre, que encomendou até parecer jurídico. Bolsonaro, por sua vez, está convencido de que precisa construir uma alternativa a Maia. Cabe ao presidente da Câmara autorizar ou não a tramitação de qualquer pedido de impeachment na Casa.

Cargos
Em outra frente para buscar apoio, o Planalto decidiu apressar a entrega de cargos a partidos do Centrão, como mostrou o Estado. Bolsonaro impôs, porém, um filtro: os indicados não podem ter trabalhado em administrações do PT. Além disso, o Planalto vai monitorar as redes sociais de todos.

O DEM perderá o comando da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e da Parnaíba (Codevasf), que deve ser entregue ao PP de Lira e do senador Ciro Nogueira (PI). Pelo acerto dos últimos dias, o PL de Valdemar Costa Neto ficará com o Banco do Nordeste. O governo também prometeu ao partido de Valdemar a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, cargo que formula estratégias de combate ao coronavírus. O Republicanos, por sua vez, poderá ocupar uma secretaria no Ministério do Desenvolvimento Regional. Pereira foi ministro da Indústria, Comércio Exterior e Serviços na gestão de Michel Temer.

Bolsonaro fará nova rodada de conversas nos próximos dias. Nesta quarta-feira, ele receberá o deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB. Nesta quinta-feira a audiência será com o prefeito de Salvador, ACM Neto, que dirige o DEM.

No domingo, porém, ao participar de manifestação que defendia o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, o presidente atacou o que chamou de velha política. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos ação pelo Brasil”, disse ele, em cima da caçamba de uma caminhonete, diante do Quartel-General do Exército.

Para o deputado Efraim Filho (PB), líder do DEM na Câmara, as divergências devem ser arquivadas neste momento. “Falar em intervenção militar, por um lado, e impeachment, por outro, é um desserviço para o Brasil. Já temos crise de saúde, crise econômica e uma nova crise política não seria bem-vinda”, afirmou. “Precisamos de um pacto de união nacional para enfrentar a covid-19. Não é hora de disputa política nem de discursos agressivos”, avaliou Baleia. / COLABORARAM CAMILA TURTELLI e MATEUS VARGAS


‘Bases da democracia estão sendo corroídas’, alerta Leandro Machado

No IV Encontro de Jovens Lideranças, cientista político destacou diferença entre extremismo e polarização

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O cientista político e cofundador do Movimento Agora, Leandro Machado, afirmou que o mundo vive uma nova Era. “Acredito que não é só uma mudança de Era, mas uma Era de profundas mudanças”, disse. De acordo com ele, “as bases das democracias liberais estão sendo corroídas, senão absolutamente solapadas”.

A palestra do cientista político pode ser conferida no sétimo vídeo da retrospectiva do IV Encontro de Jovens Lideranças, realizado, pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Corumbá de Goiás, de 15 a 18 de janeiro de 2020. “Quando está no olho do furacão, a gente tem dificuldade de entender o que está acontecendo, o que as revoluções estão fazendo com nossas vidas, da forma como a gente se relaciona e o jeito que a gente entende a democracia montada no século XIX, quando não tinha nem telefone ainda”, disse.

» Confira abaixo o vídeo da palestra ou clique aqui!

https://www.youtube.com/watch?v=i3IyyvMoKBs

As novas dinâmicas da sociedade, segunda Machado, têm “profundo impacto na política” e exigem de todos comportamentos e atitudes para entender a democracia hoje. “Todos os partidos são de outra época e estão sofrendo muito nesse momento”, afirmou. “A gente está vendo extremismo de todos os lados, o que é diferente da polarização. A polarização é saudável, já que é de ideias. Extremismo está ganhando espaço, extremismo dos dois lados”, enfatizou, em outro trecho.

Segundo Machado, os partidos políticos também tem de se readequar para sobreviverem diante das revoluções. “O Fórum Econômico Mundial fala da quarta revolução industrial, revolução tecnológica, revolução da robótica. São vários nomes para as multirevoluções que estão acontecendo ao mesmo tempo”, observou, durante sua palestra no IV Encontro de Jovens Lideranças.

 

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El País: Bolsonaro lidera negacionismo do coronavírus e incentiva ‘fake news’

Na TV, presidente questiona estatísticas das mortes e segue defendendo fim de ações de isolamento social. Twitter, Facebook e Instagram apagam postagens

Felipe Betim, El País

“O movimento negacionista do coronavírus agora tem um líder”. Foi com essa manchete que a revista norte-americana The Atlantic descreveu os discursos diários que o presidente Jair Bolsonaro promove contra as medidas de distanciamento social decretadas por governadores e prefeitos e recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo próprio Ministério da Saúde para conter a pandemia do coronavírus. No início da crise, o ultradireitista parecia seguir os passos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que também minimizava os efeitos da Covid-19. Mas até mesmo Trump, vendo que seu país se transformara em epicentro mundial do novo vírus, mudou de atitude: negociou com o Congresso um pacote de dois trilhões de dólares (cerca de 10 trilhões de reais) para resgatar a economia, adotou um tom de conciliação com governadores, estendeu até 30 de abril as restrições à circulação e, no último fim de semana, chegou a dizer que poderia instituir o chamado lockdown nos Estados de Nova York, New Jersey e Connecticut. Em suma, o republicano deixou de lado a retórica de que a atividade econômica não pode e passou a salientar que, neste momento, a saúde dos estadounidenses deve ser a prioridade.

Bolsonaro, por ora, ignora a guinada daquele que lhe serve como modelo político e vem insistindo que as pessoas devem sair às ruas e trabalhar normalmente. “É um nível de irresponsabilidade que nunca vi num líder democraticamente eleito. Bolsonaro faz Trump parecer Churchill”, ironizou Ian Bremmer, presidente da consultoria de risco Eurasia Group, no Twitter. Agindo de maneira errática logo após atender as demandas de governadores, o mandatário brasileiro determinou em pronunciamento em cadeia nacional na passada terça-feira que “algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento do comércio e o confinamento em massa”. Também aproveitou a ocasião para forjar inimigos e se referir ao coronavírus como uma mera “gripezinha”.

Isolado politicamente, Bolsonaro dobrou a aposta na radicalização de sua base e estimulou as carretas de empresários em várias cidades pedindo pela reativação das atividades desde a sexta-feira. Além disso, mais uma vez driblou todas as orientações de médicos e especialistas e passeou no domingo por mercados e centrais de vendedores ambulantes na periferia de Brasília. Durante o chamado “coronatour”, o presidente cumprimentou cidadãos de Taguatinga, Ceilândia e Sobradinho, além de reforçar sua tese de que é importante fortalecer a economia. Alguns analistas acreditam que Bolsonaro não quer ser visto como responsável pela recessão na economia, diante de mortes inevitáveis, segundo sua visão. Por outro lado, se governadores e prefeitos têm sucesso em suas medidas e consigam conter o coronavírus, ele ainda poderia argumentar que estava certo ao dizer que não havia demasiados riscos para a saúde da população.

O presidente e seu entorno mais radical —sobretudo seus filhos— também vêm divulgando e incentivando medidas contra o isolamento ou fazendo ênfase sobre possíveis curas para o coronavírus. No domingo, o Twitter decidiu pela primeira vez barrar conteúdo compartilhado pelo ultradireitista e pagou dois vídeos que havia postado contra o isolamento social. Nesta segunda foi a vez do Facebook e do Instagram decidirem fazer o mesmo por considerar que conteúdo promovia a desinformação. O vídeo mostrava o presidente conversando com um ambulante: “Eles querem trabalhar. é o que eu tenho falado desde o começo”, dizia. “Aquele remédio lá, hidroxicloroquina, está dando certo em tudo o que é lugar”, continuava. Em nota ao portal BBC News Brasil, justificou a remoção dizendo que "viola nossos padrões da comunidade, que não permitem desinformação que possa causar danos reais às pessoas”.

Nesta segunda, em entrevista ao canal de televisão aberto Rede TV, Bolsonaro voltou a questionar os números de mortes provocadas pela Covid-19. “Parece que há interesse por parte de alguns governadores de inflar o número”, disse o presidente, ecoando uma notícia falsa, espalhada em grupos de WhatsApp e nas redes, de que um porteiro ou borracheiro teria tido sua morte erroneamente incluída nas estatísticas de coronavírus (veja aqui os números em tempo real).

O que Bolsonaro faz é utilizar “uma comunicação meticulosamente arquitetada para ironizar e atacar inimigos ideológicos e políticos, da imprensa ao médico Drauzio Varella, passando por governadores e prefeitos adversários", opina o cientista político Vinícius do Valle. “Bolsonaro quer, na verdade, o caos”, conclui Valle.

O motivo de querer o caos se deve à própria natureza do bolsonarismo, que precisa do conflito para se manter e se expandir, segundo Valle e outros estudiosos, como o historiador argentino Federico Finchelstein. “Eventualmente a realidade se impõe e inclusive os seguidores mais fanáticos em algum ponto deixam de acreditar neles. Mas, quando isso acontece, já terá havido muito sofrimento e muitas vítimas, no sentido literal do termo. As políticas de ajuste, de repressão e de discriminação têm suas consequências”, disse Finchelstein ao EL PAÍS na semana passada. Para Valle, Bolsonaro poderia encontrar na convulsão social a justificativa que precisa para tentar concentrar ainda mais poder em suas mãos, seja a partir de operações de Garantia da Lei e da Ordem ou da decretação de um Estado de Sítio.

Possível demissão de Mandetta

Um dos fatores que podem detonar esse caos à curto prazo é a possível troca de comando no Ministério da Saúde. No sábado, o ministro Luiz Henrique Mandetta e toda a sua equipe colocaram os cargos à disposição de Bolsonaro. Segundo apurou o EL PAÍS, os ministros e generais do Exército Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Walter Braga Netto (Casa Civil) tiveram de intervir e convencer Bolsonaro de que, sem Mandetta, a impressão que passaria para a opinião pública seria de ingovernabilidade em meio à crise ―está previsto que o pico de contágios aconteça em meados de abril.

Uma fonte do Palácio do Planalto relatou que o presidente foi relutante, porque se se sentiu “enquadrado” pelos militares. Mas, num primeiro momento, concordou em manter Mandetta no cargo —algo que foi reforçado nesta segunda-feira por Braga Netto durante a coletiva de imprensa com Mandetta e outros ministros.

Mandetta está decidido a não se demitir. Disse a aliados que só sai do ministério se for exonerado pelo presidente. Ao longo da última semana ele foi orientado a falar menos e deixar que o secretário-executivo da pasta, João Gabbardo dos Reis, e o titular da Vigilância em Saúde, Wanderson Oliveira, apareçam mais. Mas não acatou os conselhos. No sábado, foi protagonista de uma coletiva de imprensa na qual recomendou o isolamento social e contrariou as teses do presidente. Nesta segunda-feira também não deu um passo atrás.

Nos bastidores são ventilados três possíveis nomes para o Ministério da Saúde: o médico e deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), que já foi demitido pelo presidente do Ministério da Cidadania por não apresentar resultados; o contra-almirante da Marinha, Antônio Barra Torres, médico que preside a Agência Nacional de Vigilância Sanitária e acompanhou Bolsonaro na manifestação do dia 15 de março; e, correndo por fora, o filantropo e gestor do Hospital do Amor (o antigo Hospital do Câncer de Barretos), Henrique Prata. Ele chegou a ser cogitado para assumir a pasta já no primeiro ano da gestão de ultradireita, mas o apoio político de Mandetta e sua capacidade de unir parte da direita entorno de Bolsonaro prevaleceu.


Luiz Carlos Azedo: O tsunami

“Mesmo que a pandemia avance, Bolsonaro mantém litígio com governadores, prefeitos e autoridades de saúde, que defendem a permanência de Mandetta”

A epidemia de coronavírus é um tsunami invisível que varre o mundo. No momento, seu epicentro é Nova York, nos Estados Unidos, o que obrigou o presidente Donald Trump a mudar completamente o discurso no domingo, quando pediu para a população ficar em casa até 30 de abril. Trump vinha defendendo o afrouxamento das medidas de isolamento e chegou a declarar no sábado que uma quarentena não seria necessária em Nova York, New Jersey e Connecticut. Mudou de ideia no dia seguinte, quando admitiu que o pico da epidemia será daqui a 15 dias. Já são mais de 2 mil mortos e mais de 100 mil casos confirmados, segundo levantamento da Universidade Johns Hopkins, na economia mais poderosa do mundo. O sistema de saúde de Nova York está à beira do colapso.

Ao contrário de Trump, aqui, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro aproveitou o domingo para contestar a política de isolamento social e deu um rolé pelo comércio do Sudoeste, de Ceilândia e de Taguatinga, defendendo que as pessoas precisam trabalhar para sobreviver. Depois do périplo, devidamente registrado no Twitter — que apagou duas de suas postagens por colidirem com a orientação das autoridades de saúde pública —, Bolsonaro disse que era preciso enfrentar a situaçao como homem e não como moleque, porque as pessoas um dia vão mesmo morrer. Não se sabe a quem ele se referia, mas o fato é que desautorizou a orientaçao do seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o que aumentou as especulações de que ele seria demitido.

Não foi o que aconteceu, porém, apesar de Mandetta estar visivelmente constrangido na entrevista coletiva concedida no final da tarde de ontem pelo comitê de crise do Palácio do Planalto, que coordena as ações do governo contra a epidemia, sob comando do ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Souza Braga Netto. Quando Mandetta foi indagado pelos jornalistas sobre as divergências com Bolsonaro e se sairia do governo, foi interrompiodo por Braga Netto, que matou a pergunta no peito e respondeu: “Está fora de cogitação”, “Não existe essa ideia”. Também participaram da entrevista os ministros Tarcísio Gomes (Infraestrutura), Onyx Lorenzoni (Cidadania) e André Mendonça (Advocacia Geral da União), além de um representante do Ministério da Defesa.

Na sua entrevista, Mandetta desconversou sobre o assunto e reiterou que a orientaçao do Ministério é focada no combate à epidemia, em termos técnicos e científicos. Justificou a decisão de mudar o formato das avaliaçoes diárias, que agora serão feitas por todos os ministros, não sob seu comando, mas o de Braga Netto, com o argumento de que a pandemia transbordou a esfera de sua pasta e exige engajamento de todo o governo, o que é verdadeiro. Bolsonaro vem defendendo o relaxamento das medidas de isolamento adotadas nos estados e a retomada da atividade econômica, com a reabertura do comércio e volta dos estudantes às escolas. As recomendações de especialistas, da Organização Mundial de Saúde (OMS) e do próprio Mandetta são de que o isolamento é necessário para evitar a expansão da pandemia.

Tensões
Ontem, o diretor executivo da Organização Mundial de Saúde (OMS), Michael Ryan, fez nova advertência quanto à expansão da pandemia. Disse que o coronavírus ultrapassou as ruas e está sendo levada para “dentro das famílias”, o que reforça a necessidade de isolamento social, sobretudo onde há transmissão comunitária e faltam testes, como é o caso do Brasil. “O ideal é que a quarentena ocorra em um lugar que não seja a casa [do infectado], porque esse doente pode infectar sua família. Mas isso não é sempre possível”, disse. No Brasil, já houve 159 mortes, com 4.579 casos confirmados, uma taxa de letalidade de 3,5%. A epidemia ainda está concentrada no Sudeste, com 2.507 casos, 55% do total. São Paulo é o epicentro, com 1.451 casos. O aumento do número de mortos de ontem para hoje no estado foi de 17%, sendo 7,9% o de casos.

Mesmo que a pandemia avance, Bolsonaro mantém seu litígio aberto com os governadores, prefeitos e autoridades de saúde pública, que defendem a permanência de Mandetta no cargo. O ex-ministro da Cidadania Osmar Terra(MDB-RS), que é deputado federal e médico, se movimenta para substituir Mandetta e faz coro com as teses de Bolsonaro. As relações de Mandetta com Bolsonaro vão de mal a pior e somente não houve uma ruptura porque o ministro já avisou que não pede demissão. Demiti-lo agora seria a implosão da equipe de sanitaristas do ministério e uma porta aberta para a articulação do impeachment do Bolsonaro, por crimes de responsabilidade. O Congresso está fazendo seu dever de casa, mas cobra um comportamento mais responsável do presidente da República.

Ontem, o Senado aprovou o chamado “corona voucher”, a ajuda de R$ 600,00 para os trabalhadores informais sem atividade, que se soma ao pacote de medidas econômicas anunciadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. É fundamental para garantir uma renda básica aos que ficaram sem nenhuma outra fonte e evitar uma situação de caos social. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, articula a aprovação do que está sendo chamado de “orçamento de guerra”, as medidas necessárias para o país atravessar a pandemia sem um cenário de tragédia social e reativar a economia logo depois. De certa forma, o foco na pandemia e nessas medidas econômicas é um elemento estabilizador do processo, em meio às tensões criadas por Bolsonaro, que ameçam transformar a pandemia num tsunami político.

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Míriam Leitão: Fim de um mito da ditadura

Dois estudiosos derrubam o mito do milagre econômico da ditadura: foi estagnação ou recessão para 70% dos trabalhadores

Um estudo inédito desmonta o maior argumento econômico da ditadura de 1964: o de que houve um milagre. Não houve. Dois grandes estudiosos mostram que 82% do crescimento da renda dos salários, nos primeiros anos do chamado “milagre”, foi apropriado pelos 10% mais ricos. O estudo chega no momento exato dos arremedos autoritários do presidente Bolsonaro exibidos no meio de uma pandemia. Ele se comporta como se tivesse poderes ilimitados. Na democracia não tem, felizmente. É bom que se desmonte mais um mito da ditadura: o de que ela foi boa na economia durante os anos em que houve crescimento do PIB.

Crescimento para quem? Foi isso que se perguntaram os economistas Marcelo Medeiros, professor visitante da Princeton University, e Rogério Barbosa, pós-doutorando da Universidade de São Paulo. A nota técnica a que esta coluna teve acesso com exclusividade desmonta todo o mérito econômico da ditadura. “Nossa principal conclusão até o momento é de que o crescimento de 1960 a 1970 foi altamente pró-ricos, com grandes parcelas da população tendo perdas ou permanecendo praticamente estagnadas.”

Os militares insistiram ontem em reescrever a história. A ordem do dia elogia a ditadura militar e repete o delirante argumento de que os militares defendiam a democracia quando a golpearam. É cansativo, 56 anos depois, ver as Forças Armadas se prestando a esse papel.

No domingo, depois do temerário passeio de Bolsonaro para mostrar que não seguia orientações das autoridades sanitárias do planeta, ele chegou ao Palácio e disse: “Eu estou com vontade, não sei se vou fazer, de baixar um decreto amanhã...” O decreto seria para determinar a volta de todo mundo ao trabalho contra as ordens dos governadores.

Perguntei ao ministro do STF Luiz Roberto Barroso se Bolsonaro poderia baixar esse decreto. O ministro disse que “formalmente ele pode”, mas que talvez o texto não prevaleça:

– A resposta à sua pergunta é: o presidente pode. O decreto vai subsistir? Vai depender do que o Supremo decidir.

Isso porque a Constituição diz que quem planeja as ações numa calamidade é o governo federal, mas em outro ponto diz que a saúde é um direito. Em outro artigo diz que em saúde pública o poder é compartilhado entre União, estados e municípios.

– As circunstâncias atuais do poder executivo federal reavivaram dois princípios constitucionais que estavam esmaecidos: a federação e a separação dos poderes, e deu protagonismo ao poder legislativo – disse o ministro.

Essa é a beleza da democracia. Ela, contudo, é minada diariamente pelo presidente da República, quando manda que se comemore essa data funesta ou quando faz ameaças implícitas. Por isso é sempre bom derrubar os mitos criados pelas mentiras sempre repetidas.

Cruzando mais dados do que os estudos anteriores, Medeiros e Barbosa chegaram às seguintes conclusões até o momento: “1- O crescimento foi altamente concentrado. Cerca de 82% de todo o crescimento foi apropriado por apenas 10% dos trabalhadores. 2- O crescimento econômico entre 1960 e 1970 foi pró-ricos. A economia os favoreceu desproporcionalmente e deixou os pobres para trás. 3- Houve grande aumento da desigualdade de renda”. Esse último ponto já havia sido registrado em pesquisas anteriores.

Na verdade, segundo o estudo, houve “recessão” para pelo menos um terço dos trabalhadores e houve estagnação para 40% outros. “Somados, 70% dos trabalhadores não tiveram qualquer ganho.”

Por esse motivo, dizem os professores, “não é correto chamar o período de ‘fase do milagre econômico da ditadura’. Uma expressão que descreva melhor o período seria ‘fase do crescimento pró-ricos da ditadura”. Os professores aprofundarão as análises dos períodos posteriores antes de concluir o estudo.

Nos dias dolorosos que vivemos, a população tenta se proteger de um inimigo mortal e perigoso, enquanto o presidente, um admirador da ditadura, ensaia baixar decretos para tirar poderes de governadores e diz sem qualquer simpatia à vida humana e em péssimo português: “Vocês acham que morrerão gente com o passar do tempo? Morrerão”. Para mostrar que fala sério, o governo fez ontem um teatro para mostrar que o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fica no cargo, mas tutelado.


Luiz Carlos Azedo: Reflexões sobre a epidemia

“Na cabeça do presidente, não existe guerra sem defuntos: as taxas de letalidade da epidemia são baixas demais para justificar uma recessão econômica”

Quando as ideias liberais clássicas de Adam Smith pareciam consagradas no Ocidente, em meio à corrida mundial para reinventar o Estado, a epidemia de coronavírus virou tudo de pernas para o ar. O revisionismo reformista de Lord John Maynard Keynes parece renascer das cinzas, com sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro. Para conter a epidemia, o mundo está mergulhando numa recessão geral, fruto da globalização tanto quanto a propagação do novo coronavírus, que começou na China, tomou de assalto a Europa, se instala nos Estados Unidos e se expande na periferia, na qual países como a Índia e o Brasil se preparam para a uma tragédia anunciada.

Para o keynesianismo, os níveis de consumo, de investimentos público e privados e aplicações dos cidadãos são determinantes da política econômica. Quando eles se retraem, a crise vem a galope. A velha fórmula de Keynes para enfrentar essa situação está sendo exumada por ninguém menos do que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que pretende injetar mais de US$ 1 trilhão na economia norte-americana para aliviar o sufoco gerado pela paralisação da economia. A Casa Branca foi o centro da resistência à política de distanciamento social preconizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mas capitulou, diante da tomada de Nova York pela epidemia. Da cidade mais rica do mundo, a epidemia se espalha por todos os estados da União.

Como na Grande Depressão de 1929, só o Estado pode conter o atual desequilíbrio da economia. Aquela crise teve outras causas: foi consequência da grande expansão de crédito por meio de oferta monetária (emissão de dinheiro e títulos), que precisou ser freada. O governo parou, começou a enxugar o mercado e a operar uma política de restrição de empréstimos. Temendo a desvalorização da moeda, muitas pessoas e empresas retiraram suas reservas dos bancos, dando início a um processo de recessão.

A solução para esse problema seria controlar a recessão, permitindo a liberdade de preços e salários, até que o mercado se adequasse à nova situação. No entanto, ao contrário disso, o governo passou a exercer arrochado controle sobre os preços e os salários, além de promover aumento de impostos. Isso agravou a recessão e, em cinco dias, a Bolsa quebrou, levando à falência empresas e bancos e, ao desemprego, 12 milhões de pessoas nos Estados Unidos, uma recessão que se alastrou por todo o mundo.

A fórmula de Keynes era os governos aplicarem grandes remessas de capital na realização de investimentos que aquecessem a economia de modo geral, além de linhas de crédito a baixo custo para garantir a realização de investimentos do setor privado e a elevação dos níveis de emprego. Mas isso era uma ofensa ao “livre mercado”. Coube ao presidente Franklin Delano Roosevelt, um homem paraplégico por causa da poliomielite, enfrentar a recessão.

Governador de Nova York desde 1928, disputou e ganhou a Presidência dos Estados Unidos em 1932, prometendo um novo e ousado plano de ação para resgatar a nação dos efeitos da grande depressão. Convenceu os americanos de que não havia mais nada a temer. Empossado em março de 1933, em apenas 100 dias, Roosevelt conseguiu aprovar no Congresso seu plano baseado nas ideias keynesianas. O New Deal (Nova Ordem) garantiu US$ 3,3 bilhões para investir na criação de empregos e na recuperação industrial. Nascia o Estado de bem-estar social.

Errático
Roosevelt propôs programas inovadores, que geraram milhões de empregos, e criou a Lei de Seguridade Social, um plano de aposentadoria com abrangência nacional, a grande herança de seu governo. Reeleito três vezes (1936, 1940 e 1944), morreu pouco antes do fim da II Guerra Mundial, na qual foi um dos Três Grandes, ao lado de Winston Churchill, o primeiro-ministro britânico, e Youssef Stálin, o líder da antiga União Soviética, que comandaram as forças aliadas contra o nazifascismo.

Aqui no Brasil, diante da epidemia de coronavírus, a política econômica ultraliberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, entrou em colapso. Tornou-se insustentável diante da redução da atividade econômica. Na verdade, seus resultados já eram pífios antes da epidemia.. Economistas como Armínio Fraga, Monica de Bolle e André Lara Rezende já vinham questionando o ministro. O mercado já está com saudades do ex-ministro Henrique Meirelles, hoje secretário da Fazenda de São Paulo.

É esse debate que está por trás do embate entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores em relação às medidas de quarentena adotadas nos estados e municípios. Na cabeça do presidente, não existe guerra sem defuntos: as taxas de letalidade da epidemia são baixas demais para justificar uma recessão econômica. O remédio é deixar morrer. Ontem, foi à tevê, em cadeia nacional, para atacar a imprensa, os governadores e os prefeitos e criticar as medidas de distanciamento social adotadas para conter a epidemia, que continua chamando de gripezinha. Quando parecia ter entrado em entendimento com os demais governantes, recrudesceu. Temos um presidente errático em relação à crise que o país enfrenta.

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Luiz Carlos Azedo: Mensagens das máscaras

“Não há a menor possibilidade de conter a epidemia sem a adoção de duras medidas de distanciamento social, isolando as pessoas doentes e confinando quem não está”

A cena foi armada para sinalizar que o presidente Jair Bolsonaro é o timoneiro da luta contra o coronavírus e que todo o governo está mobilizado nessa tarefa, na qual o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ocupava a linha de frente no combate à epidemia. Bolsonaro enfatizou as medidas econômicas que o governo adotou, defendeu-se das críticas da imprensa e não fez nenhum apelo no sentido de a população aderir à política de distanciamento social, à qual continua fazendo restrições. O uso das máscaras cirúrgicas por todos os ministros presentes, inclusive o da Saúde, serviu apenas para as fotografias; foram usadas de forma cenográfica, porém, manuseadas de forma inadequada, acabaram sendo objeto de críticas dos especialistas da saúde e motivo de “memes” nas redes sociais.

Na coletiva, Bolsonaro anunciou que dois ministros estão com coronavírus, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e o ministro de Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque. Mais tarde, Bolsonaro deu outra coletiva, desta vez em companhia do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, e outras autoridades do Judiciário. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que também deveria estar presente, não pôde comparecer: é o primeiro chefe de poder fora de combate por causa do coronavírus. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), não foi porque comandava a sessão da Casa que aprovou o “estado de calamidade pública”.

A primeira mensagem das máscaras é de que caiu a ficha para o presidente Jair Bolsonaro de que deve liderar o combate ao coronavírus; a segunda, revela que ele ainda não tem a plena dimensão da gravidade da situação. Ontem, São Paulo registrou quatro mortos em razão do coronavírus, de uma epidemia cujo marco zero é a sexta-feira da semana passada. Trata-se do estado mais populoso do país, com o maior nível de renda e melhor estrutura de saúde pública, além dos melhores hospitais privados do país, nos quais ocorreram as mortes. A epidemia começou pelas camadas de maior poder aquisitivo, mesmo assim, já começa em alta velocidade. Até as 19h20 de ontem, havia 509 casos confirmados no Brasil, em 20 estados e no Distrito Federal. O crescimento é exponencial, o número de mortes também pode ser.

É aí que está o xis da questão. Não há a menor possibilidade de conter a epidemia sem a adoção de duras medidas de distanciamento social, isolando as pessoas doentes e confinando quem não está, para evitar contágio, com exceção apenas daqueles que precisam estar nas ruas para manter os serviços básicos funcionando. Não há como fazer isso sem paralisar a economia, que já está entrando em recessão. É aí que o governo adota medidas contraditórias, algumas preconizadas pelo próprio mercado, mas inócuas, cujo foiço é manter o mercado funcionando. Por exemplo, a redução dos juros anunciada ontem pelo Copom. É uma medida simpática, mas não terá nenhum efeito prático em termos de investimento, apenas repercutirá no câmbio, desvalorizando ainda mais o real. Quem investirá no Brasil com o dólar a R$ 5,20?

Mais pobres
As medidas do ministro da Economia, Paulo Guedes, para aumentar a proteção social às parcelas menos favorecidas da população, principalmente pequenos empreendedores e trabalhadores da economia informal, que parecem ser a grande preocupação do presidente Jair Bolsonaro, são insuficientes, um pouco na linha de quem dá uma das mãos, para favorecer as empresas, e tira com a outra, sacrificando os assalariados. Há uma semana, o governo demonizava o aumento do Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de um salário-mínimo, que era demonizado pela equipe econômica, atribuindo ao Congresso um rombo de R$ 20 bilhões na economia, quando na real o aumento de despesas pode ficar em torno de R$ 7 bilhões.

O que houve de fato? Com a derrubada do veto, um maior número de pessoas, em especial aquelas em situação de pobreza, passam a contar com mais possibilidade de acesso ao BPC, que beneficia idosos a partir de 65 anos e pessoas com deficiência física, mental, intelectual ou sensorial com garantia assistencial, quando a renda familiar per capita for inferior a R$ 522,50; antes, era de R$ 261,25. A mudança havia sido uma espécie de contrapartida da aprovação da reforma trabalhista.

Voltemos ao coronavírus. Há outras mensagens das máscaras. O governo começa a se mobilizar para enfrentar o desafio do coronavírus, que não faz distinção de classe, gênero, cor, renda e nível de escolaridade, quando nada porque a epidemia começou pelos altos escalões da Esplanada. Entretanto, ninguém tenha dúvida de que a população mais vulnerável é a de baixa renda. Há um enorme contingente da população que vive em péssimas condições de moradia e saneamento, nos morros e periferias, no qual o crescimento exponencial da doença será uma tragédia anunciada. Nesse sentido, a entrevista de Bolsonaro e de sua equipe não passou o recado que deveria, pois a preocupação do presidente não era orientar a população sobre a importância do “distanciamento social” e anunciar medidas efetivas para isso, mas se defender das críticas e conclamar seus partidários a fazer um panelaço a favor do governo na noite de ontem. Houve outro panelaço contra.

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