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Luiz Carlos Azedo: A gente somos inúteis

“Na revolução em curso no mundo do trabalho, a maioria das profissões que existirão daqui a 25 anos, provavelmente, ainda não foi nem criada; mesmo entre as novas, algumas terão vida efêmera”

Ao examinar a medida provisória sobre a geração de empregos para jovens, devido aos jabutis incluídos pela equipe econômica no projeto do governo para criar quatro milhões de novos postos de trabalho, é inevitável lembrar do refrão da música Inútil, da banda de rock Ultraje a Rigor. Não só por causa do grande número de jovens nem-nem, fora do trabalho e da escola, sem condições de ingressar no mercado de trabalho devido à escolaridade precária (eram 23% dos 33 milhões de jovens entre 15 e 24 anos), mas também por causa de algumas ideias sem nenhuma chance de serem aprovadas pelo Congresso, como a taxação do seguro-desemprego e a extinção de várias profissões regulamentadas.

A medida provisória acaba com registros profissionais de jornalista, agenciador de propaganda, arquivista, artista, atuário, publicitário, radialista, secretário, sociólogo, técnico em arquivo, técnico em espetáculo de diversões, técnico em segurança do trabalho e técnico em secretariado, entre outros. Se levarmos em conta certas atitudes e declarações do presidente Jair Bolsonaro e a política adotada em relação à educação, à cultura e à imprensa, faz até certo sentido, pois existe realmente uma ojeriza governamental aos profissionais que atuam nessas áreas.

Jornalistas revelam o que certos poderosos não gostariam que fosse de conhecimento público; sociólogos estudam problemas para os quais as autoridades muitas vezes fecham os olhos; arquivistas classificam, preservam e organizam documentos que muitos gostariam que fossem incinerados; técnicos em segurança do trabalho denunciam condições insalubres e desumanas nas empresas; artistas fazem a crítica dos costumes e dos poderes. Por ironia, sobrou até para o empregado do lava-jato. Tudo bem que é preciso modernizar a legislação trabalhista, mas não precisa o governo meter uma mão peluda no mercado de trabalho para precarizar ainda mais profissões que estão passando por grandes transformações devido à revolução tecnológica. O governo deveria se preocupar mais com a sua reforma administrativa e as carreiras do serviço público, pois, essas sim, o mercado não resolve.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já se manifestou sobre a proposta do governo. Disse que vários dispositivos, entre os quais o que acaba com o registro profissional de jornalista, deverão ser retirados. A rigor, esse não é um assunto interditado ao debate, pois a comunicação, com as redes sociais, deixou de ser oceânica para se tornar galática e os jornalistas perderam o monopólio da notícia. Nada acontece sem que um cidadão com o celular ou uma câmera de segurança registre em tempo real. Entretanto, não tem sentido resolver a questão por medida provisória. Na revolução em curso no mundo do trabalho, a maioria das profissões que existirão daqui a 25 anos, provavelmente, ainda não foi nem criada; mesmo entre as novas, algumas terão vida efêmera, como tiveram o fax, o DVD e o iPod.

Não se resolve esse assunto com uma canetada. A medida provisória restringe as profissões àquelas que têm conselhos que as regulamentam, que são justamente as mais corporativistas e que transformaram seu mercado de trabalho em grande cartório. Mesmo as profissões mais valorizadas estão sendo muito impactadas pela inteligência artificial, como as de advogado e de médico. A propósito, a inteligência artificial deveria ampliar o acesso e baratear os serviços, e não encarecê-los ainda mais e elitizá-los, como acontece no Brasil.

O governo fez cálculos cabalísticos sobre a geração de emprego, com base em medidas que, a rigor, não aumentam a produtividade, apenas a exploração do trabalho, como medidas para reduzir indenizações e multas trabalhistas. Acaba até com o seguro para acidentes da trânsito, Dpvat, que é sabidamente impactado pelos acidentes com motoboys. Espera com isso criar 1,8 milhão de empregos por ano, uma meta chutada, que não pode servir para legitimar as maldades da equipe econômica, pressionada a resolver o problema do desemprego pelo próprio presidente Bolsonaro.

Um dinheiro, aí
O presidente Jair Bolsonaro aproveitou a reunião do Brics, na qual passou a presidência da cúpula para o líder russo Vladimir Putin, para pedir mais isonomia no tratamento dado ao Brasil pelo Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), criado pelo grupo. Dos 45 projetos de financiamento já aprovados, apenas seis são brasileiros. Somados, eles aportaram cerca de US$ 1,4 bilhão em áreas como logística, infraestrutura, transportes e sustentabilidade. “Os números mostram que precisamos trabalhar juntos para superar o desequilíbrio em desfavor do Brasil na carteira de financiamento do NDB”, disse. Criado em 2014, o NBD tem capital de US$ 50 bilhões, dividido igualmente entre os cinco países do Brics.

No documento assinado pelos chefes de Estado de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, há citações à região do Golfo, ao Afeganistão e à Península Coreana, mas não há menção aos conflitos regionais sobre os quais divergem, como as crises na Venezuela, no Chile e na Bolívia, o conflito entre Índia e Paquistão na disputa pela Caxemira, a anexação dos territórios de Donets e da Crimeia pela Rússia e os protestos em Hong Kong contra o governo da China.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-gente-somos-inuteis/


Fernando Gabeira: Vendavais ao sul da América

Bolívia e Chile nos passam uma complexa lição de casa, é preciso decifrá-la...

Os ventos que sopram na Bolívia e no Chile são surpreendentes para quem se detém apenas em números de crescimento econômico. Tento entendê-los com minhas lembranças antigas e os dois últimos trabalhos que fiz nesses países. E algumas leituras.

Na Bolívia cobri para o Estadão uma crise singular no governo Evo Morales. Um choque com sua própria base de sustentação. O tema era a estrada Atlântico-Pacífico, financiada pelo Brasil. Ela iria atravessar um território indígena e houve grande reação. Cruzaria não apenas o território indígena, mas também o Parque Nacional Isiboro-Secure.

Mas ao longo desse tempo a política econômica de Evo Morales conseguiu grandes índices de crescimento e reduziu a pobreza, incluída a extrema pobreza. A política ambiental nunca foi muito bem. Lagos secando e um tratamento leviano com as queimadas, que acabaram se tornando um drama nacional neste ano.

Quando vejo o desenrolar da experiência do Movimento ao Socialismo, acabo suspeitando de que as variáveis econômicas e ambientais foram secundárias como estopim. O nó estava na política, na vontade de Evo Morales se perpetuar no poder. A Constituição não permitia. Ele fez um referendo em 21 de fevereiro de 2016. Perdeu e, em seguida, ganhou no tapetão da Justiça Eleitoral e da Suprema Corte. Isso ficou engasgado na garganta dos eleitores.

Baseio-me no relato de repórteres que cobriram a campanha de Evo. Registraram gritos de “o povo disse não” quando ele passava.

Vieram as eleições, a súbita suspensão das apurações, laudo da OEA denunciando irregularidades. Quando Evo aceitou uma nova eleição, era tarde. A polícia já havia cruzado os braços, o Exército pediu sua renúncia, como o fez com Sánchez de Lozada no passado.

Lembro-me, no exílio, de que a Bolívia representava para nós um símbolo de instabilidade. Quando os bolivianos voltaram um pouco antes de nós para seu país de origem, costumávamos brincar: levem o carnê mensal do metrô, pois podem ter de voltar antes do fim do mês.

Agora é com tristeza que vejo o país mergulhar de novo na instabilidade. Alguns temas do passado afloram de novo, como a tensão entre brancos e indígenas, com lances racistas e violência nas ruas. Apoiadores de Evo Morales achavam que ele era o único capaz de unir um país dividido. Não o foi para sempre. E certamente perdeu essa condição no referendo. A outra parte se sentiu lograda, daí os gritos de “não somos imbecis!” nas manifestações.

Fui ao Chile, também pelo Estadão, para cobrir uma revolta estudantil. Uma das muitas, mas essa mais longa. Também com base nessa experiência, compreendi como era importante para os chilenos uma educação gratuita de qualidade. Apesar dos arroubos da juventude, o movimento estudantil tinha o apoio de grande parte da sociedade. Quando ouço dizer que o Brasil terá algo como no Chile, a primeira coisa que me vem à mente é a diferença entre os movimentos estudantis chileno e brasileiro. E ainda há a precária situação dos aposentados.

Não quero dizer que o Brasil não tenha problemas, apenas que são situações diferentes. No Chile houve uma fermentação na sociedade e uma revolta, guardados proporções e contextos, com características parecidas com o que aconteceu no Brasil em 2013.

Isso é o que me leva a afirmar como é vazia essa discussão sobre exortar os brasileiros a se rebelarem como no Chile e as ameaças de Lei de Segurança Nacional, AI-5 e outras maneiras de endurecer. Na minha opinião, tanto o líder que conclama como os que o ameaçam com a punição trabalham com a falsa ideia de que esses movimentos nascem de cima para baixo, não dependem de uma voz de comando nem mesmo do sistema partidário.

Na minha opinião, repito a fórmula, porque não quero envolver ninguém nessa fórmula, os ventos que sacodem a América do Sul refletem um grave desequilíbrio, que, por sua vez, nasce em algo maior: as ilusões do socialismo e do liberalismo.

O modelo econômico boliviano começava a declinar, o déficit subia, era evidente a necessidade de um reajuste que vai abalar a taxa de investimento. No caso chileno, uma visão radical do liberalismo com pouca sensibilidade social. Em governos de esquerda como o da Venezuela, uma irracionalidade econômica gritante.

Integrar racionalidade econômica e sensibilidade social e ambiental é um desafio. Mesmo porque é um programa aparentemente modesto, poucas chances de empolgar as massas ou produzir um líder popular. Mas a julgar pela experiência de outros países, como Portugal, com toda a sua modéstia, a coisa parece funcionar.

Aqui a cena está dominada por sonhadores, glorificando o Estado ou o mercado com ideias acabadas sobre nosso futuro, quase sempre incomodados com a democracia quando ela entra em choque com seus sonhos. Vivemos muito nessa atmosfera onírica. Acontece um desastre, discutimos se o óleo é de esquerda ou de direita, em vez de conjugar esforços nas ações de emergência.

Um caminho que talvez nos ajudasse seria examinar, de forma mais profunda do que fiz aqui, os erros e acertos que levaram às crises da Bolívia e do Chile. Mas como fazer isso, se os lados já têm uma explicação antecipada para os fatos? Já tentei me aproximar disso no passado, imaginando os bolcheviques derrotados em Paris culpando seus adversários ou os alemães reclamando que o Muro de Berlim não caiu porque os comunistas não deixaram.

Apesar de todas as porradas que vêm dos extremos, o esforço para entender ainda anima muita gente. Dizem que a fé move montanhas, mas para quem tem expectativas mais modestas não há saída exceto analisar com alguma frieza, reconhecendo que, ao menos na nossa América, a realidade costuma atropelar os sonhos.

Bolívia e Chile nos passam uma complexa lição de casa. É preciso decifrá-la antes que nos devore.


Folha de S. Paulo: República extinguiu privilégio apenas dos Braganças, diz Murilo de Carvalho

Historiador lembra que regime proclamado em 1889 não incluiu o povo, e democracia ficou ausente até os anos 1940

Fernanda Canofre, da Folha de S. Paulo

BELO HORIZONTE - O pecado original da República, na avaliação de José Murilo de Carvalho, foi não ter incluído o povo. "A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais", afirma o historiador sobre a proclamação que completa 130 anos nesta sexta-feira (15).

"Para os propagandistas, República e democracia eram indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no sistema representativo, ficou ausente até a década de 1940", diz Murilo de Carvalho, 80, que é cientista político e imortal da Academia Brasileira de Letras.

Em entrevista à Folha, o historiador reflete sobre o caráter autoritário e pouco inclusivo do início do período republicano no Brasil e afirma que, 130 anos depois, nossa república "continua sujeita à interferência 'moderadora' das Forças Armadas".

A ausência de povo, eis o pecado original da República, segundo o senhor. Como e por que o povo não fez parte dela?
A afirmação refere-se à origem de nossa República. Para os propagandistas, República e democracia eram indissociáveis. Mas a democracia, isto é, a participação popular no sistema representativo, ficou ausente até a década de 1940. Até essa data, tínhamos uma participação eleitoral inferior à que existiu até 1881, quando foi introduzido o voto direto. Era uma república patrícia, uma república sem democracia.

Qual o significado de uma República sem povo?
Na Grécia, Roma, Estados Unidos a República convivia com a escravidão e com a exclusão política das mulheres. Mas todo homem livre era cidadão ativo. A partir da Revolução Francesa, no entanto, a democracia passou a ser componente indispensável das repúblicas. No Brasil, a efetiva incorporação de povo, homens e mulheres, no sistema representativo só aconteceu após a queda do Estado Novo. A partir daí houve rápida e massiva inclusão eleitoral de povo. Nossa República não suportou a carga e desmoronou em 1964.

O fato de ela ter vindo por um golpe militar e não por uma revolução mudou o curso dela?
Só Silva Jardim acreditava em revolução do tipo da Francesa e pregava o fuzilamento do conde d’Eu [marido da princesa Isabel, descendente da dinastia Orleans]. Não foi nem avisado do golpe. Ninguém mais, além dele, queria sangue. A busca do apoio dos militares do Exército foi oportunismo dos civis, sobretudo de Quintino Bocaiuva.

O problema dos políticos na primeira década da República foi livrarem-se dos militares. Floriano Peixoto garantiu o novo regime, mas era incômodo por despertar um movimento popular jacobino. A posição dominante entre os republicanos, sobretudo os paulistas, era esperar a morte do imperador e então impedir que Isabel tomasse posse. A transição viria de preferência via Constituinte, solução aceita até mesmo por monarquistas como Saraiva [José Antônio Saraiva, que chegou a ser nomeado pelo imperador para formar um gabinete na madrugada de 16 de novembro mas nunca assumiu].

A partida da família imperial foi antecipada para evitar conflitos. Mas o Brasil é um país violento, sustentou séculos de escravidão e tem sequelas. Qual o papel da violência na nossa questão republicana?
A violência está embutida em nosso DNA, independentemente de regimes políticos. Os dez primeiros anos da República foram violentos: revoltas militares, guerra federalista no Sul, Revolta da Armada e, sobretudo, o terrível massacre de Canudos.

Qual tem sido o papel dos militares na nossa República, visto que vez ou outra eles assumem papel na política?
O papel variou ao longo do tempo. Após a consolidação do regime com Campos Sales até 1930, a participação foi em boa parte antioligárquica, liderada por oficiais subalternos do Exército. Depois do Estado Novo, o papel passou a ser de tutela, quando não de intervenção direta, comandada pela cúpula militar.

Antes da Proclamação da República, tivemos várias repúblicas que não vingaram pelo Brasil. O que lhes faltou?
Eram manifestações locais e provinciais, todas derrotadas pelas armas. A de maior êxito foi a Farroupilha que separou o Rio Grande do Sul por dez anos e terminou por um acordo do Império com os gaúchos. A repressão mais violenta verificou-se em revoltas que envolviam segmentos populares, como a Confederação do Equador, a Cabanagem e, já na República, Canudos e Contestado.

O que os brasileiros desse final do século 19 entendiam então por República?
Os republicanos, sobretudo os paulistas, queriam autogoverno, isto é, eleição dos governantes, e federalismo à moda norte-americana. A monarquia significava privilégio de uma família ou dinastia, marca do antigo regime. A palavra democracia, significando governo pelo povo, fazia parte da retórica, mas em nenhum momento foi ativada.

Esse conceito mudou de alguma forma até 2019?
Hoje é difícil saber o que as pessoas querem dizer quando falam em República, além de um sistema de governo. O conceito confunde-se com o de democracia, como queriam os propagandistas.

Os poucos que ainda o distinguem de democracia corretamente o vinculam a certos valores como a igualdade perante a lei, a ausência de privilégios, o bom governo, o cuidado com o bem público. Nesse sentido, pode-se dizer que há hoje mais democracia do que República e talvez seja este um de nossos principais problemas.

O senhor cita em seus escritos a exclusão pelo voto —de 30,6 milhões de brasileiros, apenas 2,4 milhões podiam votar na virada do século 19 para 20— e, além dele, a questão da abstenção —nas eleições de 1910, chegou a 40%. Qual a importância do voto para uma República?
Segundo a distinção proposta, participação eleitoral tem mais a ver com democracia e menos com República. Hoje, uma não pode existir sem a outra. Democracia sem república, sem bom governo, sem igualdade civil, marcada por clientelismo, patrimonialismo, nepotismo, é frágil. Assim como República sem ampla participação não tem futuro.

Desde 1930, só cinco eleitos pelo voto direto conseguiram concluir seus mandatos [o atual presidente está no primeiro ano de governo]; quatro não completaram a gestão e sete presidentes não foram eleitos pelo voto. Essa democracia é fruto de falhas da República?
É em boa parte fruto da entrada tardia e rápida do povo no sistema político, da democratização da República. A República patrícia não suportou o impacto e recorreu aos militares para conter a onda democrática, aproveitando-se do conflito ideológico que dominava o cenário internacional.

A República está em crise?
Quase todas as repúblicas estão. A nossa continua sujeita à interferência “moderadora” das Forças Armadas.

Como o senhor analisa a questão federativa?
A Federação foi uma das demandas mais fortes dos propagandistas, sobretudo dos paulistas e gaúchos. O federalismo norte-americano era o modelo, embora ele tenha assumido aqui sentido oposto.

Isto é, os federalistas norte-americanos eram os que queriam salvar a união das colônias contra as tendências separatistas afinal adotadas pelos sulistas para garantir a escravidão. O federalismo dos pais fundadores acabou preservando a União e abolindo a escravidão, embora à custa de uma sangrenta guerra civil, ao mesmo tempo em que dava ampla liberdade às unidades federadas.

Entre nós, federalismo e centralização é um debate secular. A enorme desigualdade das unidades da Federação leva a uma grande dependência do governo central que, por sua vez, coíbe iniciativas estaduais.

Por volta de 1627, frei Vicente do Salvador escreve uma citação que virou clássico sobre o Brasil: “nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. O que nos fez assim?
Apesar de ser lugar-comum, não é possível deixar de mencionar a gênese de nossa economia e de nossa sociedade. Não é que o passado nos condene. Mas as sociedades têm biografia, têm valores e práticas arraigadas. Se não, como entender que com tanta desigualdade não tenhamos tido qualquer revolução social? Como entender que com uma das maiores franquias eleitorais do mundo não consigamos produzir políticas redistributivas, limitando-nos ao assistencialismo distributivista?

O Brasil de hoje tem repúblicos?
Nossos repúblicos podem ser contados nos dedos. Olhando pelo ângulo da preocupação com o bem coletivo, só os positivistas ortodoxos do início da República foram republicanos. Até iniciativas republicanas acabam comprometidas. Veja-se a Operação Lava Jato.

Nada mais republicano do que igualdade perante a lei. Rico e poderoso no Brasil nunca ia para a cadeia. A Lava Jato os mandou para lá. Vitória da República. Mas aí vem a denúncia de práticas arbitrárias por parte de promotores e juízes que ameaçam a validade das sentenças. Podemos voltar à estaca zero. Derrota da República.

E nossa República, tem salvação?
Só por milagre de frei Vicente. Temos que avançar aos trancos e barrancos, combatendo sistematicamente as desigualdades na economia e os privilégios na sociedade. A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais.

Temos pela frente o imenso problema de incorporar ao mercado de trabalho os milhões de desempregados, subempregados e não empregáveis. Só uma combinação de República e democracia, de bom governo e inclusão, pode resolver o problema, se ainda tiver solução.

*José Murilo de Carvalho, 80, nascido em Andrelândia (MG), é formado em sociologia e política pela UFMG, mestre e doutor ciência política pela Universidade de Stanford (EUA). Entre suas obras estão “Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não Foi” (1987), “A Formação das Almas: o Imaginário da República no Brasil” (2003), “O Pecado Original da República: Debates, Personagens e Eventos para Compreender o Brasil” (2017) e "Forças Armadas e Política no Brasil" (2019, 2ª ed.)


Rogério L. Furquim Werneck: Tempo, persistência e convicção

É com o imediatismo de Bolsonaro que o ministro Paulo Guedes deveria se preocupar por ora

Aprovada a reforma da Previdência, o governo anunciou, afinal, as tão aguardadas medidas complementares de ajuste fiscal. Nada menos que três Propostas de Emenda à Constituição (PECs). Mesmo em circunstâncias políticas mais tranquilas, seria pouco provável que, a cinco semanas do recesso, o Congresso pudesse assegurar, ainda em 2019, avanços relevantes na tramitação de tais medidas.

Menos prováveis ainda prometem ser tais avanços nas circunstâncias atuais, em que, sob o impacto da controvertida decisão do Supremo, parte importante do Congresso mostra-se menos mobilizada com a tramitação das PECs do que com a aprovação de mudanças na legislação que assegurem a restauração da prisão de condenados em segunda instância.

No Senado, de onde o governo preferiu deslanchar a tramitação das três PECs, a discussão sobre como assegurar tal restauração já deu lugar até à estapafúrdia ideia de convocação de uma Assembleia Constituinte, aventada por ninguém menos que o presidente da Casa.

Para efeitos práticos, tudo indica que as PECs só passarão a receber a devida atenção em fevereiro, quando, findo o recesso, os parlamentares tiverem retornado a Brasília, já com olhos parcialmente voltados para as eleições municipais de outubro.

Para a condução da política econômica, trata-se de postergação custosa e arriscada que alonga a indefinição da evolução do quadro fiscal, acirra a impaciência dos que cobram desempenho mais convincente da economia e põe à prova as convicções do presidente sobre a persistência no penoso esforço de ajuste fiscal que hoje se faz necessário no País.

O quadro torna-se ainda mais complexo quando se levam em conta a reinserção do ex-presidente Lula no cenário político e o tipo de protagonismo que parece estar ensaiando. Com o ressurgimento de Lula, Jair Bolsonaro e seu entorno estarão fadados a ter de enfrentar uma oposição muito mais desabrida e contundente do que a que tiveram de encarar até agora.

Uma oposição tão determinada lhes poderá ser especialmente incômoda, caso o plenário do Supremo, em decisão agendada para o próximo dia 20, desobstrua o uso das informações levantadas pela Unidade de Inteligência Financeira (UIF, antigo Coaf) no inquérito sobre desvios de salários de servidores na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em que está envolvido o senador Flávio Bolsonaro.

Sobram razões para preocupação com a solidez das convicções de Bolsonaro da necessidade de persistir no esforço de ajuste fiscal, num cenário adverso, em que tenha de enfrentar desgastante exploração de suas vulnerabilidades pela oposição. O mais provável é que, assediado com mais contundência, o Planalto se torne ainda mais impaciente na cobrança de crescimento econômico mais rápido e de mais espaço para gastos discricionários no Orçamento. Sobretudo quando o presidente dá todos os sinais de precoce e intensa mobilização com o projeto de conquista de um segundo mandato, respaldado por um desfecho das eleições municipais de 2020 que lhe seja inequivocamente favorável.

Não é por outra razão que, mesmo com três PECs cruciais em tramitação no Congresso, o presidente se dispôs, agora, a abandonar o PSL e deflagrar arriscada operação de criação de um partido, a tempo de disputar com sucesso as eleições de outubro de 2020. Uma mudança de cavalo em meio ao banhado, diria um gaúcho.

Entre outros efeitos colaterais preocupantes, essa extemporânea manobra política já vem trazendo insegurança, apreensão e desconfiança à coalizão informal de partidos de centro-direita que, bem ou mal, tem assegurado a aprovação de projetos de interesse do governo no Congresso. Em entrevista à Folha de S.Paulo (3/11), o ministro Paulo Guedes arguiu que, ao cabo de 30 anos de governos de centro-esquerda, seria justo que o País controlasse suas cobranças e concedesse “quatro aninhos” de carência ao seu programa liberal-democrata. Por ora, é com o imediatismo de Bolsonaro que o ministro deveria se preocupar.

*Economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio


Foto: Beto Barata\PR

Marco Aurélio Nogueira: A República imperfeita

Um novo Manifesto Republicano é uma tarefa democrática de primeira grandeza no Brasil atual, tão carente de respeito aos princípios da República

Nascida em meio às crises que abalaram os equilíbrios políticos, militares, religiosos, sociais e ideológicos do Segundo Império, a República sacudiu o torpor que tomava conta da sociedade brasileira em decorrência da morosidade e do caráter seletivo da Monarquia, travada que estava pelos compromissos com o mundo rural e o conservadorismo.

O Manifesto Republicano divulgado em 3 de dezembro de 1870 abriu a fenda inicial, com um conjunto de promessas e compromissos voltados para a crítica da Monarquia e o início de uma nova fase ético-política no Brasil, na qual prevalecessem os valores da liberdade, da democracia e da descentralização. Seu foco era a denúncia dos estragos causados ao País pela “irresponsabilidade” do Imperador, que atrofiava as províncias, impedia a democracia e produzia grave “prostração moral” da Nação.

O Manifesto passava ao largo da questão social: da escravidão. Concentrava-se na questão do regime político, deixando assim de se preocupar com seus fundamentos materiais. Seu texto era vibrante, mas tinha um único alvo: “a influência perniciosa do poder pessoal”, o “absolutismo prático sob as vestes do liberalismo aparente”.

Escreveram os signatários: “A centralização, tal qual existe, representa o despotismo, dá força ao poder pessoal que avassala, estraga e corrompe os caracteres, perverte e anarquiza os espíritos, comprime a liberdade, constrange o cidadão, subordina o direito de todos ao arbítrio de um só poder, nulifica de fato a soberania nacional, mata o estímulo do progresso local, suga a riqueza peculiar das províncias, constituindo-as satélites obrigados do grande astro da Corte — centro absorvente e compressor que tudo corrompe e tudo concentra em si — na ordem moral e política, como na ordem econômica e administrativa.”

Na verdade, o Manifesto subordinava a luta pela abolição ao tema da liberdade em geral, abstrata. Não era uma impropriedade, mas a insistência no regime dificultou a difusão popular da ideia republicana.

Foi preciso que a efervescência chegasse às senzalas e mobilizasse os elementos urbanos abolicionistas durante a década de 1880 para que a Monarquia perdesse capacidade de se reproduzir. O golpe de 15 de novembro de 1889 estabeleceu em cima o que estava sendo imposto por baixo. O regime político mudou, depois de que também se alterou, pouco mais de um ano antes, o regime de trabalho.

A mudança se fez com suavidade, com algum barulho mas quase nenhuma violência. Viu-a bem o Conselheiro Aires do grande Machado de Assis: “Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.

O republicanismo, ontem e hoje
A instalação da República representou um avanço, mas o que se seguiu ao 15 de Novembro não garantiu a abertura de um caminho consistente de democratização, liberdade, descentralização e organização eficiente do Estado. Nem sequer a ampliação dos direitos políticos foi instituída de modo pleno. O voto popular permaneceu represado, as eleições continuaram a ser manipuladas e o País não se livrou das múltiplas manifestações de autoritarismo e exclusão. A desigualdade social não foi atacada com veemência e a própria igualdade cívica – os direitos iguais para todos – não saiu categoricamente do lugar.

No caso da educação pública, em particular, a imperfeição foi completa: instituiu-se um sistema educacional, mas ele não chegou ao conjunto da sociedade e nem ganhou estabilidade. Adquiriu legitimidade nas décadas de 1940 e 1950, mas aos poucos foi sendo corroído e confrontado pelo avanço do sistema particular de ensino. Chegamos ao século XXI em situação lamentável: ao lado da desigualdade social profunda, o fracasso da educação pública representa o mais retumbante descumprimento das promessas republicanas.

O Manifesto Republicano foi um marco, mas paradoxalmente perdeu-se nos meandros do regime republicano que então se constituiu. O que deveria ter sido sua realização maior permaneceu um dever ser. O programa e os princípios que o inspiraram eram nobres, mas não dialogavam de fato com os fundamentos e os personagens da sociedade imperial. Pairavam sobre ela. Mesmo a marcha da modernização, a industrialização e a urbanização, não sacudiu por inteiro os andrajos da sociedade tradicional enraizada no Segundo Império.

Mas houve progresso, a materialidade social mudou, criou-se uma nova sociedade e um novo Estado foi-se afirmando com base num pacto social que evitou a guerra civil e o choque violento das classes. Compromissos e conciliações deram o tom do processo, suavizando as transições e o arbítrio do sistema, dos governos e regimes que se sucederam no tempo. O Brasil não se tornou um caso perdido, muito menos um zumbi entre as democracias contemporâneas.

Um novo Manifesto Republicano seria uma tarefa democrática de primeira grandeza no Brasil atual, tão carente de respeito aos princípios da República. Em termos de valores a serem fixados, a liberdade precisa ser mais uma vez reiterada, “abrir as asas sobre nós”, em todos os planos. A igualdade deve ocupar lugar de destaque, em termos substantivos. A democracia requer defesa e valorização. Uma pedagogia democrática consistente precisa ser posta em circulação, para promover civicamente a população e prepará-la para a complexidade inerente à era em que estamos.

Numa época como a nossa, de “excessos”, redes e informações, será imprescindível enfatizar a educação pública, a liberdade de pensamento, a autonomia dos cidadãos, a liberdade de imprensa, o combate à corrupção. Deve-se, também, modular com clareza a questão da propriedade privada e fazer com que a liberdade do mercado se componha com distribuição de renda. Temos de voltar a discutir a questão da regulação pública da economia. O mercado hoje é tudo e não há como seguir em frente em termos republicanos e democráticos sem que a dinâmica mercantil abrace a justiça e a inclusão social.

 


Luiz Carlos Azedo: Negócios com a China

“Frente à concorrência chinesa, os avanços do Brasil permanecem limitados. Precisamos aumentar as exportações de manufaturados de maior complexidade”
O ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou ontem que o governo brasileiro tem intenção de formar uma área de livre-comércio também com a China. A notícia arrepiou os cabelos dos setores industriais brasileiros, que sofrem com as consequências da falta de competitividade de nossos produtos e a concorrência dos importados made in China. A ideia, segundo o ministro, é criar uma “free trade area” (área de livre-comércio), com alto nível de integração. “Queremos nos integrar às cadeias globais. Perdemos tempo demais, temos pressa”, disse Guedes, em Brasília. Há 20 anos, o Brasil negociava com a China um volume de comércio de cerca de US$ 2 bilhões ao ano; agora, saltou para mais de US$ 100 bilhões nos dias atuais. Para efeito de comparação, com a Índia, outro parceiro do Brics, o comércio ainda está ao redor de US$ 4 bilhões por ano.
As declarações ocorrem num momento de muita confusão na América do Sul, onde a China desbancou os Estados Unidos como parceiro comercial da maioria dos países. Ao mesmo tempo, sinalizam um deriva do alinhamento automático com o presidente Donald Trump, que está em guerra comercial com a China. O Brasil aposta na relação com os chineses por razões que não necessariamente coincidem com aspectos políticos e ideológicos que levaram à formação do Brics. Não chega a ser uma esquizofrenia, é um dado da realidade objetiva, determinado pela mudança de eixo do comércio mundial do Atlântico para o Pacífico e pela emergência da China, a segunda potência econômica mundial, como principal comprador de nossas commodities de minério e agropecuárias.
Guedes sente as consequências da guerra comercial entre Estados Unidos e China na economia mundial, assim como sabe que as tensões na América Latina estão afugentando investidores em toda a região, inclusive do Brasil. Entretanto, tem uma visão ultraliberal que assusta principalmente os setores industriais brasileiros, tradicionalmente protecionistas: “Os chineses, indianos, malaios, filipinos, está todo mundo subindo o padrão de vida. A metade de lá. Enquanto isso, do lado de cá, particularmente a América Latina, o Mercosul, fez o contrário: cabeça de avestruz, enfiamos a cabeça no chão. Ficamos fechados. Nosso padrão de vida está piorando.”
O problema é que o Brasil está se desindustrializando. Não tem uma política industrial. Economistas liberais são contra isso por princípio, mas governos não podem ser indiferentes à realidade do setor produtivo. No caso brasileiro, a situação é mais grave, porque não existe capital acumulado para a criação de uma nova indústria, mais competitiva, na velocidade em que as mudanças ocorrem no mundo. A tentativa de criar empresas globalmente competitivas dos governos Lula e Dilma, a política dos “campeões nacionais”, resultou em escândalos de corrupção e colapso da “nova matriz econômica”, que lançou o Brasil na recessão.
Complexidade
De acordo com o Atlas da Complexidade Econômica, dos economistas Ricardo Hausmman e César Hidalgo (respectivamente da Universidade de Harvard e do Instituto Tecnológico de Massachusetts — MIT), a complexidade das exportações é determinante para o crescimento econômico de longo prazo dos países. Isso porque, alguns conjuntos de produtos no núcleo do tecido produtivo são mais essenciais para dinamizar outras atividades produtivas, “por conta de seus efeitos de encadeamento e transbordamento, ou seja, por estabelecerem mais conexões com o restante das atividades econômicas”. É o caso dos produtos eletrônicos, máquinas, materiais para construção, químicos e produtos relacionados à saúde.
O Brasil havia melhorado sua posição no ranking de complexidade econômica entre 2012 e 2016, passando do 50º para o 42º lugar, mas a recessão pôs tudo a perder. A análise das exportações brasileiras e chinesas para os países do Mercosul, Aladi e Nafta, qualificando o tipo de produto exportado a partir do Índice de Complexidade do Produto (ICP), contribui para a compreensão das causas da interrupção da tendência de aumento da especialização das exportações brasileiras em produtos pouco dinâmicos, ou seja, commodities.
O Brasil até procurou se adaptar ao avanço da concorrência chinesa em seus principais mercados externos, não apenas por meio da exportação de produtos de baixa complexidade, mas também exportando produtos de maior complexidade, como os da indústria de máquinas, em especial a automotiva, beneficiados pelos acordos comerciais com alguns países dessas regiões. Entretanto, a China destacou-se em produtos ainda mais sofisticados (sobretudo eletrônicos), resultado também associado a acordos comerciais entre países latino-americanos e países externos à região.
Frente à concorrência chinesa, os avanços do Brasil permanecem limitados. Precisamos aumentar as exportações de manufaturados de maior complexidade e ampliar nossas competências produtivas em direção a bens similares dos que já produzimos. Além disso, vale ressaltar a importância de participar de acordos comerciais que envolvam produtos de maior complexidade econômica, notadamente com os países com os quais já apresentamos laços comerciais estreitos em manufaturados, como os do Mercosul.

 

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Sérgio Abranches: Ao deixar PSL, Bolsonaro fica mais dependente de base informal no Congresso

Presidente assume o risco de se apoiar em uma minoria ainda mais diminuta

Desde a posse do governo, ficou claro que o modo de governar de Bolsonaro seria sempre tenso. O presidente busca o conflito. Ao deixar o PSL e criar seu próprio partido, de extrema-direita, opta pela posição inédita de ficar uma parte do mandato sem partido. Assume o risco de se apoiar em uma minoria ainda mais diminuta, se a nova legenda não atrair mais do que os 30 do PSL que espera que o acompanhem. Trocaria a posição de segunda bancada para ficar com a nona.

Com esta decisão, que abre mais algumas linhas de confronto, agrava-se a posição do presidente sem coalizão. Ele fica ainda mais dependente de articuladores independentes, cujas agendas têm cada vez menos interseções com a pauta presidencial. Até agora, conseguiu aprovar projetos, principalmente na economia, sobre os quais há maior consenso entre os partidos que se situam do centro à direita do espectro político.

No primeiro ano de governo, o apoio decisivo a Bolsonaro tem vindo do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), e do PSDB. Maia tem sido o real articulador da agenda econômica do governo e o PSDB, seu viabilizador. O papel do PSDB na reforma da Previdência, que relatou nas duas Casas do Congresso, foi fundamental na sua aprovação. Os relatores terminam por absorver e processar a maior parte da pressão política desviando-a do governo.

Os viabilizadores da agenda governamental têm corrigido erros e exageros, reduzindo pontos de veto. Mas, a margem para a ação deste bloco de apoio é estreita e se esgota nas pautas mais controvertidas.

Na agenda política e de costumes, a base informal não funciona. Elas e divide também em questões político institucionais, como na proposta extemporânea do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, de se recorrer a uma Constituinte para resolvera divergência em torno do cumprimento da pena após sentença em segunda instância. Seria provocar um vespeiro em um contexto político tão polarizado e tenso, com enorme risco de sérios retrocessos institucionais.

*Sérgio Abranches é sociólogo e cientista político


William Waack: No canto da foto

Potências dos Brics estão no pesado jogo mundial de poder, e o Brasil?

Quando apareceu a sigla Brics, em 2006, pensava-se na redistribuição do poder global para além das potências como Estados Unidos e o bloco europeu. Avaliava-se o novo peso e importância dos “mercados emergentes” ali representados, mas dentro da ordem vigente. De fato, a redistribuição de poder ocorreu e está avançando, mas não pelo que os Brics fizeram como “bloco” de atuação, e não da forma benigna como se imaginava.

É interessante notar que a ênfase recente nos encontros dos líderes do Brics tem sido na cooperação tecnológica e comercial entre eles mesmos, e menos nas fascinantes questões geopolíticas. Nem poderia ser diferente: no retrato dos cinco reunidos em Brasília estão três países (China, Índia e Rússia) centrais na luta atual pela redistribuição de poder global, cada vez mais conflituosa, e dois (África do Sul e Brasil) que jogam na periferia.

Cada um por si, China e Rússia são as grandes forças revisionistas que contribuíram decisivamente para liquidar a “paz profunda” internacional do período de 25 anos que começou em 1989 com a queda do Muro de Berlin e terminou em 2014 com a anexação da Crimeia por Moscou. As posturas agressivas dos “revisionistas”, com forte conteúdo nacionalista, sugerem uma continuidade entre o mundo da Guerra Fria (de 1946 a 1989) e o mundo que ressurge depois desses 25 anos de “paz profunda”, período já batizado de “pós-Guerra Fria”.

Assim como no mundo da Guerra Fria, no atual predomina a acirrada competição entre as principais potências por aumentar sua segurança. No período que se inicia em 2014 as potências voltam a conduzir as relações entre si sob a perspectiva de eventual conflito armado. Ou seja, após um período de pouca competição por segurança as relações internacionais se parecem de novo com o que sempre aconteceu.

Os “revisionistas” enxergam os Estados Unidos como bem menos formidável, sobretudo depois da grave crise financeira de 2008. Na Europa e na Ásia (e, recentemente, no Oriente Médio), Rússia e China foram testando os limites e a solidez das alianças até aqui conduzidas pelos americanos, cada vez mais desafiados abertamente (de certa maneira, Trump os ajudou). Não que a relação entre China e Rússia seja tranquila – ou entre Índia e China –, mas eles convergem na contestação de dois pilares da ordem americana dos últimos 70 anos: um conjunto de regras internacionais e a defesa da democracia como valor universal.

É nesse mundo multipolar muito mais perigoso, instável e imprevisível que África do Sul e Brasil têm de encontrar como fincar o pé. A África do Sul enfrenta competição da China por influência na sua própria área de atuação mais próxima. Além dessa, divide com o Brasil outra característica: o grau da crise doméstica, que parece fazer com que esses dois gigantes do Hemisfério Sul olhem apenas para dentro de si mesmos.

No caso do Brasil, a perda de importância e liderança regional registrada sobretudo a partir do segundo mandato de Dilma – agravando a estapafúrdia ideia do confronto “Norte-Sul” – ficou clara em todos os episódios recentes de turbulência e confusão entre os vizinhos, sobre os quais a antiga influência brasileira praticamente deixou de existir. Putin parece ter mais peso sobre o que acontece na Venezuela do que o Brasil.

Na foto do jogo do qual participam os integrantes do Brics o Brasil aparece no cantinho. Não é palco, parte ou tem atuação decisiva em qualquer dos principais conflitos que estão redistribuindo o poder global. Frases de efeito em redes sociais ou “alinhamento automático” que o próprio governo sugere em relação a Washington não são pilares de política externa. O Brasil não só corre atrás da liderança perdida: diante da velocidade das mudanças lá fora, parece ainda perdido na busca de seu papel.

 


José Serra: Leilões na mudança

É essencial alterar a legislação para que o petróleo beneficie as futuras gerações

Ao olhar as grandes mudanças no setor de petróleo e gás brasileiro é importante rememorar o primeiro ano do governo FHC, quando se retirou o monopólio da Petrobrás da Constituição. Isso possibilitou a sanção da Lei do Petróleo, em 1997, e autorizou a realização dos leilões de blocos para exploração e produção.

A partir daí o mercado de petróleo brasileiro entrou em nova fase. Adotou-se o regime jurídico de concessão, em que as empresas disputam os blocos oferecendo o maior bônus e comprometimento com o conteúdo local. Com o início da produção, as empresas passariam a pagar royalties e participações especiais. O sucesso dos leilões foi total, com a entrada de grandes empresas petrolíferas internacionais e a criação de empresas nacionais voltadas para esse mercado.

O modelo de concessão foi o único utilizado no Brasil de 1999 ao anúncio do pré-sal, em 2008. Nesse período foram realizados nove leilões, com arrecadação de R$ 100,3 bilhões com royalties e participações especiais. Consequentemente, a produção de petróleo nacional mais que dobrou, saindo de 838 mil barris/dia em 1997 para 1,8 milhão de barris/dia em 2008. As reservas comprovadas saltaram de 7 bilhões para 12,8 bilhões.

O pré-sal encarnou a promessa de que o Brasil estaria bem próximo de viver a era de ouro do petróleo, com a previsão de enormes reservas e o preço do barril de óleo em torno dos US$ 100. Mas acabou virando instrumento político. Com o argumento da necessidade de proteção de recursos tão abundantes, decidiu-se que a exploração e produção de petróleo em áreas estratégicas para o País necessitaria de novo regime.

Em vez de promover aprimoramentos no modelo vigente, suspenderam-se os leilões por seis anos, até que se chegasse a um novo modelo considerado adequado. Em 2010, finalmente, o governo instituiu o regime de partilha da produção, que concedia à Petrobrás participação de, no mínimo, 30% dos campos do pré-sal, assim como o monopólio da operação.

Só em 2013 se realizou o primeiro leilão do pré-sal, sem que se atingisse o resultado esperado. O certame ofertou o polígono de Libra, com a estimativa de 8 bilhões a 12 bilhões de barris de óleo equivalente (BOE) recuperáveis. Mas o novo marco para a exploração do petróleo não trouxe a tão aguardada participação maciça de empresas estrangeiras. Sem concorrência, apenas um consórcio apresentou oferta e o governo recebeu o mínimo estipulado nas regras – um bônus de assinatura de R$ 15 bilhões e 41,65% do petróleo produzido após descontados os custos de produção (o lucro-óleo). Ficou evidente que o novo regime mitigou a atratividade da área ofertada.

A Lei n.º 12.351/2010 precisou ser aperfeiçoada para a realização de novos leilões sob o regime de partilha. Algumas melhorias foram realizadas com a Lei n.º 13.365/2016, que revogou a obrigatoriedade de a Petrobrás ser a operadora única, mas podendo participar com 30% em todos os consórcios.

Na sequência, o governo Temer mudou a política de conteúdo local, aprovou o Repetro – um novo regime fiscal aduaneiro que suspendeu a cobrança de tributos federais na importação de equipamentos para o setor de petróleo, principalmente as plataformas de exploração – e estabeleceu um calendário de leilões.

A assertividade das medidas foi vista nos resultados dos leilões seguintes. Em três ofertas de concessão e cinco de partilha arrecadaram-se aproximadamente R$ 42 bilhões em bônus de assinatura. Esse cálculo não inclui o megaleilão de excedentes da cessão onerosa, cujo bônus de assinatura foi de R$ 70 bilhões, valor expressivo dentro da indústria global de petróleo, mas abaixo do potencial esperado de R$ 106,5 bilhões.

Os altos valores obtidos nos leilões de partilha realizados recentemente deram ao Brasil uma posição de protagonismo na indústria mundial de petróleo e gás. Apesar disso, não preencheram as expectativas divulgadas. No último dia 7, na sexta rodada do pré-sal , somente um dos cinco blocos ofertados foi arrematado. Um consórcio da Petrobrás (80%) com a chinesa CNODC (20%) foi o único a apresentar lance para o bloco Aram.

É bom lembrar que a Petrobrás exerceu o direito de preferência em outros dois blocos – Norte de Brava e Sudoeste de Sagitário –, mas não apresentou ofertas para eles. Quando ela exerce o direito de preferência, as petroleiras que também pretendiam ser operadoras costumam desistir de fazer ofertas pelo bloco. A preferência da Petrobrás afeta pesadamente a decisão das concorrentes, o que reforça as falhas do modelo de partilha da produção.

De imediato, são essenciais duas alterações na legislação para que a riqueza do petróleo realmente beneficie as futuras gerações de brasileiros. A primeira é o fim da preferência da Petrobrás nos leilões de partilha, o que certamente ampliará sua competitividade nos leilões. A segunda, permitir ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), assessorado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, decidir qual é o melhor regime jurídico de exploração e produção a ser adotado nos leilões do pré-sal. Atualmente, a oferta de novas áreas de exploração é feita pelo regime de partilha. Mas há um entendimento na indústria de que algumas dessas áreas, como acumulações no pós-sal, são economicamente viáveis apenas em regime de concessão. O polígono estabelecido na legislação atual não faz distinção geológica ou econômica. Pela regra, o CNPE também pode considerar uma área fora do polígono como estratégica e ofertar como partilha.

O calendário de leilões já prevê a realização de rodadas de licitações do pré-sal para o biênio 2020-2021. Portanto, quanto mais cedo esses aperfeiçoamentos forem realizados, mais o País terá a ganhar. Há espaço para alterações na legislação para realizar mudanças e aperfeiçoar o regime de leilões. E a expectativa é que sejam aprovadas no Congresso. Já foi trilhado um longo caminho em prol de mudanças do setor de óleo e gás. Não podemos parar por aqui.

*Senador (PSDB-SP)


Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro e o novo sebastianismo

“À crise de representação dos partidos soma-se a crise ética que desgastou os poderes da República e, por muito pouco, não implodiu os grandes partidos”

Quando do bloqueio continental de Napoleão à Inglaterra, justificativa para a invasão de Portugal pelas tropas do general Junot, os sebastianistas exultaram, por causa das profecias de Gonçalo Annes Bandarra, sapateiro e poeta de Trancoso, estudioso do Antigo Testamento, cujas trovas alimentaram o imaginário lusitano com o mito da volta do rei-menino, Dom Sebastião (Lisboa, 20 de janeiro de 1554 — Alcácer-Quibir, 4 de agosto de 1578), que desaparecera ao liderar uma cruzada no Marrocos.

Apesar das censuras e proibições da Inquisição, as trovas do Bandarra continuaram circulando por séculos, sob todos os pretextos, até mesmo a invasão napoleônica. Nascido na Córsega, Napoleão seria descendente do rei Sebastião e fora saudado pelos sebastianistas como o futuro chefe do Quinto Império, que faria sair do porto de Lisboa uma frota em direção à Ásia, para conquistá-la e convertê-la ao catolicismo. Novas impressões das trovas foram feitas em 1810, 1815, 1822, 1823, 1852, influenciando o pensamento sebastianista e messiânico de D. João de Castro, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, entre outros.

Portanto, não foi à toa que o sebastianismo ressurgiu no Brasil não somente nas manifestações folclóricas, como reizados e folias de rei, mas também em episódios como o de Canudos, no sertão da Bahia, que marcou profundamente a história política e militar da República Velha. Com alma lusitana, nosso populismo tem essa característica sebastianista, ou seja, gravita muito mais em torno da ideia de um salvador da pátria, um líder carismático, do que do nacionalismo econômico, do clientelismo e da conciliação de classes.

O período que vai da redemocratização, em 1945, ao golpe que destituiu o presidente João Goulart, em 1964, para alguns, foi marcado por governos populistas, mas isso é ignorar as grandes diferenças entre os governos Dutra, Vargas, Juscelino, Jânio e Goulart. Essa tese ignora as singularidades do pensamento político brasileiro e promove rupturas com o passado cujos resultados práticos foram dois impeachments: o de Collor de Mello e o de Dilma Rousseff. A fronteira entre a manipulação das massas e o real atendimento das demandas sociais é mais sinuosa do que o esquematismo teórico imagina. Havia um sistema partidário robusto até 1964, que era o verdadeiro alicerce da democracia brasileira, mas a tentativa disruptiva de supostamente superar a “política de conciliação” à esquerda resultou numa ruptura à direita.

Desde a Constituinte de 1988, a composição de um sistema robusto de representação esbarra na fragmentação exagerada dos partidos, que não pode ser atribuída apenas às lideranças políticas. Talvez a maior responsabilidade seja do Supremo Tribunal Federal (STF), que havia proibido a adoção de cláusulas de barreira para representação no Congresso, em julgamento ocorrido em 2006, quando a regra passaria a vigorar. Resultado: no final de 2015, o Brasil contava com 35 partidos, oito deles fundados a partir de 2011, três novos partidos somente em 2015.

Eleições
Em 2017, novas propostas de reforma política foram apresentadas: o fim das coligações em eleições proporcionais (deputados e vereadores), uma cláusula de barreira e a criação de um fundo eleitoral. No ano passado, a cláusula de barreira atingiu 14 dos 35 partidos então existentes: PCdoB (elegeu nove deputados), PHS (elegeu seis), Patriota (elegeu cinco), PRP (elegeu quatro), PMN (elegeu três), PTC (elegeu dois), DC, PPL e Rede (elegeram um, cada), PMB, PSTU, PRTB, PCB e PCO. Presume-se que em 2022 haverá drástica redução do número de partidos, o que forçará um reagrupamento partidário após as eleições municipais.

À crise de representação dos partidos, provocada, entre outras coisas, pela emergência das redes sociais, soma-se a crise ética que desgastou os poderes da República e, por muito pouco, não implodiu os grandes partidos. Entretanto, esse cenário catapultou Jair Bolsonaro à Presidência da República, por um pequeno partido, o PSL, que elegeu 51 deputados e cinco senadores. Esse resultado da eleição, porém, não resolveu a crise de representação dos partidos, cujo epicentro hoje é a saída do presidente Bolsonaro do PSL, depois de uma disputa pelo controle da legenda e dos recursos do seu fundo partidário com o deputado Luciano Bivar (PE), que comanda o partido com mão de ferro.

Bolsonaro tem todas as condições de construir seu próprio partido. Além do carisma, tem uma narrativa política conservadora, um programa econômico ultraliberal, o governo nas mãos, uma militância política agressiva e articulada em rede e, sobretudo, uma base eleitoral sebastianista, que acredita em milagres e num salvador da pátria. Entretanto, tem pela frente eleições municipais que funcionam como centrífuga do espectro partidário. Por isso, para construir um partido nacional que atenda os seus objetivos, precisa lançar candidatos a prefeito e organizar chapas proporcionais em milhares de municípios, inclusive porque o sebastianismo não é monopólio de ninguém, há outros candidatos a salvador da pátria.

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Adib Abdouni: O trânsito em julgado é cláusula pétrea

A discussão acerca da prisão em segunda instância antes mesmo do trânsito em julgado da sentença penal condenatória — festejada por uns e repudiada por outros — pode até soar casuísta à primeira vista caso se leve em conta que sua motivação gravita exclusivamente em torno da figura do ex-presidente Lula. Na verdade, não há casuísmo.

Em essência, cuida-se de temática penal de índole constitucional da mais elevada importância, tendo em vista que a eliminação definitiva dessa controvérsia afetará a vida de milhares de cidadãos brasileiros que se encontram em iguais condições processuais às de Lula.

Sabemos que em fevereiro de 2016 o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), ao rejeitar por maioria de votos o Habeas Corpus n. 126.292, alterou drasticamente sua jurisprudência para afirmar que a partir de então seria possível a execução provisória da pena após a confirmação em segunda instância da sentença penal condenatória, mesmo antes de seu trânsito em julgado.

Além do placar ter sido de 7 a 4 (acompanharam o saudoso ministro relator Teori Zavascki pelo indeferimento do HC, os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes, vencidos os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski), o julgamento atingiu somente as partes envolvidas naquele processo criminal, à míngua de efeito vinculante da decisão.

Daí a importância maior do desate final, havido dia 7 de novembro de 2019 por meio do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44 pelo Plenário do STF — palco próprio para aquilatações de questões dessa magnitude e impacto social — cujo resultado proclamado, por decisão majoritária de votos (6 a 5), deu pela constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal. Este afirma que ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, em exata harmonização com o artigo 5º., inciso LVII, da Carta da República, a prestigiar o princípio da inocência ou da não culpabilidade.

Vale dizer, a maioria dos membros da mais alta corte de justiça do país, enquanto guardiões da Carta Magna, nada mais fizeram do que, no estrito cumprimento do dever judicante, decidir pela procedência dos pedidos formulados nas ações diretas de controle constitucional. Estes que ambicionavam o reconhecimento expresso da constitucionalidade do referido dispositivo processual penal que, em tudo e por tudo, replica, às inteiras, o postulado da presunção de inocência e rechaça a hipótese de execução provisória da pena para resguardar, com grau de definitividade e segurança jurídica, um dos maiores direitos da pessoa humana, qual seja, o direito à liberdade e o de recorrer, até final deslinde da controvérsia penal, a fim de reverter eventual injustiça ou antijuridicidade cometida em primeira ou segunda instância de julgamento.

Em que pese revelar-se perfeitamente razoável o reclamo da sociedade leiga acerca do desfecho havido no STF , motivado pelo sentimento de impunidade que se irradia do resultado proferido, o fato jurídico insofismável é que o legislador constituinte originário optou por adotar regra garantista inabalável — no campo dos direitos e garantias fundamentais — segundo a qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Frise-se que o texto constitucional é de clareza solar, e, respeitado entendimento diverso, não comporta — com honestidade intelectual daqueles que se debruçam de forma isenta sobre o tema — qualquer flexibilização em sua interpretação ou aplicação ao caso concreto.

O resultado do julgamento não poderia mesmo ter sido diferente e o STF teve a oportunidade ímpar de reverter a equivocada e anti-republicana posição jurisprudencial dantes adotada em detrimento do Estado Constitucional Democrático de Direito.

É eloquente — e vale ser reproduzida — a irresignação do ministro Celso de Mello: reflete preocupante inflexão hermenêutica de índole regressista no plano sensível dos direitos e garantias individuais, retardando o avanço de uma agenda judiciária concretizadora das liberdades fundamentais. Que se reforme o sistema processual, que se confira mais racionalidade ao modelo recursal, mas sem golpear um dos direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos de uma república.

Agora, vem à baila a proposta de congressistas para alteração do texto constitucional — por intermédio de emenda à Constituição Federal — com o fito de autorizar a prisão em segunda instância.

As propostas, entretanto, não merecem reflexão maior a fim de considerá-las corretas ou inadequadas do ponto de vista jurídico, na medida em que — com todas as vênias necessárias — cuidam-se de iniciativas impróprias, e, sobretudo, inconstitucionais, por vício insanável que as acometem já em seu nascedouro.

Entrementes, o entendimento favorável à execução provisória da pena — presente o atual cenário constitucional — ganha contornos de populismo político em nítida subversão da ordem jurídica, tornando tábula rasa um dos mais fundamentais mandamentos constitucionais de proteção do indivíduo, em combate ao arbítrio e ao abuso do Estado punitivo: a presunção de não culpabilidade.

Com efeito, o indigitado comando constitucional foi erigido à categoria de cláusula pétrea, na forma do artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV da Constituição Federal, ao estabelecer que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais.

E a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 410/2018, do deputado federal Alex Manente (PPS/SP), que aguarda deliberação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), promove inaceitável tentativa de mitigar a presunção de inocência enquanto condicionante da execução da sentença penal condenatória ao julgamento de segunda instância, por equivaler à completa aniquilação do referido preceito republicano, ou, na letra do texto constitucional, em sua abolição.

Confira-se a proposta legislativa: “Art. 5º. (…) LVII – ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.

Em igual sentido, vai a PEC 5/2019, em curso no Senado Federal e proposta pelo senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR). Por via transversa e notória burla à sistematização constitucional, também busca eliminar a presunção de inocência, ao inserir o inciso XVI no art. 93 da Constituição Federal, para positivar a possibilidade de execução provisória da pena, após a condenação por órgão colegiado, sem que o preceito guarde, nesse capítulo, qualquer pertinência temática, já que inserida em passagem resguardada à organização do Poder Judiciário.

Não se desconhece que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, inclusive para alterarem o texto constitucional, a denominar o poder derivado constituinte, tal como previsto nos artigos 1º., parágrafo único e 60, da Constituição Federal.

Contudo, não se pode perder de vista que o exercício desse poder reformador deve observar os termos e limites expressos ou implícitos contidos na Constituição Federal.

O ilustre ministro do STF e doutrinador constitucional Alexandre de Moraes — em que pese ter se pronunciado pela possibilidade da prisão em segunda instância — esgota o tema ao analisar a vedação de alteração das matérias qualificadas como cláusulas pétreas, conforme se extrai do voto proferido na ADI 5058/DF, ao registrar que, “mutatis mutandis”: “O Poder Constituinte derivado está inserido na própria Constituição, pois decorre de uma regra jurídica de autenticidade constitucional e somente conhece as limitações constitucionais expressas e implícitas.

O poder de o Congresso Nacional alterar a Constituição Federal é derivado porque retira sua força do Poder Constituinte originário; subordinado porque se encontra limitado pelas normas expressas e implícitas do texto constitucional, as quais não poderá contrariar, sob pena de inconstitucionalidade; e, por fim, condicionado porque seu exercício deve seguir as regras previamente estabelecidas no texto da Constituição Federal.

Não há dúvidas, portanto, de que, no exercício do legítimo poder constituinte derivado reformador, denominado por parte da doutrina de competência reformadora, o Congresso Nacional pode alterar o texto constitucional, respeitando-se a regulamentação especial prevista na própria Constituição Federal. Entre as limitações expressamente previstas pelo texto constitucional, estão as `cláusulas pétreas´, pois não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; os direitos e garantias individuais”.

Assim, mostra-se inescapável concluir que a imutabilidade da não culpabilidade somente poderá ser apreciada, votada e implementada por meio de uma nova Constituição, a fim de alterar tão fundamental direito do cidadão, o que se espera, em verdade, nunca ocorra.

*Adib Abdouni é advogado constitucionalista e criminalista


Rubens Barbosa: O desaparecimento do centro

O Brasil deve se espelhar em países onde convivem forças de todo o espectro político

Com o desaparecimento do voto moderado de centro, a votação do referendo que aprovou a saída do país da União Europeia (UE) mudou radicalmente o cenário político no Reino Unido. A busca desse voto sempre teve muita influência nas eleições britânicas. As eleições deixaram de ser uma disputa entre a esquerda (Partido Trabalhista) e a direita (Partido Conservador) acima das diferenças ideológicas, econômicas e sociais. Quando as eleições são disputadas tendo como foco questões econômicas entre esquerda e direita, os partidos políticos podem escolher um ponto ao meio, mais moderado, e conquistar votos decisivos. Em contraposição, quando se trata de política de identidade ou questões que envolvam grandes reformas não há possibilidade de negociação. É mais fácil haver compromisso em questões econômicas, como impostos e salários, e muito mais difícil quando se trata de noções como soberania e papel do Estado.

Com a discussão sobre o Brexit como tópico principal da eleição britânica de 12 de dezembro, o voto de centro terá pouca influência pela polarização entre os que querem sair e os que querem permanecer na UE. Desapareceu o senso comum de que o partido que pudesse focalizar as preocupações do eleitor de centro poderia ganhar, enquanto que os partidos que buscassem os extremos seriam derrotados.

As posições moderadas de centro também estão desaparecendo em muitos países, tendo como pano de fundo a insatisfação da população com a crescente concentração de renda, a pobreza e a falta de oportunidades de emprego. Essa frustração se materializa em manifestações e confrontações em países como Líbano, Iraque e França, na cidade chinesa de Hong Kong e, na América do Sul, no Chile e na Bolívia. Essa reação não representa disputas entre os partidos de esquerda e direita por reformas sociais, mas a luta da população, sobretudo dos jovens sem liderança e sem coloração partidária, contra o establishment, ou seja, o governo da vez.

As situações descritas acima estão causando crescente instabilidade política, confrontações violentas e impasse institucional, sem perspectiva de solução pela ausência de negociações possíveis.

No caso do Brasil, nos últimos 20 anos a polarização ideológica começou com a ação política do “nós contra eles” e culminou com a campanha eleitoral de outubro passado. A eleição de 2018 foi um divisor de águas. Pela primeira vez na História recente do País surgiu, com sucesso, um candidato e um partido assumidamente de direita que disputaram a Presidência contra representantes da esquerda e de uma centro-esquerda fragmentada. O segundo turno, polarizado entre direita e esquerda, acentuou a divisão interna como nunca antes no País, refletindo, em parte, a crescente influência da mídia social.

Diferentemente dos Estados Unidos, onde a divisão interna tem crescido nos últimos 30 anos e a insatisfação da população contra o governo desaguou na eleição de Donald Trump, o Brasil, com exceção da maior parte do período autoritário, sempre se caracterizou pela busca da conciliação e do entendimento entre as diferentes tendências políticas. Nos últimos anos, as visões ideológicas e populistas, que passaram a ter grande influência, e as crises políticas, sobretudo em 2016, com o impedimento da presidente Dilma Rousseff, fizeram que posições radicais de esquerda e de direita fossem gradualmente eliminando as percepções centristas mais moderadas. Pouco antes da eleição de outubro, para evitar os extremos, chegou a haver a tentativa de busca de uma terceira via, de centro, moderada, que não teve condição de prosperar.

A eleição de um presidente e a grande votação de um partido, ambos com uma agenda de direita conservadora nos costumes e liberal na economia, mudou o quadro político interno. Depois da eleição, fragilizada, com seu líder condenado e preso, a esquerda, desorganizada, estava sem efetiva capacidade de fazer oposição ao governo. Apesar disso, a narrativa das forças de direita continuou a insistir que esse grupo era o único que poderia ser uma ameaça à volta da esquerda e do comunismo e a tudo apostar na manutenção do clima de polarização política.

A decisão do STF sobre a prisão em segunda instância e a saída da prisão da principal liderança da oposição reforçam a retórica da polarização e da radicalização, justo no momento em que forças políticas começavam a articular a formação de um centro moderado. Evitando os extremos de direita e de esquerda, essa posição superaria os antagonismos radicais com uma agenda liberal na economia, preocupação com a desigualdade social, sem excessos nos costumes e com uma visão de mundo sem ideologia e sem alinhamentos automáticos, colocando o Brasil em primeiro lugar.

No novo cenário da política interna, a oposição, agora com um líder que em seus primeiros pronunciamentos se mostrou mais à esquerda do que até aqui esteve e promete percorrer o País para atacar as reformas e defender seu ideário ideológico, só tenderá a acirrar a contestação ao governo. À direita interessa essa radicalização para manter unidos e atuantes seus seguidores e para atrair parcelas do centro com a ameaça da volta da esquerda ao poder, como ocorreu na eleição presidencial.

O desaparecimento do centro – se vier a ocorrer – será um retrocesso e poderá acarretar, no limite, até a confrontação física entre os mais radicais de ambos os lados. A ampla agenda de reformas em discussão no Congresso e a perspectiva de crescimento da economia aconselham a busca de moderação para evitar a instabilidade política, que poderá ameaçar a volta do investimento e a redução do desemprego.

Com visão de futuro e buscando o fortalecimento das instituições, o Brasil deve espelhar-se em países onde no cenário interno convivem forças de todo o espectro político. A sociedade brasileira não tem alternativa senão buscar rapidamente a formação de um centro político forte que evite a polarização e o crescimento da radicalização, que possam pôr em risco a democracia.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)