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Paulo Fábio Dantas Neto: Política negativa e política positiva

Frente democrática terá de encarnar numa liderança a ideia de centro político

A fórmula que inspira o título foi de San Tiago Dantas, ministro de Jango, nos idos de 1964. Ajuda a pensar a frente democrática exigida pela experiência de 10 meses de mandato de Jair Bolsonaro. Sistema político, instituições jurídicas, algumas corporações profissionais do Estado e setores da sociedade civil, imprensa incluída, reagem com cautela ao ataque do Executivo a fundamentos democráticos da ordem política. O professor Werneck Vianna chama essa estratégia defensiva de guerra de posição. Uso política positiva em sentido análogo.

Em conjuntura crítica, San Tiago Dantas chamou de esquerda positiva a política que propunha, com senso agônico de urgência de um político progressista que pressentia a aproximação do pior. O horizonte da política positiva era um país com progresso social e economicamente moderno, horizonte submetido a duas regras de ouro: respeito rigoroso às instituições políticas e recusa de ideias de revolução ou de refundação do País. Certos conservadorismo e ceticismo, em vez de obstáculos ou argumentos contra as reformas, eram o método político para fazê-las.

San Tiago perdeu e a derrota foi do Brasil, que viveu duas décadas de ditadura. Sua agenda foi, com o tempo, revisitada, pelos militares, do modo autocrático que ele rejeitava por convicção. Pragmatismos em contraste: o de San Tiago, que propunha um futuro pela via da democracia e da civilização do conflito social pela moderação da política; e o de Golbery do Couto e Silva, que atrelava o presente a uma guardiania contra o demos, um regime que revogava a política (ou a restringia a jogo palaciano) em nome de eliminar os extremos. Num caso, construção moderada do centro político, no outro, extremismo de centro, que a história de outros povos nos ensina ser um dos biombos do fascismo.

A transição democrática e a Carta de 88 remeteram Golbery ao passado e agora ele quer voltar. Sua estratégia para vencer a linha-dura do regime que ajudou a fundar parece inspirar movimentos da direita democrática que tentam conter o extremismo do presidente Jair Bolsonaro, de sua família e sua facção. Assim como Golbery e Geisel ajudaram, na política de porões, a nos livrar de coisa pior, ajudará se, na nossa democracia atual, a aliança liberal-conservadora do presidente da Câmara com o governador de São Paulo detiver a aventura obscurantista que ocupa o Planalto.

Essa estratégia positiva, porém, será insuficiente se limitada à união de liberais e conservadores. A frente democrática necessita de um pé esquerdo, para a dissidência se separar, de fato, da extrema direita e se tornar oposição. Outra lição da experiência da transição democrática é que a abertura lenta, gradual e segura de Golbery não seria viável sem o avanço, no sistema político e na sociedade civil, da estratégia que mirava a democracia, e não uma guardiania light. Se Rodrigo Maia quiser ter um papel à altura do que teve Tancredo, terá de encontrar seu Ulysses e seu PCB, quer dizer, aliados capazes de mobilizar a margem esquerda da política pela via positiva, dando à frente democrática seu pé esquerdo. Essa articulação precisará alcançar, além de todo o centro, a esquerda convencional, um maciço ideológico que hoje rejeita e pune jovens políticos que tentam renovar a política pela política, e não contra ela.

O andar da carruagem da esquerda não favoreceu o polo positivo. Sob mediação do arranjo de poder caído em 2015-2016, fabulações nacional-desenvolvimentistas, de comunitarismo cristão e de democracia de alta intensidade foram linkadas ao identitarismo pós-moderno, emergente na sociedade civil. Conexões de sentido que exilam ideias de nação, de povo, em assembleias, conselhos deliberativos e coletivos identitários deixaram a esquerda brasileira mais distante da via cosmopolita, institucional e incremental da esquerda positiva. A política da esquerda negativa difundiu crenças e mobilizou interesses artífices do estilingue que hoje a alveja com força de bumerangue. A ponta da lança é a política negativa da direita soberanista e autoritária.

Para construir a frente democrática há ainda que desfazer uma confusão: o termo conservador não ter uso para nomear esse mix de ideologia e pragmatismo míope. Um conservadorismo que se preze está na oposição a um governo cuja pauta, inédita no Brasil, é destruir instituições.

Além de formar a frente democrática, um desafio à política positiva é ser eficaz na conjuntura. Seus praticantes não podem ser uma zaga que olha para a bola, com foco eleitoral em 2022, sem marcar o atacante demolidor. Ataques do capitão convertem consensos civis em dissensos selvagens, rebaixando crenças democráticas, mesmo se ficam na ameaça. Por isso dão razões para processos de denúncia formal e pedidos de impeachment.

O realismo político descarta essa via legal preventiva, ainda mais com Lula solto. O script racional da sua política atual é negar tudo o que está no governo, mas complementa o script de um governo que nega a complexidade legal e social do País. O quadro é favorável a essa mútua negatividade bipolar. A campanha de 2022 já começou e a frente da política positiva não se construirá em ritmo de valsa. Tocando dobrado, terá de encarnar numa liderança a ideia de centro político, como em outros tempos encarnou em Tancredo e Ulysses, em FHC e no ex-Lula. Como não existe liderança natural, ela só pode sair de acordo político em torno de quem mais unir os fragmentos que hoje se supõe representarem 40% do eleitorado.

Para desmentir quem chamar essa solução de conluio sem programa, a voz do centro unificado precisará combinar realismo político, convicção democrática, responsabilidade econômica, pluralismo cultural e forte compromisso com reforma social. Para quem achar essa combinação impossível, ou indesejável, é simples: dobrar a aposta e alinhar-se a Lula ou a Bolsonaro.

*Cientista político, é professor da Universidade Federal da Bahia


Eliane Brum: Amazônia Centro do Mundo

Encontro histórico reúne, neste momento, líderes da floresta, ativistas climáticos internacionais, cientistas do clima e da Terra e alguns dos melhores pensadores do Brasil

Neste momento, na Terra do Meio, coração da maior floresta tropical do planeta, uma formação humana inédita está reunida para criar uma aliança pela Amazônia. É um encontro de diferentes em torno de uma ideia comum: barrar a destruição da floresta e dos povos da floresta, hoje devorada por predadores de toda ordem. Entre eles, as grandes corporações de mineração e o agronegócio insustentável. É também um encontro para salvar a nós mesmos e as outras espécies, estas que condenamos ao nos tornarmos uma força de destruição. Nesta luta, devemos ser liderados pelos povos da floresta – os indígenas, beiradeiros e quilombolas que mantêm a Amazônia ainda viva e em pé. Este é um encontro de descolonização. Por isso, não um encontro na Europa nem um encontro nas capitais do Sudeste do Brasil. Deslocar o que é centro e o que é periferia é imperativo para criar futuro. Na época em que nossa espécie vive a emergência climática, o maior desafio de nossa trajetória, a Amazônia é o centro do mundo. É em torno dela que nós, os que queremos viver e fazer viver, precisamos atravessar muros e superar barreiras para criar um comum global.

Em busca de soluções para barrar o desmatamento e o extermínio da biodiversidade, Davi Kopenawa Yanomami, Socorro de Barcarena, Anita Juruna, Isis Tatiane da Silva, Bedjai Txucarramãe, Raimunda Gomes, Mitã Xipaya, Chico Caititu, Mukuka Xikrin, entre outras lideranças indígenas, quilombolas e beiradeiras hoje estão sentados em círculo conversando com as jovens lideranças do movimento Fridays For Future Anuna De Wever e Adélaïde Charlier, da Bélgica, e Elijah Mackenzie, do Reino Unido, com os ativistas do movimento Extinction Rebellion Robin Ellis-Cockcroft, Alejandra Piazzolla e Tiana Jacout e com a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot. Nesta roda pela vida da Amazônia estão também alguns dos mais inspiradores cientistas e pensadores do Brasil: o cientista da Terra Antonio Nobre, o arqueólogo Eduardo Neves, as antropólogas Manuela Carneiro da Cunha e Tânia Stolze, o engenheiro florestal Tasso Azevedo e o cientista social Maurício Torres.

Todas estas pessoas deixaram suas casas e seus países convidadas por mim, pelo Instituto Ibirapitanga, pelo Instituto Socioambiental e pela Associação dos Moradores da Reserva Extrativista Rio Iriri. Algumas viajaram semanas num barco à vela, para conhecer de forma profunda, com seu corpo no corpo do território, a floresta e os povos da floresta. É instinto de sobrevivência o que as move, mas é também amor. É movimento de vida numa geopolítica que impõe a morte da maioria para o benefício e os lucros da minoria que controla o planeta. É uma pequena grande COP da Floresta criada a partir das bases. Aqui, não há cúpula.

Ao final desta travessia, parte deste grupo se somará ao grande evento chamado Amazônia Centro do Mundo, que começa às 17 horas deste domingo, 17 de novembro, em Altamira. Os movimentos sociais do Xingu e as organizações da floresta, além da Universidade Federal do Pará – campus Altamira, estão conjurando os brasis e os brasileiros a deslocarem seu corpo para o verdadeiro centro do país e do planeta para criar uma aliança pela Amazônia. Estes, que agora estão na floresta, levarão suas vozes para que sejam somadas a destas outras vozes. Neste centro, nos conjugamos no plural e nos realizamos no coletivo.

Em Altamira, o grupo da floresta encontrará lideranças históricas, como Antonia Melo, do movimento Xingu Vivo, e Antonia Pereira, da Fundação Viver Produzir e Preservar. Também Jackson Dias, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), religiosos como os bispos Dom Erwin Kräutler e Dom João Muniz e a sacerdotisa de umbanda Mãe Juci D’Óyá. Também artistas do Xingu e de outras regiões do Brasil. Algumas das vozes mais representativas da Amazônia atenderam ao chamado para virar uma voz só em defesa da floresta e de seus povos. Altamira, epicentro da destruição da Amazônia, será epicentro de uma aliança pela vida. Buscamos a paz para todos, humanos e não humanos – e não apenas para alguns.

Lideranças de grande expressão estão trazendo seu conhecimento para encontrar soluções para manter a floresta e seus povos vivos: entre elas, Raoni, indicado para o Nobel da Paz, Maria Leusa Munduruku, representante de um dos povos indígenas que mais lutam pela integridade da floresta e da bacia do Tapajós, Michael Heckenberger, um dos mais renomados arqueólogos do planeta.

No encontro Amazônia Centro do Mundo haverá população da cidade e da floresta. E também os produtores rurais que colocam alimento na mesa da população, aqueles que respeitam os povos tradicionais e atuam preservando a Amazônia, porque sabem que dela depende o seu sustento. Sabemos que há fazendeiros que destroem a floresta, mas também sabemos que há agricultores que a respeitam e têm mudado suas práticas para responder aos desafios do colapso climático que atingirá a todos, produtores que respeitam a lei e a democracia e que também querem viver em paz. Pessoas que perceberam que precisam não apenas parar de desmatar, mas reflorestar a floresta.

O fim do mundo não é um fim. É um meio. É o que os povos indígenas nos mostram em sua resistência de mais de 500 anos à força de destruição promovida pelos não indígenas. À tentativa de extermínio completo, seja pela bala, seja pela assimilação. Hoje, meio milênio depois da barbárie produzida pelos europeus, as populações indígenas não apenas não se deixaram engolir como aumentam. E erguem, mais uma vez, suas vozes para denunciar que os brancos quebraram todos os limites e constroem rapidamente um apocalipse que, desta vez, atinge também os colonizadores: a maior floresta tropical do mundo está perto de alcançar o ponto de não retorno. Dizem isso muito antes do que qualquer cientista do clima. Alguns de seus ancestrais plantaram essa floresta. Eles sabem.

Como Raoni tem repetido há décadas:

“Se continuar com as queimadas, o vento vai aumentar, o sol vai ficar muito quente, a Terra também. Todos nós, não só os indígenas, vamos ficar sem respirar. Se destruir a floresta, todos nós vamos silenciar”.

Os humanos, estes que sempre temeram a catástrofe na larga noite do mundo, tornaram-se a catástrofe que temiam. Alteraram o clima do planeta. Ameaçaram a sobrevivência da própria espécie na única casa que dispõem. Mas não todos os humanos. Uma minoria dos humanos, abrigada nos países desenvolvidos demais, consumiu o planeta. As consequências, porém, já são sentidas pelas maiorias pobres e pelos povos que não cabem nas categorias de rico e de pobre impostas pelo capitalismo.

Na Amazônia brasileira, estes povos são principalmente indígenas, beiradeiros (ou ribeirinhos), e quilombolas. A ONU chama de “apartheid climático”, mas talvez apartheid pressuponha que os que estão fora queiram entrar. Essa crença de que o desejo maior de todos aqueles que não consomem é se sentar à mesa do consumo. Como é a crença de que tudo o que uma “nação” deve querer é crescer infinitamente, como se isso fosse possível. Não. Estes outros que são chamados de povos tradicionais não querem entrar, se tornar também eles devoradores de mundos. Eles querem que não destruam esta casa a qual pertencem, mas não possuem nem querem possuir. Querem apenas viver nela segundo seus próprios termos. Porque são parte dela, são outros e o mesmo.

Enquanto isso se passa na Amazônia há séculos, em 2018, no lado de lá do mundo, uma garota de rosto redondo, uma trança loira de cada lado, postou-se sozinha diante do parlamento sueco. Ela fazia uma greve escolar pelo clima. “Estou fazendo isso porque vocês, adultos, estão cagando para o meu futuro”, dizia. Aos 15 anos, Greta Thunberg, hoje o mundo inteiro conhece o seu nome, inspirou um movimento de resistência que abarcou o planeta.

Inspirada por ela, outras adolescentes, como Anuna De Wever e Adélaïde Charlier, na Bélgica, e Luisa Neubauer, na Alemanha, levaram milhares de jovens às ruas de vários países da Europa, Oceania, Ásia, África e América. Já na primeira greve global, em março de 2019, mais de um milhão de crianças e adolescentes deixaram a escola para denunciar a falta de políticas públicas para enfrentamento do colapso climático e para barrar os grandes poluidores do planeta. Também em 2018, o movimento Extinction Rebellion (Rebelião contra a Extinção) bloqueou as pontes de Londres e se espalhou por outras cidades do mundo, defendendo a desobediência civil e não violenta para evitar a extinção em massa e a aniquilação da biodiversidade do planeta.

A geração climática encarna a primeira grande adaptação psíquica e comportamental ao Antropoceno, esta nova época geológica em que os humano tragicamente substituíram a natureza como força dominante do planeta. Pela primeira vez, os filhotes são obrigados a proteger o mundo que seus pais e avós destruíram e destroem com afinco. Deve ser aterrorizante lutar contra adultos que acreditam que o melhor que podem fazer por um filho é “lhe dar tudo”, quando é justamente este “tudo” de materialidades que vem arruinando a Terra. Os meninos e meninas europeus que vão às ruas estavam inscritos na infância protegida, esta infância que na época do colapso climático já não pode ser. Quando vão para as ruas apontar o dedo contra o sistema que exauriu o mundo, estão sinalizando também a passagem para um outro conceito de infância.

O que esses jovens europeus que lutam pelo clima talvez não saibam é que são também índios. Sua forma de compreender seu ser/estar no planeta é muito mais semelhante a dos povos originários, com os quais nunca conviveram, para além de referências distantes em livros e exposições, do que semelhantes a de seus avós e bisavós. A compreensão de que a Terra é casa e que a “casa está em chamas”, como diz Greta, os lançou numa outra inscrição. Nesta inscrição parecem ter se tornado capazes de reconhecer outras gentes e também as outras gentes de si.

É desta percepção que parte a ideia deste encontro na floresta amazônica. Deslocamos o que é centro e o que é periferia para recolocar o que estava deslocado. Numa época de emergência climática, vale repetir mais uma vez, o centro do mundo é a Amazônia. A cada 24 horas, a maior floresta tropical do planeta lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera. Pela transpiração. A floresta transpira e salva o planeta todos os dias. Como aponta Antonio Nobre, cientista de Gaia, não há como conter o superaquecimento global sem manter a floresta criando rios voadores. Uma apoteose cotidiana não alcançável por nenhuma das obras-primas da arte humana.

Mas o centro do mundo é a Amazônia também porque nela habitam os povos que sabem como viver no planeta sem destruí-lo, os povos que compreendem, das mais diversas maneiras, que a sua carne é a carne da Terra. Os povos que também são floresta. Os povos com os quais os brancos precisam aprender, se eles ainda estiverem dispostos a ensinar, depois de tudo o que a chamada “civilização” fez contra os seus corpos.

O encontro entre outros e outros acontece na floresta profunda, no lugar chamado Terra do Meio, na bacia do Xingu. Um mosaico de terras indígenas, reservas extrativistas ocupadas por beiradeiros, uma estação ecológica e um parque nacional. Os não índios, os não beiradeiros, os não quilombolas fizeram o gesto de se deslocar até o coração da floresta que é também coração do planeta. Vieram para falar. Vieram principalmente para escutar. E sentir. Os rios, as árvores, seus povos humanos e não humanos. Reconhecem, com o deslocamento do corpo, a centralidade da floresta.

Vieram para a criação de uma aliança pela Amazônia. Vieram também para a refundação de um humano outro, um que possa ser múltiplo. Este encontro, este de corpo encarnado no corpo encarnado da floresta, de todas as florestas que compõem a floresta, é o ponto inicial de uma tessitura de múltiplas centralidades. É também um gesto de rompimento dos muros e das barreiras que não param de se reproduzir sob o domínio dos déspotas eleitos – e seus nacionalismos que deixam apenas os corpos que já exauriram de fora, depois de já terem devorado as riquezas naturais de seus mundos. Nesta época de nacionalismos de ocasião, os que vêm de dentro e de fora vêm também para mostrar que não há fora, que somos +um+um+ na única casa que temos. A potência desse gesto é tecer o comum na horizontalidade colorida de nossas diferenças.

É imensamente simbólico que as jovens ativistas climáticas Anuna De Wever e Adélaïde Charlier tenham escolhido alcançar a Amazônia de barco à vela desde a Europa. Não mais saltar sobre os mundos. Mas percorrê-los, por semanas, no gesto de alcançar o outro e encontrar a si mesmas. Desta vez as caravelas são de descolonização. Este é um encontro para descolonizar o pensamento e também a ação. E é, sim, um encontro de índios. Os que sabiam que eram, os que só descobriram agora.

Bem-vindos ao centro do mundo.


José Goldemberg: As universidades e um projeto para a Nação

Há que estimulá-las a fazer estudos e debates sobre os grandes problemas nacionais

O ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, fez no evento O que é o Poder?, realizado em outubro por este jornal, uma declaração contundente sobre o papel que as corporações e a burocracia ocupam hoje no cenário político do País. “Nós não temos uma elite nacional. A burocracia ocupou este espaço. Infelizmente, os partidos políticos não fazem projetos de nação. Infelizmente, as universidades não fazem projetos de nação”, disse ele.

Há tempos não se ouve no Brasil um chamado tão importante como este para que as universidades ocupem um papel mais importante no cenário nacional. O que temos visto, ao contrário, são, por um lado, declarações desarrazoadas e até truculentas de ministros da Educação desqualificando as universidades públicas e, por outro, grupos parassindicais dentro delas concentrados na defesa de seus interesses corporativos.

Sucede que universidades não são apenas locais em que se aprende uma profissão, mas um espaço em que se tenta entender o mundo que nos cerca, tanto do ponto de vista físico como humano e social.

Foi assim que elas surgiram, há mais de 800 anos Começando com a Universidade de Bolonha, em 1088, onde grupos de estudantes de várias regiões da Europa se agruparam em torno de grandes professores estudando humanidades e Direito Civil.

Sucede que o imperador Frederico I (Barbarossa) do Sacro Império Romano-Germânico (1122-1190) reconheceu a importância desses estudos, sobretudo os que diziam respeito ao Direito Romano, que ele considerava fundamental para legitimar seu poder. Frederico deu autonomia e proteção à nascente universidade.

Ao longo dos séculos inúmeras outras universidades foram criadas em toda a Europa e sua autonomia – de modo geral – era respeitada como forma de garantir a qualidade dos estudos e pesquisas que realizava. Também ao longo dos séculos a procura do conhecimento e uma melhor compreensão da natureza, promovida por homens como Bacon, Galileu, Newton, Rousseau e muitos outros provocaram uma grande efervescência cultural e científica, que deu origem ao Iluminismo, o qual solapou as ideias retrógradas da Igreja Católica da época, que legitimavam monarquias absolutistas e os privilégios da aristocracia. O resultado foi a Revolução Francesa, de 1789, que criou o regime republicano que se espalhou pelo mundo todo.

Foram as grandes universidades, como Oxford (na Inglaterra), Harvard (nos Estados Unidos), Humboldt (na Alemanha) e Paris (na França), que consolidaram o avanço do progresso no mundo todo e foi nelas que se inspiraram brasileiros esclarecidos como Armando de Salles Oliveira, que criou a Universidade de São Paulo (USP), em 1934. A Universidade do Brasil (hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro) seguiu o mesmo caminho. Essas universidades educaram gerações de profissionais e homens públicos que contribuíram muito para a formulação de políticas públicas no País.

Na USP, o reitor Miguel Reale, na década dos 1970, deu-lhe uma dimensão tal que teve influência decisiva na organização do sistema universitário brasileiro. A Escola Politécnica, antes disso, teve enorme papel na consolidação da engenharia nacional. Na área médica, o prestígio da Faculdade de Medicina e o trabalho do professor (e ministro) Adib Jatene e de Sergio Arouca, da Fiocruz, foram essenciais para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), um dos mais abrangentes do mundo. E na área ambiental o professor Paulo Nogueira Neto criou não só a legislação, como também a estrutura de todo o sistema de proteção ambiental do País.

Na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o professor Alberto Luiz Coimbra criou a Coordenadoria de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), que é a espinha dorsal da pesquisa tecnológica na área de petróleo do Brasil.

Em 1987 o presidente José Sarney estimulou na USP a discussão sobre o papel dos partidos políticos e a convocação de uma Assembleia Constituinte.

Esses são apenas alguns exemplos do muito que já foi feito pelas universidades brasileiras na formulação de políticas públicas para o País, em que conhecimento e competência são essenciais. Um exemplo corrente é o papel que um professor como José Pastore teve na formulação da reforma trabalhista em 2018.

Contudo não se pode esperar demais das universidades. No regime presidencialista o governo escolhe suas prioridades e seus projetos para a Nação e os submete ao Legislativo, ao mesmo tempo que tenta mobilizar a sociedade para apoiá-los.

No passado recente tivemos até governos cujos projetos de Nação foram tão mal implementados que nos levaram à maior recessão que o Brasil atravessou. O atual governo não parece ter um projeto propositivo para o País, exceto na área de costumes, e seu papel acabou sendo assumido pelo Congresso Nacional, numa espécie de “parlamentarismo branco”. Em tese, isso deveria reforçar o papel dos partidos políticos, o que lamentavelmente ainda não aconteceu. Tem razão, portanto, o ministro Toffoli ao lamentar que as universidades não estejam fazendo “projetos de Nação”, como se viu no passado.

Parece oportuno tentar recuperar esse desempenho estimulando-as a realizar estudos e debates sobre os grandes problemas nacionais. O presidente Lincoln, dos Estados Unidos, fez isto 150 anos atrás (em plena Guerra Civil Americana), criando a Academia Nacional de Ciências para “prover recomendações objetivas à nação em matérias relacionadas com ciência e tecnologia”.

Essa missão é um pouco restrita para ser copiada. Um bom começo, porém, seria proceder a uma análise objetiva de algumas políticas públicas para o País, a começar por políticas educacionais, de saúde, energia e infraestrutura, áreas nas quais a competência das universidades brasileiras é indiscutível.

*Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo


Demétrio Magnoli: A sorte dos presidentes

Morales dissolveu a independência do Judiciário e do tribunal eleitoral

Evo Morales caiu — e fugiu. Nicolás Maduro resiste, contrariando tantos prognósticos. Sebastián Piñera, ainda em palácio, enfrenta a tempestade. A sorte dos presidentes depende menos da têmpera de cada um e mais da natureza dos sistemas políticos nacionais.

Na Bolívia, o golpe foi um contragolpe. Seguindo o roteiro do populismo caudilhista, Morales violou as regras do jogo democrático para se eternizar no poder. Em busca de um quarto mandato, rasgou a Constituição e, com o auxílio de uma corte suprema curvada à vontade do caudilho, ignorou o resultado do plebiscito popular que lhe negara a terceira reeleição. O golpe em câmera lenta conduzido por Morales concluiu-se com as irregularidades constatadas no primeiro turno, que provocaram a onda de manifestações oposicionistas.

Um ciclo de protestos populares, a chamada “guerra do gás”, forçou a queda do presidente Carlos Mesa, em 2005. Morales dirigiu aquele movimento, que abriu caminho para seu triunfo eleitoral original. Mesa preferiu renunciar a chamar os militares para reprimir o povo, como fizera o antecessor, Sánchez de Lozada. Agora, Morales caiu vítima de eventos similares, com a diferença de que investiu no recurso à repressão. Mas, e aí está a distinção fundamental, um pronunciamento militar funcionou como gota d’água para a renúncia. Contragolpe, portanto, o que não deixa de ser um golpe.

Na sua marcha autoritária, Morales dissolveu a independência do Judiciário e do tribunal eleitoral. Contudo, apesar de ensaios nessa direção, não chegou a consolidar seu controle sobre as Forças Armadas. O chavismo venezuelano, pelo contrário, montou um “regime cívico-militar”, convertendo a cúpula das Forças Armadas em sócia integral do poder ditatorial. A fidelidade dos chefes militares, testada em circunstâncias extremas, salvou o governo de Maduro — e lançou o país num transe caótico.

A democracia cumpre, entre outras, a função crucial de promover transições pacíficas de governo. Nela, em geral, presidentes só têm seus mandatos abreviados por meio de impeachment, um instrumento legal de última instância. A queda de Mesa, em 2005, refletiu a fraqueza estrutural da democracia boliviana. A democracia chilena é mais forte, o que explica a resiliência de Piñera.

A principal exceção à regra da transição democrática registra-se nos casos em que, desafiados por manifestações populares, os governantes desatam uma repressão violenta. Aí, presidentes correm o risco de cair, como ocorreu com Sánchez de Lozada, em 2003 —ou, antes, na Argentina, com Fernado de la Rúa, em 2001.

No início, Piñera enveredou por esse caminho, não distinguindo a massa de manifestantes pacíficos das franjas de grupos extremistas que se engajam em incontáveis atos de vandalismo. O presidente, além disso, convocou os militares para conter os protestos, rompendo um tabu derivado dos traumas da ditadura de Pinochet. Depois, acuado, desculpou-se perante a nação e iniciou um diálogo político destinado a refazer o contrato social. Talvez, graças à solidez das instituições democráticas chilenas, escape do destino que ceifou De la Rúa e Sánchez de Lozada.

Um dia, Maduro cairá — e, provavelmente, seus entusiastas na esquerda latino-americano descreverão o processo como um golpe. Se Piñera vier a renunciar, Jair Bolsonaro gritará “golpe!”. Facções opostas do espectro ideológico disputam a caracterização da renúncia forçada de Morales. Tudo isso é normal no campo das narrativas políticas. Mas, apesar de tudo, das histórias divergentes dos três presidentes, extrai-se uma lição de validade universal.

A lição é que o termo “golpe” só se aplica a sistemas democráticos. O golpe é a interrupção da regra do jogo sucessório. Fora da democracia, em ditaduras abertas ou em regimes semiautoritários, o jogo sucessório não obedece a regras claras de aceitação geral. Aí, surgem o “golpe dentro do golpe”, o “contragolpe”, a “revolução popular”. Morales não tem do que reclamar. Já os bolivianos merecem a reconstrução da democracia, não um regime autoritário apoiado no pretexto da retribuição.


Fernando Gabeira: O Big Toffoli

No mundo, a Justiça se move na tentativa de preservar a privacidade das pessoas. Aqui no Brasil é diferente

Numa semana muita dura e cheia de eventos, pensei em trazer um tema novo. Já falei de Bolívia e Chile, comentei a saída de Lula e me debrucei, sem ânimo, sobre a invasão da embaixada da Venezuela em Brasília. Isto me interessou, pois poderia usar de novo a palavra quiproquó, tão sonora e fora de moda.

Sinceramente, meu tema de preferência era um chamado projeto Nightingale, no qual o Google é acusado de vender milhões de dados médicos e hospitalares das pessoas para grandes empresas do setor. A coleta e venda de informações é um grande negócio no mundo. Tende a ser o mais interessante, pois os dados valem dinheiro, sobretudo em grandes quantidades.

Iria refletir um pouco sobre a privacidade num mundo do Google e das redes sociais quando soube que o presidente do STF, Dias Toffoli, agora por um artifício legal, tem acesso aos dados financeiros de 600 mil contas de pessoas e empresas.

Ele proibiu a UIF (antigo Coaf) de partilhar esses dados com os órgãos de investigação. Um absurdo sem nome. Tenho escrito sobre isso e, para dizer a verdade, com pouca repercussão. É um ato de exceção. Os próprios funcionários da OCDE que estiveram no Brasil dizem que a medida de Toffoli está em contradição com as normas e os compromissos internacionais do Brasil.

Toffoli não se interessa por isso. Seu objetivo era congelar as investigações sobre Flávio Bolsonaro e impedir que a Receita continuasse pesquisando os movimentos financeiros de sua mulher e da mulher de Gilmar Mendes. Ele não se contentou em paralisar investigações. Ele quer acesso a todos os dados coletados pela inteligência financeira.

É o Big Toffoli navegando pelas contas de todo mundo, conhecendo os segredos financeiros que ele mesmo impede de serem investigados adequadamente. Como é possível o país conviver com essa barbaridade? Mesmo os aliados de Toffoli deveriam temer essa concentração de poder. Nos últimos tempos, aproximou-se de Bolsonaro para salvar a pele do filho senador. Mas, no passado, foi um funcionário do PT, um assessor de José Dirceu.

Acho que tanto o PT como Bolsonaro deveriam temer Toffoli. A quem servirá com esse acesso ilimitado aos dados pessoais e empresariais? Pode usá-los para fulminar Bolsonaro ou mesmo para enrascar mais ainda seu partido de coração, que é o PT.

Em muitos lugares do mundo, a Justiça se move na tentativa de preservar a privacidade das pessoas, acossando o Google e o Facebook, entre outros. Aqui no Brasil é diferente. É a própria Justiça que invade a privacidade alheia, na pessoa do presidente do STF. Não se trata mais nos trópicos de reduzir o poder das gigantescas empresas, mas de ampliar ao extremo o poder pessoal de Toffoli.

Num mesmo ano, Toffoli salvou Lula e Bolsonaro. Lula porque foi dele, fiel advogado do PT, o voto de Minerva que acabou com a prisão em segunda instância. E Bolsonaro, porque foi ele quem tirou as nádegas do jovem Flávio da seringa do controle de operações financeiras.

Podemos falar tudo de Lula ou Bolsonaro. Mas ninguém apanha mais do que eles nas redes ou na imprensa. Ambos reclamam, Bolsonaro tira verbas publicitárias de quem o critica; Lula, volta e meia, se lembra do controle social da imprensa. Mas nenhum dos dois chegou ao ponto de Toffoli: instalar uma delegacia, convocar Alexandre de Moraes como seu braço policial e partir para cima de quem o critica, com polícia revistando casas e computadores.

Lula precisou de Toffoli. Bolsonaro também. Mas eles ignoram, talvez, que Toffoli seja muito mais do que um simples auxiliar para encrencas. Diante da vulnerabilidade dos líderes populistas que polarizam o Brasil, ele vai construindo seu universo pessoal de poder. E um poder mais persuasivo que o deles.

Toffoli é o Big Toffoli. Assim com os homens e, além disso, é o único que tem poder de acessar os dados financeiros de quase todo mundo. Digo quase todo mundo, porque não me incluo nesses 600 mil. Minha conta bancária é de uma monotonia tediosa. Mas não me inibo em defender a privacidade dos outros, ricos ou pobres.

Em 13 anos de oposição, o PT nunca me fez mal. Espero o mesmo de Bolsonaro. Ambos têm seguidores agressivos. Mas nenhum pode como Toffoli mandar a Polícia Federal vasculhar meus computadores, incluir-me nos detratores do Supremo.

A democracia tropical, com a sua incessante troca de favores, está parindo um monstro. Uso a expressão num contexto institucional. Pessoalmente, Toffoli até se parece com um desses candidatos por quem suspiram velhas senhoras em busca de bons moços para votar.

Mas a ampliacão do seu poder pela captura de dados financeiros o transforma num Big Toffoli.


Luiz Carlos Azedo: Por que tanto atraso?

“Na República, a constituição de empresas não dependia mais do governo, e sim da vontade dos empreendedores. Era uma revolução e o Brasil integrava-se à economia internacional”

Um comentário no Twitter do ministro da Educação, Abraham Weintraub, nos leva à indagação que intitula a coluna: “Não estou defendendo que voltemos à Monarquia mas… O que diabos estamos comemorando hoje? Há 130 anos foi cometida uma infâmia contra um patriota, honesto, iluminado, considerado um dos melhores gestores e governantes da História (Não estou restringindo a afirmação ao Brasil)”, disse o ministro, na sexta-feira, em meio a comemorações dos 130 anos da proclamação da República. Referia-se, obviamente, a D. Pedro II, que governou o país de 1840 a 1889.

A breve intervenção do ministro, que gerou muita polêmica nas redes sociais, revela muita coisa, a começar por um natural desconhecimento sobre a História do Brasil, sobretudo no Império, que sempre foi muito pouco estudado no ensino médio e nos cursinhos para vestibular. Em segundo lugar, indica uma nostalgia bem característica do pensamento reacionário, como já tivemos oportunidade de tratar por aqui. Em parte, isso acontece porque, para consolidar a República, nossos militares e políticos, impregnados de positivismo, tentaram passar uma borracha na história anterior ao15 de novembro de 1889. Diga-se de passagem, para alegria de uma elite latifundiária, patrimonialista e racista, que nunca admitiu a devida reparação aos ex-escravos e seus descendentes; muito pelo contrário, lutou para manter privilégios e obter indenizações, já que considerava o escravo uma propriedade privada, assegurada pela Constituição liberal de 1824, outorgada por D. Pedro I.

Ao contrário de todos os demais países do Novo Mundo, com exceção do Canadá e das Guianas, em 1922, o Brasil não se tornou uma república ao se tornar independente. Não foi apenas uma esperteza de D. João VI, que recomendou a iniciativa ao filho, se a ruptura com a Corte portuguesa fosse inevitável. Havia ali um projeto de reunificação do império colonial português, pois o príncipe D. Pedro I era herdeiro da casa de Bragança, e a intenção de manter o regime escravocrata (daí a tentativa, frustrada pelos ingleses, de anexar Angola para garantir o tráfico negreiro e dar a ele um caráter doméstico), com a qual conciliou José Bonifácio, patriota verdadeiro, mas monarquista convicto, traumatizado pelas revoluções europeias e a revolta dos escravos no Haiti.

Estagnação
No livro História da Riqueza no Brasil, Cinco Séculos de Pessoas, Costumes e Governos (Estação Brasil), o jornalista e sociólogo Jorge Caldeira, utilizando recursos de pesquisas como a antropologia e a econometria, lança luz sobre a estagnação econômica no período em que D. Pedro II governou o Brasil: “Com a acumulação dos dados, ficou cada vez mais evidente que, no final do século 18, a economia colonial brasileira era pujante, e pujante em decorrência do crescimento do seu mercado interno. Mais ainda, era uma economia bem maior que a da metrópole.”

Ao comparar dados do Brasil e de outros países, como os Estados Unidos, Caldeira mostra que foi exatamente aí que perdemos o bonde da história pela primeira vez (houve outras). Por volta de 1800, a economia brasileira tinha porte equivalente à dos EUA. Ao fim do período imperial, nos últimos anos do século 19, o peso econômico do país representava menos de 10% do ostentado pelos americanos. A economia brasileira era provavelmente maior que a dos Estados Unidos na primeira metade do século 19. As duas economias tinham exportações de valor semelhante (em torno de 4 milhões de libras esterlinas anuais), mas o mercado interno brasileiro ocupava uma área bem mais extensa e com atividades mais variadas que as 13 colônias originais.

A economia brasileira “teve uma expansão notável ao longo do século 18”, nos mostra Caldeira: “O ritmo de crescimento da produção econômica passa de 0,5% para nada menos de 1,5% ao ano, enquanto o crescimento populacional vai de 0,4% para 0,6%. O crescimento da renda per capita” salta de 0,1% para 0,9% anuais. No período que vai de 1820 a 1900, “a renda per capita do Brasil era de 670 dólares em 1820 — de 704 dólares no final do século. O crescimento teria sido de míseros 5% em um gigantesco período de 80 anos”. A economia local regrediu. A chave da estagnação foi a política monetária, focada nas exportações, e manutenção da escravidão, cujas sequelas estão presentes até hoje na sociedade brasileira, entre as quais a discriminação racial, os preconceitos e a profunda desigualdade.

Mas, entre 1906 e 1918, ou seja, após a proclamação da República, o Brasil volta a crescer de maneira vertiginosa. Durante a valorização [do café] a economia brasileira experimentou pela primeira vez uma taxa de crescimento real per capita superior à dos Estados Unidos. A taxa foi provavelmente maior que 2% ao ano. A economia cresceu rapidamente. Na República, a constituição de empresas não dependia mais do governo, e sim da vontade dos empreendedores. Era uma revolução e o Brasil integrava-se à economia internacional. O Estado finalmente liberava o mercado, o que levou ao crescimento econômico. Tratar a República Velha como um período de atraso é um equívoco, não resiste aos dados estatísticos comparativos; o que envelheceu foram certas análises sobre a formação econômica do Brasil. O Império, com suas restrições à iniciativa privada, travou parte da expansão econômica.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-por-que-tanto-atraso/


Alberto Aggio: Aporias da ‘frente democrática’

A competição eleitoral não deverá obstar uma unidade reformista em favor da Nação

A queda de popularidade do presidente Jair Bolsonaro fez com que se abrissem especulações a propósito do quadro sucessório, que, por sinal, ainda vai longe. Diante das dificuldades de governança cada vez mais evidentes, o próprio presidente não se furtou a estimular o desvelamento do quadro de oponentes, fosse ele composto pelo que resta da oposição derrotada na eleição que lhe garantiu o poder ou por aqueles que, vendo os problemas de largo calado do governo, passaram a buscar um espaço para iniciar a órbita em direção a uma possível candidatura futura.

Sem um projeto claro a perseguir como marca de seu governo, além da confusa intenção de destruir o que “a esquerda impôs ao País” durante as três últimas décadas, a Bolsonaro interessa que a questão eleitoral permaneça flutuando como tema a possibilitar-lhe uma contraposição retórica com seus possíveis adversários. Sua sucessão passou a ser um instrumento usado pelo presidente para medir a temperatura em relação aos seus apoios, sem necessitar, mais uma vez, ceder à articulação com o mundo político. Bolsonaro continua investindo suas fichas nas correias de transmissão que lhe garantiram a vitória eleitoral, com prevalência nas redes sociais.

Permanecer com o porcentual de apoio que lhe garanta a passagem para o segundo turno em 2022 parece ser o objetivo que está por trás dessa estratégia.

Ao admitir que disputará sua própria sucessão, contraditando discurso de campanha, quando defendeu o fim da reeleição, Bolsonaro aferra-se à ideia de que o melhor cenário seria não permitir o surgimento de novos postulantes, consolidando a contraposição eleitoral com o PT, o que lhe garante um público cativo e, supostamente, poderia dar-lhe novamente a vitória. Contudo, como se viu, emergiram alguns nomes, uns mais e outros menos abertamente, que procuraram aproveitar-se da oportunidade para se colocarem como protagonistas dessa precoce contenda. No cenário que se instalou, podem-se identificar alguns “dissidentes” em velada campanha. Outros, na oposição derrotada, pleiteiam uma nova identidade para esse campo, mas há ainda aqueles que acalentam uma confrontação entre “mitos” e continuam a reiterar os velhos bordões de antes. De novidade apenas uma reaparição, até certo ponto esperada, a prometer superar o “último” dos vários “ciclos de erros” vividos pelo país nos últimos tempos.

Em razão da fraqueza da oposição, voltou-se a especular sobre a necessidade de articulação de “frentes” para se contraporem a Bolsonaro. De imediato se propôs uma “frente de esquerda”, antigo mote de uma esquerda ancilosada. Uma opção pela afirmação ideológica e pelo isolamento político, sem nenhuma chance eleitoral verdadeira. De outro lado, fala-se numa “frente democrática”, repondo, de certa maneira, os termos do enfrentamento virtuoso contra a ditadura militar nas décadas de 1970 e 1980. Trata-se de uma proposição mais realista, de memória positiva, bastante complexa nos tempos atuais, que carrega, é preciso dizer, uma certa coloração passadista.

É verdade que foi Bolsonaro quem passou a enfatizar um certo apadrinhamento de seu governo com o regime militar (1964-1984). Mas Bolsonaro expressa mais um setor ou facção reacionária daquele regime do que o seu conjunto. Essencialmente reacionárias, suas declarações e ações políticas guardam um tom de ameaça ao regime democrático da Carta de 1988, o que justificaria a união de forças em defesa da democracia. Sob Bolsonaro boa parte da Nação começa a dar-se conta de que não pode permanecer sob tutela de uma facção insidiosa e deve buscar o diálogo entre diferentes setores político-ideológicos.

No passado, a existência de um “partido-frente”, como foi o MDB, facilitou o sentimento de unidade e a construção daquela “frente democrática”. Atualmente, os partidos e atores políticos estão abertamente em competição eleitoral e isso dificulta a reposição daquele sentimento, bem como sua articulação política num ator relevante. Depois do êxito do PT e de Lula, abriu-se uma fase de “democracia de audiência”, na qual a combinação de interesses com os da mídia, sancionados por pesquisas quase diárias, se estabeleceu como critério decisivo para os atores políticos. Daí partidos e lideranças se terem tornado essencialmente pragmáticos, além de midiáticos, o que acabou por redefinir os termos da competição política. É de perguntar se uma “frente democrática”, baseada numa perspectiva defensiva, encontrará passagem no tipo de política que vivenciamos.

Uma “frente democrática” contra o reacionarismo bolsonarista necessitará apresentar propostas de reformas concretas à Nação, como exposto na entrevista do cientista político José Álvaro Moisés ao Estado (30/9), na qual se postulam temas de qualificação da nossa democracia, como a implantação imediata do voto distrital misto. Certamente outras pautas, de caráter econômico-social, poderiam ser agregadas a essa.

A decisão do STF cancelando a prisão em segunda instância e a soltura de Lula jogam o PT no centro da cena política, complicando mais ainda o quadro eleitoral. Em certo sentido, dá falsas esperanças a uma “frente de esquerda”, que dificilmente se agregará em torno de Lula. Além disso, não dilui a tese da divisão de três terços, acentua a polarização e, por fim, coloca barreiras intransponíveis à fórmula da “frente democrática”.

A rearticulação do centro político em torno de ações políticas renovadoras em sentido democrático talvez seja o novo nome da “frente democrática”. O cenário latino-americano é, como sabemos, de crispação. O Brasil pode se afastar disso forjando um programa comum que se apresente como alternativa a este governo reacionário de facção que aí está. A competição eleitoral, como na Espanha, não deverá obstar uma unidade reformista em favor da Nação, para espantar as divisões e o facciosismo.

 


Luiz Sérgio Henriques: De curtos-circuitos e centelhas

A sedução do homem providencial percorre como praga a política latino-americana

Nas sociedades de risco em que nos movemos, conflito e mudança social parecem não seguir caminhos mapeados e, por isso, dotados daquele mínimo de previsibilidade que mesmo precariamente nos dava certo conforto intelectual. Era possível especular, com mais ou menos certeza, como e quando a lenta evolução da “base material” iria dar lugar aos movimentos mais velozes e intrincados da “superestrutura”, para usar a terminologia marxiana de curso comum. Erros de previsão, diga-se de passagem, eram bem mais constantes do que os poucos acertos, mas havia alguma familiaridade com o mundo que nos cercava e aparentemente podia ser decifrado com as categorias da política ou da economia política.

Pois essa aparência se dissolveu de vez. Vemo-nos agora, como sugere Fernando Henrique Cardoso, em meio a fios desencapados cujo contato acidental pode desencadear curtos-circuitos de proporções imprevistas, passando transversalmente por classes e camadas sociais, ignorando ou redefinindo interesses materiais brutos, acirrando demandas de reconhecimento ou explorando ressentimentos difusos. Um conhecedor das revoluções do século 20 poderia mencionar, a propósito, a centelha – a iskra, não por acaso o título de um jornal operário russo – que faria incendiar todo o edifício da ordem, mas o que falta agora, irremediavelmente, é o agente político – o partido – que compreende a si mesmo como capaz de dominar todo o processo e encaminhá-lo para o fim previamente disposto.

Na falta desse demiurgo – o que não é de lamentar –, requerem-se doses adicionais de cautela e comedimento, atenção aos riscos que assediam nossas sociedades e afeição inabalável às formas da democracia. Já é alguma coisa que tenha desaparecido do horizonte, a não ser no caso de seitas francamente minoritárias, o apelo revolucionário que, estivéssemos nos anos 1960, teria imposto o recurso às armas e a militarização da política – ou, na verdade, a anulação desta última da pior forma possível. Cuba, o símbolo daquela época, hoje é parte do problema, não hipótese de solução. A manutenção do autoritarismo na antiga ilha rebelde chega a ser funcional para a extrema direita da região, unida, como se viu em recente voto nas Nações Unidas, na estratégia infame do bloqueio, que enrijece o regime, garante-lhe algum consenso passivo e, acima de tudo, castiga cruelmente o povo cubano.

No mundo em rede, a centelha pode vir de qualquer parte, até mesmo de Hong Kong, e nascer de fatos rotineiros, como o aumento no bilhete de metrôs. Foi o que vimos em junho de 2013, sem, no entanto, apreender os sinais inquietantes emitidos sobre o descolamento entre política e cidadãos, e é o que estamos vendo por estas semanas no Chile, ainda há pouco tido como “oásis” num continente campeão de injustiças e desigualdades. Mera miopia ter visto só “direita” nas ruas brasileiras de 2013, assim como miopia total é ver “subversão de esquerda” no Chile de agora, tal como interessadamente o faz quem sonha com a reedição de atos institucionais ou com o advento de uma democracia plebiscitária em torno do “homem forte”.

A sedução do homem providencial, aliás, percorre a política latino-americana de fio a pavio, como praga daninha. Os presidentes ou ditadores “eternos” pulam da História diretamente para as páginas do realismo fantástico – e vice-versa. E que a praga não está restrita aos caudilhos caricatamente reacionários comprova-o a safra de reeleições ilimitadas protagonizada pelos recentes chefes bolivarianos, como Chávez, Maduro e Morales.

Sob aspectos essenciais o Chile se afasta desse padrão e precisamente por isso a grande crise atual da sua democracia nos inquieta de modo agudo. Trata-se de uma realidade a desafiar automatismos pró-governo, por parte da extrema direita brasileira, ou pró-oposição, por parte da esquerda populista. O Chile, como se sabe, conseguiu não só ter números macroeconômicos consistentes, como também, nas duas décadas que o separam do pinochetismo, reduziu a pobreza e passou a ostentar bons resultados sociais por qualquer índice que se adote, sempre tendo em conta o contexto latino-americano. Mas é indiscutível que fundamentos do pinochetismo persistem, como o atesta a previdência individualizada, que é antes índice de uma sociedade de mercado que de uma economia de mercado. E sociedades assim, em que escasseiam bens públicos, como, entre outros, a proteção à velhice, são um terreno propício para centelhas e curtos-circuitos.

A esquerda brasileira oficial, contudo, treinada historicamente no confronto por conta do corporativismo radicalizado, não deveria deter-se nesta primeira constatação, sob pena de perder o essencial. Num país de partidos e tradições longamente enraizadas, a longa noite pinochetista seria superada de modo gradual, ainda nos anos 1990, com recursos puramente políticos. Democratas-cristãos e socialistas, ao convergirem num projeto comum, o da Concertación, realizaram o que o ex-presidente Ricardo Lagos recentemente chamou de “épica da sua geração”: com meios ínfimos diante do poder do ditador, a política democrática trouxe de volta o Chile para o lugar que lhe é próprio num continente martirizado como nuestra América.

Para desconsolo até da direita chilena que atua nos marcos legais, é sabido que nossos governantes, sem dúvida eleitos legitimamente, contam-se entre os admiradores confessos do déspota, embora, sob a Constituição de 1988, estejamos distantes de qualquer pinochetismo ou coisa parecida. Mesmo assim, uma estratégia de choque frontal alimentaria tensões, cindiria ainda mais o tecido social e abriria espaço para todo tipo de curto-circuito. O caminho da concertação aponta em outro sentido, exigindo a autocontenção dos atores oposicionistas, mas não é certo que tomemos rapidamente esta segunda via para escrever a épica que precisa ser escrita.

 


El País: Bolsonarismo passa por teste no STF enquanto clã se cala sobre processos

Corte deve julgar se Coaf pode usar dados de cidadãos sem autorização judicial. Caso tem relação direta com apuração contra Flávio Bolsonaro

Um teste para o bolsonarismo raiz e para o próprio presidente está em vias de ocorrer. Neste domingo, apoiadores de Jair Bolsonaro prometem realizar uma manifestação em Brasília que tem como principal foco pedir o impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes. No próximo dia 20, os 11 ministros do STF devem julgar se o antigo Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf), renomeado de Unidade de Inteligência Financeira (UIF), necessita de autorização judicial para obter informações de movimentações bancárias de investigados assim como de pessoas politicamente expostas – entre elas, algumas com mandatos públicos, ministros de Estado, membros do Ministério Público, do Judiciário. Nesse ínterim, em silêncio, está o clã Bolsonaro.

Acostumados a agir na ofensiva nas redes sociais, tanto o mandatário quanto seus três filhos políticos quase nada falam sobre as decisões judiciais do STF das últimas semanas, entre elas a que soltou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ou sobre as que estão por vir. O mais ativo no ambiente virtual e responsável por estimular as milícias digitais, o vereador Carlos Bolsonaro (o Zero Dois do clã bolsonarista), apagou suas contas no Twitter, no Instagram e no Facebook na última terça-feira, 12 de novembro.

Em entrevista ao site O Antagonista, o presidente Bolsonaro chegou a dizer que tinha uma espécie de pacto de não intromissão nos outros poderes. “O pacto é eu não interferir lá e eles não interferem aqui. Se bem que de vez em quando eles interferem no poder Executivo aqui, mas eu engulo o sapo”, afirmou o mandatário ao ser questionado sobre um suposto acordão com o Judiciário e o Legislativo.

A principal razão do silêncio do clã bolsonarista é que um dos que estão envolvidos nesse caso do Coaf é o ex-deputado estadual e hoje senador Flávio Bolsonaro. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro tem uma investigação aberta contra o Zero Um para apurar se ele recebia dinheiro irregular dos servidores de seu gabinete na Assembleia Legislativa, no esquema batizado de “rachadinha”. Os crimes investigados são: malversação de fundos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Essa apuração está paralisada desde julho, quando o presidente do STF, Dias Toffoli, acatou um pedido liminar feito pelos defensores do senador alegando que os dados do Coaf usados na investigação deveriam ser invalidados, por não terem sido obtidos após uma decisão judicial.

E aí está um possível contrassenso entre os anseios da rede bolsonarista e de seu principal líder. O ministro Gilmar Mendes já se queixou publicamente das investigações que envolvem o Coaf e, no mês passado, tomou uma decisão que beneficiou Flávio, reforçando a necessidade de se trancar a investigação que envolve o senador e seu antigo assessor Fabrício Queiroz, o suposto organizador da “rachadinha”. A tendência é que Gilmar vote de maneira a ajudar Flávio novamente. O clamor dos militantes por derrubá-lo é por causa, principalmente, de suas manifestações críticas à Operação Lava Jato e por seu voto que ajudou a invalidar a prisão após condenação judicial em segunda instância, o que acabou tirando Lula da cadeia após 580 dias preso em Curitiba.

O julgamento do próximo dia 20 iniciará do zero. Nenhum dos 11 ministros votou até o momento. O primeiro a fazê-lo será Toffoli, que é o relator do processo. E, por já ter se manifestado favoravelmente ao senador Flávio, a expectativa é que ele repita seu entendimento.

Mar de dados e veto da PGR

Nesta semana, Toffoli deu mais um sinal de que deve seguir na mesma toada. Reportagens do jornal Folha de S. Paulo revelaram que o presidente do STF determinou que o antigo Coaf e a Receita Federal fornecessem relatórios produzidos pelos órgãos com os dados das movimentações de todos que foram alvos de representação penal do fisco nos últimos três anos. O COAF forneceu uma senha de acesso a um sistema que possui informações de 600.000 pessoas físicas e jurídicas. E a Receita, prepara o envio dos documentos que envolvem 6.000 cidadãos e empresas. Vazamentos de dados dos dois órgãos mostram que entre as pessoas que teriam tido as contas investigadas estão familiares de Dias Toffoli e de Gilmar Mendes.

A decisão liminar do presidente do STF envolvendo órgãos como o COAF e a Receita faz parte de uma onda de perseguição contra os servidores de órgãos de dois dos principais organismos de controle do país, opinam agentes do fisco ouvidos pela reportagem. No mês passado, outro ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, já havia impedido que o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), tivesse acesso a dados dos funcionários da Receita que estivessem envolvidos na fiscalização das pessoas politicamente expostas.

Na sexta-feira, em meio ao feriado da proclamação da República, o procurador-geral da República, Augusto Aras, se manifestou contrário à decisão de Toffoli envolvendo a Receita e a UIF. Em um requerimento enviado ao Supremo, Aras pediu que a Corte revogue a decisão do ministro por entender que ela foi desproporcional, que ameaça o sistema de inteligência financeira do país e que pode afetar o livre exercício de direitos fundamentais dos mais de 600.000 alvos. Horas depois, Toffoli negou o pedido de Aras.

No mês passado, o principal órgão internacional de prevenção à lavagem de dinheiro, o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi), emitiu uma nota na qual expressa preocupações sobre a capacidade de se combater os delitos de colarinho branco caso prevaleça a decisão de Toffoli envolvendo o COAF. “Esta decisão provisória da Corte limita a habilidade das autoridades brasileiras de usar a inteligência financeira em investigações criminais, investigações de lavagem de dinheiro, de crimes financeiros, assim como de corrupção", afirmou o presidente do Gafi, Xiangmin Liu.


João Domingos: O bolsonarismo

O nome Aliança pelo Brasil remete à Arena, o partido da ditadura militar

A decisão do clã Bolsonaro de sair do PSL e patrocinar a criação de um partido é uma consequência natural daquilo que se convencionou chamar de bolsonarismo. Trata-se de um fenômeno recente, sobre o qual não há ainda estudos aprofundados. Mas a respeito do qual já se pode dizer que é um movimento político que busca se contrapor a governos social-democratas, como os de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff, atribuindo-lhes erroneamente uma tendência socialista ou comunista.

O bolsonarismo é ainda um movimento que busca misturar valores cristãos (aqui não importando se a fé é católica ou protestante/evangélica) com o fortalecimento da estrutura familiar baseada nos pilares homem/mulher, uma forte presença militar e repressão aos crimes sem a necessidade da observância, por parte do Estado, de regras consagradas por declarações e avanços em favor do respeito aos direitos humanos.

Assim como o lulismo idolatra a figura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o transforma em dogma e o isenta do pecado, o bolsonarismo faz o mesmo com a figura do presidente Jair Bolsonaro. A diferença é que Lula ainda não é o anti-Bolsonaro, embora queira ser. Bolsonaro sim. Sem dinheiro, sem tempo de TV e sem partido, conseguiu vencer uma eleição declarando-se o anti-Lula.

Portanto, a decisão de Bolsonaro e seu clã de formar um novo partido é mais do que coerente. Incoerente seria permanecer no PSL, uma legenda usada por Bolsonaro para se candidatar em 2018, como poderia ter usado outra.

O PSL, além de ter uma sigla trava-línguas, é um partido sem nenhum apelo popular. Não se vê por aí alguém batendo no peito e dizendo que é pesselista. O que se vê entre os bolsonaristas é alguém batendo no peito para dizer que segue Bolsonaro.

O partido bolsonarista, que se chamará Aliança pelo Brasil, tem um nome que se encaixa muito bem na idolatria a Bolsonaro e na sua forma de pensar a política. O Aliança remete à Arena, o partido que deu sustentação parlamentar à ditadura militar, e que se chamava Aliança Renovadora Nacional. Nos seus bons tempos, a Arena misturava a elite política e empresarial e oficiais das Forças Armadas que se aventuraram na política.

Assim como acontece nos movimentos criados em torno de uma pessoa, o Aliança pelo Brasil deverá se tornar a herança que Jair Bolsonaro deixará para seus filhos. O deputado Eduardo Bolsonaro (SP), que não conseguiu a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos, como planejado, poderá ser o presidente da nova legenda. Isso, caso consiga costurar um acordo no PSL para deixar o partido sem perder o mandato por infidelidade. Se houver esse risco, o presidente deve ser o senador Flávio Bolsonaro (RJ). Nenhum bolsonarista vai reclamar.

O poder da informação
Quanto mais informação um político tem, mais poder ele acumula. Pode prever, por exemplo, a movimentação de amigos e adversários, pode formalizar alianças impensáveis, pode abortar ações que considera perigosas para seu futuro e o futuro de seu grupo.

Nesse sentido, não há como desconhecer que o presidente do STF, Dias Toffoli, tem acumulado poder. Depois de suspender investigação contra o senador Flávio Bolsonaro que utilizava dados do Coaf e da Receita liberados sem autorização judicial, ele pediu e recebeu do Banco Central relatórios sigilosos mencionando 600 mil pessoas, 412,5 mil físicas e 186,2 mil jurídicas. De acordo com reportagem da Folha de S. Paulo, há integrantes da família Bolsonaro citados. Da Receita, Toffoli obteve ainda dados relativos a investigações sobre 6 mil contribuintes. Tudo no contexto da liminar concedida ao senador Flávio. Toffoli não é político. É juiz. Pode fazer a solicitação. O que não o impede de ganhar poder.


Demétrio Magnoli: Decifrando a mensagem de Lula

Não há radicalismo no discurso do ex-presidente

As palavras “radicalismo” e “polarização” atravessaram o ar, logo depois do discurso de Lula em São Bernardo do Campo (SP), há uma semana. Os analistas, em modo automático, fixaram-se na superfície retórica, ignorando as três curtas frases que formam o núcleo da mensagem do líder petista. De fato, não há “radicalismo”, muito pelo contrário —e a “polarização” é uma oferenda que o centro político deposita nos altares do atual e do ex-presidente.

Paulo Guedes, acusou Lula, seria um “demolidor de sonhos” e um “destruidor de empregos e empresas públicas brasileiras”. Novidade nenhuma. A rejeição total da agenda de reformas reflete menos uma posição ideológica e mais a necessidade de proteger o espólio lulopetista. O PT não está autorizado a revisitar o populismo econômico de seu segundo mandato e do consulado dilmista.

O líder frustra os intelectuais sensatos que giram na órbita petista, proibindo aquilo que, na linguagem política italiana, chama-se aggiornamento: a reavaliação crítica do passado, a atualização de uma orientação estratégica. O veto serve ao próprio Lula, “um viciado em si mesmo” (Millôr Fernandes), pois prende seu partido e as legendas auxiliares (PSOL, PCdoB) à pesada âncora do lulismo. Serve, ainda, a Bolsonaro, oferecendo-lhe argumentos substantivos na sua perene campanha contra a esquerda. Mas faz mal ao país, que precisa de uma esquerda moderna, e ao PT, que fica marcado a ferro como um partido incapaz de aprender com seus erros.

“Governar para o povo brasileiro, não para os milicianos do Rio de Janeiro”. No seu disparo mais contundente, Lula iluminou a suspeita crucial que paira sobre o clã presidencial. “Radicalismo”? Só se resolvermos, como nação, aceitar a hipótese de um governo associado ao crime organizado.

A palavra “milicianos” circula nas esquinas —e com bons motivos. A sua ausência quase completa no discurso dos líderes e partidos do centro político é um dos sintomas da renúncia deles a fazer oposição a Bolsonaro. João Doria parece almejar algo como um “bolsonarismo sem Bolsonaro”. Luciano Huck esquiva-se, tanto quanto possível, de polarizar com o presidente. O protagonismo oposicionista de Lula emerge da abdicação dos demais atores. Obviamente, como tantos registraram, a polarização rende frutos aos dois polos, estreitando os horizontes do debate público.

A vadia preferência pelo óbvio obscurece o cerne da mensagem de Lula. “Tem gente que fala que precisa derrubar o Bolsonaro, tem gente que fala em impeachment. Veja, esse cidadão foi eleito. Democraticamente nós aceitamos o resultado da eleição. Esse cara tem um mandato de quatro anos.” O suposto radical, o desvairado incendiário, está erguendo uma muralha diante do PT e das legendas auxiliares. De fato, interdita, para sempre, ao menos entre os seus, o recurso ao impeachment. Bolsonaro esqueceu de agradecê-lo.

Lula nunca recuou face à contradição lógica, e não o faz agora. Se ficar provada a aliança entre o clã presidencial e as milícias, o remédio democrático atende pelo nome de impeachment. Mas aqui, como na economia, o líder petista está preso à armadilha da narrativa que formulou para preservar a aura do lulismo nos domínios da esquerda.

O impeachment corta o mandato de quem perdeu as condições políticas para governar. No processo, o Congresso —não um partido singular— decide se uma violação da regra do jogo constitui crime de responsabilidade. Ao qualificar como “golpe” o impeachment de Dilma, Lula e o PT praticamente descartaram a legitimidade da instituição do impeachment. O tabu tem consequências: do lulopetismo não partirá, sob nenhuma circunstância, uma iniciativa de interrupção do mandato de Bolsonaro.

Que ninguém se preocupe. Lula tem os olhos fixados nas urnas de 2020 e 2022 —e sabe que sua melhor chance é aparecer como única oposição real ao governo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Monica de Bolle: Uma aliança desorientada pelo Brasil

O partido de Bolsonaro já nasce desorientado não apenas por não ter qualquer articulação clara de ideias ou agendas, como também pelo logotipo que escolheu

Confesso que tive certa dificuldade para intitular este artigo, pois não sei quem está mais desorientado: a aliança que Bolsonaro pretende criar ou o país que ele tenta liderar. A ideia, de todo modo, nasceu do logotipo do novo partido, Aliança pelo Brasil. Embora ele tente retratar uma aliança em verde e amarelo — aliança no sentido de anel de dedo —, creio que, inadvertidamente, os responsáveis pela criação do logotipo tenham esbarrado em um objeto matemático curioso. O logotipo da Aliança pelo Brasil, para quem não viu, é um círculo retorcido que causa espécie de ilusão de ótica — como se passa do lado verde para o lado amarelo? Eis aí o primeiro problema: o símbolo escolhido pelos artistas gráficos é um objeto matemático que tem duas dimensões, mas apenas um lado.

Como pode? Peço aos leitores a paciência de fazer deste um artigo interativo. Peguem, por favor, uma folha de papel. Pode ser de qualquer cor, mas sugiro uma folha branca. Cortem uma tira de mais ou menos dois centímetros de largura. Com a tira em mãos, façam uma meia torção — reparem, só uma meia torção, isso é muito importante. Feita a meia torção, colem os dois extremos da tira um no outro. Se as instruções foram seguidas corretamente, vocês agora terão em mãos objeto conhecido como a fita de Möbius — Möbius é August Ferdinand Möbius, o matemático e astrônomo que a inventou em 1858. Reparem: embora o pedaço de papel que utilizaram para fazer a fita tivesse dois lados, o objeto fabricado tem apenas um. Não acreditam? Então tentem desenhar uma linha dos dois lados da fita sem retirar o lápis ou a caneta do papel. Impossível, certo?

Caso tenham tido alguma dificuldade com a tarefa proposta ou simplesmente lhes tenha faltado a paciência, há outra forma de constatar que a fita de Möbius tem apenas um lado sendo um objeto bidimensional. Deem uma olhada na gravura de M.C. Escher, aquela das formigas vermelhas caminhado sobre algo que parece uma grade no formato do infinito — a gravura sobre a qual me refiro chama-se Möbius Strip II . As formigas andam, andam, mas não saem do mesmo lado jamais. É irresistível pensar nos membros do novo partido de Bolsonaro como essas formigas: todos haverão de ter um lado só. Como é o Brasil hoje, país de um lado só, pois, se você pertence a um deles, o outro não existe, tamanho o desprezo que você sente por ele.

Há outra curiosidade sobre a fita de Möbius que inevitavelmente nos leva ao partido de Bolsonaro: ela é “não orientável”. Na matemática, ser “não orientável” significa que o objeto carece de direção vetorial — vejam as formigas: independentemente da “direção” que elas tomem sobre a fita, estarão sempre de um lado só e sempre cruzarão o ponto de partida. Na política, ser “não orientável” significa não ter capacidade para se orientar, ou seja, é ser desorientado. Portanto, ao que parece, o partido de Bolsonaro já nasce desorientado não apenas por não ter qualquer articulação clara de ideias ou agendas, tal qual o próprio presidente, como também pelo logotipo que escolheu. Pelo visto, inconscientemente.

Claramente, o multipartidarismo e a fragmentação têm frustrado as expectativas da sociedade brasileira, levando a uma perigosa descrença em relação à política. Que tal descrença hoje esteja generalizada mundo afora não é motivo para que não tratemos dela refletindo sobre os motivos que levam as pessoas a se ater mais à personalidade de determinados políticos do que aos partidos e às propostas que eles deveriam representar. Sem essas reflexões e alguma ideia para uma solução, permanecerão os brasileiros também como as formigas de Escher: caminhando unilateralmente sobre uma fita de Möbius sem chegar a lugar algum.

Creio que a disposição para tanto esteja próxima do esgotamento, a julgar pelo que está acontecendo no resto da América Latina. Afinal, se o Chile está em convulsão mesmo com uma economia que cresce em ritmo razoável, o que dizer do absurdo desempenho da economia brasileira, que todos teimam em chamar de recuperação? Recuperação com 11,8% de desempregados e um monte de subempregados? Recuperação com um governo que inventa medidas em nome da criação de empregos sugerindo tributar os benefícios daqueles que estão justamente desempregados?

Ao que parece, Paulo Guedes nem precisava conhecer o logotipo do partido de Bolsonaro. Já encontrara a fita de Möbius sem precisar recorrer a qualquer artista gráfico. Só há um lado em sua agenda, só há uma borda em suas propostas. Pouco importa o tamanho das dimensões, tampouco as dimensões do tamanho.

*Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics