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Luiz Carlos Azedo: Manual de sobrevivência

“Três variáveis que podem levar Bolsonaro a alterar a composição de seu governo: primeiro, o desempenho da administração; segundo, a criação de seu partido; terceiro, a instabilidade da base do governo”

Toda vez que se fala em reforma ministerial, os ministros mais inseguros começam a dar declarações atacando os setores descontentes com o governo, como uma forma de agradar o presidente Jair Bolsonaro. É uma receita de bolo: houve um erro clamoroso no ministério ou uma denúncia contra o gestor, o ministro em apuros sapeca um post no Twitter ou dá uma coletiva com uma declaração bem polêmica, atacando a imprensa, os professores, os artistas e outros setores considerados desafetos do presidente da República. O campeão nessa estratégia é o ministro da Educação, Abraham Weintraub. Com isso, cria-se uma situação na qual a saída do cargo seria vista como uma derrota de Bolsonaro para os seus desafetos. Aparentemente, está funcionando.

A última do ministro foi acusar universidades federais de estarem envolvidas na plantação de maconha e produção de drogas em laboratório, o que provocou reações dos reitores, do Ministério Público e até da Justiça. Weintraub utilizou casos isolados de ocorrências policiais para acusar diretamente a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No primeiro caso, usou como exemplo alguns pés de maconha plantados numa área de cerrado próxima ao Câmpus Darcy Ribeiro, erroneamente avaliado pelos policiais como pertencente à UnB. No segundo caso, foi a apreensão de 14 buchas de maconha e 1kg de haxixe no câmpus da UFMG, mas seus portadores não eram alunos nem funcionários da instituição. Foi o suficiente para o ministro generalizar.

Boatos de queda de ministros não faltam. Na semana passada, as vítimas eram o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que se encarregou de desfazer o boato divulgando sua agenda com Bolsonaro, e o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, enrolado no caso das candidatas laranjas do PSL em Minas Gerais. Agora, os alvos preferenciais são o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, por causa do quase fracasso do leilão do pré-sal, e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, com a imagem pichada por causa do desmatamento na Amazônia e da demora para enfrentar o desastre ambiental causado pelo derramamento de petróleo no litoral brasileiro.

Três variáveis que podem levar Bolsonaro a alterar a composição de seu governo: primeiro, o desempenho da administração propriamente, uma vez que a aprovação do governo continua negativa (na pesquisa XP de novembro, por exemplo, eram 39% de ruim e péssimo e 35%, de ótimo e bom); segundo, a criação de seu partido, a Aliança pelo Brasil, que precisa ser prestigiado no governo para ser uma alternativa de poder; terceiro, a instabilidade da base do governo, que aumentou com o racha do PSL e tem provocado reveses no Congresso, com a derrubada de vetos e a não aprovação de medidas provisórias.

Segunda instância
O ministro da Justiça, Sérgio Moro, se reunirá hoje com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, os líderes da Casa e também alguns deputados para discutir a chamada PEC da Segunda Instância. Na Câmara, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou, na semana passada, a admissibilidade da PEC que altera os artigos 102 e 105 da Constituição, de autoria do deputado Alex Manente (Cidadania-SP). O Senado também discute um projeto com o objetivo de permitir a prisão após condenação em segunda instância, mediante alteração do Código de Processo Penal (CPP), acabando com os recursos especiais e extraordinários para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF), ou seja, sem emenda constitucional.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), nega a existência de uma corrida com o Senado para aprovação da PEC, mas já está instalando uma comissão que vai apreciar o mérito da proposta. Isso significa que a PEC vai tramitar na Câmara de fato, apesar da resistência surda dos que são contra a mudança constitucional. Essa resistência será ainda maior no Senado, embora exista um grupo aguerrido de senadores que defendem a prisão após a condenação em segunda instância.

A propósito, amanhã, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento do compartilhamento de dados sigilosos da Receita Federal com o Ministério Público Federal (STF) e outros órgãos de controle. Votaram até agora o presidente da Corte, Dias Toffoli, relator do caso, contra o compartilhamento sem autorização judicial, e o ministro Alexandre de Moraes, a favor.

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El País: Paulo Guedes repete ameaça de AI-5 e reforça investida radical do Governo Bolsonaro

Num momento em que presidente insiste em aumentar excludente de ilicitude para proteger excessos de agentes militares, ministro da Economia traz de volta fantasma de decreto da ditadura

No dia 13 de dezembro de 1968, quando o Governo do marechal Costa e Silva baixou o decreto do Ato Institucional de número 5 (AI-5), o ministro da Fazenda Antonio Delfim Netto justificou seu voto favorável à medida da seguinte forma: "Eu creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico". Nesta segunda-feira, quase 51 anos depois daquela data, em que se institucionalizou a perseguição política e o terror cometido pelo Estado durante a ditadura militar (1964-1968), o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, seguiu linha similar: "Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente? Levando o povo para a rua para quebrar tudo. Isso é estúpido, é burro, não está à altura da nossa tradição democrática", disse ele durante entrevista coletiva em Washington.

Guedes falava sobre os massivos protestos de rua que mergulharam alguns países da América em uma verdadeira convulsão social. Sobretudo o Chile, onde a população vem colocando em xeque o modelo liberal implantado pela ditadura Pinochet (1973-1990) e que é a principal referência do ministro do Governo do ultradireitista Jair Bolsonaro. Sobre o risco de um possível contágio dessas manifestações em solo brasileiro, ele pedia que a oposição "fosse responsável" e praticasse democracia. "Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa?", questionou. Ao ser perguntado por jornalistas sobre a diminuição dos ritmos das reformas econômicas por medo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Guedes respondeu: "Aparentemente digo que não [Bolsonaro não está com medo do Lula]. Ele só pediu o excludente de ilicitude. Não está com medo nenhum, coloca um excludente de ilicitude. Vam'bora".

Guedes depois ponderou que um novo AI-5 "é inconcebível", mesmo "que a esquerda pegue as armas". Mas a menção ao decreto da ditadura em tom de ameaça vem num momento em que a extrema direita brasileira se arma de instrumentos jurídicos para justificar ações radicais contra eventuais manifestações no Brasil. Há menos de um mês, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, o filho zero três do presidente Jair Bolsonaro, afirmou em uma entrevista que, caso os protestos no Chile se repetissem no país, um novo AI-5 poderá ser editado. "Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada". Mesmo desmentido na ocasião por seu pai, a radicalização segue no horizonte do Governo. Na última quinta-feira, Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional um Projeto de Lei que busca isentar de punição os militares, policiais federais e agentes da Força Nacional (formada por policiais de vários Estados) que cometam excessos ou matem durante operações sob o decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Nesta segunda deixou claro que sua intenção era também a de reprimir protestos. "Vai tocar fogo em ônibus, pode morrer inocente, vai incendiar bancos, vai invadir ministério, isso aí não é protesto. E se tiver GLO já sabe. Se o Congresso nos der o que a gente está pedindo, esse protesto vai ser simplesmente impedido de ser feito", disse o mandatário quando entrava no Palácio da Alvorada, segundo reportou a Folha.

O projeto enviado ao Congresso também assinado pelos ministros da Defesa, o general Fernando Azevedo Silva, e da Justiça, Sergio Moro. “Não adianta alguém estar muito bem de vida se está preocupado com medo de sair na rua com medo de ladrão de celular. Ladrão de celular tem que ir para o pau”, justificou Bolsonaro na quinta-feira. A ampliação do excludente de ilicitude durante operações no âmbito da GLO complementa o Pacote Anticrime enviado por Moro ao Congresso. Seu texto original previa que os agentes que aleguem "escusável medo, surpresa ou violenta emoção" após matar podem ficar sem nenhuma punição. Essa parte foi excluída do projeto pelos deputados na Comissão de Segurança Pública da Câmara logo após a morte da menina Ágatha Félix, mas Moro fez um apelo na última quinta-feira para que o trecho volte a ser incluído no plenário.

Um Governo com licença para matar

Se o Congresso Nacional aprova a última medida proposta por Bolsonaro, os agentes que estiverem agindo sob ordem direita do Governo Federal ficarão livres para matar. Algo que por si só já vem sendo ventilado como possível retorno de ferramentas autoritárias que estavam disponíveis após o decreto do AI-5. Para o historiador Carlos Fico, professor da UFRJ e especialista em ditadura militar brasileira, o clã Bolsonaro reedita a estratégia do passado de invocar uma suposta ameaça da esquerda. "O campo progressista está derrotado, sem iniciativa, parece que ainda surpreso com a vitória de Bolsonaro. Não vejo nenhuma ameaça de radicalização [por parte da esquerda]", opinou durante entrevista ao EL PAÍS no início do mês.

Em 1968, quando o AI-5 foi editado, tampouco havia uma ameaça real das forças progressistas. "Houve ações armadas, mas poucas. O AI-5 é do final de 68, um ano de manifestações pacíficas, sobretudo do movimento estudantil. Então, também naquela época, essas manifestações foram usadas como pretexto. E agora nem há nada, não está acontecendo coisa nenhuma", reforça o historiador. Contudo, Fico argumenta que, ao contrário dos militares linha-dura do regime, Bolsonaro não apresenta embasamento ideológico. Também não acredita que as Forças Armadas brasileiras estejam interessadas em um novo projeto autoritário de poder. "Hoje, o presidente Bolsonaro não tem nenhuma densidade ideológica, doutrinária, nada disso. Acho que ele chegou à presidência um pouco por acaso, em grande medida porque foi poupado de uma exposição pública mais intensiva graças ao episódio terrível da facada. Por conta disso, conseguiu não ir a nenhum debate", argumentou. "Ele vai sendo movido por essa intuição política, que certamente ele tem, muito pautada pelo autoritarismo, violência e despreparo", completou.

Por ora, as declarações de Guedes geraram uma enxurrada de críticas, inclusive daqueles que se identificam com o liberalismo econômico idealizado pelo ministro. "Não tem 'mas', nem 'porém', nem 'todavia', nem qualquer outra conjunção adversativa. Quando, e se, houver protestos a democracia está plenamente equipada para lidar com eles. Nada justifica autoritarismo; simples assim", afirmou o economista Alexandre Schwartsman no Twitter. "E a máscara do liberalismo caiu. Ninguém vai para governo Bolsonaro por acaso. As ruas estão tranquilas. A cabeça dele não", afirmou a também economista Elena Landau.

Já as declarações de Eduardo Bolsonaro fizeram com que a oposição apresentasse uma queixa-crime no Supremo e instaurasse um processo na Comissão de Ética da Câmara. "Não se pode punir ninguém por achar ou pensar alguma coisa, mas pelo o que ela faz. Outra coisa muita diferente é fazer propaganda de atos que atentem contra o Estado Democrático de Direito. Foi o que o deputado fez", explicou Fico. Para ele, Eduardo deve ser punido com a cassação de seu mandato e os ministros do Supremo podem considerar que ele cometeu um crime. "Não se trata de uma simples opinião, mas um crime, que inclusive é previsto na lei de Segurança Nacional que ainda vigora no Brasil desde a época da ditadura. Ela diz claramente que é proibido fazer propaganda de meios capazes de atentar contra o Estado de Direito, as instituições...", explicou.

Fico ainda opina que, como agravante, as declarações de Eduardo Bolsonaro, o deputado federal mais votado do país, expressam também o pensamento e as vontades do presidente. E que uma punição seria uma oportunidade de as instituições brasileiras de fato se mostrarem como contrapeso às vontades presidenciais. "Se continuarem assim, vai se tornar uma atitude de leniência em relação a essas declarações todas, que agora se desbordaram do simples ponto de vista, da simples opinião, para uma situação claramente criminosa", argumenta. "É um teste importante, porque seria uma forma de afirmação. Mesmo que venha em forma de uma punição branda, uma simples advertência, já seria saudável para o momento atual da política brasileira", completa.

Aliança pelo Brasil, o novo partido da ultradireita

A radicalização promovida por Bolsonaro e membros mais próximos de seu Governo vem na esteira da criação de seu novo partido, o Aliança pelo Brasil, anunciado oficialmente na última quinta-feira. O presidente vem buscando agregar os aliados mais radicais do bolsonarismo e imprimir sua ideologia extremista numa sigla inteiramente controlada por ele — que presidirá a nova legenda — e seu filho, o senador Flávio Bolsonaro — que será o vice. Assinada sua desfiliação do PSL, legenda à qual se uniu para disputar as eleições de 2018 e que está sendo investigada por promover candidaturas laranjas, o presidente busca seguir os passos de outros líderes da extrema direita no mundo, como a francesa Marine Le Pen e o premier húngaro Víktor Orbán. Em comum, as lideranças ultraconservadoras controlam com mão de ferro partidos feitos sob medida para eles. Não pode haver fissuras em um projeto autoritário.

A ideologia de extrema direita do Aliança pelo Brasil começa por sua logomarca e seu número. Na semana passada, Bolsonaro ganhou do artesão Rodrigo Camacho uma placa em que projéteis de vários calibres, entre eles de fuzis, compunham o nome da legenda. Momentos depois do ato de lançamento, que aconteceu em Brasília, o presidente anunciou por meio de uma live no Facebook que o número da sigla na urna será o 38. Enquanto seus partidários celebram a coincidência com o revólver de calibre 38, Bolsonaro garantiu que se devia ao fato de que ele é o 38º presidente da República. Ainda assim, a defesa do armamentismo é uma de suas prioridades: "O partido se compromete a lutar incansavelmente até que todos os brasileiros possam ter plenamente garantido o seu direito inalienável de possuir e portar armas para a sua defesa e dos seus", disse a advogada Karina Kufa, ao ler o programa do novo partido durante o ato de lançamento, na última quinta. Ainda é precisa colher quase 500.000 assinaturas em ao menos nove unidades federativas para ter sua criação chancelada pelo Tribunal Superior Eleitoral.

As pessoas mais próximas ao presidente, e que devem migrar do PSL para o Aliança pelo Brasil, vêm demonstrando, semana após semana, fidelidade ao seu estilo. Na semana em que foi comemorado, no dia 20, o Dia da Consciência Negra, os deputados federais Daniel Silveira — o mesmo rasgou a placa de Marielle Franco durante ato de campanha no ano passado — e coronel Tadeu se voltaram contra uma exposição na Câmara dos Deputados sobre o data. Após uma placa contra o genocídio da população negra ter sido quebrada por Tadeu, Silveira, em uma fala claramente racista, afirmou que negros morrem mais porque são maioria portando armas e cometendo crimes. "Não venha atribuir à Polícia Militar do Rio de Janeiro as mortes porque um negrozinho bandidinho tem que ser perdoado", afirmou.

Em claro contraponto, o presidente da Casa, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), condenou a atitude dos parlamentares bolsonaristas e ordenou que a exposição fosse restabelecida. Nessa mesma linha atuou prontamente o deputado estadual de São Paulo Cauê Macris (PSDB), que proibiu que também na última semana que ocorresse na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo uma homenagem ao ditador Augusto Pinochet, promovida pelo deputado Frederico D'Ávila (PSL).

O historiador Carlos Fico acredita que o grau de virulência e radicalismo promovidos pelo clã Bolsonaro podem ser uma estratégia em decorrência de algum receio ou medo. "Provavelmente dessas investigações que os associam a milicianos ou a corrupção de verbas obtidas como parlamentares. Flávio Bolsonaro está envolvido com acusações de corrupção, e agora houve essa coisa nebulosa do Caso Marielle Franco. Então, é um momento crítico para a família Bolsonaro e para o presidente", explica Fico, que também cita alguns fracassos, como a estratégia falida de elevar Eduardo Bolsonaro ao posto de embaixador brasileiro nos Estados Unidos. "É tudo muito confuso, de modo que o pior quadro que a gente pode ter é de políticos autoritários acuados e com medo. Eles reagem dessa maneira autoritária e violenta. Mas não é surpreendente, vai muito de acordo com o próprio pensamento de muitos anos".


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Nova edição da Política Democrática online analisa desastre do petróleo no litoral brasileiro

Produzida e editada pela FAP, 13ª edição da revista tem acesso gratuito pelo site da fundação

Cleomar Almeida, da Ascom/FAP

O impacto ambiental causado pelas manchas de petróleo que chegaram ao litoral brasileiro é o destaque da nova edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília. A publicação, que pode ser acessada gratuitamente no site da instituição, tem ainda uma entrevista exclusiva com o antropólogo Antonio Risério, uma série de análises sobre o contexto brasileiro e internacional, como a presença negra no país e a crise no Chile, a última reportagem da série sobre Serra Pelada e um artigo sobre o filme Coringa.

» Acesse aqui a 13ª edição da revista Política Democrática online

A revista produzida pela FAP, que é vinculada ao Cidadania, traz em seu editorial uma análise sobre a nova rodada de reformas no Brasil. “Encerrado o processo de deliberação sobre as regras da Previdência, o governo dá início à nova rodada de reformas”, diz um trecho. “Tramitam no Congresso Nacional três propostas de emendas à Constituição da lavra do Governo Federal, conhecidas respectivamente como pacto federativo, emergencial e dos fundos. Espera-se para breve uma proposta de reforma administrativa, que completaria a etapa presente da agenda reformista do Executivo”, continua.

O editorial alerta que sobre a oposição democrática e progressista recai uma tarefa adicional nesse processo: construir uma articulação parlamentar ampla, capaz de assegurar os ganhos pretendidos em termos de equilíbrio das contas públicas; inserir o viés da equidade, ou seja, das políticas de inclusão social e redução das desigualdades, e garantir a prevalência de soluções que preservem a autonomia dos entes federativos. “Executivo e Legislativo, a coalizão governista e a oposição na sua diversidade, todos os atores relevantes da política serão redimensionados ao fim do processo que se inicia”, destaca.

Na entrevista, concedida ao diretor da FAP Caetano Araújo com colaboração de Ivan Alves Filho, Risério diz acreditar que muita gente do campo democrático anda preocupada em superar a atual polarização brasileira e encontrar um rumo para o País. “Eu me coloco claramente no campo da esquerda democrática e não tenho nenhum problema com isso. O que acho houve no país foi o seguinte. Ao se tornar independente e conquistar autonomia nacional, o Brasil teve de construir a imagem do que somos”, diz o entrevistado, que também é ensaísta, poeta e historiador.

Um dos maiores crimes ambientais que chegaram ao país, o caso das manchas de petróleo no litoral brasileiro é analisado pelo Anivaldo Miranda, que é mestre em meio ambiente e desenvolvimento sustentável pela UFAL (Universidade Federal de Alagoas). “O Brasil do pós-Mariana, Barcarena (Pará), Brumadinho, dos mega incêndios florestais e atualmente do óleo no mar precisa refletir de maneira abrangente sobre isso e fazer conexões mentais importantes no contexto de sua inteligência coletiva, para enfrentar os dilemas do século atual com boas possibilidades de acerto que, ao final, conduza seu povo a um nível razoável de bem-estar e mantenha seu território e biodiversidade num plano seguro de preservação e capacidade de reprodução”, observa.

O professor e diretor da FAP Alberto Aggio é o autor da análise sobre o Chile. Segundo ele, os chilenos colocaram para fora toda a raiva frente ao mal-estar resultante do “modelo econômico”, que ordena o país desde os tempos da ditadura do Pinochet, durante as manifestações de outubro. “Em outubro, o Chile explodiu. Por vários dias, milhares de pessoas saíram às ruas em marchas de protesto que invariavelmente se tornaram violentas”, escreve ele.

A revista também traz outros artigos de opinião, com análises sobre democracia, cultura e economia. Integram o conselho editorial da Política Democrática online Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.

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Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro já mira a reeleição

“A criação do Aliança pelo Brasil sinaliza uma reorganização do quadro partidário, ainda que num primeiro momento à custa de mais fragmentação, pois nasce de um racha no PSL”

O presidente Jair Bolsonaro já tem um partido para chamar de seu, o Aliança pelo Brasil, cujas principais bandeiras são a livre iniciativa, a posse de armas, o combate ao comunismo e ao globalismo e a defesa da família e da infância, segundo o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Admar Gonzaga, principal estrategista da criação da legenda. Na presidência de sua comissão provisória, Bolsonaro conta com o apoio dos filhos Flávio, Eduardo e Carlos para cumprir as exigências da legislação eleitoral, entre as quais a coleta do mínimo de 491.967 assinaturas, em nove unidades da Federação, até março, para poder participar das eleições municipais.

Entretanto, se o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não autorizar a coleta de assinaturas eletrônicas, ou seja, pela internet, Bolsonaro não pretende participar das eleições municipais do próximo ano.Trocando em miúdos, Bolsonaro lançou um partido com objetivo de com ele disputar a reeleição à Presidência. Essa é a missão principal do Aliança pelo Brasil, que busca unificar a extrema direita brasileira, tendo como núcleo central os parlamentares das bancadas evangélica, ruralista e da bala. Há um ideário político por trás dessa definição, sem dúvida, mas também há um cálculo eleitoral estratégico: com o governo federal nas mãos e um partido que represente os setores mais conservadores da sociedade, Bolsonaro acredita que estará no segundo turno das eleições, na pior das hipóteses.

Esse cálculo parte do princípio de que a estratégia de polarização da sociedade entre direita versus esquerda é o melhor caminho para preservação do poder, ainda que não o seja para realizar um bom governo. Faz todo sentido, desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva continue esticando o outro lado da corda, à frente do PT e seus aliados de esquerda, sem nenhuma intenção de moderar o confronto com Bolsonaro. Nessa perspectiva, os demais candidatos que se apresentarem no processo — o ex-ministro Ciro Gomes (PDT); o governador paulista, João Doria (PSDB); o governador fluminense, Wilson Witzel (PSC); e o apresentador Luciano Huck, que está costeando o alambrado, como diria Leonel Brizola, e talvez seja candidato pelo Cidadania — seriam protagonistas da pulverização dos votos à margem do bolsonarismo e do lulismo.

“Fulanização”
É óbvio que esse raciocínio nem sempre se reproduz no processo eleitoral. A rigor, essa polarização extrema somente ocorreu nas eleições de 1989, com a vitória de Collor de Mello (PRN ), e agora, em 2018, com a de Bolsonaro. Mesmo assim, há que se dar um desconto, porque a candidatura de Collor de Mello centrou fogo nas lideranças políticas tradicionais, mas cavalgou a esperança despertada pela redemocratização do país. Nas eleições passadas, Bolsonaro fez uma campanha antissistema, aproveitando-se do desgaste da democracia, que centrou fogo nas instituições políticas, nos direitos humanos e nas pautas identitárias, ao contrário de Haddad. O centro político foi esmagado e até hoje não conseguiu se recompor.

Os esforços nessa direção ainda não ganharam a força necessária para que se forme um bloco político como alternativa de poder. A “fulanizaçao” dessas forças de centro, como gosta de dizer o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ainda está por acontecer. O que predomina são as tendências centrífugas das disputas locais, em razão das eleições municipais, as quais Bolsonaro está esnobando, porque detém o poder mais concentrado do país, o da União. Em contrapartida, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que protagonizou todas as disputas eleitorais desde 1989, aposta nas eleições municipais para resgatar o PT do gueto político no qual está confinado em razão do “mensalão” e da Operação Lava-Jato. É pagar pra ver.

De certa forma, a criação do Aliança pelo Brasil sinaliza uma reorganização do quadro partidário, ainda que num primeiro momento à custa de mais fragmentação, pois nasce de um racha no PSL. As candidaturas de Ciro, Doria, Witzel e, eventualmente, Huck apontam para a mesma direção, sendo que esse processo ainda comporta muitas surpresas. Bolsonaro e Witzel, em tese, disputam o mesmo espaço; igualmente, Doria e Huck. Ciro é um caso à parte, pois queimou os navios com Lula e o PT, não pode abduzir Haddad nem vice-versa, embora a prudência não recomende tal afirmação tão categórica.

 

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Elena Landau: Chama o Chacrinha

Para ganhar apoio da sociedade, importância de PECs deve ficar bem clara

O governo enviou, recentemente, três propostas de emendas constitucionais visando reorganizar as finanças públicas e recuperar os princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal, que foram sendo abandonados pelo caminho com aval dos Tribunais de Contas dos Estados, e mesmo do STF.

As emendas são bastante complexas, mas mesmo que apresentadas em separado, elas estão conectadas. A lógica do processo não é de fácil entendimento, ficando circunscrita aos especialistas em contas públicas. Para ganhar apoio da sociedade, é fundamental que fique clara a importância de cada uma das medidas propostas, como se articulam, qual o objetivo final e por que o saldo das mudanças é positivo, ainda que imponha perdas para alguns grupos. Foi assim que a reforma da Previdência conseguiu ser aprovada este ano, após dois anos de debates, campanhas de esclarecimento e negociação política.

Complementando essas três PECs, o governo anunciou outra para a simplificação tributária, que deve ocorrer em etapas, ao longo de 2020. A prometida reforma administrativa subiu no telhado, deve ser desidratada, mas não foi ainda abandonada. Tudo isso aprovado, no conjunto, começa a dar um novo desenho ao Estado brasileiro. Mas refundar o Estado ainda vai exigir muitas outras medidas e mais radicais, lembrando que a privatização continua muito tímida. Que o governo não pare por aqui.

Temos uma carga tributária elevada, empresas estatais que não se justificam, número excessivo de funcionários públicos, baixa produtividade e serviços públicos de péssima qualidade. Não deveria, portanto, haver dúvidas sobre a importância das medidas. Mas em uma sociedade patrimonial, acostumada a depender do Estado para tudo, o programa proposto é mais que um pacote econômico, é um choque cultural. Começa agora a fase mais difícil dos trabalhos, que é o convencimento da sociedade e de seus representantes no Legislativo. Ela envolve todo o governo, não só a equipe econômica.

A ausência de uma boa estratégia de comunicação pode ser fatal. Os exemplos da inabilidade deste governo nesse quesito são muitos e, por isso, não surpreende o número de iniciativas de Bolsonaro derrubadas pelo Congresso. Essas PECs são importantes demais para que deslizes na comunicação coloquem tudo a perder. Não são vendetas pessoais, nem fazem parte de uma guerra ideológica.

Fora o contexto geral de grande complexidade, há detalhes em cada uma das emendas que vieram à tona conforme as propostas foram sendo destrinchadas. E neles mora o diabo. Duas propostas causaram reação imediata: o fim dos municípios sem autonomia financeira e a desobrigação do governo em construir escolas públicas em locais carentes de vagas, utilizando bolsas para inscrição em escolas privadas, os vouchers.

A ideia de reduzir número de municípios pode ser boa, se o objetivo é a redução de gastos públicos. Mas não estão claros os critérios, nem como será feita a transição. Os habitantes de lugares isolados reagiram imediatamente. Temem o esquecimento. Lembrando que esse assunto será votado em plenas eleições municipais, tornando o desafio da comunicação ainda maior.

A questão das escolas públicas é bem mais complicada. Nem mesmo entre os especialistas há consenso sobre a ideia dos vouchers. O ideal é fazer um experimento estatisticamente controlado antes de partir para uma mudança constitucional. E se o governo acha a ideia tão boa, com base no fato de o custo por aluno em escolas privadas ser menor, não deveria limitá-la a locais com carência em vagas nas escolas públicas. Não deveria haver restrições. Educação é um tema que exige bem mais reflexão.

A objetividade e simplicidade de uma PEC ajuda imensamente na sua compreensão. Esses jabutis colocados pelo próprio governo em nada contribuem para sua aprovação. Dizem que são bodes na sala, não me parece o caso. E podem contaminar a apreciação de todo o resto.

A coerência também é fundamental para a persuasão. A ideia de submeter os Tribunais de Conta Estaduais ao TCU vai na contramão do compromisso “Mais Brasil, menos Brasília”. E ainda deve sofrer questionamento sobre sua constitucionalidade. Da mesma forma, a política de desoneração para estimular o 1.º emprego é contraditória, com a redução de subsídios e incentivos prevista na PEC do pacto federativo. Mas se o governo abriu exceção para Zona Franca de Manaus, por que não para o jovem desempregado? E por que deixar o idoso de fora? Conter outras demandas será mais uma árdua tarefa política.

Vem sendo exibido em escolas e centros acadêmicos um documentário sobre os 25 anos do real, produzido pelo Livres. Talvez a melhor lição que se tira das entrevistas com os autores do plano é a importância da boa comunicação. Esclarecer, dialogar e convencer foi o segredo. Quem não se comunica, se estrumbica.

*Economista e advogada


Eros Grau: O STF, a prisão e a Constituição

Só nova Constituinte poderá impor a prisão após condenação em segunda instância

Podemos falar e escrever como juízes, advogados ou cidadãos. Agora, escrevo como a relembrar voto que proferi como relator do Habeas Corpus 84.078-7, em 2009, quando eu era membro daquele tribunal lá de Brasília, o Supremo Tribunal Federal (STF).

Ao me referir aos juízes, desembargadores e ministros dos nossos tribunais seguidamente me repito, lembrando um texto de Sartre a propósito da conduta do garçom que executa uma série de gestos solícitos para atender o cliente. Os garçons cumprem seu papel no café ou restaurante onde trabalham sendo gentis até mesmo com clientes que detestem.

Assim é o juiz. Cumpre o papel que a Constituição lhe atribui. Não é perpetuamente juiz. Mas enquanto juiz deve representar o papel de magistrado, nos termos da Constituição e da legalidade. Não o que é (e pensa) ao cumprir outros papéis, quais os de artesão ou jardineiro, por exemplo. Poderão então prevalecer os seus valores. Enquanto juízes, contudo, hão de se submeter à Constituição e às leis.

O que me traz a escrever este texto é o recente julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) n.ºs 43, 44 e 54, o Supremo Tribunal Federal recuperando e reafirmando o quanto decidiu em 2009, no julgamento do Habeas Corpus 84.078-7.

Outro é o meu sentimento como cidadão, distinto do que dispõe a Constituição, que estabelece, no seu artigo 5.º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. E o inciso LXI desse mesmo artigo 5.º, por outro lado, aplica-se não ao cumprimento de pena, mas à prisão preventiva “em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.

A distinção entre ambos é evidente: o primeiro – inciso LVII – diz respeito à prisão preventiva e o segundo – inciso LXI –, ao cumprimento de pena.

Mais, o preceito estabelecido pelo artigo 283 do Código de Processo Penal, que autoriza a prisão por “ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”, não é suficiente para justificar a execução antecipada da sentença. Preceitos constitucionais não podem ser expurgados por leis ordinárias.

A circunstância de ter procedido como um “garantista” durante o tempo no qual exerci a magistratura – e não como “consequencialista”, designação hoje atribuída aos juízes praticantes de direito alternativo – me traz serenidade.

Não me cansarei de repetir que vamos à Faculdade de Direito aprender Direito e não justiça. Uma indagação de Bernd Rüthers é de todo aplicável aos nossos tribunais e juízes: pode um Estado, pode uma democracia existir sem que os juízes sejam servos da lei? A resposta é negativa, dado que a independência judicial é vinculada à sua fiel obediência ao Direito positivo.

Pequenos trechos extraídos do voto que proferi no julgamento do Habeas Corpus 84.078-7, no STF, dizem o quanto desejo aqui enfatizar.

A ampla defesa não pode, em face do que dispõe a nossa Constituição, ser visualizada de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, incluídas as recursais de natureza extraordinária. A execução de sentenças após o julgamento do recurso de apelação significa restrição do direito de defesa. Uma assertiva de um meu amigo de verdade, o ministro Evandro Lins, tudo sintetiza: “Na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao próprio delinquente”.

Nas democracias, mesmo os criminosos são sujeitos de direito, não meros objetos processuais. E as singularidades de cada infração penal somente podem ser plenamente apuradas quando, nos termos do que define o artigo 5.º, inciso LVII, da nossa Constituição, transitada em julgado a condenação de seus autores.

Não fosse assim, melhor seria que os magistrados abandonassem o seu ofício e saíssem por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem os contrariasse. Cada qual com o seu porrete! Cada um por si e a Constituição contra...

A lição do profeta Isaías que se lê na Bíblia (32,15-17) basta-me por tudo: “O direito habitará no deserto e a justiça morará no vergel. O fruto da justiça será a paz, e a obra da justiça consistirá na tranquilidade e na segurança para sempre”.

É certo que enquanto cidadãos gozamos da liberdade de falar como quisermos, mesmo correndo o risco de afirmar o que não tem sentido. A respeito da chamada “prisão em segunda instância”, por exemplo, há até quem chame os ministros do STF de “centauros com quatro patas de cavalo”.

Essa liberdade não deveria ser excedida mesmo pelos que não frequentaram Faculdades de Direito. Leio aqui e ali afirmações inconcebíveis, tal qual a de que as regras jurídicas podem elidir os princípios jurídicos – vale dizer regras-princípio. Mais, ignorância total do fato de que nossa Constituição, como afirmei linhas acima, nos incisos LVII e LXI do seu artigo 5.º distingue a prisão preventiva do cumprimento de pena. E, sobretudo, ironias, qual a de que o Supremo Tribunal Federal solta presos que não foram condenados em última instância para beneficiar outros.

Sei bem que uns e outros desejam fazer justiça com as próprias mãos, mas não me cansarei de reafirmar que nem mesmo os juízes fazem justiça. Pois são vinculados pelo dever de aplicar as leis e a Constituição. Justiça é lá no Céu!

Permito-me, por fim, lembrar que, como dispõe o artigo 60, parágrafo 4.º, IV, da nossa Constituição, não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. Percebem? Somente uma nova Assembleia Constituinte poderá impor o cumprimento de sentença condenatória a partir de condenação em segunda instância!

*Advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, foi ministro do STF


Murillo de Aragão: Os bons frutos da polarização

O melhor dos mundos: reformas com democracia

Muitos no Brasil de hoje se preocupam, corretamente, com as narrativas belicosas e a polarização ideológica. Devem também se preocupar com os ataques à imprensa e o tom raivoso que predomina nas redes sociais. São tempos exacerbados que, sem dúvida, merecem a atenção de todos. Mas o Brasil não é só polarização. E, diferentemente do que se viu em outras épocas, o extremismo que se instalou aqui com o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016, veio acompanhado de um virtuoso ciclo de reformas e de modernização, iniciado no governo de Michel Temer (MDB) e com o apoio decisivo do deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara.

De forma inusitada, as eleições de 2018 trouxeram as reformas estruturais para o centro das discussões. Os principais candidatos presidenciais, em especial Jair Bolsonaro, abordaram temas que antes soavam impopulares e seriam vetados nas campanhas, como a reforma da Previdência, a diminuição do Estado e a redução da burocracia. Houve uma mudança de mentalidade no mundo político.

Ainda pagamos a conta pelo desgoverno da ex-presidente Dilma, em especial no que tange aos aspectos fiscais e regulatórios. Mas, estruturalmente, o Brasil está muito melhor. O saldo das reformas aprovadas na legislatura passada do Congresso é impressionante. Temas espinhosos nunca abordados foram enfrentados sem receio, como o teto de gastos, a Lei da Terceirização, a nova Lei das Estatais e a reforma trabalhista. Os marcos dos setores elétrico e de óleo e gás foram renovados, e iniciou-se, com o apoio do Legislativo e do Judiciário, um intenso programa de concessões e privatizações. Mesmo em meio ao tiroteio político e à polarização exacerbada de posições que continuaram na ordem do dia após as eleições, o que havia ficado pendente em 2018 avançou de forma consistente em 2019. Além da reforma previdenciária, pautas relevantes como a cessão onerosa dos campos de petróleo, uma nova Lei de Telecomunicações, a Lei da Liberdade Econômica e o cadastro positivo foram sancionadas.

Apesar da temperatura elevada, temos instituições fortes e responsáveis

Enfim, o ano que se encerra foi extremamente produtivo para mudanças estruturais que podem inaugurar um ciclo virtuoso de crescimento econômico. A depender, obviamente, de uma boa pilotagem da equipe econômica, tendo em vista assegurar que as reformas aprovadas tragam consequências positivas para o ambiente de investimentos. Sobretudo no capítulo da desburocratização e simplificação do sistema tributário.

O paradoxal de tudo isso é que o avanço das reformas tem se dado em clima de polarização, o que lembra os anos 1950 e o início dos anos 1960, que culminou no movimento que derrubou o governo Goulart. As narrativas radicalizadas autorizam alguns a temer por um retrocesso democrático. Não creio nisso. Apesar da temperatura elevada, temos instituições fortes, atuantes e responsáveis, além de múltiplos atores e agremiações políticas comprometidos com a democracia. Inclusive os militares. O país demonstra maturidade ao avançar nas reformas respeitando a democracia mesmo em ambiente de polarização. E isso, acima de tudo, deve ser reconhecido, valorizado e preservado. Reformas com democracia é do que o país precisa.

 


Míriam Leitão: O esforço de fato e a promessa irreal

Na área fiscal, há boas notícias. Governo evitou relaxar a meta de déficit primário e terá o melhor resultado em cinco anos nas contas públicas

O melhor resultado primário em cinco anos é para se comemorar. E há mais notícia boa: o BNDES vai pagar R$ 40 bilhões da dívida que tem junto ao governo e isso será usado para abater dívida pública. “Será 0,4% do PIB de redução de dívida”, diz um integrante da equipe econômica. O resultado, contudo, mostra também alguns dos defeitos da maneira do Brasil de gastar.

Não apenas do governo federal. Imagine, por exemplo, o Funpen, um fundo de segurança pública que dá dinheiro a fundo perdido aos estados que queiram construir presídios. Todo ano sobra dinheiro, e o Brasil tem presídios dantescos.

Os governadores não querem construir, mesmo de graça, porque isso elevará os gastos correntes dos anos e décadas seguintes na manutenção do presídio.

Há dinheiro que não é usado porque o serviço não aconteceu por falha de gestão ou é investimento que o governante não quis executar. O descontingenciamento no fim do ano acaba na verdade virando corte porque o que não foi feito não tem mais tempo hábil.

Na educação, uma bolsa científica não aprovada não poderá ser dada no fim do ano quando se descontingenciou. Aliás, a maior parte dos gastos na educação que foram congelados não pode ser realizado quando o ano letivo está no fim.

Há o risco ainda da escolha ideológica para impedir uma ação do Estado, usando como pretexto a penúria fiscal. Isso aconteceu, por exemplo, na área ambiental. O governo prometeu conter a fiscalização. O ministro paralisou até o Fundo Amazônia que não representa sequer despesa do governo.

Na área fiscal, há notícia boa. É preciso separar os avanços dos defeitos da gestão pública que podem estar misturados neste resultado. O primeiro avanço é que o ministro Paulo Guedes, pressionado no começo do ano para aumentar a meta, ou seja, abrir mais o buraco das contas públicos, decidiu manter a mesma meta, apesar da frustração do crescimento e, por consequência, da receita.

É verdade que Guedes acabou ajudando esse clima que subestima o resultado porque prometeu zerar o déficit em um ano. Assim, parece pouco tê-lo reduzido em mais de R$ 50 bilhões. Não apenas manteve a meta, como correu atrás para diminuir o déficit. E conseguiu.

O déficit não seria mesmo zerado. Era promessa vã. Parte do resultado é derivado de receitas extraordinárias, que acontecem uma vez só. O programa do governo de privatização ficou parado, mas as estatais venderam ativos. A venda da TAG pela Petrobras, por exemplo, gerou resultados concretos. Não haverá outra TAG para vender. Por isso é chamada de receita extraordinária. É uma estratégia usada por vários governos, mas não resolve o problema estrutural. O governo também pediu antecipação de dividendos, exatamente como foi feito no governo Dilma. É receita, mas ela entraria no ano que vem e entra logo este ano.

O maior problema é o empoçamento. Ele melhora o número do déficit, porém é resultado da incompetência governamental. Como explica um alto servidor público:

—É dinheiro liberado para os ministérios mas que por diversos motivos eles não conseguem gastar. Isso acontece até na despesa obrigatória da saúde. Mesmo sendo obrigatório, o gasto só pode ser pago se o serviço for efetivamente entregue. Nem todo serviço consegue ser executado no ano. O dinheiro fica empenhado, mas a despesa não é paga porque o serviço não ocorreu.

A queda do déficit prevista fará o país respirar melhor neste fim de ano. É notícia boa. Mas permanece, em quem acompanha a luta pela reorganização das contas públicas — de dentro e de fora do governo —, a dúvida sobre se será possível reduzir despesas de forma estrutural para cumprir o teto de gastos.

Depois de três anos de teto, a despesa primária do governo caiu de 19,9% para 19,7%. O projeto era cortar de 3% a 4% do PIB da despesa para voltar a ter superávit primário. Na hora de reduzir despesas, contudo, é preciso ter mais sabedoria e noção de prioridade, para não escolher cortes que tenham mais efeitos colaterais negativos do que benefícios.

Em 2018, o déficit ficou também abaixo do teto permitido. É preciso mais do que compressão de despesa e entrada de receitas extraordinárias para enfrentar o grave problema do déficit público. Em 2020, o Brasil estará no sétimo ano de contas primárias no vermelho.


Luiz Carlos Azedo: Que partido é esse?

“O xis da questão do novo partido que será criado hoje pelo presidente Jair Bolsonaro é o seu ideário programático, ou seja, seu real compromisso com a ordem democrática”

Com 30 deputados, liderados por Eduardo Bolsonaro (SP), e um senador, Flávio Bolsonaro (RJ), o presidente Jair Bolsonaro deve fundar hoje, em convenção nacional, a Aliança pelo Brasil, seu novo partido, consolidando o rompimento com o PSL, de Luciano Bivar (PE). A criação da nova legenda está na contramão da legislação partidária vigente, que força a redução do número de partidos, por meio da cláusula de barreira, e do fim das coligações nas eleições proporcionais. O desafio da criação do novo partido não é a arregimentar quase 500 mil filiados em todo país, mas a transferência dos parlamentares do PSL para a nova legenda, anunciada ontem pelo líder do governo na Câmara, deputado Vitor Hugo (GO), sem perda de mandato, e também a obtenção de recursos do fundo partidário.

Bolsonaro não terá dificuldade para estruturar o partido nos estados e municípios, porque conta com apoio de grupos organizados nas redes sociais com grande poder de mobilização: evangélicos, caminhoneiros, garimpeiros, milicianos, agentes de segurança, militares reformados, etc. Tem a seu favor uma base eleitoral ainda muito robusta, apesar da relativa perda de popularidade, por causa do natural desgaste nos primeiros 10 meses de governo. Ou seja, conta com militantes e lastro eleitoral para viabilizar seu projeto. Ideologicamente, o perfil do partido também está resolvido: será uma organização política de direita, com viés reacionário, que mistura religião com política, ideias conservadoras e nacionalistas, de combate aberto à esquerda e aos movimentos identitários.

Sem dúvida, trata-se de uma nova direita. A narrativa política do novo partido, porém, lembra a radicalização política que antecedeu a II Guerra Mundial aqui no Brasil. Naquela época, na Europa, a carnificina havida na I Guerra Mundial (1914-1918) e a Grande Depressão de 1929 serviram de caldo de cultura para o surgimento de partidos de massas de direita, principalmente o fascista, na Itália, e o nazista, na Alemanha, que se opuseram aos social-democratas, socialistas e comunistas. No Brasil, essa polarização foi representada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), encabeçada pelo líder comunista Luiz Carlos Prestes, e pela Ação Integralista Brasileira (AIB), de Plínio Salgado. Essa radicalização resultou na chamada Intentona Comunista, de 1935, após a dissolução da ANL por Getúlio Vargas, e no Levante Integralista de 1938, após a instauração do Estado Novo, contra o qual os integralistas se insurgiram, atacando o Palácio Guanabara, por causa da dissolução da AIB. Em ambos os casos, houve mortos, feridos e milhares de ativistas presos.

Compromissos
O xis da questão do novo partido, encabeçado pelo presidente, é o seu ideário programático. Qual será o seu real compromisso com a ordem democrática e suas instituições, com os direitos e garantias individuais, a alternância de poder e o direito ao dissenso, principalmente das minorias? Diante de reiteradas declarações de Jair Bolsonaro e seus aliados mais próximos em defesa do regime militar, esse questionamento faz todo sentido. Outra questão importante diz respeito à forma de atuação do novo partido, notoriamente contrário aos movimentos sociais e organizações da sociedade civil que defendem os direitos humanos, o meio ambiente e as opções de gênero. Quais serão seus métodos de luta política? Serão o debate, o diálogo e a persuasão?

Do ponto de vista eleitoral, o grande desafio do novo partido será se viabilizar, nas eleições municipais do próximo ano, para as quais os seus concorrentes, inclusive o PSL, já armam suas candidaturas, com recursos dos fundos partidário e eleitoral. Mesmo contando com o enorme poder da máquina federal, cuja atração política dispensa comentários, e com o prestígio eleitoral do presidente da República, o novo partido precisará financiar sua campanha eleitoral, o que depende de interpretação da legislação vigente, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os parlamentares que migrarem para a nova legenda carregarão consigo os recursos dos fundos partidário e eleitoral? De certa forma, o futuro da nova legenda dependerá dessa resposta. Além disso, ainda que a aba do chapéu de Bolsonaro seja larga como a dos caubóis, eleições municipais costumam ser “fulanizadas” e pautadas pelos interesses locais.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-que-partido-e-esse/


Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fragelli Cardoso: Tributar mais para distribuir?

Além da má distribuição de renda quando tributa, o Estado não prioriza os pobres ao gastar os recursos arrecadados

Neste momento em que a má distribuição de renda no mundo e no Brasil tem suscitado propostas agressivas de elevação de impostos, é preciso uma discussão objetiva sobre o tema da desigualdade.

O primeiro passo é compreender o inevitável conflito entre prosperidade e equidade. Para se gerar prosperidade, entendida como uma abundante produção física, é preciso eficiência na atividade produtiva. Esta resulta dos incentivos econômicos proporcionados pela economia de mercado. Neste regime econômico, entretanto, os cidadãos mais aptos, tudo mais constante, levam vantagem, de modo que a prosperidade traz consigo a desigualdade. Decorre desse conflito estrutural que, para se conciliar prosperidade com equidade, é preciso sacrificar parcialmente cada um dos dois objetivos, no intuito de se assegurar um pouco de ambos.

Cabe ao Estado tributar os cidadãos que mais se beneficiam da economia de mercado, transferindo os recursos para os menos capacitados ou para aqueles que por algum motivo externo - como choques negativos, falta de oportunidade, obstáculos institucionais, etc. - ficaram para trás. A tributação, por reduzir incentivos ao trabalho e ao empreendedorismo, reduz a prosperidade, mas é o preço a pagar para se diminuir a desigualdade.

A transferência pode se dar de duas formas. A primeira por meio da entrega direta dos tributos cobrados dos mais ricos aos mais pobres, via programas assistenciais, como o Bolsa Família ou Loas. A segunda forma se dá através da despesa do Estado. Quando esta prioriza os serviços utilizados pela população desfavorecida, concede-se a esta algo que não será absorvido pelo rico. Muito se enfatiza a necessidade de se transferir renda dos ricos para os pobres, esquecendo-se de que a qualidade de vida dos desfavorecidos pode ser muito melhorada mediante melhoria no foco dos gastos públicos.

O Estado brasileiro funciona mal nas duas formas de atuação acima citadas. Os exemplos são muitos. Ao manter regimes tributários diferentes para contribuintes com o mesmo potencial contributivo, o Estado agrava a má distribuição de renda. Este é o caso das firmas de lucro presumido, que permitem a profissionais liberais e pequenos empresários - muitos membros da alta classe média alta ou até ricos - escaparem da elevada tributação que sobrecarrega os empregados celetistas.

Outro exemplo é a baixa tributação sobre a propriedade imobiliária. Com 350 milhões de hectares de pecuária e 70 milhões de hectares de agricultura, a arrecadação anual do Imposto Territorial Rural é de apenas R$ 1,2 bilhão. Isso significa uma receita anual de somente R$ 3 por hectare, incidente sobre o setor da economia que mais cresce. A arrecadação de IPTU é igualmente baixa, 1,5% do PIB, pois sendo um imposto claramente visível pelo contribuinte, as prefeituras preferem outras fontes, como o ISS, que atingem ricos e pobres indiscriminadamente.

Além de agravar a má distribuição de renda quando tributa, o Estado não prioriza os pobres ao gastar os recursos arrecadados. Quando paga aos servidores salários muito superiores aos recebidos pelos empregados do setor privado, bem como lhes dá aposentadorias em condições inexistentes para os demais trabalhadores, o Estado devolve boa parte da tributação para as classes média e alta. O mesmo ocorre quando não cobra mensalidade de universitários que poderiam pagar, ou quando concede isenções tributárias que atingem 4% do PIB e não beneficiam as populações carentes.

Os programas voltados à promoção da distribuição regional da renda com recursos oriundos dos fundos regionais - FDNE, FDCO e FDN -, que recebem 3% da arrecadação de IRPF e IRPJ, subsidiam empresas no intuito de gerar empregos em regiões carentes. Esses recursos teriam impacto muito maior na melhoria da qualidade de vida dos pobres dessas regiões se fossem diretamente destinados à saúde e educação populares. A velha Sudene foi recriada por Lula em 2007. A Zona Franca de Manaus foi prolongada até 2073.

O contraste entre a ineficiência desse tipo de programa e a eficiência de outros bem focados, como o Bolsa Família, é enorme, mas os lobbies organizados perpetuam - e até recriam, quando já extintos - os maus programas.

O investimento na infraestrutura de transporte de massa constitui um grande e inexplorado redutor potencial de desigualdades. Muitos trabalhadores de grandes centros urbanos moram em favelas precárias e dominadas por traficantes ou milicianos, embora tenham renda suficiente para financiar a compra de uma moradia modesta na periferia. Mas o elevado tempo perdido em transportes coletivos de péssima qualidade inviabiliza a opção pela moradia digna à distância. Perde-se mais uma oportunidade de melhorar o bem-estar de uma enorme fatia da população.

A boa notícia é que nos últimos anos observou-se alguns avanços. O fim da TJLP eliminou os gigantescos subsídios concedidos a grandes empresas pelo BNDES, que custavam anualmente 0,5% do PIB - mais do que o Bolsa Família. A inflação, o mais duro dos impostos incidentes sobre os pobres, foi debelada quando se aproximava de 11% ao ano, devendo permanecer baixa devido à iminente aprovação da independência do Banco Central. A aposentadoria por tempo de contribuição, que permitia à classe média se aposentar antes dos pobres, foi suprimida pela reforma da Previdência.

A inédita queda da taxa real de juros, possibilitada pela perspectiva de equilíbrio fiscal estrutural induzido pelo Teto de Gastos, reduziu em 2,5% do PIB o pagamento de juros reais sobre a dívida pública aos rentistas. A eliminação de isenções fiscais desfocadas, extorquidas no passado por pressão de lobbies, avançará na mesma linha.

Apesar dos avanços, a imensa desigualdade ainda existente leva vários grupos a defender uma maior tributação sobre poupança, investimento e ativos, em vez de focar no uso dos recursos. O que garante que, após uma elevação adicional da carga tributária, os recursos seriam realmente direcionados aos pobres, e não aos mesmos grupos de pressão? Diante da elevada carga tributária de cerca de 38% do PIB, o Brasil está muito longe da situação em que os recursos já arrecadados são plena e adequadamente direcionados à redução das imensas desigualdades. A maior tributação apenas inibiria ainda mais os investimentos, em detrimento da geração de empregos. As principais vítimas seriam justamente os pobres que se busca beneficiar.

*Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento
*Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV


William Waack: O STF e o senso comum

Transformado em instância política, o STF enfrenta o descrédito da própria instituição

Dias Toffoli deu prosseguimento ao que o Supremo vem fazendo há anos – tratar de identificar o que é a repercussão política e popular daquilo que decide – quando praticamente instou o Congresso a alterar normas para permitir a execução de sentença condenatória antes do famoso “trânsito em julgado”. É o que o Congresso está fazendo, motivado sobretudo pelo próprio voto de Toffoli, segundo o qual não se trata de alterar (na pretendida modificação do Código Penal) uma cláusula pétrea da Constituição.

A questão jurídica é fascinante pois, como assinalou aqui Ives Gandra Martins na edição desta quarta-feira as duas teses que se opõem na discussão são consistentes. A saber: a) como alguém que, até o trânsito em julgado, é inocente, pode ser levado a cumprir pena? b) tribunais superiores não tratam mais das questões fáticas decididas nas duas instâncias iniciais de um processo, portanto recursos à terceira e quarta instâncias não se destinam mais a provar inocência.

O que está em jogo, no fundo, é uma questão sobretudo política, de central relevância para qualquer sociedade que pretende viver num Estado de direito, pois envolve o trato de princípios fundamentais como o da presunção da inocência. No campo da disputa política a discussão (como tudo que acontece hoje) descambou segundo a caracterização de uns como “fanáticos punitivistas” (os que defendem a execução de pena após a segunda instância) e de outros, seus oponentes, como “garantistas que favorecem corruptos e criminosos”.

No campo dos grandes fatos da política não se pode ignorar que a sociedade brasileira demonstrou um enorme apoio à Lava Jato, sobretudo pelo consenso de que nossos códigos processuais (indecifráveis para leigos), nosso sistema recursal (incompreensível para leigos) e a própria Justiça (com sua obscena morosidade) em vez de punir corruptos tornam a vida deles mais fácil e tranquila.

Diante desse reconhecimento, sustentado por fatos, se os expoentes da Lava Jato extrapolaram ou não suas funções e ignoraram ou não normas legais é irrelevante – do ponto de vista da compreensão dos fatos por vastas camadas da sociedade – diante dos resultados apresentados: a descoberta da inédita roubalheira e a punição de seus principais responsáveis. Para uma imensa quantidade de pessoas o que está em jogo não são princípios jurídicos, mas uma correção de rumos inaceitáveis.

É uma espécie de “senso comum de justiça” (costuma ser em si muito perigoso, dada a possibilidade de manipulação por populistas) amplamente disseminado que empurra Congresso e, como Toffoli permitiu, o próprio Judiciário a dar um jeito de fazer o que uma parte relevante dos participantes na discussão sustenta que a Constituição diz que não se deveria fazer (a execução da pena após segunda instância).

Simplificando bastante, a reiteração categórica desse princípio na Constituição obedecia lá atrás a um forte “desejo” da sociedade, na saída do regime militar, de estabelecer garantias contra arbítrios do Estado. Mas, agora, passados 30 anos e o País tão desigual, pobre e injusto como antes, e a política tão depreciada como sempre, prevalece no público a noção de que as garantias contra arbítrios passaram a beneficiar o que a sociedade entende (até erroneamente) como sendo o principal problema a se resolver, a saber, o da ação dos corruptos.

É real e justificável o lamento dos que assinalam que no embate das forças políticas para tirar do poder os responsáveis mais recentes pela corrupção institucionalizada foram pisoteados princípios fundamentais para o funcionamento de sociedades abertas, principalmente o respeito ao que está escrito na Lei.

Mas é o que acontece quando uma sociedade perde confiança no funcionamento de suas instituições, a começar pelo Judiciário, no topo dele o STF.