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Luiz Carlos Azedo: A iniquidade social

“A estagnação da escolaridade e a má distribuição de renda são os vetores mais dramáticos da nossa desigualdade, pois puxam para baixo a qualidade de vida de toda a população”

Obra pré-modernista, de caráter histórico-literário, Os Sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909), publicado em 1902, foi a primeira grande crítica à iniquidade social no Brasil. Embora de caráter regionalista, ao narrar os sangrentos acontecimentos da Guerra de Canudos (1896-1897), liderada por Antônio Conselheiro (1830-1897), no interior da Bahia, teve grande impacto na opinião pública da época, em especial entre os jovens militares, sendo uma das fontes de inspiração do Tenentismo.

A obra descreve o sertão nordestino (o relevo, a fauna, a flora e o clima), o homem (o sertanejo, o jagunço, o cangaceiro e o líder messiânico) e, finalmente, a luta (as quatro inglórias campanhas do Exército para destruir o pequeno arraial de 20 mil habitantes). Nunca antes a questão social no Brasil havia sido abordada com tanto realismo, nem mesmo na campanha abolicionista, cujo coroamento fora a Lei Áurea, 14 anos antes.

A justificativa para o massacre de Canudos fora uma suposta ameaça à consolidação do regime republicano, devido ao caráter sebastianista do movimento liderado pelo místico Antônio Conselheiro. No livro, Euclides da Cunha questiona o ufanismo e o nacionalismo da época, bem como a visão idealizada que se tinha sobre a formação e o caráter do povo brasileiro.

O homem descrito por Euclides da Cunha, que fez a cobertura jornalística da Guerra de Canudos como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, 100 anos depois, vive nas periferias e favelas dos grandes centros urbanos do país, seja na condição de trabalhador informal, seja como traficante ou miliciano. A iniquidade social é a mesma. A diferença é que já não é possível resolver o problema à bala, como em Canudos, embora alguns continuem tentando.

Na época de Antônio Conselheiro não havia IDH, o índice criado para a ONU pelos economistas Amartya Sen, indiano, prêmio Nobel de 1998, e Mahbub al Huq, paquistanês, com objetivo de mensurar as condições de saúde, de escolaridade e de renda das populações e assim aferir os níveis de desigualdades entre os países. O do Brasil, divulgado no domingo passado, mostra um quadro desolador, em grande parte agravado pela recessão provocada pela “nova matriz econômica” do segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do governo Dilma Rousseff.

Direitos humanos
São impressionantes os efeitos negativos da recessão, entre os quais a existência de 12 milhões de desempregados crônicos. O índice brasileiro perdeu três posições desde 2013. De 2017 a 2018, em um ranking de 189 países, retrocedemos do 78º lugar para 79º, com um IDH de 0,761 (quanto mais próximo de 1, maior o desenvolvimento humano). Estamos atrás da Rússia e da Argentina, para usar apenas esses dois paradigmas. E muito distantes da Noruega e da Suíça, que lideram os IDHs dos países desenvolvidos.

A estagnação da escolaridade e a má distribuição de renda são os vetores mais dramáticos da nossa desigualdade, pois puxam para baixo a qualidade de vida de toda a população. O quadro é ainda mais grave porque não há igualdade de oportunidades na largada, no meio do caminho, muito menos na reta de chegada. Ou seja, do nascimento de nossas crianças à vida adulta.

A situação nos remete à questão dos direitos humanos, consagrados pela ONU em 1948 e incorporados à nossa Constituição, em 1988. Seu conceito mudou ao longo da história, desde a Declaração de Direitos de Virgínia, nos Estados Unidos (1776), e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), na França. Grosso modo, foram fundamentais para a consolidação dos Estados nacionais e para o desenvolvimento capitalista. Afinal, nem um nem outro seriam possíveis sem exércitos de massa e o chamado exército industrial de reserva, respectivamente, que requeriam mão de obra saudável e minimamente escolarizada.

É aí que mora o perigo. Com a revolução tecnológica em curso, nem as guerras nem a produção exigem a mesma disponibilidade de recursos humanos; os direitos à saúde e à educação estão deixando de ser um assunto de interesse universal, ou seja, inclusive patronal. Enquanto nos países desenvolvidos o estado de bem-estar social está em crise, na periferia do mundo deixou de ser um objetivo comum a ser alcançado. Nunca as políticas públicas de caráter social foram tão negligenciadas.

Ocorre que o mundo se move. O esgarçamento social provocado pelas políticas ultraliberais é uma realidade, seja nos países desenvolvidos, como na França, seja na periferia, como no Chile, cujo IDH, como vimos acima, é melhor do que o nosso. Com toda certeza, nas próximas eleições municipais, essa variável terá que ser considerada, tanto quanto a geração de oportunidades de trabalho e o combate à corrupção e à ineficiência na gestão pública.

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Míriam Leitão: A esperança dos recomeços

Dilema argentino é que reduzir a crise social é urgente, mas sem estabilidade na economia qualquer plano estará fadado ao fracasso

A Argentina vai experimentar de novo o mesmo caminho de ampliar os gastos, estimular o crescimento, não pagar a dívida externa. Esses foram os sinais dados ontem pelo novo presidente Alberto Fernández. O discurso peronista volta com força diante do fracasso do liberalismo defendido pelo ex-presidente Mauricio Macri. O truque do discurso de Alberto Fernández é o mesmo de qualquer político: colocou toda a culpa nos últimos quatro anos. É verdade que Macri fracassou na economia, mas Cristina Kirchner deixou um país já com a crise instalada.

A esperança é sempre tentadora em recomeços, principalmente quando o ritual democrático é respeitado. O Congresso estava lotado de peronistas cantando diante do novo presidente e sua vice eleitos pelo voto direto. Podiam comemorar, era a hora da vitória depois de terem saído do governo há quatro anos. O presidente derrotado em sua tentativa de permanecer no poder, Mauricio Macri, ouviu respeitosamente o canto dos vencedores. No discurso de posse, Fernández exibiu os dados inegáveis da crise e prometeu derrotá-la com os remédios nos quais acredita.

Ele avisou que primeiro quer fazer a economia crescer para depois pagar os credores e disse que o país já está em “default virtual”. Ainda que o FMI tenha mandado mensagem simpática avisando que quer se entender com o novo governo argentino, o fato é que os juros não podem ser pagos por falta de dólares em caixa. Só neste dezembro são US$ 5 bilhões para quem tem reservas líquidas que podem estar abaixo de US$ 10 bilhões. De qualquer maneira, apesar de ele ter falado em renegociação, é possível que o novo governo deixe para anunciar qualquer medida em relação à dívida junto ao FMI e credores privados depois de uma negociação com o Fundo.

O novo governo prometeu um plano de combate à pobreza, mas também diz que vai estimular a produção, decretou emergência na saúde, avisou que fará acordos com os trabalhadores, industriais, produtores rurais. Não disse como pretende combater a inflação, que na Argentina tem sido um problema crônico.

O país, na verdade, há muito tempo não tem inflação sob controle. Em 2002, chegou a 40% ao ano. Foi o ano da crise que levou à moratória. Caiu para 3% em 2003, mas logo tornou a subir e em 2005 já tinha voltado aos dois dígitos, para 12,3%. Cristina tomou posse em 2007 e em 2014 o aumento de preços já tinha disparado para 23,9% ao ano. De 2015, não há estatística oficial, porque ela fez uma intervenção no Indec, o IBGE de lá, que comprometeu toda a credibilidade do índice. Como não vencia a febre, tentou alterar o termômetro. Macri revogou essa intervenção no índice e os preços subiram em parte porque o registro estava subestimado anteriormente. Além disso, estava represada em vários preços, como nos de energia. Essa é a história inteira. Ontem o presidente Alberto Fernández disse que é a primeira vez desde 1991 que a inflação chega a 50%. Isso é verdade, mas apenas parte dela.

O grande dilema argentino é que reduzir a grave crise social é urgente, mas sem estabilidade econômica qualquer plano de transferência de renda aos mais pobres está fadado ao fracasso. Deixar de pagar a dívida externa é mais do que razoável. É determinado pela realidade de não haver dólares. Mas o país precisa voltar a ter moeda. Hoje o peso serve para o pagamento das transações, mas não como reserva de valor, ou poupança, como explicou Carlos Melconian no “Clarín”. O peso é uma meia moeda, com apenas uma parte das funções clássicas.

Alberto Fernández deu também outro recado: vai mandar ao Congresso um projeto de reforma do Judiciário. Afirmou que a Justiça, em vez de julgar, “perseguiu”. E o fez “com agentes de Estado infiltrados e anuência da mídia”. Com uma vice que responde a nove processos, essa será mesmo uma perigosa batalha travada no coração da democracia argentina.

Não há tarefas fáceis pela frente, na economia e na política. Mas como qualquer presidente eleito ele tem a força do voto com ele neste começo. Que saiba usar com sabedoria seu capital político. E saiba que valores quer preservar. Os aplausos o cobriram quando disse: “vamos ouvir os movimentos sociais, como a juventude, o ambientalismo, o feminismo, os setores acadêmicos”. Nesse aspecto, um país normal.


Frei Betto: A face injusta do Brasil

Direitos humanos não é 'coisa de bandido' como alardeiam os que jamais pensam nos direitos dos pobres. É um dos mais elevados marcos jurídico e moral de nosso avanço civilizatório

Desde a ditadura militar (1964-1985), nunca houve tantos retrocessos nos direitos humanos no Brasil como agora, sob Bolsonaro . Somos governados por autoridades que insistem na impunidade das forças repressivas, o que representa sinal verde para a eliminação sumária de suspeitos ou mesmo de cidadãos insuspeitos, como os nove jovens assassinados pela PM de São Paulo na favela de Paraisópolis , na madrugada de 1º de dezembro. Apenas no Rio, neste ano de 2019, seis crianças foram mortas por “balas perdidas” .

Terras demarcadas são invadidas por mineradoras, madeireiras e empresas agropecuárias. Indígenas são assassinados, entre eles o líder Paulo Paulino Guajajara, no Maranhão, a 1º de novembro, por defender a reserva de seu povo da ação de madeireiros ilegais. Os casos de feminicídio se multiplicam; uma mulher é violentada a cada 4 minutos no país.

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo , cuja nomeação está sendo contestada pela Justiça, cospe na memoria de Zumbi, herói quilombola, ao declarar que no Brasil não existe racismo, e que “a escravidão foi benéfica para seus descendentes”... No Paraná, o jornalista Aluízio Palmar é processado por denunciar torturas no quartel do 1º Batalhão de Fronteira, em Foz do Iguaçu. O país tem mais de 12 milhões de desempregados, e o salário mínimo a vigorar em 2020 foi reduzido duas vezes pelo governo.

À beira de fazendas e estradas brasileiras, 80 mil famílias se encontram acampadas. O ex-presidente Lula é condenado sem provas. A mídia crítica ao governo é sabotada mediante o cancelamento de anúncios oficiais, e sofrem ameaças as empresas privadas que nela fazem publicidade de seus produtos. Alunos são incentivados a delatar professores que não rezam pela cartilha do Planalto. O mercado de armas e munições é estimulado pelo governo, que jamais condenou as milícias paramilitares que, ao arrepio da lei, disputam territórios com o narcotráfico.

Além dos direitos humanos, são violados também os direitos da natureza. A floresta amazônica é incendiada criminosamente para abrir espaço ao gado e à soja, enquanto Bolsonaro declara que as queimadas são “um problema cultural” . A Justiça atua com morosidade e leniência na punição dos responsáveis pelas tragédias resultantes do rompimento das barragens de Mariana (MG), em 2015, e Brumadinho (MG), em 2019, que ceifaram 382 vidas. O óleo derramado no litoral brasileiro não é saneado com a urgência e o rigor que a situação exige.

Segundo Marcelo Neri, da FGV, em dez anos o Brasil tirou 30 milhões de pessoas da pobreza. Porém, entre 2015 e 2017, 6,3 milhões de pessoas voltaram à miséria. Nos últimos três anos, a pobreza aumentou 33%. Segundo o IBGE, 58,4 milhões de pessoas vivem hoje abaixo da linha de pobreza, com renda mensal inferior a R$ 406. A lista de excluídos só aumenta: entre 2016 e 2017 subiu de 25,7% para 26,5 o que significa a exclusão de quase 2 milhões de pessoas. Segundo estes dados, 55 milhões de brasileiros passam por privações, dos quais 40% no Nordeste. Enquanto isso, a renda per capita dos ricos subiu 3%, e a dos pobres desceu 20%. Doenças já erradicadas retornaram, e a mortalidade infantil avança sobre as famílias mais pobres.

Somos uma nação rica, muito rica. Mas sumamente injusta. O PIB brasileiro é de R$ 6,3 trilhões, suficiente para garantir R$ 30 mil per capita/ano para cada um dos 210 milhões de habitantes. Ou R$ 10 mil por mês para cada família de 4 pessoas.

Direitos humanos não é “coisa de bandido” como alardeiam os que jamais pensam nos direitos dos pobres. É um dos mais elevados marcos jurídico e moral de nosso avanço civilizatório. Embora sejam violados sistematicamente por quem se proclama democrata e cristão, são irrevogáveis. Resta, agora, a ONU convocar os países a elaborar e assinar a Declaração Universal dos Direitos da Natureza, nossa “casa comum”, na expressão do papa Francisco.

*Frei Betto é escritor, autor de “Minha avó e seus mistérios” (Rocco), entre outros livros.


Paulo Delgado: Brasil, Nobel do pessimismo

Não adianta ter força no País quando o jogo moral é jogado lá fora. A assimetria é mortal

O que está levando Trump ao impeachment não é aquela culpa no cartório, mas o fato de usar uma nação estrangeira para influenciar decisões dentro da política interna americana.

Diferente do Brasil, que pratica há anos uma política mórbida, por isso não tem até hoje um Prêmio Nobel, e entregou de mão beijada a supremacia que adquiriu com a fabricação de aviões médios e está fazendo tudo para entregar a agroindústria à intriga internacional. Porque, internamente, além de olharmos mal para o futuro, externamente inúmeros brasileiros adoram falar mal do País e até se dedicam a escrever cartas, telefonar, visitar e azucrinar os suecos e noruegueses para não reconhecerem o papel de descortino mundial que tiveram Alysson Paulinelli, Nise da Silveira, César Lattes, Ozires Silva, Lara Rezende-Pérsio Árida, dentre outros.

O Brasil tem de se dedicar um pouco mais a valorizar o que sabe fazer. Pois a qualidade de tudo o que é descoberto ou inventado hoje, especialmente tecnologia, deveria ser objeto de contratos de como deve ser seu uso, e não de discursos patrióticos sobre se aquilo é ou não oportuno. Tudo o que é serviço será digital, toda a poluição será monitorada, e não é possível imaginar um país sem unidade interna, política e empresarial, para criar sua própria legislação sobre o uso do que comanda o mundo moderno.

Não haverá nenhum Simão Cirineu ajudando o País a carregar a sua cruz.

O brasileiro precisa parar de viver achando que tem de ser arruinado para que restauradores da calamidade se apresentem. A prosperidade exige compromisso com a harmonia. Pede autoridade e confiança, não força e discriminação. Maldades civis, indiretas militares e incitação à revolta, devemos desconfiar, debaixo de qualquer oratória.

Só o comedimento e a perseverança nos salvam. A hostilidade constante não permite que o País respire e aumente o ânimo dos que querem paz. Nossa época explosiva é muito forte. Fracos são os líderes que não armazenaram ou economizaram nada que os estimulasse a ver a encruzilhada em que está o destino do mundo. E aí, alerto, nosso presidente, especialista em cortar o galho em que está assentado, depois do desamor de Trump pelas ligas e pelos metais brasileiros, deve refletir sobre algo mais grave.

A COP-25, que está sendo realizada em Madri, é desmistificadora: infelizmente, não há clima político no mundo para evitar o aquecimento global. A principal causa das mudanças climáticas é a matriz energética de base fóssil. Sem sair do petróleo, carvão e gás natural não é possível evitar que o clima do planeta mude para pior. Todo o resto é paliativo. E o único paliativo mais honesto é aplicar tecnologias que capturem dióxido de carbono (CO2) dos locais que o emitem e da atmosfera.

O problema causado pelos diferentes interesses relacionados à mudança climática é exacerbado por quem ganha ao desviar a atenção da necessidade de enfrentar uma saída para o uso do petróleo. Os grandes poluidores possuem trilhões de dólares e já se organizam para preparar o futuro de confrontos por conta de mudança climática.

O Brasil, apesar de ser o quinto maior país do mundo e ter a sexta maior população, é apenas o 13.º maior emissor de CO2 do planeta. O Brasil é verde, não poluente, mas se permanecer na matriz atual e for crescer é que vai poluir para valer.

Curiosidade de que ninguém se dá conta é que, fora o uso industrial e para o transporte, uma das principais emissões de gases de efeito estufa se dá por causa do frio que sentem as pessoas que vivem nas zonas temperadas e subpolares. Quase que uma exclusividade da Eurásia e da América do Norte. Países com invernos rigorosos que precisam ficar com calefação funcionando boa parte do ano e que continua ativa até mesmo quando saem de férias, fugindo do inverno.

Cerca de 40% de todos os gases de efeito estufa emitidos pela cidade de Nova York são decorrentes de calefação e água quente obtidas pela queima de combustível fóssil. Quem quiser reduzir para valer a mudança climática tem de começar parando de fazer calefação com combustível fóssil. Não adianta parar de comer bife e meter o pau no Brasil.

O fato é que é a parte fria do mundo que esquenta o planeta. E é ela que tem capital para fazer o mundo parar de esquentar. Entretanto, sua população gasta mais energia criticando as áreas tropicais e subtropicais, que são as que mais sofrem com as mudanças climáticas porque são, já de início, mais quentes.

Entretanto, há mais gases causadores do aquecimento. O metano corresponde a cerca de 16% das emissões de efeito estufa decorrentes da atividade socioeconômica. O Brasil é um dos cinco maiores emissores desse gás no mundo. Vem muito atrás da China, que é o maior emissor, mas também atrás da Índia, da Rússia e dos Estados Unidos.

A emissão de metano pelo Brasil vem da agropecuária e do desflorestamento. Seria inteligente o agronegócio brasileiro decidir se tornar a ponta mundial do desenvolvimento tecnológico para captura de metano. Esse é nosso calcanhar de Aquiles e será miseravelmente explorado por quem quer desviar a fúria política global para longe dos combustíveis fósseis e das regiões mais ricas.

Tanto a grande indústria petrolífera quanto o agronegócio que concorre com o Brasil são dois lobbies formidáveis num brutal ataque conjunto à questão do desflorestamento e da emissão de metano. A matemática da correlação de forças tem um resultado muito objetivo: no confronto direto, o agronegócio brasileiro vai perder.

Não adianta ter força no Brasil quando o jogo moral é jogado fora daqui. A assimetria é mortal e cresce a imagem de que estamos poluindo, sem saber despoluir. Vamos dar com os burros n’água se não aprendermos a ganhar dinheiro no mercado da despoluição. Para destruir a imagem de nossa agroindústria é preciso primeiro destruir a imagem do Brasil como país verde. Não deve ser o que queremos.

*Sociólogo


El País: Alberto Fernández defende agenda com Brasil maior que “diferenças pessoais” entre seus líderes

Em discurso de posse, novo presidente argentino promete relação “ambiciosa, criativa e fraternal” com o Brasil

O presidente Alberto Fernández tomou posse nesta terça-feira fazendo uma descrição dramática da situação na Argentina. Disse assumir o governo de um país “praticamente em moratória” e “com 40% da população em situação de pobreza”, e em referência à dívida, lançou uma mensagem transparente: “O país tem a vontade de pagar, mas não tem recursos para isso”. A crueza empregada para falar da crise econômica contrastou, por outro lado, com o tom conciliador do seu discurso de posse. Perante as duas câmaras do Congresso e numerosos convidados estrangeiros, Fernández fez um apelo à fraternidade e a “superar o muro do rancor e do ódio” na política. “Quero ser o presidente que escuta, o presidente do diálogo.” Sobre o Brasil especificamente, disse, ainda no tom conciliatório, que quer construir uma agenda "ambiciosa, inovadora e criativa em temas de tecnologia, produção e estratégia, que esteja respaldada pela irmandade histórica de nossos povos que é mais importante que qualquer diferença pessoal de quem governa". O presidente brasileiro Jair Bolsonaro não foi à posse, e enviou seu vice, Hamilton Mourão.

A posse do novo presidente argentino refletiu um fato importante: diferentemente de outros países latino-americanos, e apesar do drama econômico e social, a Argentina goza de uma saudável normalidade institucional. Alberto Fernández entrou no plenário, onde se reuniam deputados e senadores, empurrando a cadeira de rodas da vice-presidenta em final de mandato, Gabriela Michetti, que é paraplégica. Foi um gesto simples, mas que conferiu humanidade à cerimônia. Depois Mauricio Macri, entregando a faixa e o cetro presidenciais, teve que suportar que a nova maioria cantasse aos brados a Marcha Peronista, e que sua velha rival, a vice-presidenta Cristina Fernández de Kirchner, lhe oferecesse um cumprimento gélido. O agora ex-presidente soube se despedir com elegância. Nestes tempos, isso é muita coisa.

Fernández recordou, por seu tom e suas palavras, Raúl Alfonsín, o presidente que insistiu em receber o bastão de comando (usurpado até então por uma atroz ditadura militar) em um 10 de dezembro, o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Fernández, peronista, iniciou sua carreira política na administração de Alfonsín, um membro da União Cívica Radical pelo qual desde então sente um grande afeto. O novo presidente recorreu a uma conhecida frase de Alfonsín, “com a democracia se come, se cura e se educa”, para expressar seu desejo de que o diálogo caracterize seu mandato. “Se alguma vez me desviar do compromisso que assumi, saiam à rua para me recordá-lo”, pediu. Também utilizou com frequência a fórmula “nunca mais”, muito citada desde que o promotor Julio Strassera a usou para encerrar os julgamentos das Juntas Militares da ditadura.

O peso da dívida

Como primeira medida, Fernández jogou na lixeira o orçamento redigido pelo governo antecessor. Explicou que não era possível fazer projeções econômicas sem antes resolver a questão da dívida, a ser renegociada urgentemente com o Fundo Monetário Internacional e com os credores privados. Trata-se de um problema monstruoso. Sob as atuais condições, em 2020 a Argentina enfrentará vencimentos de mais de 58 bilhões de dólares (232,3 bilhões de reais), 36 bilhões (149,3 bilhões) em 2021, e quase 50 bilhões (207,4 bilhões) em 2022, somando as dívida em dólares e em pesos. “O país tem a vontade de pagar, mas não tem os recursos para isso”, admitiu. “Para poder pagar, primeiro é preciso crescer.” O projeto do governo peronista se centra em conseguir que o FMI adie por dois anos o reembolso da parte principal e dos juros da dívida, para dedicar esses 24 meses a recuperar certa estabilidade e relançar uma economia que não cresce desde 2010.

Fernández proclamou que, paralelamente à renegociação da dívida, sua prioridade seriam os mais desfavorecidos, 40% da população que vive na pobreza, sendo 12% mergulhados na miséria, e advertiu que os mais acomodados deveriam fazer “uma maior contribuição” na forma de impostos. “Seriedade na análise e responsabilidade nos compromissos que assumidos para que os mais fracos deixem de sofrer: sob essas premissas confrontaremos toda a negociação da nossa dívida”, afirmou.

Como mecanismo para regular o funcionamento da economia, com objetivos de longo prazo e com políticas de Estado, anunciou a criação de um Conselho Econômico e Social. Também declarou uma “emergência sanitária” para enfrentar a crise da saúde pública: sob o mandato de Macri, o orçamento da saúde caiu 45%. Comprometeu-se também a dirigir “com absoluta transparência” os recursos das obras públicas (houve pouquíssima transparência nesse âmbito durante o mandato de sua hoje vice-presidenta).

Um presidente peronista é obrigado a oferecer um gesto inaugural de bom populismo, e Fernández suscitou um grande aplauso quando anunciou uma intervenção na Agência Federal de Investigação, cujo histórico recente é sinistro, e a supressão completa de seus recursos reservados – esse dinheiro se destinará ao plano contra a fome. “Nunca mais Estado secreto, nunca mais porões da democracia!”, exclamou.

A espionagem política contribuiu para o descrédito da Justiça argentina nos últimos anos, e nesse terreno o presidente enfrenta um campo minado. Quer promover uma “reforma integral” do sistema federal de Justiça para acabar com “as perseguições indevidas”, os “dossiês contaminados” pelos serviços secretos e os “linchamentos midiáticos”. “Nunca mais uma Justiça que persegue segundo os ventos políticos”, disse – mas terá que fazer isso sem dar a impressão de que seu objetivo se limita a salvar sua vice, imputada por corrupção em numerosos processos.

A ex-presidenta adotou uma atitude discreta ao assumir o novo cargo de vice. O protagonismo foi para Alberto Fernández, que reconheceu a “visão estratégica” de Kirchner ao abrir mão da sua própria candidatura, muito divisora, e entregar-lhe a cabeça da chapa que se impôs rotundamente à dupla Mauricio Macri/Miguel Pichetto nas eleições de novembro.

Alberto Fernández dedicou o trecho final de seu discurso a prometer que lutaria para “erradicar a violência contra as mulheres” (surpreendeu que não mencionasse seu compromisso eleitoral de legalizar o aborto) e acabar com a discriminação por raça, gênero, sexualidade ou qualquer outra razão. Nas primeiras filas aplaudia seu filho Estanislao, de 24 anos, desenhista, funcionário administrativo de uma seguradora e transformista. “Voltemos a ganhar a confiança do outro”, pediu o presidente, antes de relembrar que ao final do seu mandato a democracia argentina completará 40 anos.

“Quero que sejamos recordados por termos conseguido voltar a unir a mesa familiar, por termos sido capazes de superar a ferida da fome, por termos superado a lógica perversa de uma economia que gira ao redor da desorganização produtiva, da cobiça e da especulação”, desejou.

Alberto Fernández concluiu seu pronunciamento com uma alusão a seus pais e com lágrimas nos olhos. Depois de muitas saudações e abraços, se dirigiu no seu veículo particular à Casa Rosada, onde deu posse a seus ministros e acenou do balcão à multidão que, sob intenso calor, lotava a praça de Mayo.


Luiz Carlos Azedo: Ídolos com pés de barro

“Moro empunha sozinho a bandeira da ética e divide com Bolsonaro a bandeira da ordem. Uma parte da oposição, ao se alinhar com o ministro, projeta sua liderança ainda mais”

Uma das histórias mais conhecidas do Livro do Antigo Testamento é a interpretação de um sonho do rei da Babilônia Nabucodonosor II, assim traduzido pelo profeta Daniel: “Ó rei, tu tiveste uma visão. Eis que uma grande, uma enorme estátua se levantava diante de ti; era de um brilho extraordinário, mas de um aspecto terrível. Esta estátua tinha a cabeça de ouro fino, o peito e os braços de prata, o ventre e as ancas de bronze, as pernas de ferro, os pés metade de ferro e metade de barro”.

Nabucodonosor II contemplava a estátua quando uma pedra se desprendeu da montanha, sem intervenção de mão alguma, e esmigalhou os pés da estátua, porque a argila e o ferro nunca deram boa liga. “Então, na queda, com a mesma pancada foram feitos em pedaços o ferro, o barro, o bronze, a prata, o ouro”, que viraram pó e foram levados pelo vento sem que deixassem vestígios, uma óbvia analogia com a ascensão e queda dos impérios.

Além de grande guerreiro e estrategista militar, Nabucodonosor II foi responsável por transformar a Babilônia em uma cidade de gigante imponência. Sua construção mais famosa são os Jardins Suspensos da Babilônia, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Na narrativa bíblica, era um rei pagão, que havia sido designado por Deus para cumprir seus propósitos. Seu reinado é o contexto da vida dos profetas Jeremias, Ezequiel e Daniel.

No segundo sonho narrado por Daniel, Nabucodonosor II viu uma grande árvore sendo cortada. Ao interpretá-lo, o profeta previu que o rei seria castigado por seu orgulho com sete anos de loucura, o que teria acontecido, na narrativa bíblica. Nesse período, acreditava ser um animal, um caso severo de licantropia clínica, segundo os especialistas. Quando recobrou o entendimento, obviamente, deu glória a Deus. Nabucodonosor morreu entre agosto e setembro de 562 a.C., com aproximadamente 70 anos de idade. Sucedido por seu filho, Evil-Merodaque, pouco depois o Império Babilônico entrou em declínio, sendo liquidado pelos persas.

Como sabemos, a Era dos Impérios acabou com o fim do colonialismo, mas os ídolos de pé de barro continuaram se multiplicando mundo afora. Os sonhos de Nabucodonosor II, por isso mesmo, se tornaram uma espécie de lição para os políticos não se embriagarem com o poder. No momento, na constelação de políticos em grande evidência, três astros brilham mais do que os demais. O presidente Jair Bolsonaro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Justiça, Sérgio Moro. É dispensável dizer quem no momento encarna com perfeição a passagem bíblica, mas essa história se repete com muita frequência na política brasileira, e ninguém tem o monopólio do papel de ídolo com pés de barro.

O novo mito
A novidade da pesquisa DataFolha, divulgada ontem, é o alto índice de aprovação do ministro da Justiça, Sérgio Moro, com 53% de bom e ótimo, 23% de regular, 21% de ruim e péssimo, em meio à desaprovação do governo Bolsonaro, que tem 36% de ruim e péssimo, 32% de regular e 30% de bom e ótimo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, o segundo mais bem avaliado, vem bem atrás: 39% de ótimo e bom, 33% de regular e 23% de ruim e péssimo.

Esse resultado, se for mantido nesse patamar, obviamente, transformará Moro numa alternativa de poder em 2022. Uma contradição política como essa, quando aflora, pode ser antagônica ou não. Tudo vai depender do nível de entendimento entre Bolsonaro e Moro daqui para frente. Se se tornar antagônica, Moro terá de sair do governo. A pesquisa reflete uma realidade na qual Bolsonaro está sofrendo os desgastes da desaprovação de seu governo, ao contrário do seu ministro da Justiça.

Moro empunha sozinho a bandeira da ética, por causa do caso Queiroz, e divide com Bolsonaro a bandeira da ordem. Uma parte da oposição, ao se alinhar com o ministro da Justiça, acaba projetando sua liderança ainda mais. O ex-juiz federal de Curitiba não é nem corre o risco de virar um ídolo com pés de barro, como Lula e Bolsonaro, respectivamente. Ainda encarna o mito do herói por sua atuação na Operação Lava-Jato. O herói é sempre aquele que entra em ação quando os outros estão paralisados. Realiza aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que todos os demais deixaram de fazer.

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O Globo: 'Governo promove combate aos Direitos Humanos', diz José Carlos Dias

No Dia Internacional dos Direitos Humanos, ex-ministro da Justiça avalia que situação no Brasil é a pior desde a redemocratização

Paula Ferreira, de O Globo

BRASÍLIA - Criada em fevereiro deste ano, a Comissão Arns tem sido uma das principais organizações à frente da defesa dos direitos humanos no Brasil. Em entrevista ao GLOBO, o presidente do grupo e ex-ministro da Justiça, José Carlos Dias, afirma que o governo Bolsonaro promove um "combate aos direitos humanos". Aos 80 anos, ele diz que desde a redemocratização nenhum outro presidente adotou postura tão sistemática contra a área como Bolsonaro. A entidade, inclusive, já o denunciou ao Tribunal Penal Internacional por incitação a genocídio indígena .

Para Dias, o descaso com os direitos humanos também acontece a nível estadual e outros poderes da República não têm sido eficientes na garantia e defesa desses direitos fundamentais. Segundo ele, as violações acontecem em vários âmbitos e vão desde a tortura à censura e ao desrespeito à imprensa. Dias argumenta que os defensores dos direitos humanos precisam ocupar espaço também nas redes sociais para reduzir o impacto dos discursos de ódio propagados, sobretudo, por meio de notícias falsas.

O ex-ministro, que tem mandato na comissão até 2021, condenou a apologia a atos autoritários, como as declarações de pessoas ligadas ao governo sobre o AI-5, e defendeu que o governo desenvolva políticas eficazes, principalmente na área social, garantindo o direito à aprendizagem e ao saneamento básico.

Ao longo de 2019, a Comissão emitiu 11 notas públicas a respeito de violações de direitos humanos no país e em defesa de instituições. Nesse período, o grupo atuou em pelo menos 24 casos em defesa dos direitos humanos, entre eles, a execução de 15 pessoas no morro do Fallet, no Rio de Janeiro; contra mudanças previstas no pacote anticrime do ministro Sergio Moro ; e contra o contingenciamento promovido pelo governo nas universidades públicas. Além de pelo menos sete representações e denúncias, uma delas contra o decreto de extinção do Mecanismo Combate e Prevenção à Tortura. As ações integram uma minuta que servirá como base para o relatório que será lançado em fevereiro de 2020, com o balanço dos trabalhos da Comissão.

Qual é a sua avaliação sobre o atual cenário de direitos humanos no Brasil?
Foi um ano muito difícil para o Brasil, muito penoso pelas violências praticadas em várias áreas. O discurso de ódio foi dirigido pelo presidente da República, estabelecendo em vários ministérios focos de preconceitos e de ataques infundados contra bandeiras de direitos humanos. Em termos de violações de direitos humanos, no caso ambiental, por exemplo, é uma barbaridade; o campo da cultura; da manifestação de pensamento através da imprensa; tudo isso foi atingido pela ação do governo.

O que levou a comissão a fazer representação contra o presidente no Tribunal Internacional?
Entendemos que internamente não teríamos como levar a julgamento a pessoa do Jair Bolsonaro, ao passo que o Tribunal Penal Internacional é uma corte que se destina justamente a julgamento de pessoas que praticam atos de violações aos direitos humanos. Encontramos esse caminho importante, porque afinal de contas a política anti-indigenista do governo está determinada a dizimar as populações indígenas, então entramos com a ação contra isso especificamente. Isso não é rápido, é demorado, mas eles vão ouvir pessoas, testemunhas, a procuradora pode vir ao Brasil e tomar as providências convenientes para apurar as denúncias feitas por nós.

Há um discurso institucional antidireitos humanos?
Há uma política de combate aos direitos humanos. Tivemos isso no período da ditadura, mas durante o período democrático nenhum dos presidentes adotou uma política tão sistemática de combate aos direitos humanos como o governo Bolsonaro. Eu gostaria de ter esperanças, mas não estou achando fácil cultivá-la.

As instituições brasileiras estão operando satisfatoriamente para coibir as violações aos direitos humanos?
Aquém do necessário. O governo impede o desenvolvimento de instituições fundamentais, por exemplo, demitindo membros de conselhos, atuando de forma absurda em presídios. A censura e o trabalho desenvolvido contra a imprensa livre é algo que nos dá muito medo de que o Brasil descambe para o regime autoritário de forma declarada.

Os outros poderes estão cumprindo seu papel?
Nenhum dos poderes está muito bem. O Poder Legislativo está até surpreendendo em certas coisas, a Reforma da Previdência não saiu como a gente desejava, mas saiu. Tem algumas posições em termos de defesa dos direitos humanos, como o pacote do Moro, que não foi aceito integralmente como o ministro queria. O Supremo Tribunal Federal está dividido, há momentos em que assume uma postura corajosa e há momentos em que recua e se torna absolutamente permissivo com discurso de ódio do governo federal.

Recentemente, pessoas ligadas ao governo fizeram afirmações sobre a instituição de um “novo AI-5”. Qual é a sua opinião?
O AI-5 foi o momento mais doloroso da História do Brasil. Dentro da ditadura, foi o golpe dentro do golpe. Em nenhum momento, durante toda a ditadura Vargas e de 1964 nunca houve um momento tão duro e horroroso como AI-5, que provocou mortes, desaparecimento de pessoas. Lembrar do AI-5 neste momento é algo que arrepia. Eu como advogado e defensor de perseguidos políticos sei o que o AI-5 significou em termos de incentivo à tortura, à morte e a violências contra direitos individuais.

Há alguns anos era impensável a defesa aberta da ditadura militar. O que levou a essa radicalização?
É difícil, não saberia dizer. Fico muito impressionado quando vejo como as redes sociais têm sido utilizadas para difundir o discurso de ódio, isso me preocupa muito. Antes, os debates eram feitos de forma absolutamente aberta em televisão, rádio, jornais, comícios, e assim o povo ia formando sua opinião para que pudesse votar. Agora isso é destilado diariamente por meio de fake news e de outras maneiras de incentivar o discurso de ódio. É importante que esse debate aconteça em todos os campos e que nas redes sociais também seja transmitido o discurso em defesa dos direitos humanos, por esse motivo criamos a Comissão Arns. Temos que utilizar todas as formas de comunicação para difundir ideia dos direitos humanos.

Quais os planos da comissão para o próximo ano? Há alguma área específica em que pretendem focar?
Temos que enfrentar o cotidiano, e o cotidiano não somos nós que criamos, temos que pregar a coerência com os ideais democráticos, a defesa dos direitos humanos. Os fatos estão acontecendo, veja o caso de Paraisópolis ( onde nove pessoas foram mortas em ação policial, no início deste mês ), temos que estar presentes e reagir. No Pará, o desastre ambiental, o ataque aos índios. Isso vai exigindo de nós um combate sistêmico em todas as frentes em que houve violações aos direitos humanos de forma forte e violenta.

O senhor mencionou o caso de Paraisópolis, que foi fruto de uma ação da Polícia Militar, que está sob o jugo do estado. A postura relapsa em relação aos direitos humanos existe a nível estadual?
Acho que sim, principalmente no Rio de Janeiro. O Estado do Rio é onde existe mais violência contra os direitos humanos. Em São Paulo também há, mas em São Paulo não é tão grave, porque de qualquer forma o governador ( João Doria ) recuou de seu discurso inicial sobre Paraisópolis. Temos que pressionar. Tive uma longa audiência com o secretário de Justiça de São Paulo, e pedi que conversasse com o governador sobre a violência que aconteceu em Paraisópolis. No Rio, estivemos com o Procurador Geral de Justiça e com o Defensor Geral, com o governador ( Wilson Witzel ) não, mas é possível que a gente peça uma audiência com ele. A política de segurança do Rio é terrível, violentíssima. A ordem é abater criminosos.

No Rio também há o caso Marielle, que está sem solução. O que isso representa em termos de direitos humanos?
É um absurdo que até agora não se tenha solucionado. Esperamos que se encontre o caminho da descoberta de tudo o que rodeia a morte da Marielle. Não tenho dados específicos, mas está havendo muita lerdeza na apuração dos fatos. A punição ao Estado brasileiro pela falta de solução desse crime é um caso a ser pensado.

Como avalia a atuação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos?
Não vejo absolutamente nenhuma preocupação de a pasta ser protagonista da nossa luta pelos direitos humanos, ao contrário. Acho que a palavra direitos humanos está sendo mal usada. A política do governo está péssima.

Há algo de positivo na atuação do ministério?
Eu não vejo.


Valor: Economia fraca se deve em parte a insegurança gerada por Bolsonaro, diz Maia

Presidente da Câmara disse ainda que entregará texto da reforma administrativa ‘independente da proposta do governo’

Por Gabriel Vasconcelos , do Valor Econômico

RIO - O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou ter convicção de que o fraco desempenho da economia brasileira neste ano se deve, em parte, à insegurança gerada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Maia criticou o governo mais de uma vez durante gravação do podcast "Ao ponto”, do Jornal O Globo, hoje no Rio de Janeiro.

"Tenho convicção que o crescimento [da economia] projetado no final do ano passado, de 2,5%, caiu para 1% muito em função dessa insegurança que o governo gerou nos primeiros seis, sete ou oito meses de governo", disse Maia.

Segundo o deputado, parte da equipe do governo, inclusive da área econômica, "mistura liberdade com libertinagem" e "trabalha sempre com a tese de tirar o Estado completamente da vida das pessoas".

"A gente sabe que não é isso. O que a sociedade quer é outro Estado, um Estado regulador que fiscalize e garanta serviços de qualidade, mas aí se mistura isso com uma certa libertinagem."

Ele citou o projeto da liberdade econômica enviado pelo governo ao Congresso. "Se fosse aprovar tudo que eles queriam, não ia ter mais fiscalização para nada no Brasil. Nesse extremo também não dá", disse.

A caminho da planície, Maia reforça pregação reformista
Questionado sobre os atritos entre os membros do PSL, antigo partido de Bolsonaro, Maia disse se tratar de uma briga por poder. "É uma briga pelo tempo de TV e pelo fundo partidário. Uma briga que acontece em todos os partidos, mas, como eles são o partido das redes sociais, é uma briga explícita, bem explícita mesmo. Todo mundo nu e se matando."

Sem citar nomes, ele disse que novos eleitos chegam a Brasília com uma expectativa da política sempre muito negativa e equivocada. "A pessoa vai para lá, acha que ninguém trabalha, que ninguém tem preparo, que você passa três dias lá à toa e depois vem pra cá na quinta-feira e fica na praia. Quando chegam lá, veem que não é isso. [A política] é a representação da sociedade. Tem gente boa, gente ruim, mas um ambiente de muito trabalho", afirmou.

Para o deputado, as propostas polêmicas do governo atendem nichos de opiniões mais radicais. Esses nichos foram a base da vitória de Bolsonaro nas eleições. Assim, na prática, o presidente "defende o que ele representa da forma que ele acha correta". Essa forma, disse, é "trabalhar com o micro", respondendo de forma objetiva ao anseio de determinados setores.

Nesse sentido, ele citou caminhoneiros, trabalhadores rurais, motociclistas e garimpeiros como os alvos de ação do presidente, ao responder esses anseios. “Quando a gente vai falar de caminhoneiro, vai dizer que o caminhoneiro precisa de infraestrutura, de um marco [regulatório] de trabalho correto e que a economia cresça para contratar frete. O presidente Bolsonaro pensa diferente. O 'tratar o caminhoneiro' dele é reduzir o preço do óleo diesel e aumentar a pontuação da carteira de motorista. Ele vai nos pontos objetivos e a gente fica no abstrato. E é por isso que ele mantém popularidade junto a um terço da população."

De forma análoga, Maia disse que a solução de Bolsonaro para os agricultores passa por armá-los para evitar invasões e, para motociclistas, acabar com o seguro DPVAT. "Se acaba o DPVAT e não coloca nada no lugar, quem é que vai pagar por acidentes contra terceiros, que acontecem todo dia? Mas o cara que tem a moto olha e acha que é bom. Esse formato dele trabalhar em termos micro dá resultado. Não sei se a médio e longo prazo, mas no curto prazo, dá resultado", analisou.

Reforma administrativa
O presidente da Câmara afirmou ainda ao participar das gravações do podcast que vai entregar uma proposta de reforma administrativa independente da proposta do governo - e disse esperar "tramitação fácil" da reforma tributária em 2020.

"Independente da proposta do governo, a gente vai ter a nossa, para enxugar isso [carreiras do funcionalismo], construir novas carreiras com o salário inicial mais baixo para chegar ao teto ao longo de 20 ou 25 anos. Porque não dá mais para isso acontecer da noite para o dia como é hoje nos três poderes".

Segundo Maia, uma consultoria contratada, a Falcone, entregará, na semana que vem, relatório com a análise das carreiras do poder Legislativo.

Maia disse que só não entregou a proposta ainda porque está discutindo a legalidade de legislar sobre a estrutura do Executivo e Judiciário. "Tenho conversado com a ministra Cármen Lúcia [do Supremo Tribunal Federal] porque tem uma dúvida constitucional, no caso de tratar da carreira de outro poder, se posso usar uma emenda constitucional de parlamentar. Uma parte dos ministros diz que não posso e a outra [parte], até por casos já julgados, diz que posso. Independente do governo eu acho que a gente pode avançar nesse tema", disse.

Ele ponderou, no entanto, que o melhor seria harmonizar a reforma entre os três poderes, que apoiariam as mudanças conjuntamente. Nesse sentido, convocou o governo a encaminhar seu pacote e o Judiciário a "vir junto".

"A reforma administrativa reduz a desigualdade porque, hoje, os recursos estão concentrados na atividade meio e não há recursos para investimento. Em 1993, o Brasil tinha uma capacidade de investimento de 30% do orçamento. Nossa capacidade de investir hoje é de 2% [do orçamento], mas, na verdade, é negativa porque você tem déficit", afirmou.

Na visão do deputado, fala-se muito na possibilidade de protestos de rua, como os que têm acontecido no Chile. Para ele, o meio de evitar que o Brasil caminhe para isso é, justamente, reorganizando o orçamento para reduzir desigualdades. Para tanto, disse, um primeiro passo já foi dado com a reforma da Previdência - e seguirá, agora, com a reforma administrativa. "Na Câmara existem 4 mil funções, até para colocar o broche tem uma pessoa", reclamou.

Ao falar sobre reformas, o deputado afirmou ainda que a tributária tem um "apelo muito forte" dentro da Câmara como uma proposta da Casa. "A origem é nossa, o trabalho foi feito junto com os quadros técnicos na área tributária e acho que ela vai caminhar com muita facilidade. Esse é o meu sentimento", disse.


Rubens Barbosa: O Mercosul em questão

O bom senso e o pragmatismo devem prevalecer e, assim, o bloco sair fortalecido

A discussão sobre o futuro do Mercosul tornou-se urgente. Não se trata de um debate no vácuo ou teórico. Há uma situação real que tem de ser examinada à luz dos interesses concretos do governo e do setor privado.

Essa discussão tem necessariamente de levar em conta as recentes mudanças políticas e econômicas resultantes das últimas eleições no Brasil, com tendência liberal na economia, e a vitória do centro-esquerda na Argentina. O fim do isolamento do Mercosul, com a conclusão das negociações com a União Europeia (UE) e a Efta, mais as consequências de eventual redução da Tarifa Externa Comum (TEC), da ampliação da rede de acordos comerciais (incluído um improvável acordo com os EUA) e da repercussão da crise ambiental na Amazônia sobre a ratificação do acordo com UE e Efta, não podem ser descartados. Devem-se também ter presente as transformações globais que apontam para uma mudança do eixo econômico para a Ásia e a guerra comercial entre os EUA e a China.

Nas últimas reuniões presidenciais do Mercosul, na Argentina, e na semana passada no Brasil, os governos tomaram a decisão de adotar medidas para fazer do Mercosul novamente um instrumento de abertura comercial, conforme previsto no Tratado de Assunção. As principais decisões tomadas pelos presidentes reforçaram o bloco e enfocaram as regras econômicas, o enxugamento das instituições e a facilitação do comércio. O Brasil apresentou estudo para permitir uma rebaixa da TEC média (hoje de 14%) para níveis que sejam similares à média global, o que, sem acordo, ficou de ser retomado no próximo ano com o novo governo de Buenos Aires.

A política econômica e comercial do novo governo argentino – antes mesmo de ser conhecida – passou a ser uma preocupação do governo brasileiro pela possibilidade de que medidas protecionistas de nossos hermanos sejam contrárias às medidas de abertura da economia e de ampliação da negociação externa do Mercosul.

Sem entrar no exame das consequências comerciais para o Brasil, a simples cogitação de mudanças profundas no funcionamento do Mercosul pareceriam desconhecer as regras incluídas no Tratado de Assunção, que criou o bloco regional, e em outros atos relevantes. Modificações substantivas do seu funcionamento não entram em vigor imediatamente, nem podem ser tomadas unilateralmente por nenhum membro do bloco, sob pena de representar o descumprimento do Tratado de Assunção. Em termos concretos, essas modificações terão de ser aprovadas por todos os países-membros, depois de ratificada a modificação do tratado. A redução da TEC, se não aprovada por todos os países-membros, e a entrada em vigor do acordo com a UE, na medida em que os Congressos do Mercosul o ratificarem, poderão levantar dúvidas sobre a necessidade de alterar o tratado para serem implementadas.

Torna-se, assim, difícil analisar o futuro do Mercosul levando em conta tantas e tão importantes variáveis políticas e econômico-comerciais. A vontade política que permitiu a criação e a evolução do subgrupo regional até aqui deve prevalecer. É pouco provável – apesar da retórica em Brasília e Buenos Aires – que o processo de integração seja substancialmente alterado na direção contrária ao real interesse nacional, tanto do ponto de vista econômico-comercial, quanto de política externa.

O determinismo geográfico da vizinhança é um fator que o governo brasileiro terá de levar em conta, acima das considerações ideológicas. Brasil e Argentina já passaram por crises sérias, superadas por pragmatismo e interesses concretos. No momento não existe uma crise com a Argentina. Há diferenças ideológicas e provocações de ambos os lados, que não podem contaminar o relacionamento civilizado entre os dois países. A paciência estratégica pode ser o caminho. Os empresários daqui e de lá estão preocupados com a escalada ideológica de lado a lado. A Fiesp emitiu nota em defesa do fortalecimento do Mercosul, ressaltando que os problemas de funcionamento do bloco devem ser superados de maneira consensual entre todos os países-membros. A Argentina é o principal mercado brasileiro para produtos manufaturados e, portanto, o impacto sobre o setor industrial não pode ser ignorado, em especial o automobilístico e o de linha branca.

Os países-membros do Mercosul deveriam é estar preocupados com o day after da entrada em vigor do acordo Mercosul-União Europeia, até fins de 2021. Sem reformas estruturais, como a trabalhista, a tributária, a do papel do Estado, e o implemento das medidas de facilitação e desburocratização com o objetivo de reduzir o custo Brasil (que representa 22% do PIB) para melhorar a competitividade, a simples redução das tarifas no mercado europeu não poderá ser aproveitada pelas empresas nacionais. Sem avanços relevantes na inovação e na tecnologia, o setor industrial não terá como competir com empresas chinesas, sul-coreanas e norte-americanas no mercado europeu. Sem o fortalecimento institucional do Mercosul será mais difícil enfrentar os desafios que o acordo colocará para o Brasil e os demais membros do subgrupo.

Depois de conhecidas a política econômica e a linha de atuação do governo de Alberto Fernández, caberia uma atitude de moderação e de consultas bilaterais em nível técnico. A diplomacia parlamentar, recém-inaugurada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também poderia ajudar. Ao Brasil interessa uma Argentina que volte a crescer, estável política e economicamente. Parece improvável que Brasília possa adotar uma posição ideológica radical em relação ao Mercosul sem um amplo debate com a sociedade e dentro do Congresso Nacional.

Como das vezes em que tensões entre os dois países foram superadas, o bom senso e o pragmatismo deveriam prevalecer e, assim, o Mercosul sair fortalecido. Ideologias não devem afetar o interesse nacional. Em primeiro lugar deveria estar o Brasil.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)


José Casado: O ‘Zé com Zé’ de Bolsonaro com os liberais

Sua principal decisão sobre privatizações foi... criar uma nova estatal

Jair Bolsonaro precisa se explicar aos 57,7 milhões de eleitores aos quais prometeu um governo liberal na economia, com a venda de estatais.

Candidato, atravessou 2018 repetindo: “Vamos privatizar logo aquelas quase 50 criadas pelo PT, e ainda sobram 100.”

Presidente, viu passar na janela do palácio 340 dias. Sua principal decisão sobre privatizações foi... criar uma nova estatal.

É de Bolsonaro a 638ª empresa da União, a NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea S.A. É um novo gigante do setor público à beira-mar, com sede no Rio e duas mil pessoas a bordo da folha salarial.

A certidão de nascimento da NAV Brasil foi estampada dias atrás no Diário Oficial. Curiosamente, sem a assinatura do ministro da Economia.

É caso raro, talvez único, de criação de empresa controlada pela União sem aval do responsável pelo caixa do governo — no caso, Paulo Guedes, esteio da fração liberal no condomínio de poder presidido por Bolsonaro.

A NAV surge numa constelação federal composta por 46 estatais sob controle direto, 159 subsidiárias, 233 coligadas e 199 com participação acionária da União.

Elas fazem de tudo, de petróleo a brincos eletrônicos (chips) para bois, porcos e ovelhas. Algumas levam década e meia desenhando coisas no papel, como o trem-bala Rio-São Paulo.

Em setembro abrigavam 481,8 mil empregados. Esse é um ambiente essencialmente masculino: apenas 36% são mulheres, com acesso restrito a 21% dos postos de comando.

De cada dez sob controle direto do Estado, quatro sobrevivem somente com repasses do Tesouro. Custam R$ 54,7 milhões por dia, ou R$ 19,9 bilhões neste ano.

Isso equivale a 71% da dinheirama que a Petrobras efetivamente vai desembolsar, no próximo dia 27, em pagamento pelas áreas no pré-sal leiloadas no mês passado.

Governo vendeu, uma estatal comprou. No mercado financeiro esse tipo de negócio tem nome: “Zé com Zé”.


Sergio Lamucci: Os efeitos de um crescimento mais forte

PIB mais forte pode deixar erros do governo em segundo plano

A recuperação da economia brasileira enfim ganha fôlego, com vários analistas apostando num crescimento acima de 2% em 2020 - Bradesco e Credit Suisse, por exemplo, projetam expansão de 2,5% no ano que vem. O grande destaque pelo lado da demanda deverá ser o consumo das famílias, mas também há sinais de um desempenho melhor do investimento, ainda que não se espere um resultado exuberante. São boas notícias para um país com 12,4 milhões de desempregados, que viu o Produto Interno Bruto (PIB) afundar 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016 e depois avançar a uma taxa pouco superior a 1% por três anos seguidos. A expansão do crédito, a queda forte dos juros e a redução das incertezas sobre a sustentabilidade das contas públicas, com a aprovação da reforma da Previdência, formam um quadro mais favorável para a aceleração da atividade.

Essa perspectiva de melhora é sem dúvida bem-vinda, mas não deveria ofuscar os problemas na orientação do governo Jair Bolsonaro em áreas como educação, ambiente e relações exteriores -e por vezes na própria economia. A falta de rumo na educação, por exemplo, é um obstáculo para o país conseguir melhorar a qualidade do capital humano e, com isso, a produtividade. Em vez de definir diretrizes claras para dar prioridade à educação básica, o ministro Abraham Weintraub perde tempo em polêmicas estéreis.

Já o descaso com o ambiente, evidenciado na expansão do desmatamento e nas declarações de Bolsonaro e do ministro Ricardo Salles, pode afugentar investimentos de empresas e fundos estrangeiros, além de dificultar a aprovação de acordos comerciais.
Marcada pelo alinhamento incondicional aos EUA, a política externa, por sua vez, não tem dado resultados, como ficou evidente mais uma vez no anúncio feito pelo presidente Donald Trump na semana passada, de que vai retomar a sobretaxa sobre o aço e o alumínio brasileiros. A estratégia de confronto com o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, tampouco é útil aos interesses brasileiros, uma vez que o país vizinho é um grande comprador de produtos manufaturados.

Além de serem preocupantes em si mesmas, as políticas para essas áreas cruciais podem comprometer o próprio crescimento do país, ainda que não imediatamente. Num ambiente de recuperação mais forte da economia, contudo, esses e outros problemas do governo podem passar a incomodar menos. “São temas que mexem com setores importantes e organizados. Sempre haverá uma reação”, avalia Ricardo Ribeiro, analista político da MCM Consultores Associados. “Para o pessoal dos negócios”, porém, os erros e deslizes tendem a ser “tolerados se a economia andar. Para o grosso da população, também”, diz ele.

Se a economia engrenar e finalmente superar para valer o patamar de 1% de crescimento registrado nos últimos três anos, as bizarrices, as excentricidades e os arroubos autoritários - alguns apenas retóricos, outros efetivos - do governo Bolsonaro tendem a ficar em segundo plano”, avalia Ribeiro, em nota.

“É certo que algo em torno de 2,5% de crescimento, patamar para o qual convergem as expectativas para 2020, pode não ser suficiente para melhorar de maneira acentuada a sensação de bem-estar do conjunto da população”, observa Ribeiro. “O desemprego continuará elevado e os novos empregos podem ser precários e de baixa remuneração. Entretanto, quanto maior o crescimento, maior tende a ser a boa vontade da população em relação ao governo.”

Para Ribeiro, fatores como “o pouco caso do governo com o meio ambiente, a declaração do ministro da Educação a respeito da alegada existência de extensas plantações de maconha em universidades federais, os ataques de Bolsonaro a determinados empresas da mídia e a proteção a outras, as menções levianas ao AI-5 feitas por gente de dentro ou próxima ao governo, entre outras atitudes polêmicas, ofendem setores importantes da sociedade. Mas, para a maioria da população, tendem a ser toleradas ou esquecidas se a economia enfim passar a crescer em ritmo mais acentuado”.

Há obviamente incertezas em relação ao crescimento no ano que vem, mas o cenário econômico sugere que uma expansão superior a 2% em 2020 não parece excesso de otimismo. O resultado do PIB do terceiro trimestre, com alta de 0,6% sobre o trimestre anterior, mostrou uma economia crescendo a um ritmo um pouco superior ao que a maior parte dos economistas esperava. No quarto trimestre, há sinais que apontam para uma atividade mais forte, um período em que haverá o efeito mais significativo da liberação dos recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). A indústria teve um bom desempenho em outubro e tudo indica que o varejo teve um bom mês de vendas em novembro, com as promoções da Black Friday. Além disso, houve redução da incerteza e aumento da confiança empresarial no mês passado, segundo a Fundação Getulio Vargas.

Por fim, a criação de empregos formais nos últimos meses aponta um ritmo um pouco mais firme, de acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).

Com a perspectiva de redução adicional dos juros básicos, de 5% para 4,5% ao ano ou até menos, e a avaliação dominante de que a Selic ficará baixa por um período considerável, a atividade ganhará um relevante impulso monetário. É verdade que há fontes de incerteza, como o ambiente externo, caracterizado pela desaceleração da economia global, num quadro de guerra comercial entre EUA e China. Outro foco de indefinição pode vir do próprio governo, se houver problemas para fazer avançar a agenda de reformas no Congresso.

Segundo o economista-chefe do Credit Suisse, Leonardo Fonseca, basta a economia manter o ritmo de alta de 0,5% a 0,6% - registrado no segundo e no terceiro trimestre deste ano em relação ao anterior - que o PIB crescerá 2,5% em 2020. Se concretizado, esse quadro ajudará a dar mais gás à recuperação em curso do mercado de trabalho.

Para Ribeiro, “o impacto de boas notícias na economia sobre o estado de espírito dos agentes econômicos tende a ser maior neste momento, após anos de recessão e crescimento pífio”. Nesse cenário, pode haver maior tolerância em relação a políticas problemáticas do governo em áreas como educação, ambiente e relações exteriores, o que seria algo preocupante.


El País: 'Todo dia a esquerda cancela alguém, mas não vemos propostas. Virou radicalismo de Twitter', diz Rosana Pinheiro-Machado

Antropóloga lança o livro ‘Amanhã vai ser maior’, no qual apresenta visão esperançosa sobre as gerações mais jovens e as novas agendas do ativismo no Brasil e no mundo

Por Felipe Betim, do El País

Ao longo de vários anos de pesquisa de campo, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado esteve em contato com trabalhadores informais da base da pirâmide brasileira, ouvindo suas demandas e anseios. Ela também vem pesquisando de perto as manifestações e movimentos que explodiram a partir de junho de 2013, passando pela nova geração de feministas, os encontros de jovens da periferia em shoppings que ficaram conhecidos como rolezinhos, as ocupações nas escolas pelos secundaristas, a greve dos caminhoneiros... Professora da Universidade de Bath (Reino Unido) e colunista do site The Interceptela transformou o que acumulou em anos de pesquisa em seu novo livro, Amanhã vai ser maior: O que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual (Editora Planeta).

Na obra, a pesquisadora analisa, a partir de um ponto de vista progressista, como um Brasil que não se sentia mais representado pela classe política e ocupou massivamente as ruas em junho de 2013, pedindo por mais direitos e menos corrupção, chegou em 2019 tendo o ultradireitista Jair Bolsonaro como presidente da República. Apesar de considerar o cenário atual desolador, acredita que aqueles protestos representaram o marco de uma “revolução” na estrutura social do país, com “uma indignação e uma vontade por politização e processo democrático imenso”. É por causa dessa nova geração e dos movimentos que ganharam força com ela, como o feminista, o LGBT e o negro, que é possível ter esperança.Em entrevista ao EL PAÍS, ela ainda faz um alerta ao campo progressista: é preciso deixar de lado certa postura rancorosa, revanchista e vingativa que gerou uma cultura do cancelamento nas redes sociais. O futuro, diz ela, ainda está em disputa. Isso passa por voltar às periferias, incorporar novas demandas e novos atores aos quadros dos partidos, apostar por novas propostas e sair em busca dos eleitores que optaram pela extrema direita. Um trabalho que deve ser online (nas redes) e offline (nas ruas).
Pergunta. Por que amanhã vai ser maior?
Resposta. Não só o Brasil, mas o mundo todo, tem ido constantemente às ruas no século XXI. Com características muito diferenciadas, respondendo a demandas nacionais fundamentalmente, mas colocando as pessoas nas ruas de forma que os movimentos tradicionais não compreendem. Então, por um lado, [vai ser maior] por causa deste Brasil que é insurgente e politizado desde junho de 2013 e com o advento das novas tecnologias. Por outro lado, há esperança por conta da luta de vários movimentos que surgiram após junho de 2013. São movimentos que já existiam, como o feminista e o negro, mas vemos a formação de uma nova geração extremamente politizada. Não víamos antigamente nas periferias, e em vários lugares do país, uma geração de meninas feministas. É algo completamente inédito na sociedade brasileira. Essa juventude está sendo disputada à esquerda e à direita.
P. Como enxerga essa nova geração? Que outras diferenças enxerga entre esses novos movimentos e os antigos?
R. Vejo como um processo. Essa explosão no Brasil eu chamo de revolução, mas no sentido antropológico, de uma quebra de estrutura social, não no sentido da teoria política. Junho de 2013 não proporcionou isso, mas é um marco, fruto de processos democráticos e lutas históricas que foram ocupando o poder, se institucionalizando, criando espaços nas escolas e as cotas, reformando currículo... É todo um Brasil que se preparou para isso. A maturidade da Internet nos anos 2010 também proporciona o surgimento dessa subjetividade insurgente. E, para mim, a grande diferença é que esta geração é muito mais autonomista, muito mais democrática, com muitos coletivos. Você vai numa escola e vê 10 grupos feministas, não apenas um DCE centralizador. É uma geração que se expressa de maneira muito mais horizontal. Não é perfeito, a gente sabe de todos os conflitos e contradições que existem, mas há uma lógica muito mais democrática e horizontal. E também pouco partidária. De alguma maneira esta geração inclusive rejeita os partidos.
P. Como conciliar esse novo Brasil com o aquele de centrais sindicais e partidos fechados?
R. Esse é o grande conflito. Você tem a CUT, mas muitas vezes essa nova geração não quer ir a um protesto com a bandeira da CUT ou mesmo do PT. E há uma esquerda que não consegue ver os frutos e sementes de Marielle Franco. É uma esquerda institucionalizada, que sofreu um golpe, é verdade, mas que não consegue abarcar essas novas lideranças e novos movimentos. Vai para a rua com caminhão de som, mas estamos falando de uma geração totalmente contrária ao caminhão de som.
P. Quais são as implicações políticas?
R. O PSOL se abre um pouco mais para isso, mas quem são os novos quadros do PT? Muito difícil você reivindicar novas juventudes no partido. A gente precisa de um quadro de renovação no próprio PT, ele ainda é o maior partido do Brasil. Há uma carência de novas figuras. É preciso ampliar, renovar mesmo. E há uma insegurança da esquerda com essa geração que ocupa as ruas. Não raro a esquerda culpa junho de 2013 por tudo que aconteceu, já que não controla essas pessoas, não é algo centralizado. É muito mais fácil acusar de golpista e não fazer mais nada do que trabalhar politicamente. Precisa negociar, disputar essas multidões, e não culpá-las. A esquerda até quer a multidão, desde que seja controlada por bandeiras. Se não for, ela se torna um risco. Isso é o oposto de um processo de politização e da camaradagem, o que significa trabalhar dentro de uma lógica universal, de amor.
P. Mas esse é um problema exclusivo da esquerda, ou também do centro e centro-direita mais tradicionais e que implodiram ainda mais nas últimas eleições? A classe política e os partidos como um todo operam na mesma lógica, com pouca transparência e dando pouco acesso a dinheiro e cargos de poder para os novatos...
R. É um problema da classe política de modo geral. Mas, ao mesmo tempo, vemos o MBL [Movimento Brasil Livre], que cresceu absurdamente com um discurso juvenil, com uma estética jovem, subversiva... Mas essa crise institucional partidária ficou escancarada em 2013. Já não havia engajamento partidário há muito tempo. A crise é profunda, há uma indignação e uma vontade por politização e processo democrático imenso. Tenho diferenças ideológicas com correntes como o Renova ou MBL, mas acho extremamente positivo que esses diferentes grupos transversais se apropriem da política. O Muitas e a Bancada Ativista estão conseguindo inovar dentro de uma lógica partidária. São movimentos que mostram o esgotamento generalizado do modelo partidário, mas que conseguem incorporar essas novas demandas, apesar das contradições. A população não se vê naquele modelo, então você tenta fazer algo mais transversal e entra na lógica partidária. Como isso funciona na prática é difícil, como vem sendo esse conflito entre a Tabata do Amaral [do Acredito] com o PDT.
P. A socióloga Angela Alonso, pesquisadora do CEBRAP e professora da USP, vem estudando as manifestações desde 2013. Ela rebate a ideia de que sejam espontâneas e mostra como grupos que já vinham se formando anos antes alavancaram esses atos. Afinal, qual é o papel da Internet para que essas manifestações ocorram?
R. Tenho até dificuldade de compreender essa ideia de manifestação espontânea. Eu também não concordo. A Internet ajuda no contágio, na explosão, mas sempre tem alguém por trás. Os grupos de direita estão organizados desde os anos 2000 e começam a ver oportunidade e a se apropriar de slogans como “vem pra rua”, “hospital padrão Fifa”... A greve dos caminhoneiros foi muito mais um pavio que se acendeu e explodiu, com um papel do WhatsApp muito forte. Os rolezinhos, que começaram em 2013 e ganharam força em 2014, era uma organização de jovens via grupo de Facebook. Mas aquilo refletia um momento da Internet que não existe mais.
P. O que mudou?
R. Não tínhamos filtros bolha nas timelines. Com os algoritmos fica muito mais difícil conseguir essa mistura que tivemos em junho de 2013. A Internet mudou. Por outro lado, você pode ter coletes amarelos, greve dos caminhoneiros... Com pautas específicas e com multiplicidade de vieses ideológicos. Isso vai acontecer mais ainda. Vamos ainda ver a revolta do Uber e vai ficar todo mundo dizendo que eles são fascistas (risos).
P. Você parece enxergar essas manifestações recentes como algo positivo, mas elas também podem ser canalizadas por forças de extrema direita, como vem acontecendo.
R. Eu começo o livro falando sobre esses momentos mais paradigmáticos e que, de alguma maneira, mudaram o mundo. Houve um alerta de que as coisas não estavam boas. E a partir dali houve uma mensagem que a extrema direita acabou se apropriando. Mas depois, quando critico a esquerda, explico que a direIta está se organizando desde os anos 2000, com think tanks e organizações bilionárias por trás. Absolutamente nada é espontâneo. Quem foi atacado por blogueiros de direita como Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino ou Reinaldo de Azevedo já sabia, mesmo antes de 2013, que havia uma horda fascista pronta. O discurso antipetista foi sendo forjado.
P. Quais são as características dessa extrema direita? Ela é diferente da extrema direita de antigamente?
R. São as mesmas ideias, citam os mesmos autores fascistas para dizer que há um colapso da civilização ocidental. Há supremacistas, masculinistas, anarcocapitalistas... E brigam entre eles todos, mas querem destruir um inimigo em comum. Estão usando o YouTube e blogs há muito mais tempo e oferecem respostas com raiva e indignação. O Brasil entrando numa crise profunda, multidimensional, econômica fundamentalmente, e eles chegam para dizer “olha, o problema é que tudo foi dado para a feminista e nada para você, trabalhador”. Isso se alinha muito bem com os evangélicos e a tradição religiosa que aponta para o problema da família e da moral em colapso. Passou desapercebido desse mundo establishment que colapsou e ninguém mais sabe como voltar.
P. Todos esses movimento de extrema direita do mundo tem em comum uma pauta antifeminista e contra os avanços nos costumes muito forte. Significa então que algo de fato se moveu na sociedade? Essa não é a boa notícia?
R. A segunda metade do século XX, principalmente a partir de 1968, trouxe grandes progressos para os direitos civis, das mulheres e da população LGBT, mas essas conquistas históricas tiveram reação. Esse é sempre um processo de ação e reação. Michael Kimmel, um sociólogo de que gosto muito, escreveu sobre o “homem branco raivoso”. Ele termina a introdução dizendo que se há uma curva ascendente na história da humanidade é a conquista das mulheres, e que essa curva continua ascendente. São muitas as conquistas, mas como a gente é soterrado pela vitória da extrema direita, não conseguimos enxergar as conquistas dessa juventude e que também elegemos a maior bancada feminista, a primeira deputada indígena... E nem acho que a extrema direita seja só uma reação a isso, as duas coisas estão coincidindo e está muito em disputa ainda. O capítulo do meu livro que resume isso é “a extrema direita venceu, as feministas também”. Há esse avanço das lutas por modos de vida e é dali que vem alguma esperança de conquistas.
“A direta está se organizando desde os anos 2000, com think tanks e organizações bilionárias por trás. Absolutamente nada é espontâneo”

P. Se é uma disputa, o lado obscurantista pode acabar ganhando. Como o campo progressista deve se organizar?
R. Em primeiro lugar precisa disputar as pessoas, online e offline, e parar com a ideia de que existe uma cisão entre os dois. Você tem que voltar para a periferia para ver que a pessoa está sendo assaltada na parada de ônibus às onze da noite e que quer segurança pública, mas também precisa saber disputar as redes dentro de uma perspectiva de diálogo. Quando as insurgências e contradições vierem, e todos os trabalhadores trazem contradições, é preciso trabalhar para recrutar essas pessoas e trabalhá-las politicamente. Mesmo antes das fake news a direita já fazia isso muito bem. A gente precisa fazer material de qualidade com uma linguagem popular e aberta, que dê respostas à população. Em segundo lugar, temos que fugir do populismo. Significa que não podemos dizer que a solução para a segurança pública é dar armas para as pessoas, mas sim oferecer um projeto para a população. E hoje não enxergo para onde as esquerdas estão indo com relação a projetos. Elas ainda estão na defensiva. É horrível o que aconteceu, mas é preciso trabalhar na construção de alianças democráticas. Primeiro para derrotar o fascismo e, depois, para construir programa de emprego e trabalho no século XXI, na educação, na saúde... A esquerda britânica está aí falando, está sonhando, está sendo radical... No Brasil, a gente só vê radicalismo da esquerda na Internet, nos xingamento e na lacração. Mas em termos de propostas, o que há de radical, de revolucionário, na esquerda brasileira? Que diga para um trabalhador que há um caminho? Quem tem a coragem de ser visionário, de ousar, de ser louco, de pensar algo que ninguém pensou?

 

P. O ex-presidente Lula atrasa essa renovação e esses novos projetos?
R. Lula teve um julgamento extremamente injusto. Todo mundo tem direito fundamental a um julgamento neutro. Então o “Lula Livre” é uma questão de justiça histórica, de democracia. Ponto. Mas a gente precisa avançar para além de Lula, e também para além de sua própria figura. Sem negar o papel fundamental que ele tem, mas buscando novas lideranças.

P. Acredita então que a esquerda replica estratégias de violência nas redes que a extrema direita aplica?
R. Vejo isso entre alguns setores petistas, além de outros da esquerda. É um processo de radicalização da agressividade, da violência, do escracho, do cancelamento. É extremamente violento. Neste ponto sou totalmente freiriana. Paulo Freire dizia que corremos o risco de ter uma esquerda magoada, de corte ressentido e vingativo. E de cairmos no mesmo rancor da extrema direita. Essa luta se transformou numa luta revanchista e vingativa, em grande parte. Parece que não fazemos mais nada, que ficamos no Twitter cancelando as pessoas, apontando o dedo para quem não é puro. A gente já tem uma lógica de não recrutar “porque é fascista”. E quem está dentro, você vai cancelando até sobrar muito pouco. Isso é muito danoso, o oposto da esquerda. A esquerda é um princípio humanista e da camaradagem, o oposto do cancelamento. Há varias pessoas da esquerda e do centro que estão com muito medo de se manifestar na Internet. E ninguém acha que está linchando, todo mundo diz que só está “criticando”. Mas é um comportamento de manada, alguém faz um comentário, o outro vai lá responder e em pouco tempo uma nuvem já trucidou a pessoa. Todo dia vemos um cancelamento diferente, mas não vemos programa. Virou radicalismo de Twitter, não de proposta.

“Em termos de propostas, o que há de radical, de revolucionário, na esquerda brasileira? Que diga para um trabalhador que há um caminho?”

P. Existe o risco de crescimento da esquerda autoritária?
R. É um movimento crescente, porque provavelmente ela tenta acreditar que quem derrotou o fascismo foi uma esquerda stalinista. Além de reeditar todos os métodos violentos, isso tem um efeito muito perigoso nos jovens. Sou especialista em China e vejo que há um revisionismo da história chinesa, com influencers neo-maoístas dizendo que não há presos políticos na China. E se alguém fala sobre autoritarismo do Estado chinês, pedem provas de que existem presos políticos, mesmo com todas as evidências científicas e jornalísticas indicando que a ditadura chinesa prende. É terraplanismo, mesmo. Todas essas correntes autoritárias estão crescendo absurdamente nos movimentos estudantis, entre jovens que sequer sabem direito quem foi Mao ou Stalin. Então essa geração com a qual estou muito animada pode ser levada para esse caminho autoritário.

P. Os radicais da Internet representam a maioria ou há demanda por mais moderação no discurso?
R. Assim como vejo essa esquerda do cancelamento, que cresce muito e que tem força, vejo um público cada vez maior sedento e desesperado por pessoas que sejam abertas ao diálogo. Elas não têm referências ainda, mas estão buscando a nuance e a contradição do processo. E estão completamente órfãs. Então precisamos de uma esquerda que ocupe os canais de comunicação e que consiga um projeto de falar para a população, com todas as suas contradições. Significa falar com o caminhoneiro que quer intervenção militar e ao mesmo tempo queria Lula. Estou convencida de que há uma demanda por essas figuras. As pessoas estão sofrendo com essa radicalização, que não leva a nada, não é programática e não melhora a vida de ninguém.

P. Em entrevista ao EL PAÍS, o sociólogo de Pedro Ferreira de Souza, que estuda a desigualdade social, afirmou que o trabalhador industrial do ABC paulista está mais perto do topo da pirâmide, enquanto que a maioria nunca teve direito algum. A ideia de trabalhador também ficou arcaica?
R. Isso é fundamental. Esse trabalhador ideal não existe. Além de ser um extrato muito pequeno da pirâmide brasileira, esse trabalhador inclusive politicamente não existe. E a tendência é de flexibilizar cada vez mais. Se pensarmos no protótipo do trabalhador brasileiro hoje, tem que pensar no motorista de Uber. Ele compra um carro, vai trabalhar 15 horas por dia, está cansado, mas quer continuar tendo um carro e vai colocar alguém para trabalhar para ele. Esses dias conheci um motorista que disse que trabalhava 24 horas por dia e que dormia dentro do carro, para que com 30 anos tenha dois trabalhadores para ele na mesma lógica. Não acho que isso seja 100%, preto no branco, porque esse trabalhador também está indignado e quer transporte público, saúde e benefícios sociais. Durante 10 anos estudei economia informal, e o sonho de todo camelô, com todo aquele discurso empresarial, é ter a carteirinha de trabalho. As pessoas querem ter a dignidade de ter direitos, mesmo que reproduzam esse discurso do empreendedorismo. Existe um processo de flexibilização, mas também temos que trabalhar para prover mais direitos para essas pessoas. Acho que o MEI, com todas as dificuldades, foi uma tentativa de legalizar essas pessoas e de oferecer um sistema de Previdência.

“Vejo um público cada vez maior sedento e desesperado por pessoas que sejam abertas ao diálogo”

P. Como avalia a estratégia da esquerda ao lidar com a reforma da Previdência?
R. Ela ficou na base da negação, com nada de propositivo, apenas no revanchismo. Ela foi inábil e ao mesmo tempo ficou na lógica revanchista, dizendo para o trabalhador “seu pobre, você se ferrou”. Falando para uma população que não necessariamente será afetada pela reforma da Previdência. A população brasileira historicamente está na economia informal, com poucos direitos e que não vai estar lá, nas ruas, lutando por eles. O discurso de retirada de direitos trabalhistas e da aposentadoria não necessariamente pega nessas pessoas. De novo, é mais fácil cancelar. Você pensa a partir de uma linguagem estrita de uma esquerda do século XX, e não consegue responder às pessoas de carne e osso que estão vivendo as contradições do processo. É obvio que temos que lutar pela Previdência e por mais direitos, mas isso não faz sentido nenhum para a base da população.P. Acha que a esquerda precisa dialogar com centristas, liberais e setores da direita?R. No aspecto institucional temos hoje que fazer aliança com todo mundo que quiser derrotar Bolsonaro. E isso é fundamental em todas as frentes, inclusive com setores do PSDB que estiverem dispostos a fazer isso. Se FHC fizer a frente, tem que se aliar inclusive com FHC. Quando penso em uma frente, nela tem que estar inclusive uma direita que se denomina democrática. Não é uma aliança para pensar programa, mas de frente democrática, para barrar todos os retrocessos. E para isso é preciso dialogar com todos.

“A violência estrutural que afeta o pobre favelado também afeta o policial. Temos que falar com ele”

P. Como encara a morte dos dez jovens de Paraisópolis no atual contexto político e como enxerga as reações?
R. Evidentemente se trata de mais um episódio que se soma ao genocídio da população negra no Brasil. Essas populações sempre foram desumanizadas, vulnerabilizadas e mortas. Parte da bolha que apoiou a ação policial argumentava que não eram jovens se divertindo, mas sim vagabundos, pessoas que não tinham o que fazer. Estudei os rolezinhos e vi diferença de percepção de lazer de jovens pretos e periféricos e de jovens de classe media alta. Quando há uma tragédia semelhante num baile de camadas médias brancas, essa mesma bolha consegue ver as vítimas como pessoas dignas de luto. E o outro lado é tratado com frieza e desumanidade. Tudo isso é histórico, mas vemos agora uma legitimação inédita por parte dos governos Federal e estadual, com um discurso oficial de que esses policiais estão autorizados a matar e depois são coroados. Por outro lado, vi uma reação positiva na bolha progressista, o que desperta a possibilidade de que isso seja uma fagulha para que movimentos sociais saiam às ruas. Às vezes um fato pode ser disparador de comoção. O grande desafio é ver se há possibilidade maior de contágio, que não se deixe que a pauta do próximo dia tome conta e faça a gente esquecer do ocorrido. Esse massacre precisa continuar sendo algo que trabalhe nossa indignação contra esse novo Brasil marcado pela bala.

P. Como os movimentos sociais e o campo progressista devem abordar a questão da violência policial? Acredita precisam disputar os policiais com a extrema direita?
R. Enquanto nós estivermos um estado policial, devemos disputar os policiais. Como mostram os trabalhos do pesquisador Rafael Alcadipani, o policial militar está entre as profissões com maior nível de estresse, pelo contexto da violência e precariedade da profissão, atentando contra toda a família do policial. É uma classe extremamente precarizada, que sofre depressão e com altas taxas de suicídio. A mesma violência estrutural que afeta o pobre favelado também afeta esse policial, ele mata por ódio e acaba ferrado psicologicamente. Temos que falar com policiais. Claro que parte da esquerda vai dizer que precisam desaparecer, mas a polícia existe. E existem grupos de esquerda e antifascistas na polícia que fazem um trabalho nesse sentido. Evidentemente tem que alargar o discurso para esses setores e trabalhar a questão da violência estrutural.