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Luiz Carlos Mendonça de Barros: Uma marcha insensata chega ao fim

O Brasil, diante de uma situação grave como a que passamos, se une e apoia os governantes que lutam para superá-la

Foi uma longa, difícil, injusta para com os mais pobres, e, até agora, pouco compreendida marcha para escapar do buraco negro na economia, criado pela incompetência do PT e seus governantes. Os números deste período infame estão hoje à vista de todos e tornam uma missão difícil para o analista escolher o mais dramático deles para a sociedade.

Depois de uma difícil reflexão, fico com a explosão da dívida interna do governo entre 2015 e 2016 por ser ela a mais representativa da marcha da insensatez que tomou conta do governo Dilma desde o primeiro dia de seu mandato. E é também o indicador mais deletério para as expectativas de consumidores, empresários e investidores em relação ao futuro. Medida como percentagem do PIB, a dívida bruta do governo federal entre 2013 e 2019 pulou de pouco mais de 50% para 81% neste final de ano. Este aumento de mais de 30% representou a soma dos efeitos do aumento do volume de gastos do Tesouro Nacional e a queda de quase 7% do PIB entre 2015 e 2016.

Situações como esta, quando ocorreram na história recente das economias de mercado, antecederam colapsos econômicos de grandes proporções. Mas a sociedade brasileira - hoje podemos afirmar - não vai pagar este preço e pode, finalmente, olhar de forma construtiva para o futuro. E antes que receba críticas de estar sendo otimista demais - ou ingênuo como já fui chamado no passado -, pois precisamos ainda de um longo período de reformas para perenizar o crescimento econômico, afirmo que concordo com esta observação.

Apenas acho importante refletir isoladamente sobre a superação - como sociedade - da ameaça de insolvência por que passamos antes de tratar de uma agenda para consolidar o futuro. O Brasil mostrou uma grande maturidade ao longo destes anos terríveis por que passamos, com a crise política do governo Temer seguida de uma eleição presidencial tensa e incerta como foi a do ano passado.

Inicialmente gostaria de trazer ao leitor um sentimento pessoal que construí em mais de 50 anos de observação da nossa sociedade. O Brasil, quando diante de uma situação grave como a que passamos agora, se une e apoia os governantes que estão administrando a crise e lutando para superá-la. Vivi este sentimento de solidariedade e apoio quando a hiperinflação dos anos 80 e 90 do século passado testou os limites de nossa economia de mercado e mesmo de nosso regime democrático. A união de todos - menos a esquerda, petista ou não - em apoio à proposta da nova moeda (URV), apresentada pelo governo Fernando Henrique em 1994, nos salvou da hiperinflação aberta e permitiu que hoje estejamos novamente no grupo de economias de mercado com inflação sob controle.

Os mais jovens precisam ser lembrados deste momento importante de nossa história para entender o que está ocorrendo agora.

Mais uma vez, sentindo-se ameaçada - desta vez pelo colapso das finanças públicas - a sociedade apoiou de forma vigorosa a reforma da Previdência pública quando sentiu que ela representava a única saída para a volta da estabilidade financeira. Sinal disto é que, embora diagnosticada pelos técnicos, há mais de 30 anos, como um dos pilares de sustentação do equilíbrio fiscal, somente agora - com a crise terminal que chegamos a viver - a opinião pública deu o apoio necessário para forçar o Congresso a aprová-la.

Com a reforma da Previdência a força de uma recuperação cíclica tradicional, que já existia desde o governo Temer, começou a ganhar tração ao longo dos últimos meses. Mas a lentidão desta recuperação, principalmente na questão do desemprego, criou um ambiente de ceticismo entre os analistas e mesmo junto à sociedade. Meu otimismo sempre derivou do fato de que, em recuperações semelhantes em outras economias, o prazo entre a ruptura da bolha de consumo criada e a volta de uma normalidade econômica, sempre foi de vários anos. O exemplo mais recente deste fenômeno ocorreu nos Estados Unidos entre 2008 e 2018 quando este mesmo sentimento de desesperança dominou boa parte da sociedade. Mas quando a recuperação ganhou força nos últimos três anos uma quase euforia voltou à população americana e aos mercados.

O mesmo vem acontecendo agora no Brasil. O dia de ontem foi decisivo para que uma mudança no ânimo de todos os mercados mais sensíveis às expectativas dos agentes econômicos ocorresse, corrigindo de forma significativa seus preços. Chamou a atenção o comportamento do mercado dos CDS que precificam o chamado risco de default (calote) do país por ser ele negociado no exterior principalmente. Também a valorização do real em relação ao dólar na B3 mostra a força da mudança de humores em relação ao Brasil, depois de vários meses de pressão vendedora de nossa moeda. Interessante que a força do real ontem ocorreu no dia em que o Banco Central definiu uma nova e expressiva redução dos juros Selic.

Consolidou-se entre os analistas que o crescimento do PIB em 2020 deve chegar a 2,5% o que implica em afirmar que na virada de 2021 a economia deve estar crescendo 3% ao ano. Merecemos esta comemoração, mas agora sim temos que tratar de uma nova agenda.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


El País: Eduardo Bolsonaro inaugura escritório comercial em Jerusalém e reafirma que Brasil transferirá embaixada

Em visita a Israel, filho de presidente diz perante Netanyahu que o Brasil cumprirá o compromisso

A ponto de completar seu primeiro ano de mandato, o presidente Jair Bolsonaro continua sem cumprir sua promessa eleitoral de transferir para Jerusalém a embaixada do Brasil em Israel, uma decisão polêmica que contraria o consenso internacional e que até agora só foi adotada pelos Estados Unidos e a Guatemala. Bolsonaro já evitou se pronunciar sobre a transferência da legação diplomática em abril, durante sua visita oficial ao Estado judeu, mas anunciou, como primeiro passo, a abertura de um escritório comercial. Seu filho e herdeiro político, Eduardo Bolsonaro, afirmou que o mandatário cumprirá seu compromisso, ao inaugurar neste domingo na Cidade Sagrada uma missão da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), entidade vinculada ao Ministério das Relações Exteriores, mas sem status diplomático.

“[Meu pai] me disse que existe um compromisso firme, que a transferência da embaixada a Jerusalém será realizada”, disse o deputado federal, de 35 anos, que preside a Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Em um ato na nova agência do Brasil em Jerusalém, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu recebeu o anúncio com satisfação, num momento em que se prepara para enfrentar a terceira campanha eleitoral deste ano a fim de tentar se manter no poder. O chefe de Governo de Israel foi além, ante seu visitante, ao declarar que via a inauguração do escritório comercial “como uma parte do compromisso do presidente Bolsonaro de abrir no próximo ano uma embaixada em Jerusalém.”

Apenas a Guatemala —país com uma importante presença de evangélicos defensores do Estado hebreu em seu Governo— seguiu os passos do presidente Donald Trump, ao transferir a embaixada dos EUA de Tel Aviv, onde ficam as representações diplomáticas das demais nações que mantêm relações com Israel. O consenso geral da comunidade internacional deixa o status final de Jerusalém —que os israelenses consideram sua capital “eterna e indivisível” e onde os palestinos aspiram a estabelecer a capital do seu futuro estado na parte oriental— para um acordo de paz duradouro entre ambas as partes.

Em um primeiro momento, o Paraguai também seguiu os passos dos EUA. Após uma mudança na presidência do país, no entanto, ordenou reabrir a embaixada em Tel Aviv. Netanyahu não conseguiu inaugurar mais legações diplomáticas na Cidade Sagrada. Países da União Europeia com Governos favoráveis a Israel estabeleceram recentemente em Jerusalém um escritório comercial (no caso da Hungria) e um centro cultural (República Checa).

Bolsonaro precisa estabelecer um difícil equilíbrio entre o apoio eleitoral que recebeu da comunidade evangélica no Brasil —incondicional defensora do Estado judeu— e os interesses dos poderosos grupos de pecuaristas locais, que exportam todos os anos cinco bilhões de dólares (cerca de 21 bilhões de reais) em carne halal (com aprovação religiosa muçulmana) ao mundo islâmico. A balança comercial se inclina decididamente para os países árabes, que concentram cerca de 5% das exportações brasileiras, contra uma fatia de apenas 0,2% de Israel.

Netanyahu, que mantém estreitos laços com líderes ultraconservadores como o norte-americano Trump e o húngaro Viktor Orbán, agradeceu Bolsonaro pelo apoio do Brasil nos fóruns internacionais, onde o novo presidente se distanciou da tradição de condenação à ocupação dos territórios palestinos mantida pelos anteriores Governos do PT.

Eduardo Bolsonaro, a quem o pai tentou sem sucesso designar como embaixador em Washington, também anunciou ante o premiê israelense que seu país tomará a decisão “mais cedo ou mais tarde” de considerar o partido-milícia libanês Hezbollah como grupo terrorista. “Organizaremos a transferência [diplomática] a Jerusalém”, concluiu o deputado, “não apenas em nome do Brasil, mas como um exemplo para o restante da América Latina.”


Bolívar Lamounier: Pororoca de ilusões

A do bolsonarismo é a incapacidade de olhar o Brasil numa perspectiva histórica mais dilatada

“Outros povos podem ser felizes ou desgraçados por obra de estranhos. Os povos democráticos são os únicos que têm o bem e o mal feitos por suas próprias mãos” - J. F. Assis Brasil, político gaúcho, 1893

Nunca vi, mas posso imaginar a beleza do vagalhão, do grande estrondo que se forma na foz do Rio Amazonas quando aquele enorme curso d’água colide com as águas de outros rios.

A pororoca é um fenômeno real, maciço e formidável, que qualquer pessoa pode perceber a grande distância; uma difícil metáfora, portanto, para o nosso momento político, permeado muito mais por ilusões, incongruências, movimentos erráticos e até por desatinos que por ações organizadas e efetivas. O mais comum no curso da História brasileira é as forças políticas se contraporem de forma previsível, uma tentando ser pragmática e racional, obediente aos requisitos da economia, e a outra se deixando levar por (ou adotando como tática) algum delírio populista, de fundo emocional, religioso ou ideológico.

Penso, no entanto, que o Brasil atual se afastou daquele cenário tradicional e nada faz crer que retornará tão cedo à normalidade. Afastou-se – excetuado, naturalmente, o esforço do ministro Paulo Guedes no manejo da economia – em vista da linha divisória que se estabeleceu entre duas tribos alucinadas: petistas versus bolsonaristas.

Para bem apreender a referida mudança parece-me imprescindível remontar à eleição de 2018, na qual a maioria dos eleitores votou numa das duas principais alternativas com o único intuito de evitar a outra.

Os partidos ditos “de centro” naufragaram porque imaginaram poder navegar em seus frágeis barquinhos oratórios, não percebendo o portento vagalhão que se avizinhava. Claro, o embate das duas rejeições não se formou no vácuo. Constituiu-se no caldo de cultura de hostilidade a tudo e a todos que ganhou corpo em função da situação econômica, da maré montante da violência, da deslealdade de certas autoridades no tocante a suas respectivas missões institucionais e, não menos importante, dos fatos trazidos a público pela Operação Lava Jato. Este último aspecto merece breve reflexão. Não é raro uma sociedade reagir negativamente a uma grande mudança em razão do desconforto e do mau humor que ela engendra – refiro-me aqui à constatação de que a corrupção se alastrara por todo o corpo político, contaminando os três Poderes e grande parte do meio empresarial –, não obstante tal mudança ser o ponto de partida para um importante avanço na vida pública.

Comecei falando de duas grandes ilusões. Para delinear a ilusão petista seria útil remontar às origens do Partido dos Trabalhadores, relembrar a desconjuntada composição de seus quadros e seu idílico “socialismo por construir” – esboço de uma ideologia evocativa das catacumbas. Parece-me, porém, suficiente frisar que a unidade e o dinamismo daquela imensa maçaroca repousava sobre um fato deveras estapafúrdio: a devoção quase religiosa a um líder populista, Luiz Inácio Lula da Silva, que nunca levou a sério qualquer projeto de País, empenhando-se tão somente, e em tempo integral, em levar avante sua pequena Realpolitik. Paradoxalmente, a condutibilidade atmosférica do petismo deveu-se desde sempre a seu descompromisso com políticas consistentes de crescimento e a sua rasa fundamentação intelectual.

Deixo para os pesquisadores de opinião e para os psicólogos sociais a tarefa de descrever as antenas que levaram Jair Bolsonaro a captar e personificar a crescente dilaceração da sociedade brasileira de alguns anos para cá. Não posso eximir-me de dizer algo sobre o governo Bolsonaro, que em poucos dias concluirá seu primeiro ano, mas adianto que dificilmente terei algo de novo a dizer a esse respeito. O que primeiro salta aos olhos é o bifrontismo do governo. De um lado, a área econômica, sob o comando de Paulo Guedes e de Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, trabalhando com afinco e coesão, numa direção que me parece correta. Do outro, uma acentuada cacofonia, da qual o próprio presidente participa com notável intensidade. O presidente tem dito e repetido que economia “é com o Guedes”, ficando ele, o presidente, com o restante. Nesse aspecto, penso que o presidente se equivoca redondamente, uma vez que tal distinção inexiste na prática governamental. Ajustar as contas públicas, atrair investimentos e repor a economia nos trilhos do crescimento é uma operação complexa, que exige a colaboração de todos os setores do Executivo, em colaboração com os outros dois Poderes, orientando-se o conjunto no sentido de estabelecer a estabilidade e previsibilidade do “ambiente de negócios”.

Ora, com todo o respeito, sou obrigado a registrar que o presidente fala muito mais do que deve, intervindo de forma errática em diversos temas que não lhe dizem respeito. Falta-lhe, evidentemente, a chamada “liturgia do cargo”, ou seja, a sobriedade, o comedimento e a imparcialidade sem os quais a mais alta magistratura não funciona a contento. No contexto atual, o papel do presidente precisa ser muito mais o de um pacificador que o de um incitador de conflitos.

8Mas qual será, no essencial, a grande ilusão bolsonarista? É, a meu juízo, sua incapacidade de enxergar o Brasil numa perspectiva histórica mais dilatada. A melhor ilustração dessa deficiência é ter o presidente colocado na estratégica área da educação um técnico aplicado, mas que não dá indícios de conhecer os entraves que a paralisam. Sabemos todos que o Brasil ainda se digladia com a chamada “armadilha da baixa renda”. Se nosso anseio de retomar o crescimento do PIB se mantiver na faixa de 2% a 3% ao ano, levaremos pelo menos 25 anos para dobrar nossa renda per capita. Não é exagero afirmar que tal cenário beira o insustentável.

*Sócio-diretor da Consultoria Augurium, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências


Demétrio Magnoli: Inimigos da polícia

Policiais bandidos sempre existirão, mas a polícia bandida é fruto de seus superiores

Há, e são muitos, policiais profissionais que cumprem a sua missão de proteger a ordem pública e a segurança dos cidadãos respeitando estritamente a lei. Existem, e não poucos, policiais que vão muito além de seu dever. Eles apartam brigas de casais, assumem riscos pessoais excessivos para salvar indivíduos em perigo, fazem partos em situações de emergência, amparam famílias durante os dias traumáticos do sequestro de um dos seus. Por culpa dos inimigos da polícia, geralmente esquecemos disso.

Um inimigo da polícia é o policial que usa sua arma como ferramenta para violar a lei. Aquele que chantageia pessoas vulneráveis para obter propina, cobra tributos informais de atividades irregulares, engaja-se na intermediação de negócios ilegais, associa-se a máfias políticas ou empresariais. Ou, ainda, aquele que pratica pequenos gestos cotidianos de arbítrio, recorre à brutalidade gratuita, envolve-se em operações de vingança homicida, forma milícias. Esse tipo de policial degrada sua profissão: a substância pegajosa que dele emana suja o uniforme de seus colegas honestos e mancha até mesmo os distintivos dos colegas heroicos.

O policial contaminado pelo preconceito é um inimigo da polícia. Ele enxerga o bairro de periferia ou a favela como terra estrangeira —e seus habitantes, especialmente quando jovens e negros, como delinquentes naturais. Sob a lente de seus óculos, o baile funk dos pobres é orgia criminosa. Nesse olhar fraturado começa o trajeto que se conclui em tragédias como a de Paraisópolis, em São Paulo. Entretanto, quase invariavelmente, a consumação da barbárie depende de uma palavra que vem de cima.

A polícia é o que seus comandos querem que seja. A cultura policial nasce nos escalões superiores —isto é, nos comandantes e nas autoridades políticas que os selecionam. Policiais bandidos sempre existirão, mas a polícia bandida é o fruto do presidente que elogia o arbítrio e a truculência, do filho do presidente que homenageia milicianos, do governador que pede tiros “bem na cabecinha” ou do que nada vê de condenável na alta letalidade das operações de sua polícia. Os principais inimigos da polícia têm nome e sobrenome: chamam-se Jair Bolsonaro, Wilson Witzel, João Doria.

O policial profissional sabe que o policial bandido é seu inimigo —e, por isso, espera que sistemas de controle o identifiquem e excluam da corporação. Entre os maiores inimigos da polícia encontra-se Sergio Moro, o ministro que, por meio de seu “excludente de ilicitude”, almeja impedir a punição de criminosos uniformizados. O dispositivo, se aprovado, representaria o triunfo jurídico da polícia bandida —ou, dito de outro modo, o enterro definitivo da polícia profissional. Atrás da proposta legislativa, espreita a sombra do esquadrão da morte.

A Lei de Drogas, envelope jurídico do preconceito social, é o pátio de encontro dos inimigos da polícia. Seus holofotes comprimem, numa tábua única, a alta criminalidade do narcotráfico, o pequeno crime da “mula” ou do “aviãozinho” e o consumo de entorpecentes no pancadão da periferia (esqueça a rave de Pratigi, na Bahia: nas festas da classe média não circulam drogas!). Os adolescentes mortos em Paraisópolis são “danos colaterais” da Lei de Drogas, como o são as crianças alvejadas no Rio e a multidão de presos sem nome das penitenciárias convertidas em escolas do crime.

Os inimigos da polícia fazem com que, no lugar de respeito, a polícia se torne objeto de temor, aversão e ódio. Não há nada mais perigoso do que isso para os policiais. Eles têm que cumprir sua missão em territórios hostis, entre pessoas que os enxergam como as ameaças mais letais. Devem, portanto, operar em comunidades que preferem o silêncio à cooperação ou, em casos extremos, escolhem cooperar com os criminosos. O partido do “excludente de ilicitude” também mata policiais.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Luiz Carlos Azedo: Nós, os brasileiros

“A crise exacerba os conflitos sociais e regionais, por falta de um objetivo mobilizador da sociedade. O Brasil perdeu a utopia do país do futuro, a sacada genial de Stefan Zweig”

Duas das consequências da globalização estão sendo o aprofundamento das desigualdades e o esgarçamento das democracias no mundo. Num cenário de revolução tecnológica, em que a modernização da economia passou a ser uma condição para o crescimento econômico, a reinvenção dos Estados nacionais tornou-se um imperativo. É aí que certas contradições se acirram profundamente; o Brexit e a vitória do conservador Boris Johnson nas eleições britânicas de ontem confirmam essa tendência.

Aqui no Brasil, a política reflete de maneira particular essas contradições. Desde a abertura comercial do governo Collor, decorrência do esgotamento do modelo de substituição de importações, o Brasil vive uma crise de financiamento de sua infraestrutura, que se tornou um grande gargalo para a retomada do crescimento. Nossa vocação natural de país exportador de commodities agrícolas e minerais nos garante um papel relevante na divisão internacional de trabalho, mas isso não basta, porque outra face dessa integração à economia mundial está sendo a desindustrialização, a concentração de renda e o desemprego em massa.

A tentativa de enfrentar essa contradição com uma política industrial inspirada no velho modelo de substituição de importações e com o capitalismo de estado, no segundo mandato do então presidente Luiz Inácio Lula das Silva e no governo Dilma, a política de “campeões nacionais” e a “nova matriz econômica” fracassou. Somente agora, muito lentamente, graças a medidas tomadas durante o governo de Michel Temer e à aprovação da reforma da Previdência, além de algumas ações do governo Bolsonaro, a economia começa a dar sinais de recuperação. Entretanto, ainda estamos muito longe de resolver os gargalos da infraestrutura, do desemprego e das desigualdades.

Falta ao Brasil de hoje um projeto de nação. Desde a Independência, sob a liderança do patriarca José Bonifácio, sempre houve uma parcela da elite nacional empenhada em construir um projeto de país. Na República, em alguns momentos, isso ocorreu por uma via autoritária, como no Estado Novo e durante o regime militar; em outros, por uma via democrática, como nos governos Vargas e Juscelino Kubitscheck. A ausência desse projeto, de certa forma, alimenta os fantasmas do positivismo autoritário. E certo saudosismo reacionário em relação à superexploração megalômana de nossas riquezas naturais.

Esgarçamento social
A ausência de projeto de nação é um terreno fértil para a desesperança e a segregação da sociedade, o que favorece a radicalização política e ideológica e a emergência de projetos de natureza autoritária. Um projeto de nação, nas condições atuais, não pode ser a recidiva do nacional-desenvolvimentismo, que tanto serve à esquerda como à direita radicais. Nas condições atuais, significa a construção de um novo modelo de desenvolvimento, economicamente robusto, tecnologicamente inovador e socialmente mais justo.

Isso exige um amplo debate, pois nenhuma força política, isoladamente, seja no governo, seja na oposição, será capaz de construir um novo consenso nacional, com o necessário engajamento social. O quadro de desigualdades regionais, iniquidades sociais e radicalização política gera estranhamento da maioria da população em relação aos partidos políticos e às instituições governamentais. É uma situação em que o Estado brasileiro, para grandes parcelas da sociedade, é considerado muito mais um estorvo do que um agente transformador das condições de vida da população para melhor.

Qual é a identidade do brasileiro atual? A crise exacerba os conflitos sociais e regionais, por falta de um objetivo mobilizador da sociedade. O Brasil perdeu a utopia do país do futuro, a sacada genial de Stefan Zweig, o escritor, romancista, poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo austríaco de origem judaica que escreveu um livro dedicado ao ufanismo nacional. Nesse vácuo, a sociedade perde a perspectiva do avanço, o brasileiro enxerga com lente de aumento as suas divergências e já não se reconhece plenamente como um povo só e indivisível. Essa é a maior ameaça.

Feliz Natal — o colunista se ausentará deste espaço por breve período.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-nos-os-brasileiros/


Caetano Araújo: Radicalidade e flexibilidade – reflexões a partir do texto do Marcos Nobre

Seguem algumas reflexões inspiradas no texto do Nobre e nos comentários do [Alberto] Aggio. Divido meus argumentos em três tópicos distintos: a questão central da agenda política, qual o espaço que lutamos por ocupar e que políticas de aliança devemos implementar.

1 – Qual a questão central da agenda política hoje no Brasil? A democracia ou a corrupção? Na minha opinião, e nisso concordo com Nobre, a questão democrática é a central. Em termos gerais, porque, sempre, sem democracia não há luta contra a corrupção. Em termos específicos porque a democracia está hoje sob ameaça nesse país, ameaça que parte do governo legitimamente eleito há um ano atrás. Claro que a corrupção mina a legitimidade das instituições e constitui, também, uma ameaça à democracia, no longo prazo. Para usar uma metáfora médica, a corrupção seria comparável à situação de anemia profunda e devemos combatê-la. Mas estamos também sob ameaça de um câncer, com possível metástase imediata. Devemos, portanto, ao mesmo tempo, defender a democracia e combater a corrupção e é possível que nossos aliados não sejam os mesmos nessas duas frentes de luta.

2 – Qual o campo político que queremos construir, nas ruas, nos legislativos, nas eleições? Tenho reservas com o uso da expressão centro, mesmo que qualificado como democrático, progressista, radical ou extremo. Penso que essa metáfora espacial era adequada no tempo em que a política estava dominada pelas oposições esquerda e direita e democracia e autoritarismo. Hoje, num mundo em que outras dimensões polarizam a política, como as questões da sustentabilidade e do cosmopolitismo, essa metáfora perde precisão. Tanto é assim que quando falamos em centro precisamos quase sempre especificar quem está dentro e quem está fora desse campo.

Prefiro, por isso, trabalhar com as várias dimensões da política que tem mostrado relevância prática no mundo: democracia, república, equidade, sustentabilidade, integração cosmopolita e responsabilidade econômica. Temos posição clara em cada uma dessas oposições. Somos a favor da democracia, das regras republicanas, da equidade como objeto da política, da sustentabilidade, de um mundo cada vez mais integrado e de políticas econômicas sustentáveis no tempo.

Essas definições tem a vantagem de explicitar os pontos de acordo e desacordo com os demais atores da política. À direita, equidade e sustentabilidade nos separam de partidos que ignoram ou subestimam essas questões, como o Novo e as diferentes caras do centrão. À esquerda, integração mundial e responsabilidade econômica nos separam do PT e de seus aliados. Além disso, a questão democrática nos separa dos governistas radicais. A rigor, no espectro político brasileiro, compartilhamos as seis definições fundamentais apenas com a Rede, o PV e os dissidentes do PDT e PSB.

Não faz sentido para mim, portanto, dizer que PT e PSOL estão a nossa esquerda. Menos sentido ainda faria afirmar que somos moderados, cercados de extremistas radicais. Nem o PT é radical, nem nós somos moderados. Pelo contrário, somos ou devemos ser radicais na defesa da democracia, da república, da equidade, da sustentabilidade, do cosmopolitismo e da responsabilidade econômica.

3 – Quais as políticas de aliança que devemos perseguir? Se o governo Bolsonaro fosse apenas um governo conservador, isento de ameaças à democracia, nossa política de alianças deveria desdobrar-se em duas etapas: de um lado, estreitar relações com os nossos semelhantes, ou seja, democratas que são ao mesmo tempo verdes, igualitários, cosmopolitas e responsáveis economicamente; de outro, ampliar a articulação política em duas direções diferentes, a promoção das reformas e a defesa dos direitos humanos e do meio ambiente. Nessa tarefa temos, a meu ver, demonstrado facilidade para negociar as reformas à direita e dificuldade em cooperar na pauta progressista com o restante da esquerda.

Ocorre que o governo Bolsonaro constitui também uma ameaça declarada à democracia, o que nos impõe um terceiro trabalho de frente: a frente ampla democrática, que reúna todos aqueles que defendem o estado democrático de direito, a autonomia dos poderes, os direitos e garantias fundamentais e o calendário eleitoral.

As circunstâncias exigem de nós, portanto, tarefas de articulação política e formação de alianças em quatro frentes simultâneas. Qual a mais urgente? Depende da circunstância, ou seja, não depende de nós. Quando as reformas estão em pauta, a prioridade deve ser essa. Quando o governo agride, por ação ou omissão os direitos humanos e o meio ambiente, a agenda progressista prepondera. Quando a democracia é atacada em declarações do Presidente e de seus auxiliares, a mais ampla frente democrática deve ser mobilizada. A ação conjunta com Rede, PV e dissidentes, por sua vez, deveria ser um trabalho permanente do partido, de modo a criar uma identidade política junto ao eleitor e pavimentar o caminho para uma atuação conjunta nas eleições de 2022.

Penso que as circunstâncias exigem de nós ao mesmo tempo radicalidade nas posições e flexibilidade nas alianças. A tarefa não é simples.

*Caetano Araújo é sociólogo e dirigente do Cidadania


Alberto Aggio: As lacunas e os equívocos de Marcos Nobre

Marcos Nobre é um ensaísta cada vez mais requisitado pela mídia. Seus méritos acadêmicos são inquestionáveis. Contudo, no plano da análise política nem sempre estou de acordo com ele. O artigo “Contagem Regressiva” (veja aqui) que ele publica na revista Piauí (edição 159, dezembro de 2019; indicado abaixo) evidencia mais uma vez muitos desacordos. O principal deles é que sua referência maior para o “campo democrático” é a oposição ao governo Bolsonaro por ser este “contra a democracia”. Estamos de acordo com essa formulação. No entanto, ela ilude e não apreende a realidade política como ela realmente é. Na nossa concepção, o “campo democrático” tem também a tarefa de combater também o partido (e suas lideranças) que criou um sistema de corrupção jamais visto na nossa história, o que comprometeu profundamente a crença da sociedade na política democrática. E isso, sem dúvida, abriu passagem para a vitória de Bolsonaro e a afirmação do Bolsonarismo.

Essa leitura não é sequer considerada na análise de Marcos Nobre. Dai fica difícil apreender a situação como realmente ela se mostra. Nobre chancela a posição de Lula ao rejeitar o pedido de autocrítica do PT. Esse posicionamento do analista anula qualquer possibilidade de conversa entre forças democráticas. Aliás, em nenhum momento o PT é responsável pela crise em que estamos metidos como país. Na leitura do artigo, o lugar do centro vem na fala de Jorge Bornhausen e isso me parece injustificadamente provocador não fosse absolutamente lacunar.

A menção a Luiz Carlos Prestes e ao PCB é outra provocação que somente quem não tem conhecimento básico da história das forças políticas do campo democrático aceita de bom grado. A opção desta linhagem política é por uma “frente democrática”, defendida por Roberto Freire, presidente do Cidadania, que nem sequer é mencionada – e mereceria, para dar algum sentido à ideia de “espírito de urgência”, de que fala o autor, na construção de uma suposta “concertação democrática”.

Aliás, Nobre pensa que a defesa de cada um dos “terços” que divide as forças políticas no Brasil, pelas forças de esquerda e de centro-direita, é inteiramente negativa, por ser defensiva em relação a Bolsonaro. Ora, a política de “frente” também é defensiva; o que ele propões como “concertação” não deixa de ser defensiva em relação a Bolsonaro; é apenas ofensiva em relação aos propósitos do PT, que é de reconquista do poder pela via eleitoral (mas isso Nobre não diz).

Por qual razão as forças de centro (para Nobre só existe centro-direita)se aliariam hoje com o PT. Não há nenhuma razão para isso, ainda mais com o sentido dos discursos de Lula, cada vez mais afirmativo do partido e dele mesmo, muito distante da ideia de “concertação”. Ao final, Nobre fala em DR (discussão da relação) no campo democrático. Mas creio que antes disso, faltam anos de terapia para intelectuais como ele possam repensar a trajetória petista e o mal que ela fez para a política democrática.

Fora disso, não vejo saída, a não ser construir um centro democrático e progressista animado por uma esquerda democrática que, com clareza, possa competir eleitoralmente contra o Bolsonarismo (que é a guerra de movimento de Bolsonaro) e o lulopetismo. (Blog do Aggio)

*Alberto Aggio, historiador e professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista)


Monica de Bolle: Nem nacionalismo nem ultraliberalismo

Ressuscito a era Dilma e a época áurea da substituição de importações por uma razão: há muitos motivos que podem levar a mudanças políticas traumáticas

O Brasil e, de modo mais geral, a América Latina são profundos conhecedores das mudanças traumáticas de regimes políticos. Para que fique claro, não considero a mudança de Mauricio Macri para Alberto Fernández recém-ocorrida na Argentina “traumática”, ainda que o país vizinho esteja novamente engalfinhado numa crise econômica. As mudanças traumáticas a que me refiro são os golpes militares dos anos 1960 e 1970 e, na história recente brasileira, o impeachment de Dilma Rousseff.

Como tenho abordado neste espaço, estou estudando a volta do nacionalismo econômico e tenho me aprofundado em estudos de caso selecionados desde o início do século XX. Recentemente, andei relendo a literatura sobre a industrialização por meio da substituição de importações (ISI), com um olhar especial para os casos do Brasil e da Argentina nos anos 1940 e 1950. O estudo de medidas de cunho nacionalista no âmbito da ISI me levou às leituras sobre a extensão dos problemas econômicos causados por esse modelo de desenvolvimento — industrializar substituindo produtos importados — e às relações entre esses problemas e a primeira fase de mudanças traumáticas na região durante o pós-guerra. Há muitas formas de analisar a ISI. Mas o pensador que melhor definiu os problemas desse modelo de desenvolvimento, tão disseminado na região, foi o economista e cientista social Albert O. Hirschman. O alcance de sua análise se deve, primeiro, a sua nítida abertura de pensamento e aversão ao reducionismo. O modelo da ISI, ao contrário do que muitos afirmaram nos anos 1960 e 1970, não sofreu um “esgotamento”, conforme analisou Hirschman. Fosse assim, as políticas que Dilma ressuscitou — os campeões nacionais com dinheiro do BNDES e a preocupação extrema com a desindustrialização, suscitando ações que muito remetiam ao passado — não teriam tido o apoio temporário do empresariado industrial brasileiro.

Para viabilizar a ISI foi preciso manter, durante muito tempo, uma taxa de câmbio real sobrevalorizada. Isso garantia que os bens de capital importados necessários para a indústria que se queria desenvolver permanecessem relativamente baratos, ao mesmo tempo que transferia recursos das exportações de produtos primários para os novos setores industriais nos anos 1940 e 1950. Contudo, uma moeda sobrevalorizada acaba dificultando o financiamento do déficit externo, o que leva a um ciclo interminável de crescimento seguido de severas crises. Essa situação foi importante para impulsionar a ideia de que era necessário combater “governos populistas que flertavam com o socialismo”. A visão simplista e, portanto, atraente era motivada pelo enorme envolvimento do Estado na economia para sustentar as políticas de promoção industrial, levando ao desenlace traumático da remoção de governos “simpatizantes do Estado”. Em muitos casos, os regimes militares que lhes sucederam também se mostraram, no entanto, simpatizantes do Estado.

Algo semelhante se passou com Dilma. Devido a suas políticas econômicas desordenadas, a moeda brasileira havia sofrido sobrevalorização de quase 20% às vésperas do processo de impeachment. A inflação alcançara quase 12%, e, ainda que o Brasil tivesse a capacidade de evitar as graves crises externas dos anos 1970, 1980 e 1990, os desequilíbrios fiscais impediam que se amenizasse a brutal recessão. O resultado foi que os empresários que até então haviam dado apoio às políticas da equipe econômica o retiraram, ampliando a fragilização política da presidente, já evidente em suas dificuldades de negociar com o Congresso e no avanço da Operação Lava Jato. O resultado de tudo isso está aí, espalhado no Twitter e estampado nas mãos que imitam arminhas.

Às vezes problemas de ordem puramente externa se somam aos de ordem interna, provocando uma espécie de tempestade perfeita para uma reviravolta política. O modelo de desenvolvimento escolhido, com todas as suas ramificações, ajuda, contudo, a explicar tantos traumas e abalos na América Latina. O nacionalismo, seja nas políticas de industrialização tardia, seja nas tentativas de reindustrialização, não ajudou o Brasil ou a América Latina. Sua antítese, na forma do ultraliberalismo guediano paradoxal, aquele que libera geral, mas mantém a economia fechada, tampouco o fará.

*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins


Míriam Leitão: A era dos juros reais perto de zero

Juros reais abaixo de 1% reduzem o custo da dívida, estimulam o crédito e alteram os portfólios de poupança e investimento

O Banco Central reduziu os juros para 4,5%, que não é apenas a taxa mais baixa da história, é um nível nunca imaginado. Isso significa que o país está agora com uma taxa real de juros menor que 1%. A inflação tem recebido o impacto do dólar, dos combustíveis e da disparada da carne, mas apesar disso os economistas não veem risco com essa Selic tão baixa porque o IPCA ainda está abaixo do centro da meta.

O mercado já esperava a queda dos juros e estava de olho nos sinais que o BC daria para os próximos movimentos. Há quem no mercado considere que os juros ainda poderão cair no ano que vem para 4,25% ou até 4%. O professor Luiz Roberto Cunha, da PUC-RJ, acha que o melhor agora é parar e esperar. Mas ele concorda que a decisão de ontem, de reduzir para 4,5%, fazia sentido. Era o BC usando uma “janela de oportunidade”. No comunicado pós-reunião, o BC argumentou que a economia ganhou tração, mas que daqui para frente é preciso “cautela”. No mercado, houve quem achasse que a Selic pode cair mais 0,25% e quem enxergasse o fim do ciclo de cortes.

A pressão de preços neste fim de ano aumentou, mas ela está concentrada em alguns produtos apenas. O IPCA em novembro foi o maior para o mês em quatro anos, 0,51%. O grande vilão foi a carne que subiu 8%. No atacado, o IGP-M chegou a 7% de alta acumulada em 12 meses. Isso pode afetar aluguéis, ou alguns contratos, mas tudo vai depender do ritmo da atividade. Ainda há muita ociosidade na economia, dificultando o repasse. O mercado de aluguéis está deprimido, induzindo mais à negociação em torno do reajuste.

Nas últimas quatro semanas, o Boletim Focus sempre revisou para pior as projeções de inflação deste ano. Elas saíram de 3,35% para 3,86%. Mas o centro da meta é 4,25% e tudo indica que as expectativas estão “ancoradas”, como se diz. Ou seja, ninguém está esperando uma disparada dos preços como houve em 2015/2016.

Essa queda de juros para patamares nunca antes vistos tem um enorme impacto na economia. Primeiro, o custo da dívida pública cai bastante. Tem caído desde o governo Temer. Nos últimos três anos saiu de 14,25% para o nível anunciado agora, o que significa uma queda de quase 10 pontos percentuais. Isso economiza uma enormidade de juros. Segundo, tem havido uma maior oferta de crédito e em alguns segmentos, como o da pessoa física, tem aumentado muito. A ponto de ser necessário que o BC monitore para evitar a formação de bolhas. Elas são dificultadas pelo fato de que, mesmo com a Selic no nível atual, os juros bancários ainda são muito altos. Terceiro, a queda detonou um movimento de mudança de portfólio de investimento, das famílias, das empresas, dos fundos.

A queda abaixo do nível atual é que é discutível. Com esse corte, os juros reais, descontada a inflação, caem para 0,89%. Qualquer elevação de inflação, ou expectativa de alta, reduzirá esse nível e pode-se chegar a juros negativos.

O governo está precisando de uma injeção de ânimo na economia e o Copom tem providenciado o estímulo monetário, já que não dá para ter impulso fiscal com o país em déficit. Isso só dá certo se o Copom não quiser ajudar o governo a estimular o crescimento. Recentemente, perguntei ao presidente do BC, Roberto Campos Neto, o que ele considerava que era o mandato dele. Ele respondeu que era a meta da inflação e a estabilidade financeira. Se o BC achar que faz parte da equipe econômica, e se juntar ao grupo para incentivar o crescimento, vai errar na dose e não saberá usar corretamente os instrumentos de política monetária.

O economista Luiz Roberto Cunha acha arriscado reduzir mais:

— Já são juros reais abaixo de 1%. Isso tem que ser levado em consideração. A indústria financeira terá que fazer um ajuste muito grande. Seguradoras e planos de previdência, que têm reservas altas, sofrem com juros reais baixos — disse.

O Fed manteve os juros inalterados na reunião de ontem, depois de três reduções consecutivas. A política e a economia americanas são fontes de incerteza. Cunha acha que em função das eleições o presidente Donald Trump deverá atenuar a hostilidade comercial com a China, porque setores produtivos americanos têm sofrido os efeitos desse confronto. Isso pode permitir um dólar mais favorável. Ainda há muita incerteza. De certo, apenas que o Brasil, com a redução sustentada dos juros iniciada no governo Temer e mantida no atual governo, está entrando em uma nova era no mercado de crédito e poupança.