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O Estado de S. Paulo: 'O governo vai bem porque dá sequência ao que eu fiz', diz Temer
O ex-presidente Michel Temer diz em entrevista ao ‘Estado’ que votou em Bolsonaro, mas discorda de bandeiras do sucessor
Pedro Venceslau, de O Estado de S.Paulo
Oito meses depois de ser preso na rua por policiais, o ex-presidente Michel Temer mantém uma rotina discreta. Afastado das articulações políticas, hoje ele se dedica a fazer palestras e a escrever um romance de ficção inspirado em sua própria história. Em entrevista ao Estado, o emedebista diz que o governo Jair Bolsonaro “vai indo bem” porque dá sequência ao que ele fez, mas afirma ser contrário a bandeiras de seu sucessor, como o excludente de ilicitude.
Ao falar sobre política, Temer avalia que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deveria ter buscado a pacificação ao sair da cadeia e descarta a “rotulação” dos políticos entre direita, esquerda e centro. “Essa coisa de esquerda e direita ninguém dá mais importância. Mesmo o centro”, disse.
A seguir os principais trechos da entrevista:
Como o sr. avalia o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro?
O governo vai indo bem porque está dando sequência ao que fiz. Peguei uma estrada esburacada. O PIB estava negativo 4%. Um ano e sete meses depois o PIB estava positivo 1.1%, além da queda da inflação e da recuperação das estatais. Entreguei uma estrada asfaltada. O governo Bolsonaro, diferente do que é comum em outros governos que invalidam anterior, deu sequência. Bolsonaro está dando sequência ao que eu fiz.
O estilo de Bolsonaro não prejudica a imagem do Brasil?
Cada um tem o seu estilo. Ele tem o estilo do confronto, que é oposto ao meu, de conciliação. Fui falar em Oxford, Madrid e Salamanca e pude avaliar uma certa preocupação com isso. Mas a preocupação central é com a segurança jurídica. As pessoas querem ter certeza que se investirem aqui não terão surpresas. O presidente Bolsonaro diz uma determinada coisa, mas sua ação é diversa. Quando ele me visitou logo após a eleição, me pediu modestamente para dar conselhos. Eu disse que não daria conselhos para quem foi eleito com quase 60 milhões de votos, mas disse que daria palpites. Disse que a relação com China é importantíssima. Não podemos ser unilateralistas. E verifiquei que, tempos depois, ele foi à China.
O anti-esquerdismo do presidente serve para manter a base?
Talvez seja um discurso dirigido para sua base. Eu sou contra qualquer tipo de rotulação. Essa coisa de esquerda e direita ninguém dá mais importância. Mesmo o centro. As pessoas querem resultado. Tem um livro do Norberto Bobbio chamado “Esquerda, direita. Direita, esquerda”. Ele mostra cientificamente que muitas vezes a direita usa teses da esquerda e vice versa.
O que o sr. acha desse discurso de nova política?
Isso é uma palavra nova, nada mais que isso. O Bolsonaro vai muito ao Congresso Nacional. Foi mais que eu. Ao modo dele, ele faz uma articulação política.
O sr. votou no Bolsonaro?
Acabei votando nele (no segundo turno) por uma razão. Eu recebia muitas críticas indevidas da outra candidatura (Fernando Haddad). Votei em quem não falou mal do meu governo.
O sr. vetaria o fundo eleitoral de R$ 2 bilhões?
É fundamental ter um fundo partidário por uma razão pautada pelo princípio da igualdade. Se não tiver, só vai se eleger quem for milionário.
O sr defende o projeto do excludente de ilicitude?
Eu não sou a favor. No autoritarismo se dizia que o medo não era do ministro, mas do guarda da esquina. O excludente de ilicitude pode entusiasmar uma espécie de ação policial. Isso passa por uma área de subjetividade muito grande. E a subjetividade é a negação da segurança jurídica.
O que pensa sobre prisão após condenação em 2° instância?
O Supremo decidiu corretamente do ponto de vista jurídico. Hoje há muito populismo nas questões de natureza jurídica. Nesse episódio da 2° instância a Constituição diz muito claramente que só será considerado culpado aquele que tiver a sentença condenatória transitada em julgado.
Como o sr. viu a soltura do ex-presidente Lula?
Como eu prego muito a pacificação, imaginei que a sabedoria política determinaria que ele dedicasse os 580 dias na prisão à unidade do País. Ele ganharia politicamente. O Brasil também ganharia. Mas ele radicalizou. Achei que isso foi equivocado institucionalmente.
A polarização interessa tanto ao Bolsonaro quanto ao Lula?
Ouso dizer que sim. Se Lula radicaliza de um lado, dá chance ao Bolsonaro ficar na posição inversa. Talvez eles tenham isso em mente.
A Lava Jato cometeu excessos?
A tese do estado democrático de direito é a da imparcialidade. Nem o juiz pode facilitar a vida do advogado, nem do acusador.
O que sentiu quando foi preso, acusado de corrupção?
Não foi uma detenção, mas um sequestro. Quando se fala em detenção, se pensa em um processo penal regular. Os autos baixaram do Supremo sem que eu fosse denunciado, ouvido ou indiciado. Os procuradores da República assinaram a representação em grupo. O juiz recebeu e determinou o sequestro. Se viesse alguém na minha casa ou escritório e dissesse que tinha um mandado de prisão, eu ficaria surpreendido mas ia acompanhar. O que fizeram? Primeiro avisaram a imprensa. Eles esperaram eu seguir três ou quatro quadras para depois fazer o espetáculo. Abriram a porta com metralhadora, bazuca, lança-chamas. Me preocupei com o Brasil.
Até hoje o MDB não abriu processo de expulsão de Sérgio Cabral e Eduardo Cunha, que estão presos. O partido não deveria ser mais rigoroso?
O MDB tomou a decisão de aguardar decisões definitivas do Judiciário. As decisões preliminares não são definidoras de eventual afastamento.
William Waack: Apertem os cintos
Ninguém gosta de turbulência, mas não é uma grande causa de queda de avião
A maior lição de humildade para integrantes da minha profissão é o já clássico livro “Superprevisões – a arte e a ciência de antecipar o futuro”, publicado em 2016 por Philip Tetlock e Dan Gardner. Uma das célebres conclusões da obra, apoiada em mais de 20 anos de material empírico, é a de que jornalistas (especialmente os de televisão) acertam na média menos prognósticos do que um chimpanzé atirando dardos numa parede onde estão escritas respostas para perguntas como “qual será o preço do barril do petróleo no fim do ano?” (a taxa de acerto aleatória está em torno de 18%).
Claro que previsões só têm validade se respeitarem um limite de tempo – é fácil acertar a previsão “o mundo vai acabar”; a questão é acertar quando. Com toda humildade vamos, então, a alguns prognósticos para temas que devem ocupar espaço no noticiário.
Donald Trump deve perder o voto popular nas eleições de novembro (Hillary Clinton já o havia derrotado por 3 milhões de votos em 2016), mas conseguirá se reeleger. Os eleitores anti-Trump já vivem em colégios eleitorais democratas como Nova York ou Califórnia. Portanto, seu voto é “desperdiçado” e a verdadeira batalha é em colégios eleitorais menores, no Meio-Oeste, onde dificilmente Trump decepciona os mesmos eleitores que lhe garantiram a vitória quase quatro anos atrás.
Brexit deve chegar a um acordo comercial com a União Europeia, que terá dois grandes desafios. Um deles é razoavelmente previsível: Angela Merkel não conseguirá segurar sua frágil coligação, complicando a difícil questão de como dar um “reset” na relação com a Rússia, uma forma que o presidente francês vem propondo para redefinir o papel da Europa frente ao que foi (e promete continuar sendo) o fenômeno Trump + populistas (vão continuar fortes). Se parecer melhor, o prognóstico é mais do mesmo.
Vale também para a grande relação geopolítica do século, entre China e Estados Unidos, na qual a guerra comercial é apenas uma manifestação de uma pergunta para a qual ninguém até agora conseguiu produzir uma resposta convincente: o surgimento de uma super potência como a China, contestando o papel hegemônico dos Estados Unidos, será pacífico ou acompanhado (como historiadores clássicos sugerem) por confronto militar? Mas não é nada difícil prever que a China se tornará (se já não é) a principal potência das telecomunicações, com sérias consequências para o resto do mundo.
Protestos, descontentamentos e turbulência devem prosseguir na América Latina. A frustração e as manifestações mais ou menos violentas não escolheram ou pouparam perfis ideológicos dos diversos governos, no que parece ser uma expressão de ampla insatisfação de populações que “percebem” seu atraso relativo frente ao resto do mundo e consideram que seus mandatários não são capazes de dar respostas convincentes e em prazo rápido a demandas populares.
E o Brasil? Meu prognóstico é mais do mesmo. A economia vai andar melhor, o que é pouco para o grande desafio de um País aprisionado na armadilha da renda média. A onda disruptiva de 2018 partiu-se em suas diversas correntes, o que promete um cenário político “estável” no fracionamento das forças políticas e, portanto, na incapacidade de um só grupo se afirmar como dominante. O esforço de levar adiante reformas será grande e caminhará de forma lenta tanto pela notória resistência oferecida pelas corporações que tomaram o Estado brasileiro mas, em boa medida, também pela opção política do governo de não consolidar uma base tipo “tropa de choque” no Congresso.
Será turbulento. Apertem os cintos e um bom voo para todos nós em 2020. Turbulência não costuma derrubar avião.
Eliane Brum: Os cúmplices
Em 2020, cada um saberá quem é diante de uma realidade que exige coragem para enfrentar e coragem para perder
Nenhum autoritarismo se instala ou se mantém sem a cumplicidade da maioria. É o que a história nos ensina. Não haveria nazismo sem a conivência da maioria dos alemães, os ditos “cidadãos comuns”, nem a ditadura militar no Brasil teria durado tanto sem a conivência da maioria dos brasileiros, os ditos “cidadãos de bem”. O mesmo vale para cada grande tragédia em diferentes realidades. Os déspotas não são alimentados apenas pelo silêncio estrondoso de muitos, mas também pela pequena colaboração dos tantos que encontram maneiras de tirar vantagem da situação. Em tempos de autoritarismo, nenhum silêncio é inocente —e toda omissão é ação. Esta é a escolha posta para os brasileiros em 2020. Diante do avanço autoritário liderado pelo antidemocrata de ultradireita Jair Bolsonaro, que está corroendo a justiça, destruindo a Amazônia, estimulando o assassinato de ativistas e roubando o futuro das novas gerações, cada um terá que se haver consigo mesmo e escolher seu caminho. 2020 é o ano em que saberemos quem somos —e quem é cada um.
Há várias ações em curso. E várias mistificações. Quem viveu a ditadura militar (1964-1985) conhece bem, guardadas as diferenças, como o roteiro vai se desenhando. No final de 2019, parte da imprensa, da academia e do que se chama de mercado começou a exaltar os sinais de “melhora econômica”. A alta da bolsa, a “queda gradual” do desemprego, a indicação de aumento do PIB em 2020 são elencados entre os sinais. Ainda que se esperasse mais, afirmam, “os inegáveis avanços do ponto de vista econômico”, entre eles a reforma da Previdência, “a inflação comportada” e os juros fechando 2019 “em patamar inimaginável” permitem —e aí vem uma das expressões favoritas deste seleto grupo de players— um “otimismo moderado”. Até a pesquisa de uma associação de lojistas divulgou uma incrível alta de 9,5% nas vendas de Natal, imediatamente contestada por outra associação de lojistas. É como se a “economia” fosse uma entidade separada da carne do país, é como se houvesse uma parte que pudesse ser isolada e sobre a qual se pudesse discorrer usando palavras enfiadas em luvas de cirurgião. É como se bastasse enluvar jargões técnicos para salvar os donos das mãos de todo o sangue.
Enquanto esse diálogo empolado e bem-educado do pessoal da sala de jantar, dos que sempre estão na sala de jantar, independentemente do governo, é estabelecido, bombas explodiram no prédio da produtora do programa de humor Porta dos Fundos, policiais matam como nunca nas periferias de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, ampliando o genocídio da juventude negra, o antipresidente legaliza o roubo de terras públicas na Amazônia, ambientalistas são acusados de crimes que não cometeram, ONGs são invadidas sem nenhuma justificativa remotamente legítima, adolescentes pobres morrem pisoteados porque decidiram se divertir num baile funk numa noite de sábado, indígenas guardiões da floresta e agricultores familiares são executados, as polícias vão se convertendo em milícias como se isso fosse parte da normalidade, e são também os policiais e “agentes de segurança” condenados por crimes os únicos que são libertados no indulto de Natal. Os sinais estão por toda parte, mas membros respeitados de instituições da República que deveriam ser os primeiros a percebê-los —e combatê-los— seguem inflando a boca para assegurar que “a democracia no Brasil não está ameaçada”.
A qual Brasil se referem estes senhores bem-educados? De qual país estes luminares do presente falam? Certamente não do meu nem do de muitos, não o das favelas onde as pessoas se trancam sabendo que não há porta capaz de barrar a violência da polícia, não este em que os policiais já exterminam os pretos sem responderem por isso há muito, mas esperam mais já que o extermínio vai sendo legalizado pelas beiradas. Não este em que os templos de religiões afro-brasileiras são invadidos e destruídos apesar de o Estado ser formalmente laico. Não este em que as lideranças da floresta enxergam o Natal e o Ano-Novo como os piores momentos do ano porque é o tempo de deixar a família e fugir, pelo menos até que as capengas instituições voltem do recesso.
Neste país, pessoas da sala de jantar, há muita gente escondida neste exato momento para poder virar o ano vivo. Não esperam brindar, desejam apenas não ter o corpo atravessado por uma bala —ou por quatro na cabeça, como ocorreu com Marielle Franco, num crime não decifrado quase dois anos depois. Democracia onde? Os escondidos, os ameaçados, os parentes dos mortos querem saber. Todos nós queremos muito viver neste país em que vocês enxergaram “inegáveis avanços na economia em 2019” e “instituições que funcionam”. Não fiquem com o endereço só para vocês.
As pessoas da sala de jantar, porém, só podem seguir na sala de jantar ditando o que é a realidade porque a maioria assim permite, omitindo-se ou aproveitando-se das sobras. São as pessoas, no dizer da historiadora franco-alemã Géraldine Schwarz, “que seguem a corrente”. A questão é se você, que lê este texto, vai engrossar o rebanho dos que seguem a corrente.
Não o rebanho de ovelhas. Esta imagem evoca passividade, engano, uma obediência absolvida pela inocência. Não. Este rebanho, o dos que agem se omitindo, ou o dos que agem tirando pequenos proveitos, “porque afinal é assim mesmo e quem sou eu para mudar a realidade”, é um rebanho de lobos. Porque o ativismo de sua omissão é cúmplice do sangue das vítimas, estas que tombam, estas que vivem uma vida de terror. É cúmplice também das ruínas de um país. No caso da Amazônia, é cúmplice das ruínas da vida da nossa e de muitas espécies no único planeta disponível.
Géraldine Schwarz escreveu um premiado livro chamado Os amnésicos (Flammarion), infelizmente sem tradução no Brasil. A historiadora, cuja família foi uma dessas que obteve vantagens no nazismo, mas se considerava inocente do Holocausto, deu uma excelente entrevista ao jornalista Fernando Eichenberg, em O Globo. Ela aponta como a adesão aos déspotas do século 21 mantém a estrutura da adesão aos totalitarismos do século 20:
“No imaginário coletivo, temos tendência a dividir a sociedade em três categorias históricas no século 20: heróis, vítimas e carrascos. Na verdade, a maioria da população não se reconhece em nenhuma delas. É a via mais fácil não se incluir em nenhuma das três categorias, mas apenas seguir a corrente. Há o magnífico filme baseado no romance de Alberto Moravia [O conformista, de Bernardo Bertolucci], que mostra muito bem como o conformista acaba aceitando o que antes era inaceitável. No ensino da história, muitas vezes por meio da ficção ou de comemorações, temos uma visão um pouco distorcida do passado. Se tem a impressão de que a população não teve nenhum papel nessa história. E teve, muitas vezes, um papel de pilar e consolidador de ditaduras. É nisso que a democracia tem um papel importante, pois o povo tem os meios de impedir um golpe e a instalação de um regime criminoso. Eleger Bolsonaro, por exemplo, para mim, é brincar com o fogo, pois parece alguém capaz de tudo.”
A historiadora defende a memória como um dos principais instrumentos de defesa da democracia. “O importante é tomar consciência de nossa falibilidade e reconhecer que podemos nos transformar também em um bárbaro”, afirma. "A história não se repete, mas os métodos de manipulação, sim, porque a psicologia humana não muda. Em um contexto de crise, em meio a um grupo, o homem terá reações similares. Um dos métodos é difundir o medo, muitas vezes exagerado em relação à realidade. [...] Trata-se de confundir a fronteira entre o verdadeiro e o falso, desorientando totalmente as pessoas. Perde-se as referências, não se sabe mais no que acreditar. E, como dizia [a filósofa alemã] Hannah Arendt, quem não acredita em mais nada é manipulável à vontade. Ao ponto de inverter seus valores: o que era bom ontem já não o é mais hoje. É o que se observa em várias sociedades do mundo. As pessoas que, hoje, apoiam Jair Bolsonaro, há dez anos provavelmente defendiam os direitos humanos. Por isso que o ensino do Terceiro Reich é capital. Na história há muito poucos exemplos de uma sociedade tão civilizada, moderna, intelectual, que derivou rapidamente para a barbárie. É um ensinamento universal, que serve de alarme a todo mundo.”
O problema é que países como o Brasil não produziram a memória da ditadura justamente para absolver os assassinos, sequestradores e torturadores de Estado. A condição da retomada da democracia foi o perdão ao imperdoável. Essa política de amnésia resultou, em 2018, na eleição de um presidente que tem como herói um torturador e assassino de civis. Diante de uma população desmemoriada, ao final do primeiro ano do governo do déspota eleito vimos um roteiro semelhante se repetir, com as necessárias adaptações a uma época impactada pela Internet. Ainda que a memória no Brasil seja frágil, porém, ela existe. Não há desculpa para omissão. Nem há qualquer inocência no suposto conformismo.
O problema, no Brasil e em outros países que vivem processos políticos semelhantes, é também de memória recente. Esta que está sendo construída agora, não só nas mentiras disseminadas nas redes sociais por Bolsonaro e sua familícia, mas também nas narrativas que isolam a economia da carne que sangra. Como se a evocação do AI-5 por Paulo Guedes não tivesse nada a ver com suas escolhas econômicas, como se o Posto Ipiranga fosse radicalmente diferente do dono do posto. Está em produção uma memória falsa, o que é pior do que desmemória. Pior do que não lembrar é lembrar de um acontecido que nunca aconteceu.
Entre as tantas perversões da ditadura, uma se mostrava particularmente enlouquecedora para aqueles que escolheram lutar contra o regime de opressão. Enquanto homens e mulheres eram vigiados e perseguidos dia e noite, afastados de seus postos, demitidos de seus empregos, transformados em párias e criminalizados, enquanto livros, jornais, filmes e peças de teatro eram censurados, enquanto brasileiros precisavam deixar o país para salvar a vida ameaçada pelo Estado, enquanto os que ficavam eram sequestrados, torturados e mortos por agentes do Estado, uma maioria fingia que nada estava acontecendo. Fingia tanto que acabava acreditando que não eram gritos de dor e de terror o que ouvia. Era o cidadão de bem que apenas seguia a corrente, protegendo os próprios interesses e avaliando o que poderia ganhar com o estado das coisas.
Começamos a testemunhar hoje o mesmo mecanismo perverso. Com todas as desculpas possíveis, auxiliadas pela polarização que desloca o perigo para uma falsa oposição. Com todos os erros e os crimes do PT no poder, o antipetismo não é justificativa aceitável para alguém seguir a corrente. Não tem mais clima para se fingir de iludido. Basta ter vergonha na cara para perceber que não se trata mais do PT. Se trata da corrosão do que ainda resta de democracia no Brasil. Se trata da autorização para roubar enormes pedaços de floresta, desmatá-los e botá-los no nome dos autores do crime. Se trata da conversão das forças de segurança em milícias com autorização para matar. Se trata da criminalização de quem defende os mais frágeis, usando para isso o aparato do Estado. Se trata de genocídio de negros —e também de indígenas.
Há muita gente se fingindo de ovelha para lavar as mãos diante do que vive o Brasil. Mas há também gente angustiada perguntando o que fazer diante do que já não consegue deixar de ver. A estes, respondo que ninguém vai dar a resposta. Esta resposta terá que ser criada, coletivamente, por iniciativa dos que fazem a pergunta. Em cada profissão há o que fazer. Este é um momento em que precisamos fazer melhor o que sabemos fazer, mas também precisamos fazer bem o que não sabemos. Apenas o que sabemos já não é suficiente. O que somos já não é suficiente. Temos que ser melhores do que somos para enfrentar este tempo em que já não há tempo. E temos que ser juntos, fazendo laços e tecendo redes entre nós.
Este é o desafio de 2020. O ano novo não está dado. 2020 só será novo se nossa resistência resgatar o presente das mãos dos déspotas. Esta é a única resolução possível diante do que vivemos e do que testemunhamos. Cada um de nós precisa se responsabilizar pelo horror do nosso tempo.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, construtor de ruínas, Coluna Prestes - O avesso da lenda, A vida que ninguém vê, O olho da rua, A menina quebrada e Meus desacontecimentos, e do romance Uma duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
Retrospectiva: Ações da FAP fortalecem valores democráticos
https://youtu.be/FqqpFnV29Z8
Ao longo deste ano, a FAP (Fundação Astrojildo Pereira) fortaleceu ainda mais a sua visão de ser referência para a cultura e a política democrática no Brasil. Promoveu o estudo e a reflexão crítica da sociedade, de maneira a construir referências teóricas e culturais relevantes para a defesa e a consolidação do Estado Democrático de Direito.
Todas as ações da FAP foram sustentadas por valores inegociáveis: democracia, transparência, sustentabilidade, solidariedade, reformismo, ética, equidade e cosmopolitismo. Além disso, a diretoria da fundação teve o comprometimento de planejar todas as ações do próximo ano, baseando-se no planejamento estratégico. A seguir, confira os principais fatos que enriqueceram a história da fundação, em 2019.
» Janeiro
A FAP manteve o seu objetivo de difundir os ideais democráticos e os princípios republicanos, a liberdade, a igualdade de oportunidades, a cidadania plena e a justiça social, assim como o seu compromisso de contribuir para o conhecimento coletivo. Por isso, em janeiro, lançou o livro Presença Negra no Brasil: do século XVI ao início do século XXI, do historiador Ivan Alves Filho. O evento foi realizado em Copacabana (RJ).
A FAP também revelou, na revista Política Democrática online, o impacto da suposta corrupção na usina hidrelétrica de Belo Monte nas comunidades da região de Altamira, no Sudoeste do Pará.
» Fevereiro
O fortalecimento de ações envolvendo a juventude brasileira seguiu como o grande compromisso da FAP em 2019. Em fevereiro, a Fundação reuniu mais de 100 pessoas no 3º Encontro de Jovens Lideranças, do dia 24 ao dia 28, no Hotel Fazenda Mestre D’armas, em Padre Bernardes, a 110 quilômetros de Brasília. O presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, realizou o encerramento do evento com uma grande palestra aos participantes.
Já a revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP, destacou que a morte da vereadora Marielle Franco é resultado do poder das milícias no Rio de Janeiro. Na época, o assassinato dela e do motorista Anderson Gomes estava prestes a completar um ano, sem elucidação.
A FAP também promoveu a palestra gratuita e educativa Internet Segura: proteja-se dos perigos na rede, na Biblioteca Salomão Malina, no Conic, em Brasília. O evento, em alusão ao Dia Mundial da Internet Segura, foi realizado com a presença do publicitário Nuan Rodrigues, especialista em Inbound Marketing e Diretor Estratégico da agência L2ZD.
» Março
A FAP manteve o seu compromisso com a transparência em 2019. Uma das grandes ações do mês de março foi a realização da reunião do Conselho Curador, com a presença do presidente do colegiado, Cristovam Buarque, no auditório Arildo Dória, que é conjugado com a Biblioteca Salomão Malina, em Brasília. Ele ressaltou a relevância dos conteúdos produzidos pela fundação.
Na ocasião, o diretor-financeiro da FAP, Ciro Leichsenring, apresentou a prestação de contas da fundação, destacando o aumento dos investimentos da fundação em ações voltadas para a coletividade e a melhoria de gestão. Além disso, o diretor-executivo Caetano Araújo detalhou os critérios sobre a política de publicações da entidade. Araújo explicou que as publicações da FAP são baseadas em algumas linhas gerais, como a história da luta do antigo PCB (Partido Comunista Brasileiro), que deu origem ao PPS e ao Cidadania, respectivamente; a participação do PCB no mundo cultural; a democracia no Brasil e no mundo e reformas de Estado e políticas de equidade, entre outras.
» Abril
Para contribuir com o debate de assuntos relevantes, atuais e de interesse público, a FAP investiu em uma publicação especial sobre os impactos da reforma da Previdência, no momento em que o Congresso Nacional discutia o assunto a todo vapor. Em abril, a revista Política Democrática online, produzida e editada pela fundação, publicou reportagem especial em que especialistas defenderam atenção aos mais pobres e mais vulneráveis para evitar aumento da pobreza extrema no país.
» Maio
O historiador Alberto Aggio, diretor da FAP e professor titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista), explicou em detalhes qual é a identidade e a política do Cidadania, o partido político que reforça a esquerda democrática e que é oriundo do PPS (Partido Popular Socialista). A análise séria e objetiva de Aggio foi destaque da revista Política Democrática do mês de maio. A mudança de identidade do partido foi realizada, em congresso da sigla, em março.
» Junho
Com a presença da militância do partido Cidadania, autoridades políticas de Estado e a sociedade, a FAP apoiou o projeto “Contexto Político e as Reformas de que o Brasil Precisa”. O evento foi realizado com palestra do deputado federal Rubens Bueno (Cidadania-PR) e participação de demais autoridades políticas e acadêmicas, no dia 19 de junho de 2019, em Cuiabá (MT).
Em junho, em meio ao crescimento de feminicídios no país, a FAP realizou o Workshop de Krav Magá: defesa pessoal para mulheres, na Biblioteca Salomão Malina e no Espaço Arildo Dória, no Conic, em Brasília. O evento serviu como mais um meio de discussão sobre violência e criminalidade contra as mulheres e ensinou técnicas para que elas usem artes marciais para autodefesa. O workshop teve parceria com a Hebrom Escola de Artes marciais.
Com a participação de autores literários, a FAP também lançou, em junho, o Clube de Leitura Eneida de Moraes, na Biblioteca Salomão Malina, na área central de Brasília. Na ocasião, também foi lançada a Roda de Leitura: as mil faces da literatura. O objetivo dos dois eventos é incentivar ainda mais a prática de leitura e discussões dos temas abordados nas obras.
Para fortalecer o seu principal veículo de comunicação, a FAP também lançou, em junho, o novo projeto gráfico da revista Política Democrática online: mais moderno, interativo e com design mais arrojado.
» Julho
Em julho, as ações da FAP seguiram em plena atividade e a Batalha de Poesias Slam DéF, realizada pela juventude da periferia de Brasília na Biblioteca Salomão Malina, ganhou ainda mais repercussão. As histórias de luta e superação dos jovens participantes foram destaque da revista Política Democrática online, mostrando o protagonismo deles na busca pela garantia de direitos e para o fortalecimento da democracia.
» Agosto
Com transmissão ao vivo pelo site e redes sociais da FAP, o seminário Desafios da Democracia: um programa político para o século XXI reuniu nomes importantes da política para discutir o assunto. Na ocasião, o presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, disse que o país precisa de uma “frente” que reúna protagonistas em uma “nova formação política” para ser apresentada como alternativa à sociedade. O evento foi realizado pela FAP, no dia 24 de agosto, na Casa do Saber, em São Paulo (SP).
A seguir, confira os vídeos dos palestrantes no Seminário Desafios da Democracia:
» ‘Nova formação política não é novo partido’, afirma presidente Roberto Freire
» ‘País está ameaçado por este maluco’, diz Marta Suplicy sobre Bolsonaro
» ‘Os desafios são uma nova forma de pensar as relações’, afirma deputado Arnaldo Jardim
» ‘O mundo evangélico vai tomar conta da política brasileira’, afirma deputado Rubens Bueno
» ‘A democracia tem a qualidade linda de respeitar o outro’, diz vereadora Soninha Francine
» ‘A democracia passa por uma crise epocal’, diz Alberto Aggio
» ‘Vou fazer a reflexão com os instrumentos da história’, diz Gianluca Fiocco
» ‘A democracia é um sistema novo’, analisa Carlos Melo
» ‘Qualquer coisa que a gente tente generalizar é extremamente perigoso’, diz Paulo Fábio Dantas
» ‘Subestimar Bolsonaro é atirar no próprio pé’, diz Rubens Bueno
» ‘Não se pode falar em desenvolvimento sem tratar de inclusão social’, diz Sérgio C. Buarque
» ‘Talvez a gente tenha de repensar os planos para o futuro’, diz Paulo Ferracioli
» Daniel Ribeiro Leichsenring aborda função do Estado e do mercado
» Arnaldo Jardim cita destruição do ‘centro democrático’
» Eduarda La Rocque defende órgãos de qualificação de informação democráticos e independentes
» ‘O movimento negro é um movimento de conquistas’, destaca Ivair Alves
» ‘A grande questão é qual desenvolvimento a gente quer construir’, alerta Mauro Oddo Nogueira
» ‘Estamos vivendo uma guerra de narrativas’, afirma Daniel Coelho
» ‘Há desconexão muito grande entre pessoas e meio ambiente’, observa Alexandre Strapasson
» Senadora Eliziane Gama alerta para o crescente desmatamento na Amazônia
» Guilherme Accioly diz que ‘aquecimento global é de longe a coisa mais ameaçadora do planeta’
» ‘Negar a nossa natureza vai contra tudo que podemos fazer pelo bem estar’, diz Virgínia Parente
» ‘Temos que começar imediatamente a construir projetos eleitorais’, Luiz Paulo Vellozo Lucas
» José Eduardo Faria sugere discussão com inclusão de mais política externa
No dia 25 de agosto, a FAP reuniu o presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, dirigentes da executiva nacional e representantes de diretórios estaduais do partido para discutirem a proposta de curso de formação política Jornada da Cidadania, a ser disponibilizado à sociedade em uma plataforma de ensino a distância da fundação a partir de janeiro de 2020.
Em agosto, a FAP também apoiou o evento “A Fé, o Movimento Evangélico e a Política”, que foi realizado, em Brasília, para discutir as relações entre o movimento evangélico e a política, tema de grande atualidade e que exige dos partidos, militantes e parlamentares um refinamento de conceitos e de posturas. O humanismo e a paz foram destacados como referências basilares.
» Setembro
Aberto pelo presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, o seminário Cidades Inteligentes foi realizado pela FAP, em Brasília, com a participação de possíveis pré-candidatos a prefeitos pelo partido. “O Brasil é um país profundamente injusto, desigual e com problemas graves do século XIX”, disse o líder político, na ocasião.
Veja, abaixo, os vídeos dos palestrantes do seminário Cidades Inteligentes:
» ‘O Brasil é um país profundamente injusto e desigual’, afirma presidente Roberto Freire
» ‘A gente faz um governo reto, rápido, eficiente, transparente e online’, diz Luciano Rezende
» ‘Se não investirmos nos nossos jovens, não vamos mudar o Brasil’, alerta Toshio Toyota
» ‘Que a gente nunca pense que fazer gestão pública é algo extraordinário’, sugere Juarez Amorim
» Mauro Oddo diz que Brasil ainda não conseguiu transformar criatividade em produto
» ‘A gente precisa ensinar para o novo’, destaca Cláudia Leitão
» Marcelo Calero diz que população está ansiosa por ações de economia criativa
» ‘Turistas evoluíram e querem estar o tempo todo conectados’, alerta Bárbara Blaudt Rangel
» ‘O maior divulgador do destino é o próprio morador da cidade’, afirma Alexandre Pereira
» Pollyana Gama afirma que turismo deve considerar sustentabilidade do meio ambiente
» Alberto Aggio faz avaliação do seminário e destaca atuação da FAP
» Arnaldo Jordy diz que seminário levou ao público temas de bastante relevância
» Ciro Leichsenring fala do compromisso da FAP com formação de possíveis candidatos
» Outubro
Em outubro, a FAP realizou uma série de reuniões para a realização do curso de formação política Jornada da Cidadania, totalmente gratuito e online. Os pilares programáticos do curso são: ética e integridade na ação política, estratégia e liderança, fundamentos da teoria política e democracia, comunicação eficaz e casos de sucesso. Mais informações podem ser encontradas no site do curso (www.jornadadacidadania.com.br). Início das aulas está previsto para o dia 23 de janeiro.
A Biblioteca Salomão Malina, mantida pela FAP, também passou a oferecer cursos de idiomas gratuitos à população. As aulas de inglês, espanhol e japonês são ministradas por professores voluntários.
» Novembro
O Conselho Curador da FAP realizou, no dia 22 de novembro, a segunda e última reunião ordinária e extraordinária deste ano, em Brasília. O colegiado aprovou a realização, a partir de janeiro de 2020, do curso Jornada da Cidadania, por meio da plataforma de educação a distância. O objetivo é contribuir para o aprimoramento da democracia brasileira e ser uma alternativa de boa política diante da polarização e radicalização partidárias que tomam conta do país.
Na ocasião, o diretor-financeiro Ciro Leichsenring fez a apresentação da prestação de contas e explicou o planejamento financeiro da fundação para o ano de 2020, considerando os pilares estratégicos da fundação. O diretor da FAP Caetano Araújo expôs ao conselho a política editorial da entidade e o coordenador da Jornada da Cidadania, Marco Marrafon, também explicou em detalhes o planejamento da Jornada da Cidadania
Editado e lançado pela FAP no Rio de Janeiro, o livro Jalapão, Ontem & Hoje, dos geógrafos Pedro Pinchas Geiger e Willian Guedes Martins Defensor Menezes, foi destaque de reportagem do Jornal da Globo. A obra comprova a alta qualidade das publicações editadas pela fundação.
No dia 21 de novembro, estudantes universitários, professores e pesquisadores lotaram o auditório do Espaço Arildo Dória, em cima da Biblioteca Salomão Malina, no lançamento do livro “Caminhos Invertidos” (Editora Prismas), do historiador Victor Augusto Ramos Missiato. O público participou do debate que abordou as trajetórias de partidos comunistas no Brasil e no Chile, como tratado na obra, que é resultado da tese de doutorado do autor, sob a orientação do historiador e professor Alberto Aggio, que também é diretor da FAP. O consultor político e diretor da FAP Caetano Araújo e o professor de história Marcus Vinícius de Oliveira também participaram do debate.
» Dezembro
FAP conclui planejamento de ações para 2020, focado em cursos, eventos e debates. No primeiro semestre, será realizado o 4º Encontro de Jovens, com participantes de todo o Brasil, em Corumbá de Goiás, de 15 a 18 de janeiro. Ao mesmo tempo, a equipe da FAP intensifica os últimos detalhes do curso de formação política Jornada da Cidadania, que está previsto para começar no dia 23 de janeiro.
Balanço Geral das Atividades da Biblioteca Salomão Malina
Mantida pela FAP na área central de Brasília, a Biblioteca Salomão Malina se mantém como um importante meio de conhecimento e atividades culturais para a população da capital federal. No total, de janeiro a dezembro de 2019, a unidade registrou 6.139 frequências de pessoas no local, de segunda a sexta-feira, garantindo acesso a diversas obras literárias e possível empréstimo delas. Na foto acima, João Natchtigall, médico que realizou 74 empréstimos em 2019 na Biblioteca.
Ofereceu, ainda, oportunidade de leitura no local de jornais diários e revistas de circulação nacional, assim como acesso gratuito a internet.
Ao longo do ano, 3.306 obras literárias foram doadas pela FAP por meio do quiosque cultural localizado na biblioteca. Nas mãos das pessoas, as publicações podem trilhar caminhos ainda maiores nas mãos da população e contribuir para a sabedoria coletiva.
Affonso Celso Pastore: Em defesa das agências reguladoras
Cabe às agências reguladoras independentes exercerem livremente o seu papel
Mais uma vez, o presidente da República demonstrou profundo desconhecimento sobre o papel e a importância das agências reguladoras ao reclamar do seu "excesso de independência". Nada mais errado!
Uma das condições fundamentais para elevar a produtividade total dos fatores e acelerar o crescimento econômico é investir pesadamente em infraestrutura, o que, diante de um governo sem recursos, somente pode ser feito pelo setor privado na forma de concessões. Quando o governo faz um leilão competitivo – no sentido que é aberto a empresas nacionais e estrangeiras, evitando a formação de um cartel –, e concede ao ganhador a construção e a administração de uma rodovia, uma ferrovia, um porto, um aeroporto, uma usina geradora de energia ou uma linha de transmissão, está também criando um “monopólio natural”. O concessionário daquele serviço passa a ser o único a oferecê-lo, e para ser tolhido na tentação de explorar seu “poder de mercado”, quer elevando as tarifas de forma a penalizar os usuários, quer negligenciando na qualidade do serviço prestado, tem de obedecer às regras e aos limites impostos por uma agência reguladora independente, que use critérios técnicos e econômicos para garantir a qualidade e o preço dos serviços.
No passado, na grande maioria dos países eram os governos que realizavam tais investimentos. Mas, com o tempo, o mundo foi aprendendo que – desde que bem regulado – o setor privado é muito mais eficiente do que o governo. Há extensas análises realizadas por economistas mostrando que as “falhas do governo” neste campo superam em muito as “falhas de mercado”, que no passado eram usadas como justificativa para que essa atividade fosse executada diretamente pelos governos (Megginson e Netter; From State to Market: A Survey of Empirical Studies on Privatization). Simultaneamente a teoria econômica foi evoluindo, criando o novo campo – a Teoria da Regulação – que atualmente é perfeitamente entendido por economistas, formuladores e executores de políticas públicas, e em cuja criação e desenvolvimento contou com a contribuição de Jan Tirole, que em 2014 ganhou o Prêmio Nobel por seus estudos nesse campo.
Até recentemente, o Brasil vinha cometendo inúmeros erros no campo da regulação. Cito apenas dois exemplos. No afã de “exercer a sua autoridade” de presidente da República, Dilma Rousseff alterou as “regras do jogo” quando este ainda estava em andamento, quer no caso da renovação de concessões na transmissão de energia elétrica – através da MP 579 –, quer na fixação dos critérios relativos ao cálculo da receita de pedágio nas rodovias, quando eliminou a cobrança de pedágio sobre o eixo suspenso dos caminhões.
Introduziu, com isso, um “risco regulatório” contra o qual o setor privado teria de se defender elevando as tarifas de forma a produzir uma taxa de retorno que o compensasse, ou baixando a qualidade do serviço prestado. Mas a presidente Dilma foi além e, para “proteger” os consumidores de energia elétrica e os usuários das estradas, colocou um limite superior às taxas de retorno admitidas nos leilões, que nada tinham de competitivos, compensando o custo incorrido pelo vencedor do leilão com um subsídio nos empréstimos do BNDES, que era o único financiador possível naquelas condições. Tal volume de interferências criou enorme risco, afugentando os investimentos.
Que implicações essas decisões tiveram sobre as agências reguladoras? Uma de suas tarefas seria observar os dois lados da moeda na fixação das tarifas, o dos usuários e dos fornecedores do serviço. Para garantir que a remuneração aos investimentos fosse a mais benéfica para os usuários, teriam de garantir a ausência de um risco regulatório, o que significa que teriam de ser as agências, e não o presidente da República, que determinaria tanto as regras nas renovações das concessões na transmissão de energia quanto o que os concessionários de rodovias deveriam cobrar no pedágio. Seguidos critérios técnicos, decididos por agências reguladoras independentes, tais erros não teriam sido cometidos.
O presidente da República pode ter enorme contribuição ao bom funcionamento da economia garantindo a independência das agências reguladoras, impedindo que pressões políticas contaminem as suas decisões. Cabe às agências independentes exercerem livremente o seu papel.
*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.
Antonio Risério: Lugar de fala é instrumento para fascismo identitário
Conceito traz consigo a ânsia autoritária de calar a diferença
Minha intenção, aqui, é colocar o tal do lugar de fala no seu devido lugar. Mas, antes disso, me sinto na obrigação de fazer umas observações preliminares.
De uns tempos para cá, temos visto uma onda de violência se encorpando assustadoramente em todo o país. São calúnias, linchamentos verbais, agressões físicas. Partindo tanto do segmento atualmente mais barulhento da esquerda, cristalizado nos movimentos identitários e suas milícias (eufemisticamente tratadas como “coletivos”), quanto da extrema direita, com sua ponta de lança na boçalidade bolsonarista.
Recentemente, intelectuais de esquerda, a exemplo de Renato Janine Ribeiro, vêm falando sobre o assunto. Denunciando, por exemplo, ações para impedir que críticos do atual governo se manifestem em festas ou feiras literárias que, como a de Paraty, se converteram em arraiais juninos do identitarismo. Mas a crítica esquerdista a uma ascensão do fascismo entre nós tem sido feita de maneira estranha e sintomaticamente seletiva.
O que vemos são ataques ao fascismo de direita —e silêncio sobre o fascismo de esquerda. Como no dito popular, os macacos se negam a olhar o próprio rabo. E isso embora, em nossa conjuntura recente, o fascismo de esquerda tenha saltado na frente, como vimos em 2013, numa feira literária em Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, quando extremistas identitários impediram o geógrafo Demétrio Magnoli de falar e praticamente o expulsaram da cidade.
Antes que algum esquerdista proteste, aviso que uso a palavra “fascismo” a propósito de qualquer iniciativa que vise a exercer controle ditatorial sobre postura e pensamento dos outros, a fim de impedir que estes questionem dogmas de determinado grupo que se considera portador da verdade e do destino histórico da coletividade.
Digo isso porque, muito curiosamente, ainda existe quem pense que a esquerda —apesar das atrocidades protagonizadas por Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Fidel Castro etc.— é imune ao fascismo.
Bem, o fascismo identitário corre solto, com sua pitoresca mescla de revolucionarismo fraseológico e conservadorismo ideológico (afinal, ninguém mais fala em transformação global da sociedade e instauração de um novo mundo; antes, luta-se por maior participação e mais oportunidades no interior da sociedade que aí está— batalha por empregos, salários etc., com todos ansiando fazer parte do “mainstream”, o que não tem nada de errado, mas também nada tem a ver com subversão e muito menos com socialismo) e seu típico pessimismo programático com relação às sociedades ocidentais modernas, mas com o neofeminismo fechando os olhos para a opressão masculina entre muçulmanos e o racialismo neonegro fingindo não ver a exploração do negro pelo negro em Angola ou na Nigéria, por exemplo.
E aqui, finalmente, chego ao ponto que anunciei. É o tal do lugar de fala, que defino como expediente fascista típico do identitarismo, em sua ânsia de calar a diferença, silenciar a outridade. Mas, como tem gente que acha que esse lugar de fala é fundamental, avanço então para dar a minha visão (mesmo resumida) de tal procedimento supostamente democrático, mas, na realidade, perversamente ditatorial e excludente.
Sim: “lugar de fala” é uma perversão ideológica doentia de um antigo truísmo sociológico. No caso, a banalidade sociológica foi distorcida em guilhotina ideológica, destinada a cortar cabeças genital ou cromaticamente diferentes ou política e ideologicamente discordantes. Um instrumento ou mecanismo fascista feito sob medida para eliminar dissidências.
Aprendemos há muito, com a sociologia, a fazer a leitura de qualquer discurso em conexão com a “posição de classe”, com o lugar do discursante na estrutura da sociedade e em sua hierarquia sociocultural. É o beabá da sociologia, embora sua aplicação nem sempre seja fácil e imediata (pode ser altamente complexa, se tomarmos como objeto de análise, por exemplo, o discurso de Karl Marx ou o do nosso Joaquim Nabuco), a menos que cedamos à tentação emburrecedora do chamado marxismo vulgar, que acaba não dizendo nada sobre nada.
Mas vejamos em plano geral. O que a filosofia e a sociologia ensinam, pelo menos da passagem do século 18 para o 19 e até aos dias de hoje, é que as ideias (os discursos, na gíria mais moderna) têm sua origem em alguma base fundamental, ou em algum espaço basilar, que é exterior ao mundo das próprias ideias. Vale dizer: as ideias se configuram num espaço, base ou recanto extraideacional.
Já se pensava assim quando Destutt de Tracy publicou seus “Eléments d’Idéologie” em 1801. O sociólogo berlinense Reinhard Bendix sintetiza: “As ideias derivam exclusivamente de percepções sensoriais, acreditava ele. A inteligência humana é um aspecto da vida animal e ‘ideologia’ [na acepção de ciência das ideias] é, portanto, parte da zoologia. Tracy e seus colegas achavam que, através dessa análise reducionista, no sentido de atividades mentais serem atribuídas a causas fisiológicas subjacentes, haviam chegado à verdade científica”.
Já o marxismo clássico reza que cada classe social gera uma certa consciência da vida e do mundo. De Destutt de Tracy a Marx, no entanto, o pressuposto é o mesmo: o significado último das ideias deve ser buscado não nelas mesmas, mas no que está por trás delas, sejam constrangimentos físicos, sejam condicionamentos sociais.
Aí estão balizamentos teóricos do lugar de fala, na tradição do conhecimento filosófico e social. O que diferencia esse lugar de fala do lugar de fala do identitarismo? Simples. Mas antes façamos uma observação necessária. O lugar de fala identitário não deixa de ser um retrocesso a Destutt de Tracy, no sentido de que volta a tomar a realidade ou a situação física da pessoa (não se pensa mais em classe social, claro) como base e explicação de tudo.
O identitarismo representa assim um retorno epistemológico à configuração física do indivíduo. Especificamente, à organização genital da pessoa (não no sentido complexo da “Teoria Psicanalítica da Libido” de Karl Abraham, é claro, mas no do simplismo neofeminista, corpo marcado pela presença do célebre “penis erectus”, ou com a fenda subclitoridiana e seus lábios se abrindo sob pelos pubianos) ou à pigmentação da pele (a melanina da bioquímica) ou mesmo à negação metafísica da bipartição sexual objetiva da espécie humana (e não me lembro quem escreveu que toda negação se contém no espaço daquilo que nega). Ou seja: estamos nos reinos da vagina e da melanina.
Mas há uma diferença imensa, escandalosa mesmo, entre a disposição sociológica e a predisposição identitária. Para a sociologia, o que está em tela é uma constrição relativa à “posição de classe” do indivíduo. Um condicionamento (e não um determinante, por sinal) desenhado pelo lugar do indivíduo, do grupo ou da classe na estruturação hierárquica da sociedade.
Para a perversão identitária, a conversa é outra: essa posição na estrutura da sociedade, antes que ser tomada como realidade a ser imparcialmente reconhecida e examinada, assume um significado moral: é razão de condenação inapelável (se o sujeito se achar na posição de “opressor”) ou de celebração irrestrita, de canonização como fonte de legitimidade discursiva (se o sujeito se achar na posição de “oprimido”).
Vale dizer: para a sociologia, trata-se de compreender o fenômeno —para o identitarismo, trata-se de julgar. E quem por acaso se encontrar no lugar do “opressor” deve ter a voz cassada, deve ser calado, mesmo que à força, na base do grito e da porrada. Daí que, regra geral mesmo, tudo que o identitarismo define como “inclusivo”, a exemplo do seu “lugar de fala”, é coisa que circunscreve um agrupamento e implica a exclusão dos demais. E assim o que vemos, à nossa frente, é o paradoxo da inclusividade excludente.
Mas vamos finalizar. Não me lembro agora quem fez a distinção política precisa. Nestes últimos anos, a liberdade de expressão e o pensamento independente sofrem pressões e ameaças vindas de duas direções poderosas. No espaço geral da sociedade, elas vêm basicamente da extrema direita. No espaço mais restrito do campo universitário e do mundo artístico-intelectual, vêm basicamente da esquerda identitária.
Plantado com clareza no campo da esquerda democrática, penso que temos de combater esses dois fascismos, na base do vigor, do rigor, da criatividade e da coragem. Combater “ambos os dois” —como diria o velho Luiz de Camões. Hoje, a liberdade, juntamente com a necessidade de redução das distâncias sociais, é questão essencial da vida brasileira.
*Antonio Risério, poeta, romancista e antropólogo, autor de "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros" (ed. 34) e "Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária" (Topbooks)
Sergio Lamucci: Juro baixo é o grande trunfo para 2020
Com mais crescimento e uma trajetória mais benigna para a dívida, a percepção de risco melhora, tornando o cenário mais favorável para o investimento no país
A forte queda dos juros e a expectativa de que a Selic ficará baixa por longo período melhoraram consideravelmente o cenário para a recuperação cíclica e para a dinâmica das contas públicas no Brasil.
Mesmo se o Banco Central (BC) não cortar mais a taxa básica em 2020 e a mantiver em 4,5% ao ano ao longo do ano que vem, um juro real (descontada a inflação) pouco acima de zero deverá ter efeito importante sobre a atividade, contribuindo também para reduzir as despesas financeiras do setor público. Com mais crescimento e uma trajetória mais benigna para a dívida, a percepção de risco melhora, tornando o cenário mais favorável para o investimento no país.
Um avanço mais firme do PIB de modo sustentado vai depender do aumento da produtividade, mas o quadro de juros baixos deve sustentar a retomada cíclica, ainda que seja importante uma queda expressiva das taxas cobradas em empréstimos e financiamentos. Juros menores tendem a permitir um crescimento do PIB acima de 2% por algum tempo, desde que não haja uma piora acentuada no cenário externo e o governo não crie incertezas e problemas desnecessários, como na relação com o Congresso.
Para o ano que vem, o Bradesco prevê uma expansão da economia de 2,5%, uma aceleração em relação ao 1,2% esperado para este ano, amparada no nível baixos dos juros e na recuperação do mercado de trabalho. “As melhores condições financeiras, com juros em patamar historicamente baixo, favorecerão os setores ligados a crédito, como o automotivo, as indústrias de eletrônicos e de bens de capital, construção residencial e infraestrutura”, aponta o banco, em relatório.
Além disso, a recuperação do mercado de trabalho deve ganhar força, com o aumento da formalização - em novembro, o país criou quase 100 mil vagas com carteira assinada, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Foi o oitavo mês seguido de geração de vagas formais, e o melhor resultado para novembro desde 2010. “Isso deve adicionar maior dinamismo ao consumo das famílias e impactar positivamente o comércio varejista, os serviços prestados às famílias e o sistema de saúde privado”, dizem os economistas do Bradesco, que também veem “um cenário favorável para todo o complexo carnes, a exploração de petróleo e a mineração, em dinâmicas setoriais próprias”.
Os juros baixos também devem estimular o investimento por parte das empresas, avalia o Bradesco. A confiança empresarial tem melhorado e está em curso um processo de redução das incertezas. “As exportações devem se manter em baixo patamar, mas a demanda interna deve compensar”, diz o banco, para quem “os aportes seguirão concentrados em modernização e automação, ainda mais se considerarmos o elevado nível de ociosidade em alguns segmentos”.
À medida que a indústria cresça com mais força, porém, o excesso de capacidade se reduzirá, aponta o Bradesco. Desse modo, há uma expectativa de que a retomada seja puxada pelo consumo das famílias e pelo investimento, ainda que a ociosidade elevada freie apostas em projetos de ampliação da capacidade produtiva, pelo menos num primeiro momento.
O economista-chefe do Bradesco, Fernando Honorato, diz que, em evento recente promovido pelo banco em Nova York, ficou claro que o investidor estrangeiro “quer ver crescimento”. Essa é a grande prioridade do capital externo, segundo ele. Se confirmadas as previsões para 2020, o Brasil será uma das principais economias do mundo a registrar uma aceleração mais expressiva do crescimento no ano que vem. Isso pode atrair recursos estrangeiros para a bolsa, cuja alta em 2019 foi puxada por dinheiro local, e para projetos de infraestrutura e outros setores da economia, diz Honorato. Muitos investidores externos permanecem reticentes em relação ao país devido ao desempenho fraco da economia nos últimos anos.
Os juros baixos também melhoraram significativamente as perspectivas para a trajetória da dívida pública. A mudança fica clara nas projeções para a dívida bruta do Santander, por exemplo. Em 2015, o banco via o endividamento bruto atingindo o pico de 91,7% do PIB em 2023. Na estimativa feita em 2017, o indicador alcançaria 88,7% do PIB também em 2023. Hoje, o banco acredita que o pico será de 77,8% do PIB, nível em que a dívida bruta baterá em 2021.
Em resumo, o indicador, um dos principais termômetros de solvência das contas públicas de um país, deverá subir menos que se esperava há alguns anos, além de atingir o seu nível máximo um pouco antes.
O economista Rodolfo Margato, do Santander, ressalta o papel dos juros mais baixos para a melhora das projeções. Também pesam a expectativa de um crescimento um pouco mais forte e as devoluções dos recursos do BNDES ao Tesouro, de acordo com ele. Isso ajuda a abater o estoque da dívida bruta, que deve fechar 2019 em 76,8% do PIB, nas projeções do banco.
Num quadro de elevado desemprego e inflação sob controle, os juros tendem a ficar baixos por um bom tempo. O Santander espera que a taxa recue dos atuais 4,5% para 4% no começo do ano que vem, enquanto o Bradesco acredita que a Selic cairá para 4,25%. Nos dois casos, a expectativa é que os juros não vão subir ao longo de 2020. A aprovação da reforma da Previdência e o teto de gastos também foram importantes para a queda da taxa nos últimos anos, por melhorar a sustentabilidade das contas públicas no longo prazo.
Para que os juros sigam em níveis baixos de modo duradouro é fundamental continuar com a agenda fiscal, diz Honorato, para quem é importante a aprovação de medidas que tornem viável o cumprimento do teto, o mecanismo que limita a expansão das despesas não financeiras da União. Também é preciso adotar iniciativas do lado da oferta, para aumentar a produtividade e, com isso, a capacidade de o país crescer a taxas mais elevadas, segundo ele. Margato diz que o ajuste das contas públicas não está completo, sendo necessário aprovar medidas que controlem a expansão dos gastos obrigatórios.
Depois de três anos de crescimento pífio, a economia entra em 2020 com a expectativa de expansão mais forte e uma situação fiscal mais favorável. Se o ambiente internacional não azedar e o governo não for uma fonte de incertezas e ruídos, o PIB parece caminhar de fato para uma expansão no ano que vem superior a 2%, nada brilhante, mas algo que não ocorre desde 2013.
José Castello: Brasil real se parece com ficção
Este mundo em que o presente é engolido pelo pesadelo já nos foi anunciado por Verissimo, Loyola, Noll e Joca Terron, entre outros autores
Livros crescem com o avançar do tempo. Alguns se tornam espantosos. Já se passam quase 40 anos que Ignácio de Loyola Brandão publicou Não Verás País Nenhum (Global, 1981). O romance desenha uma impressionante distopia que antecipa, em traços medonhos, o futuro brasileiro. Lido hoje, e isso é assustador, ele não trata mais de um futuro longínquo, mas de algo muito parecido com nosso presente. As distopias guardam esse poder perverso: quanto mais o tempo passa, em vez de se dissolverem no passado, elas se agigantam e devoram a realidade. Afirmam-se não mais como pesadelos, mas como verdade.
O romance de Loyola, que antevê um Brasil dominado pelo fascínio autoritário, pela destruição da natureza, pela legalização da violência e pela reinvenção perversa da História, traça um retrato aterrorizante de nosso futuro não mais distante e improvável, mas imediato.
Uma década antes, em plena ditadura militar, José J. Veiga publicou Sombras de Reis Barbudos” (Companhia das Letras), narrativa em que a tirania e a violência se apresentam como benignas. Assim como em Não Verás País Nenhum, o presente é dominado por uma organização todo poderosa conhecida apenas como o “Esquema”. Veiga desenha um futuro em que noções de eficácia, vantagem e lucro atropelam todos os valores humanos e se impõem como única lei. Ideário que, mais uma vez, antecipa nossos tempos.
Um salto para a frente nos traz a narrativas não menos atordoantes. A Morte e o Meteoro (Todavia), novela de Joca Reiners Terron, reafirma, de modo agudo, tudo o que a ficção de Loyola anteviu. Já não estamos em nosso presente, mas dez ou vinte anos adiantados. A Amazônia está destruída. Uma última e frágil tribo indígena, sem a floresta que sempre a abrigou, e em uma operação ousada, pede asilo ao México. Os valores humanos foram jogados no lixo. O mundo se torna inóspito e a paranoia, real. Já não há mais para onde fugir. Até porque Terron vislumbra um desastre ainda maior, que destruirá todo o planeta.
Mas a devastação não é só exterior, é também interior, como anuncia, aos calafrios, A Estética da Indiferença (Iluminuras), romance de Sidney Rocha. Em um mundo irrespirável, só nos resta sobreviver em condomínios fechados, isolados da realidade, bolhas arquitetônicas que, se trazem a sensação de segurança, geram também um indisfarçável sentimento de morte. Michi e Ana, os dois protagonistas, refugiam-se em um falso Éden, que mais se parece com a gaveta de um necrotério. Para não morrer, morrem.
O passado e história – como hoje – já não lhes interessa mais. Escondem-se numa espécie voluntária de sonambulismo, tornam-se fantasmas ambulantes a exibir sua falsa felicidade. Em Cromane, a cidade em que vivem, “a luz é sempre teatral”. O mundo fake derrotou a realidade e tudo o que sobra é uma grande melancolia. O livro de Sidney Rocha faz uma síntese do que nos resta para viver: ou nos fingimos de vivos, ou desaparecemos. Mas isso é uma escolha?
Este mundo em que o presente é engolido pelo pesadelo já nos foi anunciado por João Gilberto Noll na novela Harmada (Companhia das Letras), de 1993. Quando o real desfalece e sobram apenas prenúncios de morte, só resta ao protagonista vaguear, perambular, saltar de um ambiente a outro – de um palco a outro, como um ator sem papel. Não mais buscando alguma coisa, porque nada mais há a buscar, e tampouco fugindo, porque não adianta mais fugir, mas só para conservar a sensação – vaga, trêmula – de existir. O outro não passa de um vulto, ou de um objeto quebrado. Afundamos na solidão.
Esse cenário de falência espiritual já se anuncia em um clássico infelizmente esquecido como Os Ratos, de Dyonélio Machado, de 1935, ou no ainda hoje estranho e quase inaceitável Noite (Companhia das Letras), relato breve e dissonante que Erico Veríssimo publicou em 1954. No romance de Dyonelio, a impossibilidade de um futuro se sintetiza em uma dívida miserável com um leiteiro. O protagonista Naziazeno, como tantos de nós hoje, vaga por uma sociedade adversa, que lhe bloqueia seus caminhos para as necessidades mais elementares e que o vê apenas como “mais um”.
Também em Noite, de Veríssimo, o protagonista, desfigurado por uma sociedade que o descartou, já não é, senão, um fantasma. Ele circula pela cidade sem ter muita certeza de seu caminho, já que tudo o que a realidade lhe oferece são traços esfumaçados e miragens inconvincentes. Nos dois relatos, agiganta-se o sentimento do vazio – que, no nosso ano de 2019, se converte em depressões, suicídios e ataques de pânico. Quando não, e cada vez mais, na violência brutal. Quando a realidade adoece, aprendemos hoje a duras penas, cada um de nós adoece também. O mal que Dyonélio e Veríssimo capturam na primeira metade do século passado se parece, cada vez mais, com o nosso mal. A distopia engole o real.
*É autor de ‘Ribamar’ (Bertrand Brasil)
Eliane Brum: Protejam Erasmo. Ele pode ser assassinado a qualquer momento
Por que a violência na Amazônia aumentou no final de 2019 e por que a sociedade precisa se organizar para barrar as mortes
Quando vi Erasmo Alves Teófilo pela primeira vez, o que me chamou a atenção foi aquele homem se movimentando muito rápido numa velha cadeira de plástico branca. Vítima de paralisia infantil, porque não havia vacina onde ele vivia, Erasmo não pode caminhar. Mas lidera. Este homem que só conta com uma cadeira de plástico branca luta pela vida de cerca de 300 famílias de agricultores familiares e pescadores na Volta Grande do Xingu, em Anapu, na Amazônia paraense, uma das regiões mais sangrentas da Amazônia. Este homem sem movimento nas pernas movimenta-se mais do que a maioria dos brasileiros para manter a floresta em pé. Hoje, ele também conta com pouco mais do que sua cadeira de plástico para escapar da morte.
Erasmo, este brasileiro que todos deveriam proteger porque sua luta protege a Amazônia para todos nós, está ameaçado por grileiros (grandes ladrões de terras públicas) que agem na região de Altamira e Anapu com a desenvoltura que a impunidade sempre conferiu a este tipo de personagem na história do Brasil. Hoje, com o antidemocrata Jair Bolsonaro no poder, a grilagem tem se comportado como se tivesse autorização para ameaçar, para bater e também para matar. Para dizer, como mais de uma pessoa ouviu de um deles: “Nenhum juiz tem poder sobre mim”.
Entre 4 e 9 de dezembro, dois homens já foram assassinados em Anapu. Erasmo poderá ser a terceira vítima, caso a sociedade brasileira não seja capaz de se organizar para proteger a ele e a todos os outros agricultores familiares, indígenas, ribeirinhos e quilombolas que estão ameaçados na floresta. Ninguém deve jamais se cansar de pressionar as instituições a fazer seu papel no Brasil. Isso é essencial para o país não perder o pouco de democracia que ainda resta. Mas é hora de compreender que o Brasil chegou a um ponto em que, se a sociedade não se organizar para defender aqueles que estão lutando na linha de frente, estas pessoas vão morrer. Como já estão morrendo.
1) Os defensores da floresta temem não ver o Ano Novo
Enquanto a população de classe média das cidades do centro-sul do Brasil se prepara para as festas de final de ano, com recessos, férias coletivas, folgas prolongadas, este é um tempo de medo na Amazônia. Mais medo. As poucas instituições que se fazem presentes, a maioria apenas nas cidades maiores dos estados amazônicos, entram em recesso. Supostamente há plantão nas capitais. Mas, se o número de funcionários já é reduzido quando há expediente normal, como será possível contar com estas instituições? Também a maior parte das Organizações Não Governamentais (ONGs), que cumprem um papel decisivo na proteção da Amazônia, entram em férias coletivas. A população em risco se torna muito mais desamparada.
Essas pessoas não estão desamparadas porque frágeis. Só existe floresta ainda porque seus povos são muito resistentes e colocam seus corpos na linha de frente, fazendo uma barreira humana contra o avanço da grilagem. A questão é que agricultores familiares, ribeirinhos, quilombolas e indígenas lutam quase sozinhos para manter a floresta viva e como um bem público e coletivo. E lutam quase sozinhos contra forças muito mais poderosas, em geral armadas, que querem derrubar a floresta e especular com a terra para o lucro privado de poucos, hoje com o apoio explícito do Governo antidemocrático de Bolsonaro.
Em pouco mais de 40 dias, entre novembro e dezembro, quatro indígenas do povo Guajajara, na Amazônia maranhense, foram assassinados. Em Anapu, não são indígenas que morrem, mas agricultores que tentam fazer assentamentos sustentáveis em áreas públicas destinadas à reforma agrária, mas cobiçadas ou já exploradas pelos grandes grileiros da região. Também tombam pessoas que apoiam os trabalhadores rurais. Os grileiros se apresentam como fazendeiros, mas sua folha-corrida mostra que são ladrões de terras da União. Os reais fazendeiros deveriam desejar se diferenciar deles, em vez de apoiá-los ou tolerá-los, mas não é isso que tem acontecido.
2) Por que Anapu se tornou um campo de cadáveres
Pergunto a Erasmo, cada vez mais perto da morte matada, vivendo numa casa que até o sopro do Lobo Mau das histórias infantis pode colocar em risco, se ele acredita na lei. E ele responde: “Eu acredito. Especialmente na lei federal. Se não acreditasse, eu não estaria aqui”. Erasmo vive numa terra em que o mais forte é a lei. Erasmo é o mais fraco na terra da lei do mais forte. E Erasmo acredita na lei, esta representada pela Constituição, esta supostamente acima dos indivíduos, em defesa da coletividade. Sinto vontade de repetir esta frase dezenas de vezes e escrevê-la de trás para frente e de cima para baixo, para ver se sob algum ângulo o mistério se revela. Sentado na cadeira de plástico branco que lhe servem de pernas, sacaneado mil vezes e mais outras mil vezes, Erasmo é um brasileiro que acredita na lei.
Anapu entrou no mapa mental do Brasil e do mundo depois que a missionária americana Dorothy Stang foi perfurada por seis tiros em 2005, provocando uma comoção internacional. Mas Anapu deve ser olhada com redobrada atenção por muito mais do que isso. O município desenha o problema da terra, do desmatamento e da violência na Amazônia brasileira. Compreendendo o que acontece lá é possível entender bastante da tragédia que hoje compromete o futuro não só das novas gerações de brasileiros, mas do planeta.
Como é sabido, a ditadura militar (1964-1985) estabeleceu um imaginário sobre a Amazônia ― e converteu esse imaginário em propaganda que até hoje perdura. Os personagens que hoje se movimentam neste cenário, para matar e para morrer, são herdeiros do projeto da ditadura para a floresta também naquilo que ele tem de mais simbólico: “a terra sem homens para homens sem terra” ou o “deserto verde” ou ainda o “integrar para não entregar”. Todos estes slogans de meio século atrás estão vivos e atuando. Os conflitos de Anapu são produtos da Transamazônica, aberta literalmente a ferro e fogo sobre corpos de indígenas e de árvores.
Nos anos 1970, a ditadura dividiu a região em dois polos, chamados “Transa Oeste” e “Transa Leste”. A primeira porção vai de Altamira até Placas e recebeu maioria de assentados da região sul do Brasil. Esta é a área da rodovia que foi destinada à colonização oficial, para produção agrícola. Já na Transa Leste, entre Altamira e Marabá, autores apontam que predominou uma colonização espontânea, daqueles que são sempre esquecidos nos programas públicos oficiais, com migrantes vindos principalmente do nordeste brasileiro. Estes não tiveram apoio governamental para ocupar terras que eram consideradas menos produtivas. Sem esquecer que todas as terras, à leste e à oeste, tinham sido por séculos ocupadas pelos povos indígenas.
Essa história, portanto, começa com um genocídio, o perpetrado pela ditadura militar na construção da Transamazônica. Esta é uma parte. A outra é o prosseguimento de uma política de branqueamento do país que se iniciou ainda no período imperial. Vale a pena lembrar que o sul do Brasil foi colonizado, mais uma vez sobre o corpo dos indígenas, por imigrantes trazidos da Europa, em especial de países como Alemanha e Itália, no final do século 19 e início do século 20. Não só os indígenas foram espoliados de suas terras e boa parte deles mortos como, na hora de escolher qual era a população que deveria ser colocada no lugar, foram escolhidos imigrantes brancos. Naquele momento, era possível ter executado uma política pública para incluir os negros que deixavam a escravidão. Mas não. Importou-se brancos.
Na construção da Transamazônica, os novos colonizadores foram chamados no sul do Brasil, a maioria deles descendentes destes imigrantes que, por sua vez, colonizaram o sul do país vindos da Europa. Nem foi fácil para os imigrantes europeus que chegaram ao sul do Brasil no final do século 19 nem foi fácil para seus descendentes que chegaram à Transamazônica nos anos 1970. Foi uma saga. Mas foi muito mais difícil para os nordestinos que foram sem convite e sem apoio do governo, em busca do sonho da terra própria para se livrar do aluguel do corpo para os coronéis.
Nesta mesma região, a ditadura implantou também uma política de concentração da terra, pelos chamados Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATPs). Estes contratos eram títulos provisórios para lotes de 3.000 hectares. Eles foram oferecidos preferencialmente para pessoas de fora da região amazônica. Com frequência, os contratos eram acompanhados de financiamentos da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), uma sigla que ficou famosa pelos escândalos de corrupção que produziria também na região de Altamira e Anapu.
Para que pudessem ganhar o título da terra, os candidatos a proprietários tinham que comprovar, em cinco anos, a instalação de empresa agropecuária. Muitas destas terras foram repassadas a terceiros antes mesmo de ter título definitivo, e, em boa parte dos casos, o cancelamento dos títulos pelo governo nunca foi feito, embora não houvesse criação de empresa agropecuária. Terras públicas e financiamento público produziram e alimentaram um mercado de especulação de terras na Amazônia e um ciclo de grilagem e de pistolagem que perdura até hoje, grande responsável tanto pela destruição da floresta quanto de vidas humanas. O que testemunhamos hoje no oeste do Pará e também em outras regiões da Amazônia é resultado direto do projeto de exploração da floresta forjado na ditadura militar e nunca suficientemente reformado na democracia que se instalou após 1985.
3) A janela histórica perdida
Para estancar a espiral de violência na disputa de terras que ainda hoje pertencem à União, ou seja, são nossas, seria necessário fazer a reforma agrária que nunca foi feita. A melhor chance histórica de estancar o sangue depois da retomada da democracia ocorreu nos governos do Partido dos Trabalhadores, de 2003 a 2016. A reforma agrária constava no programa, e agricultores familiares e trabalhadores sem terra eram uma força importante na composição da base do partido. Embora algumas ações e políticas tenham sido implementadas, porém, a reforma agrária não foi realizada. E a oportunidade foi perdida.
Os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) foram criados em lotes que o Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) declarou serem improdutivos no final dos anos 1990. Os PDS foram desenhados em assembleias de agricultores para combinar agricultura familiar com atividades extrativistas, de coleta, como faz a população ribeirinha da Amazônia. Eram projetos de reforma agrária, que garantiam a terra para quem dela vive, combinados com o conceito de preservação ambiental.
Em 2003, no primeiro ano do governo Lula (PT), foram criados quatro PDS nas glebas Belo Monte e Bacajá, para o assentamento de 600 famílias. Aqueles que haviam se apossado destas terras públicas e também de gordos financiamentos públicos da Sudam reagiram com violência, na base da pistolagem, de incêndios criminosos e de derrubada da floresta. A missionária Dorothy Stang documentava e denunciava cada um dos ataques, exigindo providências das autoridades. A freira deixava claro que, para a preservação da floresta, seria necessário fazer antes a regularização fundiária. Foi executada.
Em 2005, a execução de uma freira de 73 anos com cidadania americana trouxe consequências indesejáveis para os grileiros da região. Demorou um pouco, mas o Estado se fez presente, instituições federais que não tinham escritórios na região abriram as portas. Ao longo dos mais de 13 anos no poder, os governos do PT foram se aproximando cada vez mais dos grandes latifundiários, a ponto de Katia Abreu ter se tornado ministra da Agricultura de Dilma Rousseff. Mas, no primeiro mandato de Lula, o compromisso com os pequenos agricultores ainda era forte também na prática. Não tão forte para uma reforma agrária efetiva, mas forte o suficiente para colocar o Estado em Anapu.
A morte de Dorothy Stang atrapalhou bastante os negócios de especulação da terra na região. Eles não cessaram, longe disso, mas ficou mais difícil. Fortes indícios apontavam naquele momento para a existência do que era chamado “consórcio da morte”, um pool de grileiros que determinavam a execução de quem estava atrapalhando as investidas sobre a floresta. A existência do consórcio nunca chegou a ser provada, mas na região poucos têm dúvida de que existe. Consorciados ou não, até 2014 os grileiros mantiveram uma atuação persistente, mas discreta.
4) O sangue dos Resplandes encharca a terra
Desde 2015, a violência em Anapu refletiu o aumento do poder dos ruralistas não só no Congresso, mas também no Executivo. Tudo acontece em cadeia na Amazônia, como em qualquer lugar. Entre 2015 e 2019, houve 15 assassinatos ligados à terra em Anapu, segundo a Comissão Pastoral da Terra ― e 19 segundo a contagem dos movimentos locais. Essas mortes mostraram que os grileiros aprenderam com o assassinato de Dorothy Stang. Nos últimos anos, os pistoleiros têm matado na cidade, em vez de na zona rural, para dificultar a associação do crime com os conflitos agrários. Como parte da polícia parece não ter muito interesse em investigar, a maioria dos crimes segue impunes. Quem precisa estabelecer a relação com as disputas de terra, para estabelecer as conexões de causa e efeito, são entidades da sociedade civil como a Comissão Pastoral da Terra.
Já em 2018, uma lista de marcados para morrer circulava na cidade como se fosse uma lista de compras de material escolar. Pouco antes de ser assassinado, em 3 de junho daquele ano, Leoci Resplandes de Sousa foi checar se estava na lista da morte. Um dos chefes da pistolagem local garantiu que não. E afirmou, inclusive, que caso estivesse, ele tiraria. Era assim. E segue assim. Não se sabe se este homem mentiu, porque não só Leoci foi assassinado, como também este chefe da pistolagem algum tempo depois. A lista ― ou as listas ― seguem ativas.
O que aconteceu com a família Resplandes é uma vergonha para o Brasil e para os brasileiros. Trabalhadores rurais em busca de terra, três Resplandes já foram mortos: Hércules, de 17 anos, Valdemir e Leoci, de 29. Todos em 2018. Quando Leoci foi assassinado dentro de casa, depois de voltar da roça, a família fugiu. Vivem assim, fugindo, sem nenhum apoio. E são achados. Em novembro, outro Resplandes foi baleado, mas sobreviveu. Não há certeza de que a tentativa de homicídio esteja conectada com os conflitos por terra de Anapu, mas tudo indica ser bastante possível.
Iracy Resplandes dos Santos, 53 anos, vive acuada. Claramente está com depressão, mas conta não ter confiança de buscar tratamento. Disseram a ela que a dor pode ser aplacada com tricô. Mas ela começa a tricotar e não consegue continuar. Vive o luto do filho mais velho, do irmão e do sobrinho. Em novembro, atravessou dias e noites no hospital cuidando do filho baleado, temendo a sua morte. Iracy tem dor e tem medo. Tem desespero. Tudo o que sonhou era um pedaço de terra para plantar. Acabou tendo que semear cadáveres. E nada indica que esta semeadura de corpos humanos irá parar.
5) O crime contra o Padre Amaro
Em 2018, ficou claro que a grilagem intensificava a violência e usava métodos mais ousados. Em 27 de março daquele ano, Padre Amaro Lopes, pároco em Anapu e um dos sucessores da missionária Dorothy Stang, foi preso numa operação cinematográfica para os padrões locais: 15 policiais, várias viaturas, armamento pesado. Parecia que o padre era Al Capone, isso numa cidade em que a maioria conhece os grileiros e pistoleiros pelo nome e cruzam com eles nas ruas sem que isso pareça perturbar a polícia.
Padre Amaro foi preso com um ramalhete de acusações. E jogado na mesma prisão em que Regivaldo Galvão, conhecido como “Taradão”, um dos mandantes da morte de Dorothy Stang, paga sua pena. Depois de três meses na cadeia, o religioso católico passou a responder às acusações em liberdade, mas até hoje sujeito a várias restrições e sem poder retomar o seu trabalho, o que claramente era o objetivo da operação.
Duas semanas antes de ser preso, Padre Amaro deu uma entrevista ao jornal The Guardian. Nela, afirmou que sua “batata estava assando”, referindo-se ao fato de que sabia que algo aconteceria com ele. “Como matar a Dorothy deu muita repercussão e problemas para os grileiros, eles vão forjar algum acidente ou inventar alguma coisa para me criminalizar”, disse na ocasião. Uma das acusações, a de assédio sexual, caiu em seguida, mas já tinha cumprido o objetivo de desqualificar o padre diante de parte da população de Anapu e da região.
A prisão de Padre Amaro foi precursora do método usado recentemente em Alter do Chão, na região de Santarém. No final de novembro, quatro brigadistas voluntários, que trabalhavam em conjunto com os bombeiros locais para apagar os incêndios na floresta, foram presos sob a falsa acusação de, justamente, atear fogo na mata. Na mesma data, a ONG Saúde e Alegria, uma das mais premiadas e respeitadas organizações brasileiras, foi invadida pela polícia e teve computadores e documentos apreendidos. É a nova etapa de criminalização justamente daqueles que ou denunciam os verdadeiros criminosos ou trabalham para combater seus crimes ou, ainda, para fortalecer a população local. Pesquisadores da área de segurança apontam que há um crescente aparelhamento das polícias para atuar na defesa de interesses privados.
6) Dezembro de sangue
Em Anapu, desde que Bolsonaro foi eleito, a atmosfera se tornou ainda mais pesada. É muito difícil encontrar alguém que aceite ser entrevistado, mesmo sem dar o nome. “O povo está morrendo”, dizem aos cochichos. Desde que acompanho a situação na região, nunca vi as pessoas tão aterrorizadas. Elas têm toda a razão, já que não contam com nenhuma proteção. Ao contrário, parte dos representantes do Estado parece atuar contra as verdadeiras vítimas.
Se a tensão e a violência aumentaram desde a eleição de Bolsonaro, em novembro houve um agravamento de cenário em diversas regiões da Amazônia. Em dezembro, tornou-se ainda mais alarmante. Todos os sinais mostram que a situação ruma para o total descontrole. É neste contexto que Márcio Rodrigues dos Reis, 33 anos, pai de quatro filhas, foi assassinado em 4 de dezembro, em Anapu. O assassino fingiu ser um cliente do seu mototáxi e o matou com um golpe de faca no pescoço. A garganta cortada, segundo repetem na cidade, assinala quem teria “morrido por falar demais”.
Márcio era uma das principais testemunhas de defesa de padre Amaro Lopes. Era também alguém que sabia bastante sobre o que acontecia na região. Cinco dias depois, em 9 de dezembro, o ex-vereador do PT e conselheiro tutelar Paulo Anacleto foi executado diante do filho pequeno na praça central da cidade. Segundo testemunhas, ele estava no carro com a criança quando foi alvejado por dois homens numa moto. Paulo Anacleto era amigo pessoal de Márcio e, segundo informações, estava revoltado o suficiente para comentar pela cidade que sabia muito bem quem havia sido o mandante da morte. Quem acompanha os conflitos agrários em Anapu não tem dúvida de que os assassinatos estão ligados.
Apesar de tentar por três dias seguidos, o EL PAÍS não conseguiu informações da polícia do Pará em nenhum nível ― local, regional e estadual. O delegado Lucas Luz, responsável pela Delegacia de Conflitos Agrários (DECA), especializada sediada em Altamira, a maior cidade da região, afirmou que não poderia falar sobre os casos porque estariam “sob segredo de Justiça”. A reportagem enviou um email para a Polícia Civil do Estado do Pará. A assessoria da corporação informou que o pedido estava “em análise” ― e não respondeu até a publicação do artigo. Em Anapu, os dois telefones divulgados da delegacia local aparentemente não funcionam ou não são atendidos.
O Ministério Público Federal, no Pará, instaurou procedimento para acompanhar as investigações e solicitar providências às autoridades de segurança pública do Pará sobre o que chamou de “a nova escalada de violência no município de Anapu”. “O cenário atual no município evidencia a ocorrência de reiteradas ameaças dirigidas a defensores de direitos humanos no campo. Em menos de uma semana, entre os dias 4 e 9 de dezembro, ocorreram dois assassinatos que podem estar ligados aos conflitos agrários históricos na região”, afirmou o órgão em nota pública. O MPF também solicitou informações sobre “as providências que estão sendo tomadas para prevenir e coibir a violência contra os moradores e lideranças dos lotes 96 e 97 da gleba Bacajá, devido à “pressão para expulsão de trabalhadores rurais”. Estes lotes são uma das áreas abarcadas pela liderança de Erasmo, hoje ameaçado de morte.
A principal causa dos conflitos nos anos recentes, além da impunidade que gera mais impunidade, é a omissão do Estado em fazer as ações de reforma agrária previstas em lei, abandonando o lado mais frágil, o dos agricultores familiares, a uma luta desigual com os grandes grileiros e suas milícias armadas. Como a luta é desigual, o resultado é o massacre de trabalhadores rurais e das pessoas que os apoiam. “Ao não adotar as medidas necessárias e previstas em lei para solucionar os conflitos agrários, há uma omissão do Estado que é ação”, afirma Sadi Machado, procurador da República em Altamira. “Há uma má vontade ativa por parte do governo federal de deixar de implementar a reforma agrária, que é uma política pública do Estado. Isso provoca conflitos, produz vítimas e destrói o meio ambiente. Claramente há um confronto entre a área técnica [de carreira] do Incra, órgão que foi bastante esvaziado na região, e a condução política do órgão. Esta situação se agravou neste ano.”
Ainda hoje, parte da sociedade e mesmo dos ambientalistas não entende que lutar pela reforma agrária é lutar pela floresta em pé. Sem justiça social na Amazônia não haverá justiça climática.
7) Por que agora?
As mortes recentes de indígenas e de camponeses ligados a conflitos agrários, assim como as prisões abusivas e a crescente criminalização das ONGs, deixam claro uma ofensiva da grilagem e de seus apoiadores, dentro e fora do Estado, em toda a região. Os sinais de que a violência só vai aumentar estão por toda a parte. Por que agora?
O cientista social Maurício Torres, professor da Universidade Federal do Pará, em Belém, e um dos maiores especialistas em conflitos agrários na Amazônia, apontou alguns caminhos de reflexão para esta coluna, que reproduzo aqui:
“A grilagem acontece em dois planos. Um no chão, onde se toma a área materialmente. Pistoleiros ‘limpam’ a terra de seus ocupantes legítimos (indígenas e camponeses), e a floresta é derrubada para consolidar a apropriação. Outro plano é no papel: quando, por meio da química mágica dos cartórios ou dos órgãos fundiários, acontece o destacamento da terra do erário público e sua transferência para o patrimônio privado do grileiro. A violência (e incluo aqui o desmatamento como sua variante) é o principal instrumento de controle de terras griladas. Quando esse mercado sujo de terras agita-se, a violência, como mecanismo da grilagem, é mais acionada. As assustadoras facilidades criadas para a consumação no papel do saque de terras públicas, que transformam o grileiro em ‘proprietário’ das terras das quais se apropriou ilegalmente, incendiou esse mercado. Falo, em especial, da MP 910 ― não só da sua promulgação, mas, mesmo antes, do efeito gerado pela especulação em torno dela”.
A Medida Provisória 910 é a MP da Grilagem produzida por Bolsonaro em 10 de dezembro. Antes dela, houve a MP da Grilagem de Lula, em 2009, e a MP da Grilagem de Michel Temer, em 2017. É importante recuperar o processo, porque do contrário não é possível compreender o presente.
O programa Terra Legal, de 2009, ainda no Governo Lula, é citado por Torres e outros pesquisadores como um marco no processo de legalização da grilagem na Amazônia. Ele foi instituído pela Medida Provisória 458, sancionada na forma da lei 11.952. Entre outras ações, regularizava todos os imóveis em terras públicas na Amazônia Legal, com até 1.500 hectares, desde que ocupados até dezembro de 2004. No discurso, o programa serviria para regularizar a situação dos pequenos posseiros, aqueles que viviam na terra e viviam da terra. Na prática, o programa serviu para regularizar a grilagem praticada pelos grandes. Na época, foi apelidado de “MP da Grilagem” e, depois, de “Lei da Grilagem”.
Os números ajudam a clarear os objetivos: os pequenos eram quase 90%, mas ocupavam menos de 19% do território; já os grandes eram menos de 6%, mas ocupavam 63% do território. Para os pequenos, a lei já existente era capaz de solucionar a situação e corrigir injustiças. Não era necessário criar nada novo. Assim, afirma Torres, o programa Terra Legal foi pensado para legalizar a grilagem.
O novo e controverso Código Florestal, de 2012, aprimorou ainda mais produção de legalidade onde antes havia crime. Mais tarde, com Michel Temer e um Congresso explicitamente corrupto, dominado pelos ruralistas, o processo se aprimorou e acelerou. A lei 13.465/17, nascida da Medida Provisória 759, foi sancionada em julho de 2017 por Temer. Também é conhecida como “Lei da Grilagem”.
Com a desculpa de “regularizar” a situação de pessoas que muitos anos atrás ocuparam áreas públicas “de boa fé”, para viver nela, a lei permitiu que grileiros que ocuparam terras públicas sabendo que eram públicas até 2011 pudessem “regularizar” seus “grilos” até 2.500 hectares, uma área equivalente a 57 Vaticanos. Basta expandir a produção de “laranjas” e os grilos são legalizados de 2.500 em 2.500 hectares. Neste ato “legal”, Temer e o Congresso anistiaram grileiros. Não só os anistiaram, como converteram criminosos em “cidadãos de bem”, totalmente dentro da lei, ladrões de terra pública em fazendeiros, quadrilhas criminosas em empresas.
Ao final do primeiro ano de governo, Bolsonaro criou a sua MP da Grilagem. Não há precedentes de algo tão escandaloso, pelo menos não no que formalmente tem se chamado de democracia. A MP da Grilagem de Bolsonaro é uma “masterpiece” da legalização da bandidagem. Com a mesma desculpa usada por Lula e depois por Temer, a da “regularização fundiária”, agora é possível legalizar terras roubadas da União até dezembro de 2018. Em resumo: você rouba do patrimônio público, destrói a floresta amazônica e, um ano depois, vira latifundiário legalizado e vai gozar a vida como “cidadão de bem”.
A mesma medida provisória também aumentou para até 15 módulos o tamanho da área que dispensa vistoria do Incra. Em alguns locais da Amazônia, isso significa mais de 1.500 hectares, O processo é praticamente autodeclaratório. O criminoso rouba um pedaço da floresta, diz ao governo que a área é dele e vira fazendeiro. Nenhum funcionário vai sequer checar. Como alguém acredita que vai sobrar floresta amazônica com este estímulo oficial para saqueá-la?
Maurício Torres analisa o impacto: “Há dois efeitos. O primeiro é o óbvio: a busca por terras públicas não destinadas aumentou, pois agora é só declarar que é o dono para se tornar dono. Essa situação aumenta também o conflito de grileiro comendo grileiro e, também, de grileiro expulsando camponês e indígena. Mas há um outro efeito, este mais sutil. A promulgação de algo dessa dimensão em benefício do grileiro, como é o caso da MP 910, passa uma mensagem de empoderamento, fazendo essa gente se sentir autorizada a tudo”.
As áreas que hoje estão em litígio judicial, ocupadas por agricultores familiares, mas disputadas por grileiros, vão ser tomadas à bala. É o que está acontecendo neste momento na Amazônia e particularmente em Anapu, que têm muitas áreas em litígio. Por isso mais lideranças estão ameaçadas de morte e grileiros têm dito nas ruas que não estão nem aí pra juiz. Por que estariam? Se o Congresso não barrar essa MP, a Amazônia se tornará uma floresta de cadáveres. Não só de árvores, mas de gente.
“Desde a construção das grandes rodovias na Amazônia, talvez nada tenha tanto efeito sobre o aumento da violência e do desmatamento do que essa MP pode gerar”, afirma Maurício Torres. “A medida irá privatizar dezenas de milhões de hectares, ninguém sabe ao certo, mas creio que algo entre 40 e 60 milhões de hectares. Isso significa a emissão de autorizações legais para a derrubada de 20% da floresta nas terras tituladas, algo em torno de 10 milhões de hectares. E isso só contando o que pode ser legalmente autorizado. Mesmo que uma parte disso já esteja desmatada ― e está mesmo ― o impacto será trágico.”
8) Como proteger Erasmo?
Em 2005, um dos principais grileiros da região deu carona a Dorothy Stang. Queria dar a ela um aviso. A missionária depois relataria as palavras deste homem: “Se alguém ‘invadir’ as ‘minhas’ terras, vai ter sangue até a canela”. Este homem, assim como meia dúzia de outros, todos eles bem conhecidos de quem vive na região, tem feito provocações em Altamira e região. É um sinalizador.
Parte do crescimento da violência e da crescente desenvoltura destes personagens miram nas próximas eleições municipais. Eles sentem que já estão no governo, em nível federal. Mas querem ocupar também o poder local para consolidar ― e facilitar ― a conversão do público no privado. Se nada foi feito para barrar a violência, as eleições municipais de 2020 poderão se tornar uma carnificina nas regiões amazônicas de conflito.
Neste cenário em que a lei é usada para proteger o crime contra o patrimônio público, é possível imaginar como estão vivendo ― e morrendo ― os mais frágeis. Como Erasmo, liderança que luta por 300 famílias de agricultores familiares em terras disputadas por grileiros. Na noite de 12 de dezembro, coincidência ou não, dois dias depois da assinatura da MP da Grilagem por Bolsonaro, um homem que trabalha para um dos grileiros das áreas em disputa foi até a casa onde Erasmo vive com os pais, já velhos, e a companheira. Antes de chegar lá, já tinha batido numa mulher e disparado três tiros. Uma das balas passou rente a uma vizinha que voltava da igreja. Diante da casa de Erasmo, o capanga do grileiro gritou e xingou. Queria que Erasmo saísse para falar com ele. A família se trancou dentro de casa.
Quando Erasmo conta o que aconteceu, seu corpo treme sobre a cadeira de plástico branca.
Esta é a vida de muitos que protegem a floresta para todos nós. Esta é a vida de Erasmo, enquanto não for morte.
Está avisado.
*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
José Goldemberg: Meritocracia e desigualdades sociais
Origem dos problemas que enfrentamos está nas características do capitalismo do século 21
As causas das grandes manifestações populares, recentemente, no Equador, no Chile, no Líbano, no Iraque, na Checoslováquia e em Hong Kong, que abalaram governos e instituições, são complexas, mas não há dúvida de que boa parte dos protestos se origina no aumento da desigualdade de renda que está ocorrendo no mundo todo.
Esse é também um dos temas centrais das eleições presidenciais dos Estados Unidos no próximo ano. Apenas 0,1% dos americanos – cerca de 300 mil pessoas, numa população de mais de 300 milhões – controlam 20% da riqueza nacional. A renda dessas pessoas nos últimos 40 anos cresceu muito mais rapidamente que a renda do restante da população.
O fosso entre ricos e pobres está aumentando não apenas nos Estados Unidos, como também no Chile, na Argentina, entre outros países, como o Brasil, conforme mostram dados recentes do IBGE. A desigualdade econômica, porém, é apenas parte do problema: desde os primórdios da civilização, 10 mil anos atrás, existem aristocracias que governam e se beneficiam do trabalho da população: as famílias imperiais da Antiguidade, os senhores feudais da Idade Média e o sistema colonial vigente até o século 20. Em todos esses sistemas, o mérito foi uma consideração secundária diante das relações de sangue, favoritismo e corrupção.
A Revolução Francesa, de 1789, extinguiu a monarquia e implantou o regime republicano, que abriu caminho para a emergência dos mais capazes, escolhidos pelo mérito. As vantagens da meritocracia foram compreendidas pelo rei Luís XV, da França, antes da revolução. Ele criou, em 1760, uma escola militar para treinar oficiais oriundos de famílias que não pertenciam à nobreza. Foi nela que Napoleão Bonaparte, vindo de uma província secundária como a Córsega, se distinguiu e iniciou sua meteórica carreira militar, o que então era raro.
A meritocracia para o serviço público foi introduzida na Inglaterra em 1830 e um dos sucessos indiscutíveis da colonização da Índia pelos ingleses foi a organização de um excelente serviço público, que dura até hoje.
Surgiram, contudo, recentemente nos Estados Unidos teorias de que a causa dos problemas da desigualdade de renda é a nova aristocracia de superdotados e supercapacitados, que substituiu a velha aristocracia do “sangue”, isto é das grandes famílias do passado, como Vanderbilt, Carnegie e Rockefeller. Os novos bilionários, como Bill Gates (Apple), Mark Zuckerberg (Facebook), Jeff Bezos (Amazon) e outros, passaram a ser membros da aristocracia do país. As universidades de elite como Stanford, Harvard, MIT, nas quais estudaram, estariam, portanto, alimentando a concentração de fortunas.
Mais ainda, os filhos desta nova aristocracia, que são excepcionalmente bem preparados para a corrida da meritocracia, reproduzem o que se chama de “casta hereditária”. Nessas universidades, a maioria dos estudantes vem efetivamente de famílias ricas.
Essas ideias se originaram na noção de que na Inglaterra o sistema educacional perpetuava o domínio da aristocracia nas posições do governo por meio dos egressos das grandes universidades, como Oxford e Cambridge, às quais as classes menos favorecidas não tinham acesso.
Um educador inglês de tendência socialista, Michael Young, escreveu em 1958 uma sátira sobre os efeitos que o sistema educacional vigente poderia ter no futuro. Na época os jovens de 11 anos eram submetidos a exames que mediam o seu QI (quociente de inteligência) e de acordo com seu desempenho eram encaminhados para os diferentes tipos de escolas: os melhores para as universidades, os piores para escolas profissionais para a indústria, o comércio e a agricultura.
A tese fundamental de Young é que faz sentido escolher pelo mérito as pessoas mais adequadas a uma atividade específica (como pilotar aviões ou dirigir uma empresa de energia), mas permitir que elas constituam uma nova classe social que não deixa espaço para outros é um absurdo.
A sátira de Young faz uma caricatura do que poderia acontecer no futuro: uma revolução populista que destrói o governo aristocrata criado pela meritocracia. Seu livro é da categoria das “distopias”, como o filme Metrópolis, de Fritz Lang, os livros Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell, que imaginaram um futuro em que elites privilegiadas controlavam completamente a sociedade e exploravam o resto da população.
É evidente, hoje, que as previsões da distopia de Young não se concretizaram. O controverso QI como único critério para alocação de crianças em escolas foi abandonado, já que é obvio que ele poderia variar ao longo do tempo, bem como as qualificações e predicações das pessoas. Competição e esforço individual têm papel importantíssimo no sucesso das pessoas, e não apenas o seu QI.
Outras experiências de “engenharia social” foram tentadas, também sem sucesso: os comunistas, após a revolução russa de 1917, aboliram os exames de seleção (vestibulares) nas universidades, abrindo suas portas aos “filhos dos trabalhadores”. Passados alguns anos o próprio Lenin se deu conta de que a construção do socialismo precisava de técnicos competentes e reintroduziu a meritocracia.
Meritocracia não é a causa das desigualdades econômicas que existem atualmente em muitos países, o que pode e deve ser resolvido pelo sistema de taxação das grandes fortunas. Os problemas que enfrentamos hoje se originam das características do capitalismo do século 21: a tecnologia moderna, largamente baseada na informática, depende muito mais de pessoal superqualificado do que o sistema industrial do passado – mineração, siderurgia, transporte e produção de bens de consumo –, que exigia grande quantidade de mão de obra e de materiais, ao passo que a informática depende fundamentalmente da inteligência que se cultiva e desenvolve nas universidades.
* Professor emérito e ex-Reitor da Universidade de São Paulo (USP)
Fernando Gabeira: Uma guerra particular
Simpatizantes de Bolsonaro frequentaram boas escolas e não fecharam suas cabeças para sempre. Podem mudar no futuro
Me segura que vou ter um troço. Esta é uma frase cômica, talvez muito vulgar para um tema clássico como a política externa de um país. No entanto, ela me parece adequada para definir os passos de Bolsonaro neste primeiro ano de governo.
Ele começou questionando a relação com a China, o nosso maior parceiro comercial. Os chineses não podem comprar o Brasil, dizia. Com o tempo, a turma do deixa-disso o convenceu de que as relações com a China são necessárias. Os próprios chineses, do alto de muitos séculos de experiência, estavam tranquilos. Hoje, Bolsonaro já fala de um futuro comum com a China.
Bolsonaro resolveu transferir a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém. De novo, a turma do deixa-disso o convenceu de que não era oportuno. O filho Eduardo insiste na tese. Isto indica, pelo menos, que na próxima geração de Bolsonaros no poder a transferência pode ocorrer. Isso leva tempo e depende das urnas.
Bolsonaro disse a Trump que o ama. Sua ideia era se alinhar totalmente com os Estados Unidos. De novo, a turma do deixa-disso alertou: calma, é preciso se aproximar sim, mas com cautela.
Ele achou que os Estados Unidos indicariam o Brasil para a OCDE. Pensava que isto viria de uma hora para outra. Os americanos indicaram a Argentina, pois já tinham compromisso anterior com o vizinho. Trump vai cumprir a promessa. Mas no seu tempo. Por enquanto, fala em taxar aço e alumínio do Brasil sem, ao menos, telefonar para Bolsonaro.
Por falar em Argentina, Bolsonaro criticou a escolha popular e disse que aquilo iria se tornar uma nova Venezuela. Resolveu que não iria à posse de Alberto Fernández. Em seguida, designou um ministro. Voltou atrás e disse que não iria mais ninguém. De novo, a turma do deixa-disso entrou em campo. Bolsonaro atenuou seu discurso e resolveu enviar o vice, general Mourão.
Nem sempre foi possível segurar Bolsonaro. Às vezes, ele teve um troço, como no momento em que divulgou o vídeo do golden shower. Sua ideia era mostrar como o mundo estava perdido.
Bolsonaro de novo teve um troço quando foi criticado por Macron e ofendeu Brigitte, a mulher do presidente francês.
No campo da política ambiental, aí sim não foi possível contê-lo. Ele não consegue entender a preocupação mundial com a Amazônia, muito menos com o aquecimento do planeta.
Mesmo contido em vários momentos, continuou tendo um troço, dessa vez acusando Leonardo DiCaprio de financiar as queimadas na Amazônia. Em seguida, investiu contra Greta Thunberg: pirralha, pirralha.
Bolsonaro não entende a influência crescente da juventude. Ainda mais quando é encarnado por meninas. Ele mesmo disse que fraquejou quando fez a filha, depois de tantos varões na família.
Ele no momento ainda tem o apoio de 30% dos brasileiros. Este índice é dinâmico, pode cair.
Mas a verdade é que muita gente como ele duvida do aquecimento global, questiona o papel das ONGs e acha Greta uma pirralha que deveria estar estudando.
Bolsonaro não é um relâmpago em céu azul. Nem simples produto da ignorância, pois seus simpatizantes frequentaram boas escolas. Isto não significa que fecharam suas cabeças para sempre. Podem mudar no futuro.
Por enquanto, não há outro caminho, exceto segurar para que Bolsonaro não tenha um troço. Em termos domésticos, tem sido mais difícil. Foi preciso a intervenção da Justiça para evitar que nomeasse um diretor da Fundação Palmares simpático à escravidão.
Além da Justiça, o próprio Congresso tem de segurar Bolsonaro: supressão de radares nas estradas, mineração em terras indígenas, ataques à ciência, ele vive tendo um troço.
Sexta-feira passada foi o 13 de dezembro. Felizmente, o ano termina sem que consigam ter o grande troço, aquilo que ameaçam constantemente nas entrevistas: um AI-5.
Foi um ano duro para todos os seguradores no Brasil, inclusive a imprensa, que sofreu alguns solavancos para evitar os troços. No entanto, chegamos ao final de 2019 sem grandes sobressaltos. E com muito mais experiência para a nova temporada. Creio que isto é uma forma modesta de dizer Feliz Ano Novo.
Demétrio Magnoli: Morte encefálica?
Há uma nuvem maior no horizonte da Otan, geralmente ausente da tela dos analistas
Hastings Lionel Ismay, principal conselheiro militar de Winston Churchill, assumiu o posto de primeiro secretário-geral da Otan em 1952. É dele a mais concisa definição dos objetivos da Aliança Atlântica: “manter a URSS fora, os EUA dentro e os alemães por baixo”. Missão cumprida, disseram os líderes ocidentais no aniversário de 40 anos da maior aliança militar da história, que coincidiu com o encerramento da Guerra Fria. Hoje, porém, o aniversário de 70 anos ficou marcado pelo diagnóstico do francês Emmanuel Macron, que advertiu para a “morte encefálica” da Otan.
O “encefálica” é a chave. A estrutura militar da Otan segue bem viva — e rejuvenescida. A dissolução da URSS, em 1991, borrou os contornos do inimigo, e a aliança engajou-se em operações inesperadas, na antiga Iugoslávia e no Afeganistão, enquanto seus integrantes europeus reduziam os gastos com a defesa. A intervenção russa na Ucrânia, em 2014, reacendeu a chama extinta, restaurando a missão original de proteção da Europa.
A Otan deslocou brigadas multinacionais para os Estados Bálticos e a Polônia e está erguendo uma força de reação rápida constituída por 30 batalhões mecanizados, 30 esquadrões aéreos e 30 navios de guerra. Ao mesmo tempo, com as notórias exceções da Alemanha, da Itália e da Espanha, os países europeus aproximam-se da meta de 2% do PIB em gastos com a defesa. O mal que aflige a Otan é político.
As análises convencionais apontam as tensões inscritas no triângulo EUA/Turquia/França, que emergiram como estilhaços de bombas de fragmentação nas celebrações dos 70 anos. A festa estranha, no Palácio de Buckingham, foi pontuada por recriminações de Donald Trump contra Macron e do autocrata turco Recep Erdogan contra todos os demais.
A “morte encefálica” é uma referência ao nacionalismo isolacionista de Trump, que chegou a qualificar a Otan como “obsoleta” e faz de tudo para erodir a União Europeia, um pilar geopolítico central da Aliança Atlântica. A frase sinistra do francês foi disparada em reação à decisão de Trump, adotada sem aviso aos aliados europeus, de retirada das forças americanas do norte da Síria.
Erdogan expressa as tendências centrífugas que ameaçam a aliança. A Turquia, pilar da Otan no Mediterrâneo Oriental, sentinela dos estreitos que separam a Rússia do Mediterrâneo, inclina-se na direção de Moscou. Há pouco, numa iniciativa sem precedentes, adquiriu da Rússia um sistema de defesa antimísseis. Abre-se uma fenda no “gigantesco escudo de solidariedade”, como o britânico Boris Johnson qualificou a aliança na cúpula dos 70 anos.
Macron simula falar como inflexível defensor da Aliança Atlântica quando coloca Trump na alça de mira. De fato, atualiza o antigo sonho francês de converter o componente europeu da Otan em uma organização de defesa autônoma, sob a liderança da França. A ideia de um “exército europeu” não encontra eco na Alemanha e, menos ainda, no Reino Unido. Mas, sobretudo, alarma os países da Europa Centro-Oriental que enxergam no guarda-chuva americano seu recurso vital de segurança.
“Obsoleta”, disparou Trump. Há uma nuvem maior no horizonte da Otan, geralmente ausente da tela dos analistas. Richard Nixon promoveu a aproximação sino-americana, em 1972, para isolar a URSS. Desde Barack Obama, os EUA passaram a definir a China como rival estratégico principal no século 21. Trump completou o giro, a seu modo. O presidente americano ensaia inverter a equação de Nixon, aproximando os EUA da Rússia para isolar a grande potência asiática.
A Casa Branca almeja o acordo dos europeus para classificar a China como inimigo estratégico da Otan — e, de imediato, quer alinhá-los à postura americana de cerco à Huawei, na moldura da “guerra do 5G”. Os europeus, porém, não parecem dispostos a seguir essa trilha. Um relatório confidencial adotado pela aliança dedica várias páginas à China, sem produzir nenhuma conclusão operacional.
A China foi mencionada, mas apenas em termos ambíguos, na cúpula dos 70 anos. Apaga-se no passado o bloqueio soviético de Berlim, em 1948, marco dramático que originou o “escudo de solidariedade”.