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Fernando Gabeira: A segunda década do século

Vivemos um sono tão longo. Só agora foi aprovado um marco para o saneamento. E a esquerda ainda resistiu

No passado houve um humorista chamado Don Rossé Cavaca, que escreveu algo mais ou menos assim: acorda que já é 1962 e você precisa trabalhar.

Num país em que os integralistas que atacavam o Barão de Itararé, seus filhotes queimam o Porta dos Fundos, o passado congelou. Talvez fosse necessário reescrever a frase de Cavaca: acorda que já é o século XXI e você precisa trabalhar. E é a segunda década, que já começa perigosa com os incidentes em Bagdá.

Vivemos um sono tão longo. Só agora foi aprovado um marco para o saneamento básico. E a esquerda ainda resistiu. Os manuais dizem que o saneamento é tarefa do governo, mas ao longo de todo esse tempo, ele se mostrou incapaz. Que se danem os manuais. A esquerda poderia, pelo menos, chegar ao pragmatismo dos chineses no século passado: não importa se o gato é preto ou branco…

Na educação, o ministro é monarquista, insulta as pessoas na rede e ainda aparece de guarda-chuva imitando Gene Kelly em “Cantando na chuva”.

Isso é um detalhe. Muita gente o acha incompetente. Bolsonaro e seus meninos, não. Por que não chegar a um acordo numa área tão decisiva?

É possível dizer: é assim mesmo, uns gostam, outros não, e bola pra frente. Acontece que em outra área decisiva, a infraestrutura, foi encontrado um denominador comum: o ministro é amplamente aceito. Por que não tentar o mesmo na educação, que todos concordam ser o tema essencial para o futuro do país?

A cultura brasileira, então, é um campo desolador porque se transformou numa trincheira de guerra ideológica. Tanto esquerda como direita parecem entender a cultura como uma extensão do discurso político. Esse modo de ver reduz a cultura a uma propaganda.

A política roubou o estatuto autônomo da arte. Isso é terrível porque as pessoas comuns passam a vê-la assim também: como um departamento auxiliar da corrente no poder. Governos não deveriam financiar propaganda mascarada de arte. Isso deforma a própria produção nacional, obrigando-a a se ajustar aos desígnios do poder.

Esta semana, vi uma biografia de Rodin, o grande escultor francês. Nela, ficou claro que uma encomenda do governo impulsionou a sua carreira.

Na Alemanha, durante algum tempo o governo financiou a dança de Pina Bausch. Pode-se contestar: vale a pena investir numa arte tão refinada e distante das grandes massas?

Nesses casos, entra em cena a projeção nacional, o chamado soft power. Na juventude, tive a chance de ver o Modern Jazz Quartet, financiado pelo governo americano para se apresentar em alguns países do mundo. Todos de terno escuro, gravata.

Tanto no caso de Rodin como no de Bausch e do Quartet, não entra em cena essa gritaria entre esquerda e direita: são manifestações da arte nacional com seu estatuto próprio.

Às vezes existe até um entendimento prévio entre governo e artista. Foi o que aconteceu durante a Grande Depressão nos EUA. O governo financiou uma viagem de James Agee, na época um talentoso romancista, e o fotógrafo Walker Evans. Eles saíram pelo interior falando com gente simples e produziram um livro intitulado “Vamos elogiar as pessoas comuns”. Creio que o objetivo ali era levantar moral, preparar o país para superar um áspero momento.

Ao aceitar a ideia de que a arte serve aos governos de direita ou de esquerda, de acordo com a maré, simplesmente estamos condenando a arte brasileira à sua morte simbólica. Enquanto perdurar esse clima, o ideal é produzir ignorando o governo.

No fundo, alguns governos são inimigos da arte. Ou pura e simplesmente se colocam contra ela, ou a entopem de dinheiro para ganhar apoio incondicional, que é uma outra forma de negá-la.

Eles acham que o país será lembrado no futuro e conhecido no exterior pelos seus generais, seus líderes carismáticos. O que fortalece a Europa diante dos olhos do mundo, inclusive aqueles que foram explorados por ela, é sua arte.

Na Copa do Mundo acentuei a importância dos escritores, sobretudo os do século XIX , na imagem que os russos queriam mostrar aos estrangeiros. Até escritores que foram massacrados pelo regime, como Anna Akhmatova, ganharam seu museu.

Esquerda e direita passam se engalfinhando, mas a arte fica. Claro que ela não vive numa torre de marfim, nem ignora os dramas de sua época. Mas não é marionete de partidos.


El País: ‘Doutrina Guedes’ coloca o Brasil à venda

Paulo Guedes, o ‘czar’ econômico do Governo Bolsonaro, realiza a maior privatização de empresas e recursos públicos da história do Brasil 

O Governo brasileiro quer vender tudo. Não é uma licença jornalística ou uma tentativa de capturar o leitor: são palavras literais do czar econômico de Jair Bolsonaro, o ultraliberal Paulo Guedes, e do próprio secretário-geral de privatizações, Salim Mattar, uma figura cuja mera existência é uma declaração de intenções. Para além da retórica, já colocaram mãos à obra, demonstrando que vão com tudo em um plano de privatização iniciado na época de Michel Temer, mas que ganhou força com o nacional-populista no poder. O objetivo autofixado de arrecadar 20 bilhões de dólares em 2019 através da venda, parcial ou total, de participações em empresas ou ativos de titularidade do Estado foi superado: até o fim de setembro as autoridades brasileiras tinham vendido participações em empresas arrecadando mais de 19 bilhões de dólares, oferecido infraestruturas por 6 bilhões e leiloado direitos de exploração de matérias-primas —principalmente petróleo— por 12 bilhões. Embora com mais obstáculos do que a nova administração gostaria, no último trimestre do ano —período para o qual ainda não há dados disponíveis—, o número continuou engordando.

O argumento para a venda dos ativos públicos que estão nas mãos do Estado repousa sobre dois pilares. O primeiro, fiscal: são necessárias mais receitas para reequilibrar as contas públicas e diminuir uma dívida que se aproxima perigosamente de 80% do PIB. O segundo, o que mais pesa, é puramente ideológico: Guedes, fiel à doutrina da Escola de Chicago, é totalmente favorável à ideia de que o setor privado é, por definição, melhor gestor do que o Estado e afirma que a venda de bens públicos diminuirá a corrupção. A ânsia privatista nasce, na boca do próprio ministro da Economia, da “disfuncionalidade” das próprias empresas públicas pela qual culpa o PT de Luiz Inácio Lula da Silva.

No horizonte do mandatário de ultradireita, surge um objetivo: obter mais de 320 bilhões de dólares em privatizações e leilões de infraestrutura —de poços de petróleo a estradas, aeroportos e portos— durante seu mandato. Somente no ano recém-iniciado Mattar anunciou a vontade do Governo de se desfazer de sua participação em 120 empresas, número que pode mais que dobrar caso se consiga a aprovação do Senado —um extremo que não está nada claro, dada a controvérsia política e a resistência social— pela venda da Eletrobras e suas subsidiárias. Para além da holding elétrica estatal, Guedes e sua equipe deram um passo à frente na venda do porto de Santos (o maior da América do Sul e o segundo mais importante da América Latina) e de suas ações na empresa de telecomunicações Telebras. Uma lista da qual já faziam parte os Correios e a Casa da Moeda e à qual acabam de ser adicionados os 21% da gigante da carne JBS, ainda nas mãos do Estado através do BNDES e que sairá ao mercado aproveitando seu bom momento no mercado de ações, em pleno auge das exportações para a China.

O movimento com a JBS é muito parecido com o que o Governo quer realizar com a Petrobras: continuar se desfazendo gradualmente de sua posição acionária, ainda superior a 42%. Paralelamente, o Congresso já se movimentou para facilitar a entrada de dinheiro privado no setor de tratamento de água em um país em que quase metade da população, cerca de 100 milhões de pessoas, ainda não tem acesso a esse serviço básico. São marcas de identidade com as quais Bolsonaro quer se apresentar aos investidores no final de janeiro no Fórum de Davos, onde tentará explorar a imagem de um Brasil que deixou para trás os dias de recessão e redobrará os acenos aos investidores.

Diante do alarde com o qual o Governo está vendendo o processo, prudência. “No papel, parece impressionante, mas a execução será muito difícil. É uma operação, principalmente, da porta para fora e convém diminuir as expectativas”, diz Aldo Musacchio, da Universidade Brandeis. “A experiência nos mostra que é preciso tomá-lo com um grão de sal”. Na mesma linha, Lourdes Casanova, diretora do Instituto de Mercados Emergentes da Universidade Cornell, pede cautela e alerta para dois riscos: a criação de monopólios privados, como aconteceu em outros países da América Latina, e a debilitada capacidade de negociação do Brasil depois de ter estabelecido um objetivo concreto de privatizações. “Sempre se deve vender a partir de uma posição forte. Quando você é obrigado e o comprador sabe disso, ele te pressiona”. A maioria dos brasileiros tampouco vê isso claramente: mais de dois terços dos consultados em agosto pelo Datafolha eram contra o plano de privatização.

“É verdade que o Governo conseguiu superar seu objetivo de arrecadação em 2019, mas principalmente pelas concessões, sobretudo as de petróleo e gás. A única opção de privatização total é a Eletrobras, para a qual esperamos que obtenha a aprovação do Congresso em 2020 ou 2021”, afirma Chris Garman, da consultoria Eurásia. "Em resumo: o progresso foi positivo, mas distante do que Guedes prometeu na campanha”. Um pouco mais otimista se mostra Alberto Chong, professor de economia da Georgia State University e autor de Privatizações na América Latina: Mitos e Realidades, que prevê “um aumento relativamente imediato na qualidade dos serviços públicos da maioria das empresas privatizadas, melhoria palpável na cobertura dos serviços” e, isso sim, “demissão de trabalhadores das antigas empresas estatais”.

Se os números projetados por Brasília forem finalmente alcançados, não haverá precedentes próximos de uma onda privatizadora dessa envergadura. Entre 1991 e 2001 o setor público transferiu o controle de 119 empresas ou participações em empresas. Obteve 68 bilhões de dólares e reduziu a dívida em 18 bilhões, segundo dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), números que fizeram da operação uma das maiores transferências de ativos públicos da história. “Ali foram vendidas as joias da coroa: Vale, Petrobras, Siderbras...”, destaca Musacchio. Mas mesmo depois esse movimento, país possui 418 empresas de titularidade pública, segundo a Fundação Getulio Vargas (FGV). Quase 140 delas estão nas mãos do Governo central e cerca de uma centena está no radar de privatizações de Bolsonaro. Fiel à sua estratégia de mão dura, seu ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, já disse que, nos casos em que for impossível vender, se decidirá diretamente pela liquidação. Tudo para cumprir sua missão: diminuir ao máximo o tamanho do Estado.


Luiz Carlos Azedo: Sonhos de King

"O ethos do ‘destino manifesto’ justificou a expansão territorial e a supremacia branca nos Estados Unidos, cujo eixo era a ideia de que Deus os estaria ajudando a comandar o mundo"

Memphis é uma das três cidades mais importantes da música norte-americana, com Nova Orleans e Nashville, famosa por ser a casa de Elvis Presley entre 1948 e 1977. A mansão Graceland, patrimônio da família Presley, continua sendo um dos pontos mais visitados do estado, atraindo cerca de 600 mil pessoas por ano. Ofusca o fato de que, poucos sabem, foi em Memphis que o pastor batista Martin Luther King Jr., prêmio Nobel da Paz, foi assassinado em março de 1968, aos 39 anos, durante uma visita em apoio aos trabalhadores em greve no serviço de saneamento da cidade.

Martin Luther King reivindicava salários dignos e mais postos de trabalho para a população negra. Além disso, defendia os direitos das mulheres e foi contra a Guerra do Vietnã, que considerava moralmente corrupta. Formado na Universidade de Boston, tornou-se pastor e membro da Associação Nacional para Avanço das Pessoas de Cor. Destacou-se como líder dos direitos civis por organizar protestos por todo o sul dos Estados Unidos, inclusive o boicote ao sistema de ônibus de Montgomery. Em Birmingham, no Alabama, em 1963, foi preso por duas semanas ao participar de um protesto, o que só aumentou seu prestígio.

Quando foi solto, King liderou a Marcha sobre Washington, na qual proferiu seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”, que está entre os dez mais importantes do século XX, no qual afirma: “Tenho um sonho de que meus quatro filhos viverão um dia em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo teor de seu caráter”. Seu êxito político se deve não somente à sua combatividade e resiliência e, enfim, ao seu martírio, mas à estratégia assentada em três eixos: a luta contra a ignorância, a não violência e o combate às desigualdades.

O pastor batista se inspirou num outro grande líder do século XX, Mahatma Gandhi, que derrotou o Império Britânico com métodos não violentos e muita perseverança na sua campanha pela independência da Índia. A crença de supremacia racial no Sul dos Estados Unidos era muito arraigada, mas não era um fenômeno isolado, mesmo depois da derrota dos nazistas na II Guerra Mundial. Ainda há muita gente que pensa assim. Na lógica da discriminação, crenças fervorosas estimulavam as pessoas a cometerem atos bárbaros, que exigiam uma mudança de atitude como resposta para detê-los. King dizia que “a ignorância sincera” era a ameaça mais perigosa que existe na face da Terra.

O sistema como um todo era racista no Sul dos Estados Unidos; King defendia a ação direta como forma de protesto para romper o bloqueio político-institucional existente, reformar a política e garantir a participação dos negros na democracia americana, o que se tornou, mais tarde, um objetivo alcançado plenamente, com a até então inimaginável eleição de Barack Obama à Presidência da mais poderosa nação do planeta. Na prática, o movimento pelos direitos civis teve que vencer as atitudes das maiorias em relação às minorias, para que essas pudessem usufruir de uma mudança duradoura.

Destino
Ao contrário de Malcolm X e Stokeley Camichael, líderes negros radicais, que defendiam a luta armada, King via a não violência nas ações diretas como uma demonstração de força moral, ainda que isso significasse apanhar da polícia durante os protestos. Foi agredido e ferido algumas vezes, mas nunca revidou fisicamente. Houve situações em que chegou a cancelar protestos e evitar discursos para não estimular mais violências. Entretanto, como até hoje está em nossas memórias, as cenas de ações brutais de policial contra os negros acabaram se transformando em poderoso instrumento de formação de uma opinião pública contrária à discriminação.

Decisiva para a ampliação da luta contra o racismo foi a agenda de King contra as desigualdades, lançada em 1963, com a “Marcha em Washington por Emprego e Liberdade”. Exigia que o governo investisse pesado contra a pobreza, com um programa de três pontos: renda mínima, moradia digna e acesso ao mercado de trabalho. Ele acreditava que a pobreza e a ignorância caminham de mãos dadas, o que é verdade.

King confrontou o ethos do “destino manifesto”, a doutrina do XIX que justificou a expansão territorial e a supremacia branca nos Estados Unidos, cuja ideia central era a de que Deus estaria ajudando os norte-americanos a comandarem o mundo. Expressão cunhada pelo jornalista John Louis O’Sullivan, no ano de 1845, coincidiu com a Marcha para o Oeste. Sustentava que a “providência divina” havia lhes dado o direito de conquista de todo o continente e também a missão de levar a liberdade a todos os povos. Muitos até hoje acreditam nisso, inclusive aqui no Brasil.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-sonhos-de-king/


Alberto Aggio: O populismo com as lentes de Gramsci

O video registra a minha exposição no Seminário Internacional Egemonia e Modernità – il pensiero di Gramsci in Italia e nella Cultura Internazionale, realizado em Roma entre 18 e 20 de maio de 2017. Nessa exposição procuro refletir sobre o conceito de populismo sugerindo que o conceito de “revolução passiva”, presente nos Cadernos do Cárcere, escritos por Gramsci nas prisões do fascismo, poderia ser altamente produtivo na análise daquilo que se convencionou chamar de a “era do populismo” na América Latina.

O texto completo da exposição encontra-se publicado no capitulo 10 do livro Itinerários para uma esquerda democrática, cuja referência de acesso também está aqui no Blog, na seção “Livros”.

 

https://youtu.be/2XJCbRNrq7E


Miguel Reale Júnior: O desafio de 2020

Tolerância deve ser a virtude consolidadora da República nestes tempos de confronto

Em 14 de maio de 1989 publiquei artigo na Folha de S.Paulo em que ponderava ser o momento propício a seduções inconsistentes, como se via no sucesso de Fernando Collor nas pesquisas eleitorais, sobressaindo a postura impetuosa do candidato como caçador de marajás. Lembrava então que conteúdo, passado político e compromisso com a liberdade eram desprezados, valendo mais buscar um salvador sem maiores avaliações ou perquirições. E indagava se seria Collor moralizador da administração, pois quando prefeito biônico de Maceió nomeara mais de 4.500 funcionários, a maioria apaniguados.

Seria consolidador da democracia o jovem deputado federal Collor, que votara contra a emenda da eleição direta para presidente? Seria instrumento de justiça social o deputado que apoiou os decretos de arrocho salarial? Seria Collor o construtor do futuro, pois preferira votar em Paulo Maluf, e não Tancredo Neves, para presidente? E concluía que o momento requeria muito mais que impensadas saídas milagrosas. Mas pouco valiam tais considerações!

Já em maio de 2018, igualmente ano de eleições, disse em artigo publicado nesta página: “Assusta que o pré-candidato Bolsonaro arregimente adeptos quando suas ideias são manifestamente elogiosas à violência na política”. Trazia para aumentar esse espanto exemplos de suas manifestações, pois aplaudia a tortura como meio de obtenção de prova; a seu ver, “o erro da ditadura foi torturar e não matar”; “Pinochet devia ter matado mais gente”; “não poderia amar um filho homossexual”. Terminava o artigo considerando que aceitar essa candidatura presidencial, alimentada por tais ideias, seria a volta piorada da ditadura pela via do voto. Mas pouco valiam tais considerações!

Ambos, Collor e Bolsonaro, terminaram o primeiro ano de mandato, conforme indica o “monitor-popularidade” do Estadão, com reduzidas taxas de satisfação, abaixo de 30%, tendo os dois iniciado o governo com mais de 50%. Vê-se, portanto, que a impensada busca de um salvador, tratado como mito, se decompõe facilmente, mesmo porque a decepção não decorre apenas das exageradas expectativas positivas, mas da realidade negativa não visualizada pela emoção dominante durante o processo eleitoral, que disfarça a face verdadeira do preferido nas urnas.

As circunstâncias de ambos em seguida ao primeiro ano do mandato têm aspectos parecidos e diversos. Após o fracasso do Plano Collor, a inflação reincidia e se instalara um processo recessivo. Collor envolveu-se nas tramas corruptas de seu auxiliar predileto, PC Farias, e a cada dia perdia força no Congresso Nacional, estando sem partido. Decrescia o respeito da sociedade civil.

Com Bolsonaro, a inflação está contida e há melhora da economia, mas não tanto quanto desejam alguns agentes econômicos. Mas há uma grande pedra no sapato, relativa à possível corrupção familiar no que tange ao emprego dos membros da família da ex-mulher do presidente no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, com participação nos salários auferidos, além das investigações sobre as relações do clã com milícias fluminenses. Bolsonaro não tem articulação política no Congresso, está sem partido e não terá tão cedo. A sociedade civil o deplora.

Mas há um fator fundamental existente à época da debacle de Collor e inexistente hoje: a presença de líderes capazes de construir uma conciliação, um ponderado centro político garantidor de harmonia social, representado por homens como Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Franco Montoro, Antônio Carlos Magalhães, Marco Maciel.

Exemplo da importância dessa circunstância está no seguinte episódio: como um dos redatores do impeachment de Collor, fui procurado por chefes militares em vista também de minhas relações com Ulysses e com os líderes do PSDB. Esses militares desejavam saber se essas lideranças apoiariam o governo Itamar Franco, pois a única preocupação do setor fardado era com a governabilidade. A resposta, como não podia deixar de ser, foi positiva. E esses líderes conduziram o País em conjunto com Itamar, tornando-se viável o Plano Real.

Fácil é pretender exercer o poder com radicalismos e demagogia. Difícil é ter autoridade na conciliação, buscando impor harmonia e acatamento por via de compromisso que reúna os diversos atores, com a escolha consentida e refletida de prioridades e pela negociação tolerante, que ameniza o conflito sem eliminá-lo, supera os impasses e se prepara para os próximos, evitando desbordar na violência.

Os conflitos são perenes, mas com ponderação e persuasão se formulam caminhos temporariamente redutores de embates. Numa época de tanta paixão, de comunicação impensada e rápida pelas redes sociais, é ainda mais necessária uma autoridade que se afirme por gerar confiança sopesada e consistente.

Para tanto há de se ter lideranças que tenham por alicerce a coragem de reconhecer no antagonismo não o desastre fatal, a fraqueza, mas a própria força da democracia. Tolerância deve ser a virtude consolidadora da República nestes tempos escuros de confrontos à flor da pele.

Esse o grande desafio para 2020. Pouco se pode esperar de Bolsonaro como mediador de controvérsias. Ao contrário. De outra parte, o governo não tem no Congresso líderes que possam falar por ele, estabelecer prioridades e conseguir compor propostas negociadas para superar divergências nas reformas tributária, administrativa e política e no combate à desigualdade social.

Assim, com presidente tosco e na falta de chefias partidárias capazes de assumir a condução da grande política, a sensação é de um país em busca sôfrega de recuperação econômica que supra as deficiências da ausência de comando, antes que o descontentamento e a descrença nos Poderes constituídos venham a materializar-se nas ruas. Nosso futuro é opaco, sem perspectivas claras.

* Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça


Demétrio Magnoli: Chamado de Trump brasileiro, Bolsonaro não passa de um imitador vulgar

Que ninguém se engane: o espectro da revolta social ronda o ano dois

Jair Bolsonaro é a manifestação brasileira da onda mundial do nacionalismo populista de direita. Bolsonaro é o “nosso” Trump —o “nosso” Orbán, Salvini ou Erdogan. O diagnóstico anterior tem grãos de verdade, mas erra no que é essencial. Ele não serve como bússola para delinear os rumos do governo e, sobretudo, identificar os riscos potenciais que pesam sobre a democracia brasileira.

Bolsonaro macaqueia o discurso de Trump et caterva. Por meio de Olavo de Carvalho e do filhote 03, costurou pactos com a “internacional dos nacionalistas”. Contudo, no fundo, o fenômeno brasileiro é uma singularidade. Ao contrário de seus ídolos, nos EUA e na Europa, Bolsonaro carece de raízes na cultura política nacional. É, para usar a expressão de Roberto Schwarz, uma “ideia fora de lugar”.

Trump et caterva ascenderam na maré de incertezas, angústia e raiva impulsionada pela recessão global e pelas sucessivas crises do euro e dos refugiados. Bolsonaro, por sua vez, foi transportado ao Planalto nas asas de dois acidentes concomitantes: a depressão econômica manufaturada pelo lulopetismo e o colapso do sistema político precipitado pela Lava Jato. Mais: na hora decisiva, o deputado insignificante beneficiou-se do atentado cometido por um desequilibrado. Jamais saberemos ao certo, mas o incidente dentro do duplo acidente pode ter selado o resultado eleitoral.

Um marxista diria que Bolsonaro é um acaso, não uma necessidade histórica. Trump está ancorado nas sombrias tradições americanas do nacionalismo isolacionista (America First), do nativismo étnico e do racismo legalizado. Salvini, Orbán e Erdogan refletem correntes profundas das histórias italiana, húngara e turco-otomana. Bolsonaro, porém, não passa de um imitador vulgar, um importador de línguas estranhas. Não é que faltem, entre nós, as árvores do ultraconservadorismo ou do autoritarismo. É que a versão olavo-bolsonarista dessas ideias não tem registros no nosso passado. A Aliança pelo Brasil, partido clânico, traça as fronteiras de um gueto político.

A algaravia das redes sociais ilude os militantes e engana os analistas. Bolsonaro não dispõe de sólidas bases populares: equilibra-se, precariamente, no disseminado antipetismo e na monumental incompetência do chamado centro político. A erosão da popularidade do presidente, ritmada pela resistência institucional a seus intentos arbitrários e pelas investigações sobre os laços do clã familiar com o mundo das milícias, ameaça solapar os alicerces do governo. Nessas circunstâncias, mais que nunca, Bolsonaro depende de Paulo Guedes.

FHC tinha uma hiperinflação para destruir. O Plano Real abriu-lhe o caminho à massa do eleitorado pobre —e à reeleição. Lula tinha um superciclo de commodities para financiar políticas de subsídio, renda e consumo. As periferias das metrópoles e o Nordeste garantiram-lhe tanto a reeleição quanto o triunfo da sucessora desastrada. Bolsonaro, um acaso eleitoral e uma singularidade ideológica, não tem nada disso. Precisa, já no ano dois, de um vigoroso crescimento do investimento com amplo impactos nas dinâmicas do emprego e da renda.

Paradoxalmente, é na fragilidade estrutural do governo que mora o perigo. O Brasil não é o Chile, mas 2013 foi aqui. Que ninguém se engane: o espectro da revolta social ronda o ano dois. Sebastián Piñera reprimiu, antes de negociar e recuar, seguindo os roteiros do equatoriano Lenín Moreno e do colombiano Iván Duque. Mas, assim como não é o “nosso” Trump, Bolsonaro não é o “nosso” Piñera. Separa-os, sobretudo, o valor atribuído à democracia. Diante do desafio real, o que faria seu governo?

Ideias fora de lugar podem até deitar raízes, conseguindo naturalização e cidadania. O processo exige adaptação —ou seja, mudança e sincretismo. No ano um, porém, aprendemos que Bolsonaro é sempre igual a si mesmo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


El País: América Latina busca estabilidade após a explosão popular

Região enfrenta as consequências dos protestos populares e a consolidação de novos Governos em um momento de incerteza econômica

Prever que a conjuntura política da América Latina será marcada pela incerteza e pelo fator surpresa não é arriscado, na medida que a essas alturas do ano passado pouco se sabia, por exemplo, sobre a existência de Juan Guaidó na Venezuela, e os protestos populares que convulsionaram muitos países estavam longe sequer de ser uma possibilidade. As ainda incertas consequências dessa agitação serão um fator determinante na reacomodação política que vem ocorrendo na região nos dois últimos anos, com mais de uma dezena de eleições, incluindo as principais potências; inumeráveis Parlamentos fragmentados —com exceção do poder total de Andrés Manuel López Obrador no México— e a previsão da Cepal (órgão da ONU) de que o septênio 2014-2020 será o de menor crescimento econômico nos últimos 40 anos.

No plano ideológico, a vitória de Alberto Fernández na Argentina; a libertação de Lula no Brasil; a derrota do uribismo nas eleições locais da Colômbia e os protestos contra Sebastián Piñera no Chile, deram uma trégua às forças progressistas da região, após as vitórias conservadoras no Brasil, Colômbia e Chile e o rumo autoritário tomado por Venezuela e Nicarágua. Após um começo de século marcado pela hegemonia do denominado socialismo do século XXI, o pêndulo entre as forças progressistas e conservadoras permanece pela primeira vez equilibrado em um ano em que estão previstas eleições presidenciais somente na República Dominicana e na Bolívia.

Venezuela será presumivelmente de novo o foco de maior tensão na região. No país que dava a impressão de que tudo iria mudar com o surgimento de Juan Guaidó, nada mudou. Pelo menos no plano político: a situação econômica continua sendo crítica, apesar da dolarização que traz um salva-vidas aos mais ricos; a migração não tem freio —aproximadamente cinco milhões de pessoas deixaram o país—. Não muda o conflito entre Nicolás Maduro e Juan Guaidó. O primeiro conseguiu se entrincheirar no poder após um ano complicado e as expectativas geradas pelo presidente da Assembleia Nacional, reconhecido como mandatário interino por mais de 60 países, se diluíram e sua figura ficou prejudicada, não somente dentro da Venezuela; a comunidade internacional faz malabarismos para lidar com o Governo de Maduro sem que isso signifique um enfraquecimento de Guaidó.

A próxima segunda-feira será a primeira prova de fogo para o jovem dirigente venezuelano, de 36 anos. Nesse dia deverá referendar seu cargo como principal líder da Assembleia Nacional. O chavismo, que voltou ao Parlamento neste ano, de maioria oposicionista, mobilizou nas últimas semanas uma ofensiva para tentar enfraquecer os apoios de Guaidó ao tentar subornar vários dirigentes de oposição para que mudem seu voto. A Assembleia Nacional está, desde o final de 2015, em poder da oposição, de modo que Guaidó possui, a priori, apoio suficiente, mas pelo menos trinta deputados estão no exílio e várias dezenas ameaçados.

A partir da próxima semana se abrirá um novo cenário —mais um—na Venezuela. O chavismo está decidido a convocar eleições legislativas, como deveria acontecer nesse ano. Muitos pensam que serão fixadas no começo do ano para colocar a oposição em uma armadilha. Um setor dos críticos a Maduro sustenta que não existem condições para um processo eleitoral limpo, como já defenderam em maio de 2018 nas eleições presidenciais vencidas por Maduro e que não foram reconhecidas pela grande maioria da oposição e da comunidade internacional. Há, entretanto, amplos grupos de dirigentes oposicionistas —alguns deles defenderam Guaidó no último ano— que acham que devem participar da hipotética data. O entorno mais próximo ao presidente do Parlamento está cauteloso, não descarta outro cenário eleitoral e que os confrontos voltem a se intensificar.

A crise da Venezuela vai além do país caribenho e, certamente, balançará novamente toda a região. Na parte diplomática, muitos olhares estão no México, que neste ano terá a presidência temporária da Comunidade dos Estados Americanos e do Caribe (CELAC), o órgão que viveu seus melhores dias sob a proteção de Hugo Chávez e Lula e que agora o Governo de López Obrador quer relançar, em parte como contrapeso à Organização de Estados Americanos (OEA), a quem vê com receio pelo papel de protagonista exercido por seu secretário-geral, Luis Almagro.

A diplomacia mexicana, pouco atuante no caso venezuelano, deu nos últimos meses um passo à frente, especialmente com a crise desatada na Bolívia pela renúncia, após a pressão dos militares, de Evo Morales, a quem López Obrador deu asilo em seu país antes de que ele se instalasse na Argentina. No plano interno, a segunda potência da região encara um ano marcado pela incerteza econômica, após entrar em recessão pela queda de rendimento. A consolidação do novo acordo comercial com os Estados Unidos e o Canadá é o principal trunfo para dar um pouco de oxigênio a López Obrador, que mantém amplo apoio popular, de acordo com todas as pesquisas, mas que continua sem gerar confiança no mundo empresarial para retomar as finanças do país e poder realizar sua ambiciosa agenda social.

A economia também será determinante no primeiro ano de Governo de Alberto Fernández na Argentina, outra potência que, como o México, decidiu guinar à esquerda, formando um teórico eixo progressista que ainda está longe de se materializar no papel. É, pelo menos por enquanto, um contrapeso à grande economia da América Latina, o Brasil, governada pelo ultradireitista Jair Bolsonaro, que ainda não pôde concretizar suas grandes reformas. As eleições municiais de outubro serão um termômetro para medir o desgaste de Bolsonaro após dois anos de sua vitória e o apoio que pode ter o Partido dos Trabalhadores de Lula, após o ex-presidente sair da prisão.

O termômetro da força das manifestações populares virá do Chile e da Colômbia, em que os protestos ainda estão vivos, especialmente contra o mandato de Sebastián Piñera. No caso colombiano, se une a pressão a Iván Duque para que consolide os acordos de paz com as FARC e detenha o avanço do paramilitarismo no país. A continuidade da pressão e os ganhos que possam vir dela mostrará a força dos movimentos sociais latino-americanos e a capacidade de liderança dos políticos, isso é, o nível de governabilidade em uma das regiões mais agitadas.

Brasil, entre as reformas e o medo das ruas

O grande dilema que o presidente do Brasil enfrentará em 2020 é como calibrar as reformas para liberalizar a economia, de maneira que impulsionem o crescimento, mas sem deixar prejudicados, ou não muitos. O Governo quer evitar que se acenda o pavio do descontentamento da população que tantos estragos vem causando no restante do continente e, simultaneamente, oferecer ao eleitorado conquistas tangíveis suficientes para que o bolsonarismo tenha bom desempenho nas eleições municipais, antessala das presidenciais de 2022.

É um desafio maiúsculo. Porque o espelho chileno em que se olhavam o ultradireitista e seu ultraliberal ministro da Economia, Paulo Guedes, para realizar suas profundas reformas econômicas se partiu a golpes de protestos de rua. Antes ou depois Bolsonaro deverá decidir se resgata as reformas tributárias e do funcionalismo público da caixa em que as colocou no final de novembro. É provável que o desmantelamento das políticas cultural e do meio ambiente continue —a não ser que a pressão externa o impeça— e que a agenda conservadora chegue ao Congresso, onde deve encontrar resistência de políticos que pretendem se viabilizar como uma alternativa ao centro, como o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

O ex-preso Lula, 74 anos, será, a não ser que ocorra alguma surpresa, um dos protagonistas da campanha eleitoral, ajudando a promover palanques pelo país e, com isso, tentar forjar uma base mais forte do PT nos campos municipais. Prefeitos e vereadores funcionam, nas eleições presidenciais, como importantes cabos eleitorais.

Bolsonaro também enfrenta desafios em seu próprio campo de jogo: manter uma certa coesão em um Gabinete que congrega grupos frequentemente rivais e dar corpo ao partido que acaba de fundar, Aliança pelo Brasil, a tempo para as eleições de outubro. O partido é, por enquanto, pouco mais do que um breve manifesto que condensa o ideário nacionalista, de extrema direita, cristão e populista do presidente e ainda precisa do registro formal no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Ele terá um olho nas investigações sobre seu filho mais velho, o senador Flávio, suspeito de corrupção e lavagem de dinheiro. Um tendão de Aquiles.

Outro dilema que o aguarda é a licitação da rede 5G, prevista para este ano. A pressão de Washington para que a empresa chinesa Huawei seja excluída é imensa. Bolsonaro terá que escolher entre aborrecer seu admirado Donald Trump ou Pequim, seu principal parceiro comercial, a quem tratou a patadas até que a Presidência viu claramente que marginalizar a China seria catastrófico à economia. Ou talvez procure uma desculpa para adiar a licitação para 2021.


Luiz Carlos Azedo: Um pleito multipolar

“Nada indica que a polarização decorrente da disputa entre o presidente Jair Bolsonaro e seus opositores em nível nacional será o fio condutor das eleições municipais”

A Polícia Civil do Rio de Janeiro solicitou à Interpol a prisão do único suspeito do atentado contra a produtora do programa Porta dos Fundos identificado até agora: Eduardo Fauzi, que está em Moscou, na Rússia, onde tem uma namorada. Segundo imagens divulgadas pela TV Globo, ontem, na tarde de 29 de dezembro, ele embarcou para Paris, onde fez escala. Imagens mostraram sua chegada ao Aeroporto Internacional Tom Jobim e o momento em que passou pelo aparelho de Raio X do embarque.

Fauzi é um homem violento, com registros policiais e processos por ameaça, agressão contra mulher, lesão corporal e formação de quadrilha. Em 2013, em frente às câmeras, deu um soco no então secretário municipal de Ordem Pública, Alex Costa, quando era entrevistado por repórteres. Fauzi reagiu à fiscalização da prefeitura no estacionamento irregular no qual trabalhava. Na ocasião, foi preso por lesão corporal, mas respondia ao processo em liberdade. Um cartaz do Disque Denúncia fluminense oferece uma recompensa de R$ 2 mil por informações que levem à prisão dele. Filiado ao PSL desde 3 de outubro de 2001, será expulso da legenda por ter participado do atentado, segundo o deputado Luciano Bivar, que a preside.

O atentado à produtora do Porta dos Fundos, às vésperas do Natal, é um novo degrau da escalada de radicalização política no país. O grupo tem sido criticado nas redes sociais por causa de um especial de Natal exibido pela Netflix, no qual os humoristas sugerem que Jesus teria tido uma experiência homossexual após passar 40 dias no deserto. Antes de viajar, Fauzi postou um vídeo, com sete minutos de duração, em que chama os integrantes do grupo Porta dos Fundos de criminosos, marginais e bandidos.

No domingo anterior ao Natal, havia ocorrido outro episódio preocupante: um homem de 89 anos disparou contra um vizinho em um prédio no centro de São Paulo. Segundo testemunhas, Adel Abdo discutiu com a vítima, Rafael Dias, um dia antes. “Na noite do sábado, a gente fez uma festa no condomínio. Um morador começou a reclamar do som alto, porém a gente estava dentro das regras, de som até as 22h. Ele começou a nos ameaçar. Disse: ‘seu bando de viado, desliga isso, vou descer aí e atirar em vocês’”, relatou Anderson Oliveira, namorado de Rafael.

As eleições
O conservadorismo oficial em relação aos costumes, na contramão das mudanças, parece ter despertado os demônios da homofobia e outras manifestações do gênero, como o racismo e a xenofobia. Como em outras situações, indivíduos reacionários e truculentos se acham no direito de recorrer à força para impor seus padrões de comportamento a quem age ou mesmo pensa de forma diferente. Tais episódios sinalizam um ano eleitoral pautado pela violência política e ideológica.

Ocorre que as eleições municipais, historicamente, são multipolares. São decididas em razão das questões locais, mesmo em grandes cidades, que podem até catapultar um candidato a presidente da República, como São Paulo. Nada indica que a polarização decorrente da disputa entre o presidente Jair Bolsonaro e seus opositores em nível nacional será o fio condutor das eleições municipais, mesmo que o partido recém-criado por Bolsonaro, o Aliança pelo Brasil, consiga seu registro e lance candidatos.

A diferença mais marcante do pleito deste ano será o fim das coligações proporcionais, o que levará à proliferação de candidatos a prefeito e, principalmente, a vereador. A agenda da disputa pode até ser contaminada pelas polêmicas criadas pelo presidente Jair Bolsonaro e seus ministros, mas o que predominará é a discussão sobre os problemas locais e a avaliação do desempenho de seus prefeitos. Segurança, mobilidade urbana, saúde, educação, desenvolvimento econômico, esses são os temas da política municipal. O ponto de convergência com a política nacional é a crise ética, que continua sendo um divisor de águas nas eleições. Mesmo assim, teremos um pleito multipolar.

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Everardo Maciel: Há perigos à espreita

Recente decisão do STF, alargando as hipóteses de crimes tributários, é outro perigo à espreita

Em 2019 houve muita agitação no mundo tributário brasileiro. Felizmente, não prosperaram as pérolas da temporada de ideias ruins, especialmente a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, autodesignada reforma tributária. Às vezes, não fazer é também uma vitória.

Lentamente, foram sendo desvendadas as agendas ocultas daquela PEC, despertando a consciência dos parlamentares e dos contribuintes.

Não se deve, é claro, interditar o debate tributário. Assim, embora não esteja de acordo, reconheço autenticidade em proposta que pretende punir, entre outros contribuintes, as pequenas escolas e clínicas, os pequenos comerciantes e prestadores de serviços, os produtores de leite, os optantes do Simples e do Lucro Presumido e, concomitantemente, reduzir a tributação das instituições financeiras. Trata-se de opção de fundo ideológico.

Esconder esse propósito dos destinatários da proposta, entretanto, pode ser tido como politicamente desleal.

Dizia Amós Oz, notável escritor israelense: “O fanatismo começa no afã de mudar os outros supostamente ‘para o bem deles’. Utopias degeneram em distopias, paraísos teóricos em infernos práticos”.

Já não bastam a adoção dos padrões internacionais de contabilidade, que complicaram desnecessariamente a apuração do Imposto de Renda das empresas, e a ridícula tomada de três pinos, cuja obrigatoriedade infernizou a vida dos brasileiros e deve ter feito a fortuna de fabricantes.

Esse foco equivocado desvia a atenção para os verdadeiros problemas tributários brasileiros: o claudicante processo que responde pelo escandaloso volume de litígios tributários (só no âmbito federal, R$ 3,4 trilhões); o burocratismo, que constitui a causa principal das deploradas exigências no cumprimento das obrigações tributárias; a resolução das grandes controvérsias (ágio, preços de transferência, stock options, lucros no exterior, dano ao erário, etc.); o financiamento da Previdência Social tendo em vista as novas formas de trabalho e a excessiva sobrecarga tributária da folha de salários; a revisão do conceito de taxas; e o enfrentamento dos problemas específicos do ICMS, ISS, PIS e Cofins, que não são muitos, conquanto relevantes.

Como se percebe, é uma agenda longa e complexa, que requer muito trabalho e pouca espetaculosidade. O que não se deve, como diz a sabedoria popular, é matar o gado para acabar com o carrapato.

Recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) alargando as hipóteses de crimes tributários é outro perigo à espreita. Agora, será crime declarar e não recolher o ICMS, sempre que houver dolo, como no caso do devedor contumaz.

O tema vem sendo objeto de reflexões de inúmeros juristas, com especial destaque para o brilhantismo das intervenções de Igor Mauler Santiago, que praticamente esgotou a matéria. Ouso suscitar outras polêmicas.

Não se sabe a quem caberá apurar o dolo. Mais grave: o crime do devedor contumaz não está tipificado. Se tipificado, não deveria aplicar-se ao ICMS, mas a qualquer tributo.

Na atividade de varejo, é prática comum a venda a prazo, com descasamento entre as datas de recolhimento do tributo e o pagamento pelo consumidor. Se o contribuinte declarar e não recolher, e o consumidor não pagar, haveria crime? Em caso afirmativo, a quem seria atribuído o crime?

Pondera-se que as penas são brandas e não haveria, por conseguinte, privação de liberdade. Não é bem assim. A simples condição de réu é um penoso fardo, cuja possibilidade já é desestímulo para os empreendedores.

Ante a possibilidade de não pagar, chega-se à absurda conclusão de que seria preferível sonegar, pois declarar já seria indício de crime, ao passo que a sonegação só seria crime se apurada.

A única conclusão plausível é de que urge uma ampla reestruturação da legislação aplicável aos crimes tributários, melhor tipificando a matéria, disciplinando a representação fiscal para fins penais e dispondo sobre a extinção da punibilidade e a suspensão da pretensão punitiva do Estado. Caso contrário, os cerca de 80 milhões de processos em curso na Justiça vão caminhar para um pouco glorioso recorde internacional.

*Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)


Fernando Abrucio: Existe um Brasil para além de Bolsonaro

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além da lógica de guerra

Passado um ano de governo, um aspecto salta à vista: Bolsonaro criou um estilo próprio de liderança presidencial. Obviamente que ele repete certos padrões personalistas anteriores, que se apresentavam em figuras tão distintas como Vargas, Collor e Lula. Descontadas as semelhanças, o que fica é um modelo de presidente que busca a todo momento ser o centro da política brasileira, criando factoides que priorizam as críticas a pessoas, ideias e comportamentos. Trata-se de um modo basicamente negativo de construção de projeto de poder. Bolsonaro sempre precisará de um inimigo para governar o país.

A lógica bolsonarista de liderança é eficaz em vários sentidos. Primeiro, porque marca uma posição perante uma parcela do eleitorado, gerando uma forte identidade entre o líder presidencial e os seus correligionários - é o “eu contra eles”, num tom muito mais radical que o do petismo. A porção da população que vai ficar neste grupo ainda é uma incógnita. De todo modo, na pior das hipóteses, Bolsonaro consegue manter pelo menos de 15% a 20% ao seu lado, o que não garante a reeleição, mas solidifica um nicho de apoiadores que irão até o fim com o presidente, mantendo-o como um governante que tem anteparo para digladiar com outras lideranças políticas.

Selecionando inimigos e os atacando a todo momento, muitas vezes por meio de acusações e temáticas secundárias em relação às políticas governamentais, Bolsonaro obriga os criticados a se defender constantemente. O presidente se torna o dono da bola do jogo e faz com que os outros fiquem correndo atrás da pelota, sem que nunca a tenham por completo. Antigamente, isso tinha um nome: diversionismo, isto é, a capacidade de evitar o que é central na disputa do poder e nas políticas públicas. Essa estratégia dificulta ter um maior foco na crítica ao governo, pois se a cada semana há um assunto novo para se discutir, o que deve ser priorizado no debate com a população?

É interessante notar que mesmo naquilo que o bolsonarismo procura trazer de agenda positiva, isto é, de defesa de uma visão comum de país, ele o faz criticando outros ou reprimindo comportamentos ou ideias que deveriam ser extirpados. Para ficar nas simbologias religiosas, trata-se de um modo menos franciscano de pensar a política e mais baseado numa concepção cruzadista - conquistar corações significa usar a guerra como instrumento.

Bolsonaro é muito parecido com Lula em sua grande capacidade de falar a linguagem popular e de fazer campanha eleitoral permanente. Porém, ao construir seu discurso com tonalidade negativa e centrado na busca de inimigos, ele constrói um tipo de liderança cuja força está em captar o medo e a raiva das pessoas. Foi esse o espírito predominante nas eleições de 2018, depois de anos de recessão e da avalanche contra a corrupção produzida pela Lava-Jato. Ainda há muita gente ligada a esses dois sentimentos, mas em algum momento muitos desses eleitores vão querer de volta a esperança.

Se o presidente conseguir um bom resultado econômico e social até 2022, algo realmente robusto, pode estar aí uma novidade em relação ao seu padrão atual, sustentado na negatividade. Caso contrário, terá que se basear num modelo em que ele briga contra todos, torcendo principalmente para ter alguma polarização com o PT. Só que antes de pensar nas próximas eleições presidenciais, é preciso lembrar a longa travessia, de mais três anos, que teremos de enfrentar.

Há duas grandes variáveis que podem, em algum momento, inverter o clima construído pela liderança presidencial de Bolsonaro. A primeira é de cunho estratégico e a segunda capta as profundezas de um país que parece ter ficado para escanteio na agenda política. Afinal, o clima azedo do bolsonarismo disseminou-se e muitos se perguntam se há algum lugar em que isso não seja dominante hoje no Brasil.

Ao ter de criar a todo momento fatos políticos baseados no confronto, Bolsonaro abre muitas arestas e possibilidades de problemas, inclusive porque atua desse modo também no plano internacional.

Esse conjunto de inimigos e disputas vai se acumular durante quatro anos, e caso a bonança não venha logo, a tendência é que o número de adversários e eleitores insatisfeitos vai crescer mais do que o contingente de criticados (pessoas, ideias e grupos sociais) pelo presidente.

Exemplo maior disto é a postura ambiental do país, criticada recentemente pela Comissão Europeia, que disse abominar as atuais ações do governo Bolsonaro. O mais provável, conhecendo seu estilo, é que o bolsonarismo vai continuar nesta toada até que a crise vire algo muito grande. Assim, não deverá ser aprovado o acordo União Europeia/Mercosul neste quadriênio, o agrobusiness brasileiro pode perder mercados, megainvestidores institucionais reduzirão seu ímpeto e não adianta xingar a “pirralha” da Greta. No meio desse caminho, o governo pode perder apoiadores, deixando o capitão apenas com seu séquito mais fervoroso, cujo tamanho é pequeno demais para garantir a governabilidade.

Muitas outras áreas dominadas pelo discurso bolsonarista do confronto podem ter esse mesmo desfecho, como na política externa ou na educação. Portanto, talvez seja muito difícil para Bolsonaro manter esse estilo durante toda a travessia sem ter arranhões muito grandes. Mas, além disso, é preciso lembrar (quase gritar) que existe um Brasil para além de Bolsonaro. Um país que, a despeito desse caldo de cultura marcado pelo confronto permanente, está tendo sucesso em suas ações adotando outra forma de agir coletivamente.

Uma parte importante desse outro país está com políticas públicas bem-sucedidas no plano subnacional. O bolsonarismo criou o slogan “Mais Brasil, menos Brasília”, mas poucas vezes olha com a devida atenção para o que ocorre em vários entes da Federação. Em vez do ministro da Educação ficar xingando tudo que ocorreu antes dele por conta dos resultados dos alunos brasileiros no exame internacional do PISA, ele deveria conhecer e disseminar o que tem dado certo em termos de políticas educacionais estaduais e municipais.

Weintraub deveria parar de criar factoides e começar a conhecer a experiência de Sobral e, numa escala maior, do Ceará, para ver como é possível fazer uma revolução no processo de alfabetização. Existe ali um Brasil que dá muito certo e não segue a lógica bolsonarista. Ao contrário, o forte do modelo cearense é a montagem de uma governança baseada na confiança mútua e colaboração entre os mais diversos atores, inclusive de vários partidos políticos. Deveria, ainda, conhecer a experiência dos Arranjos do Desenvolvimento da Educação (ADEs), que juntam municípios num processo cooperativo para resolver problemas educacionais, seja na Chapada Diamantina, em Votuporanga (SP) ou na Grande Florianópolis. Mais uma vez, a solução aqui foi um arranjo que reúne pessoas e movimentos os mais variados, em vez de procurar inimigos em todo canto.

A cultura é um dos grandes patrimônios de qualquer país. No caso brasileiro, isso é ainda mais marcante porque somos reconhecidos internacionalmente pelas nossas obras culturais e artistas. Pois bem, e o que faz o governo Bolsonaro? Coloca em xeque a riqueza cultural e nossa diversidade em nome de um projeto de purificação de nossa arte. Onde isto deu certo? No Irã de Khomeini? Na Coréia do Norte?

Fernanda Montenegro e Chico Buarque são símbolos nacionais e internacionais de um Brasil que dá certo. Eles não precisam de Bolsonaro, mas o Brasil precisa de gente como eles. E se a nova orientação oficial é procurar a “verdadeira cultura popular brasileira”, é preciso conversar com os jovens da periferia das grandes cidades, que produziram cultura como forma de combater a desigualdade e dar visibilidade a quem não tem espaço no grande “show business”. Mas o bolsonarismo não vai dialogar com esse pessoal, nem com os seguidores de Ariano Suassuna.

Existe uma sociedade civil pujante no Brasil, com projetos coletivos em várias áreas, que melhoram a qualidade das relações sociais em vários lugares, sobretudo nos mais carentes. Há muitas parcerias entre universidades e destas com empresas produzindo inovação e desenvolvimento de longo prazo para o país, usando como principal instrumento a busca de sinergias. Também há empresas e empreendedores que obtiveram sucesso internacional porque acreditam que boas ideias e muito trabalho são mais importantes do que ficar brigando nas redes sociais.

Se quisermos sair do clima de confronto e da mediocridade impostos pelo bolsonarismo, precisamos lembrar do Brasil que vai além dessa lógica de guerra. Um país que deveria ter orgulho de Paulo Freire, porque as melhores universidades americanas o consideram um dos maiores educadores do século XX, e a Finlândia, aquele país sempre elogiado no PISA, usa claramente o seu método educativo para formar os jovens que vão compor sua sociedade do futuro.

Desejo a todos um excelente 2020, que deixe para trás a lógica do confronto permanente instalada por Bolsonaro. Temos um país em que há ainda muitos problemas e feridas, como a escravidão, mas cuja saída está em mais colaboração entre Estado e sociedade, bem como maior tolerância e negociação entre lideranças políticas diferentes.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP


Luiz Carlos Azedo: O mundo é redondo

“As exportações pelos estados setentrionais do Brasil tendem a crescer regularmente, com a ferrovia norte-sul e o chamado Arco Norte, incluindo portos da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Amazonas”

Em 12 de abril de 1961, a bordo da Vostok 1, Yuri Gagarin se tornou o primeiro homem a ser lançado no espaço. A nave media apenas 4,4 metros de comprimento por 2,4m de diâmetro, e pesava 4.725 quilos, com dois módulos, um para acomodar os equipamentos e tanque de combustível, e o outro era a cápsula onde o cosmonauta realizou a proeza de ser o primeiro humano a ver que o nosso planeta é redondo: “A Terra é azul! Como é maravilhosa. Ela é incrível!”, exclamou Gagarin, durante a única volta que deu em órbita. Aos 27 anos, ele havia sido selecionado entre 19 pilotos submetidos a testes físicos e psicológicos rigorosíssimos. Tinha somente 1,57m de altura e pesava 69kg, ou seja, seu porte físico acabou sendo um diferencial para a seleção, como acontece com submarinistas e jóqueis.

Quando entrou na nave, fez um comentário como se fosse o último: “Em poucos minutos, possivelmente, uma nave espacial irá me levar para o espaço sideral. O que posso dizer sobre estes últimos minutos? Toda a minha vida parece se condensar neste momento único e belo. Tudo o que eu fiz e vivi foi para isso!” Naquele mesmo ano, ainda criança, levado por minha mãe ao Monumento dos Pracinhas, no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de ver o Gagarin. A imagem que trago na memória não é a do seu porte físico, é a da multidão, e não a do seu sorriso cativante, que aparece em todas as fotos, classificado pelo poeta russo Evguêni Evtuchenko (1932-2017) como o mais bonito do mundo.

Isso é conversa de comunista, dirão os terraplanistas, numa dupla demonstração de ignorância: Evtuchenko e o então presidente da Rússia, Boris Yeltsin, lideraram os protestos que resultaram no fim da União Soviética e do chamado “socialismo real” no Leste Europeu. Não morra antes de morrer, seu livro em prosa publicado no Brasil pela Record, em 1999, relata a crise que levou ao colapso o sistema soviético, depois do sequestro de Mikhail Gorbatchov pelos militares, que tentaram dar um golpe de Estado contra a perestroica. Foi um tiro pela culatra. Seu poema Babi Yar, nome de um desfiladeiro nas imediações de Kiev, que relata o massacre de 35 mil judeus pelos nazistas, em setembro de 1941, serviu de inspiração para a 13ª Sinfonia de Chostakóvitch, cuja força lírica também foi uma crítica ao antissemitismo soviético.

O voo de Gagarin durou exatos 108 minutos, a uma altura de 315km a partir da superfície, em uma velocidade de 28 mil km/h. O cosmonauta se manteve em contato com a Terra por rádio e telégrafo. Na volta ao planeta, os cientistas soviéticos erraram o cálculo da trajetória de aterrissagem da nave, fazendo com que Gagarin caísse no Cazaquistão — a mais de 320km do local previsto. Depois da aterrissagem, sozinho, precisou esperar que a equipe o resgatasse. O erro acabou sendo mais uma prova do sucesso pleno da primeira missão espacial humana.

Lembrei-me de Gagarin por causa de um vídeo do físico norte-americano Carl Sagan, que circulou nas redes às vésperas do ano novo, numa dessas recidivas virais da internet, pois trata-se de um programa de tevê de 1980, de divulgação científica, intitulado Cosmos. O físico morreu em 1996, aos 62 anos. Nele, explica como alguns gregos antigos já haviam descoberto, através da simples observação, que a Terra é uma esfera. Eratóstenes, um estudioso grego, que dirigiu a famosa Biblioteca de Alexandria, viveu entre os anos de 276 a.C. e 195 a.C. Utilizando apenas “varas, olhos, pés, cérebro e o prazer de experimentar”, observou a sombra de duas colunas, uma colocada em Siena e outra em Alexandria, ambas no Egito.

Complexidade
Ele notou que em Siena, no dia do solstício de verão, ao meio-dia, o Sol ficava em seu ponto mais alto e a coluna lá instalada não projetava nenhuma sombra. Diferente daquela de Alexandria, que produzia uma pequena mancha no chão. Sagan explica então que, se a Terra fosse achatada, ambas estruturas produziriam sombras iguais. Mas, como o planeta é esférico, o sombreamento varia. Sagan mostra como o estudioso descobriu a angulagem entre as duas colunas a partir de suas sombras. O valor aproximado foi de sete graus. Com esse valor em mãos, o matemático fez um cálculo de equivalência, já que sabia a distância entre as duas cidades: quase 800 quilômetros. Fazendo as contas, ele chegou à medida de 40 mil quilômetros como a circunferência do planeta. Errou aproximadamente por 75 quilômetros, distância 4,4 vezes menor do que o erro de cálculo sobre o local de aterrissagem de Gagarin.

Ontem, ao se despedir como comentarista da Folha de S. Paulo, o historiador Luiz Felipe de Alencastro, professor da Universidade de Paris — Sorbonne e da Fundação Getúlio Vargas, chamava a atenção para a força gravitacional da economia chinesa sobre os eixos de logística e territoriais brasileiros. Ao reduzir de 48 para 35 dias a viagem entre os portos do nordeste da China e Roterdã, a navegação comercial entre a Europa e o Extremo Oriente pelo Oceano Ártico, iniciada em 2013, levou à modernização do Canal de Suez (2015) e do Canal do Panamá (2016). Por essa razão, as exportações pelos estados setentrionais do Brasil tendem a crescer regularmente, sobretudo quando for concluída a ferrovia norte-sul e o chamado Arco Norte, incluindo portos fluviais e marítimos da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão e do Amazonas.

“Pela primeira vez, desde a criação do Estado do Grão Pará e Maranhão, concebido em 1621 como entidade autônoma da América Portuguesa, no contexto da política filipina envolvendo as quatro partes do mundo, o comércio externo, e, essencialmente, o comércio marítimo, rearticula a geografia econômica da totalidade do território nacional”, destaca Alencastro. Detalhe: desde a circunavegação do globo por Fernão de Magalhães, já se sabia que a Terra é redonda e interligada pelos oceanos. Há duas consequências práticas do deslocamento do eixo do nosso comércio do Ocidente para o Oriente: primeiro, a relação comercial do Brasil com a China, que já é o nosso principal parceiro comercial, aumentará ainda mais de importância; segundo, como resultado, pode haver mais apreciação do câmbio, aumento das importações de bens industriais e desindustrialização. Ou seja, o Brasil precisa de uma política de comércio exterior que aumente a complexidade da nossa economia, isto é, a diversidade e a sofisticação da estrutura produtiva brasileira.

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Ribamar Oliveira: O ano em que os juros foram jogados ao chão

Queda do custo da dívida representa mais de dois Bolsas Família

Há boas razões para acreditar que 2020 será melhor para a economia do que o ano que passou. O ritmo da atividade econômica ganhou impulso nos últimos meses de 2019, por causa da liberação dos saques do FGTS e do aumento do crédito. A confiança dos empresários aumentou com a estratégia econômica adotada pelo governo, com a aprovação da reforma da Previdência Social e com a melhora do quadro fiscal do setor público.

A expectativa que predomina no mercado é a de que um cenário de maior crescimento deverá se consolidar ao longo dos próximos meses, embora algumas nuvens negras que vêm do exterior ainda provoquem incertezas. Existem dúvidas também sobre o encaminhamento de algumas reformas indispensáveis à continuidade do ajuste das contas públicas, em virtude do ano eleitoral.

É importante destacar nesta coluna, no entanto, o fato econômico mais marcante de 2019 - ano que ficará conhecido como aquele em que os juros no país foram jogados ao chão. Quem acompanhou a economia brasileira ao longo das últimas duas décadas sabe avaliar a dimensão do fenômeno que presenciamos no ano passado. Durante anos, o Brasil foi um dos campeões dos juros altos no mundo, com taxas reais que eram verdadeiras aberrações.

O enorme custo financeiro dessa anomalia, que perdurou por longo tempo, foi suportado pela população mais pobre, ajudando a agravar a brutal desigualdade de renda do país. Uma Selic (a taxa básica de juros da economia, fixada pelo Banco Central) de dois dígitos foi considerada como normal durante muito tempo. Em março de 1999, por exemplo, ela chegou a 45% ao ano.

Na década de 1990, o país conviveu com taxa de juro real acima de 10% ao ano, situação que se manteve no início deste século. Depois, ela foi caindo lentamente para algo em torno de 5%, ainda muito distante das taxas praticadas no mercado internacional. Numerosos artigos e teses, escritos nos últimos anos pelos mais renomados economistas do país, tentaram explicar a anomalia brasileira dos juros altos e encontrar uma saída.

Ela veio, da forma mais dolorosa possível. Uma brutal recessão econômica, seguida de uma lenta recuperação, acompanhada de uma mudança radical na estratégia econômica do governo quebraram a espinha dorsal da inflação e os juros caíram para patamares inimagináveis.

A gestão do ex-presidente do Banco Central Ilan Goldfajn foi responsável, em grande medida, pela mudança. O cenário internacional de juros baixos, negativos em vários países, ajudou também na empreitada.

A queda dos juros foi rápida e forte. Em janeiro de 2016, a taxa Selic estava em 14,25% ao ano e o Tesouro pagava juro real de 7,2% ao ano em seus títulos corrigidos pelo IPCA (NTNB principal), com prazo de quatro anos. Hoje, a Selic está em 4,5% e o Tesouro consegue vender papéis com taxa real de 1% ao ano. Se, em 2016, um economista fizesse tal previsão, seria considerado delirante.
Como mais de 50% da dívida pública federal, incluindo no cálculo as operações compromissadas feitas pelo BC, gira em 12 meses, o efeito da queda dos juros sobre o custo do endividamento é muito rápido. Em conversa com o Valor, o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, estimou que o custo médio da dívida pública federal ficou R$ 69 bilhões menor no ano passado, na comparação com 2018.

Para fazer o cálculo, ele utilizou a taxa média de juros de emissão dos papéis do Tesouro em 2018. Em seguida, estimou o custo da dívida em 2019 se essa taxa média tivesse permanecido. Depois, comparou com o custo verificado com as taxas médias efetivamente praticadas pelo Tesouro no ano passado.

A economia da União com a despesa de juros em 2019, estimada pelo secretário do Tesouro, representa mais de duas vezes o gasto anual com o programa Bolsa Família, que atende 13,5 milhões de famílias extremamente pobres. A projeção de Mansueto Almeida para este ano é de uma economia ainda maior: R$ 120 bilhões. Estamos vivendo uma nova realidade de juros.

Outros aspectos desta questão precisam ser destacados. A forte e rápida queda dos juros, junto com a venda de reservas pelo Banco Central, o pagamento antecipado pelo BNDES de empréstimos feitos junto ao Tesouro e a revisão dos valores do Produto Interno Bruto (PIB) em 2017 e 2018, anunciada pelo IBGE, obrigou o Tesouro a alterar também sua trajetória para a dívida pública.

Antes, o Tesouro projetava que a dívida pública bruta terminaria este ano em 80,8% do PIB e que continuaria aumentando até 2022, quando alcançaria 81,8% do PIB. Então, passaria a cair até 73,5% do PIB em 2028. Em sua nova projeção, o Tesouro considerou que a dívida bruta terminaria 2019 em 77,3% do PIB, subiria para 78,2% do PIB neste ano, quando estabilizaria. Passaria a cair a partir de 2023. Isso aconteceria mesmo com os déficits primários previstos para 2020, 2021 e 2022.

Na verdade, é difícil projetar a trajetória da dívida porque algumas variáveis com impacto fiscal ainda são desconhecidas. Não é possível estimar, por exemplo, quanto a União arrecadará com as privatizações de estatais e com vendas de imóveis neste ano. Nem quanto o BC venderá de reservas.

É difícil prever até mesmo a trajetória da arrecadação tributária em 2020, em decorrência da recuperação econômica. Também não é possível saber se a União conseguirá leiloar, em 2020, os dois campos de petróleo da chamada cessão onerosa que não tiveram ofertas no ano passado. Essas variáveis afetam, de alguma forma, a dívida bruta.

Existe, no entanto, um consenso entre os principais economistas do país de que os juros baixos continuarão por um bom tempo. Alguns acreditam que o BC ainda tem espaço para reduzir a Selic. A equipe econômica considera que os efeitos da queda da Selic ainda não foram transmitidos para economia. Como o ciclo de redução começou em julho de 2019, e existe uma defasagem da política monetária sobre a atividade, as autoridades acreditam que o impacto maior ocorrerá a partir de fevereiro.

O cenário econômico é, portanto, favorável, principalmente porque o país passou a conviver com uma nova realidade de juros.