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Urna eletrônica e pessoas | Foto: reprodução/Agência Brasil

Alon Feuerwerker: As dificuldades de cada um na disputa por 2018

A consciência coletiva já entregou os pontos: o presente vai deixando de ter maior importância em outras esferas para além da judicial-policial, as atenções/esperanças orientam-se para 2018. Concluiu-se: o resto do governo Temer será dedicado e com razoável probabilidade de sucesso à sobrevivência. Assuntos menos importantes ficam para depois.

Se vai ser assim mesmo só os fatos dirão, e eles costumam ser além de teimosos surpreendentes, mas leva jeito. Haverá alguma mudança nas normas da previdência social, alguma mexida nas regras eleitorais, e só. O desafio de como crescer e gerar os empregos para absorver o trabalho, especialmente o jovem, ficará para depois de janeiro de 2019.

Se é que ficará. A acomodação na mediocridade parece tática, mas há o risco/sintoma de ser estratégica. Vide a convivência pacífica com resultados econômicos medianos, infraestrutura mediana, educação mediana, política mediana, cultura mediana. Faltam ambição e energia. Há alarido, mas prevalece a indiferença, prima do cansaço e do ceticismo.

Nesse teatro modorrento, as forças políticas estão orientadas para o próprio umbigo. O governo que sobreviveu anda às voltas com o desafio de estender-se além de 31 de dezembro de 2018. A utopia é a reeleição do presidente hoje impopular. Mas qualquer solução que garanta ao grupo um bom alojamento na esplanada será vista com simpatia. Por exemplo Doria.

Já o PSDB tem um problema novo. Como deslocar Bolsonaro? O senso comum diz que ele se desidratará sozinho, mas vai que não? De todo modo, o PSDB e/ou o temerismo poderão contar, como habitual, com a opinião pública para atingir o objetivo. Enquanto isso, o tucanismo quebra a cabeça para conter dissidências. Tarefa mais complexa hoje do que foi ontem.

O PT navega como um governo Temer de sinal trocado, concentrado na luta pela sobrevivência jurídica do líder. É um jeito de manter reunido o capital político, de Lula evitar a dispersão interna e externa, e de prevenir a contestação da sua liderança. E sempre há a hipótese, muito provável, de não aparecer nenhum concorrente de peso para o PT em seu campo.

São os três grandes vetores. Os demais orbitam em torno, na esperança de, finalmente, abrir-se o espaço definitivo para a novidade. Em comum com o velho, exibem a mesma fraqueza de visão sobre o futuro, sobre o que fazer com a economia, com a política, com os serviços públicos. Buscam beneficiar-se do cansaço. Mas também são vítimas dele e da indiferença.

Indiferença alimentada pelo fato de que o doente, a economia, mesmo à deriva, flutua. Parece pouco, mas para quem se via na UTI pode não ser.

Só barulho

A eventual implantação do “distritão" não alterará substancialmente a composição das bancadas eleitas para a Câmara dos Deputados. Parece mais uma moeda de troca para evitar o bloqueio dos pequenos partidos à proibição das coligações nas eleições proporcionais. Se for mesmo (ah, o eterno otimismo) um caminho para o distrital misto, pode valer a pena.

Judicialização

Onde está o problema? O financiamento empresarial foi proibido. Se todo o dinheiro para eleição passar pelo partido, como será distribuído aos candidatos da sigla aos legislativos? Com a lista aberta ou com o distritão, o igualitarismo não faz sentido. Vai depender portanto da vontade do dono de cada legenda. Tem tudo para dar errado. Certamente acabará na Justiça.

Blindagem

Os resultados na economia são medíocres, o produto mais vistoso da política econômica é a queda na arrecadação de impostos, o investimento público bate recordes negativos, enquanto as despesas de custeio não param de crescer, apesar da contenção do gasto decorrente dos juros dos títulos do Tesouro. Mas não se veem maiores críticas. Haja blindagem.

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

 

 


Luiz Carlos Azedo: A revoada dos perus

O “distritão” seria um retrocesso institucional, pois os parlamentares serão eleitos sem praticamente nenhum vínculo partidário, a não ser o elo financeiro da partilha dos recursos do “fundão”

A aprovação do chamado “distritão” (depois explico) e do fundo de financiamento eleitoral de R$ 3,6 bilhões pela comissão especial que discute a reforma política na Câmara pode despertar forças que estavam adormecidas desde o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, a começar pelo movimento Vem Pra Rua, que convocou manifestação de protesto para 27 de agosto intitulada “Marcha Contra a Impunidade”, em todo o país. A reação às duas propostas é tão forte que alguns políticos já estão se descolando da reforma, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que criticou os dois projetos.

Na Câmara, a reação de grande número de deputados parece uma revoada de perus às vésperas da ceia de Natal, para voltar à analogia avícola. Todos os deputados que se sentiram ameaçados pelo “distritão” (sistema no qual são eleitos os deputados mais votados, independentemente da votação de sua legenda) estão contra a mudança. São em número suficiente para barrar a emenda constitucional que viabilizaria a medida. O “distritão” é um retrocesso institucional, pois os parlamentares serão eleitos sem praticamente nenhum vínculo partidário, a não ser o elo financeiro da partilha dos recursos do “fundão”, digamos assim.

O novo sistema está sendo criado para viabilizar a reeleição dos atuais deputados e blindar os políticos enrolados na Operação Lava-Jato. Não é o caso aqui, mas seria um bom exercício checar a lista de votação das eleições passadas e verificar quem hoje manteria o mandato e quem o perderia. No caso de São Paulo, por exemplo, seriam beneficiados os 70 mais votados; de Minas, os primeiros 53; do Distrito Federal, oito. Os votos nos demais candidatos da legenda seriam desprezados, o que mudaria completamente as características da Câmara, que bem ou mal representa hoje 100% do nosso eleitorado.

Deve-se ao diplomata e jurista Assis Brasil a criação do atual sistema proporcional, idealizado em 1932, mas somente sacramentado na Constituinte de 1945. Fundador do Partido Libertador, com Raul Pilla, só apoiou a Revolução de 1930 porque Getúlio Vargas havia se comprometido a aceitar o voto secreto. “Menino, todo homem tem seu preço. O venal se deixa comprar por dinheiro. O meu preço é o Código Eleitoral. E como vale mais a pena ladrar dentro de casa do que fora dela, aceito o ministério”, disse, ao justificar sua breve passagem pelo Ministério da Agricultura no Governo Provisório, ao qual renunciou em protesto pelo empastelamento do Diário Carioca.

Na sua obra Democracia representativa: do voto e do modo de votar, Assis Brasil antevia uma “máquina de votar”, o que seria hoje a nossa urna eletrônica. No sistema proporcional, cada estado (ou distrito eleitoral) elege um determinado número de representantes de acordo com sua população. O objetivo do sistema proporcional é garantir um grau de correspondência entre votos e cadeiras recebidas pelos partidos em uma eleição. Por exemplo, um partido que tenha recebido 15% dos votos teria direito a cerca de 15% das cadeiras. Nesse sistema, o partido apresenta uma lista de candidatos para as eleições; a distribuição das cadeiras é feita de acordo com os votos dados em cada lista.

Mas há outros métodos, como o voto distrital clássico, no qual o estado seria dividido em vários distritos, e cada distrito elegeria um deputado por maioria simples, isto é, 50% dos votos mais um. Assim, o candidato mais votado é eleito. E o distrital misto, uma combinação do voto proporcional e do voto majoritário. Neste caso, os eleitores têm dois votos: um para candidatos no distrito e outro para as legendas (partidos). Os votos em legenda (sistema proporcional) são computados em todo estado ou município, conforme o quociente eleitoral (total de cadeiras divididas pelo total de votos válidos). Já os votos majoritários são destinados a candidatos do distrito, escolhidos pelos partidos políticos, vencendo o mais votado.

“Fulanização”

O sistema proporcional teve como objetivo viabilizar a existência dos partidos, num país que emergia do Estado Novo e cuja tradição de “fulanizar” a política é tão velha como o costume de comer castanhas e perus na ceia de Natal. Essa cultura vem das primeiras câmaras municipais, que surgiram a partir de 1532. Eram compostas por 3 ou 4 vereadores, denominados “homens-bons”, geralmente grandes proprietários de terras. Escravos, judeus, estrangeiros, mulheres e degredados não podiam se tornar vereadores.

Essa “fulanização” era mais do que presente na época da Constituinte de 1945, na qual um mito político deixava o poder, Vargas, e outro era libertado da prisão, o líder comunista Luiz Carlos Prestes, de mãos dadas pelo “queremismo” (Constituinte com Getúlio), que fracassou. No século passado, ambos foram “reencarnações” do nosso velho sebastianismo, movimento místico secular que surgiu após a morte do rei português D. Sebastião, durante a batalha de Alcácer-Quibir, no ano de 1578. Como não possuía herdeiros, o trono de Portugal ficou sob o controle do rei Filipe II, da Espanha.

Como o corpo de D. Sebastião nunca foi encontrado, o sebastianismo se traduziu na esperança da vinda de um salvador, em meio à inconformidade e ao sentimento de insatisfação com a situação política da época, mesmo que para isso acontecer fosse necessário um verdadeiro milagre, como a ressurreição do rei morto. No Brasil, o sebastianismo influenciou movimentos populares desde o Rio Grande do Sul até o Norte do país, sendo representado como alegoria nas folias de reis, principalmente no Nordeste. Não é exagero dizer que o “distritão” leva água para esse moinho.

 


Marco Aurélio Nogueira: À beira do precipício

A ideia de “bom governo” vem dos gregos e dos princípios platônicos de Bem, Justiça, Temperança, Prudência e Fortaleza. Tem um ineliminável conteúdo ético. Governa-se para o bem de todos, de modo justo e correto, sem excessos ou privilégios, tendo em vista o fortalecimento e o progresso da comunidade.

Por derivação, o “bom governo” está dotado de atributos decisivos. Para se realizar, precisa de apoio parlamentar, representatividade social e assessoria técnica qualificada. Precisa, também, de quem o comande e coordene, seja em termos institucionais, seja em termos de liderança ou autoridade pessoal. Carece, portanto, de uma institucionalidade equilibrada, respeitada pelos governados, e tanto quanto possível de uma liderança política que possa expressar, perante o povo, as virtudes que cimentam uma comunidade.

Um “bom governo”, porém, não é sinônimo de bom governante: este pode ser bondoso, puro, honesto e bem-intencionado, mas seu governo ser péssimo. Um tirano estraga um governo que poderia ser bom, mas um bom governo pode atenuar a tirania e eventualmente expeli-la. É preciso ver o conjunto, as articulações. Uma boa Presidência não é igual a um bom presidente.

Se olharmos as coisas brasileiras por esse ângulo, o que vemos se aproxima do horror. Falta-nos quase tudo. A vida moderna, com sua voracidade e sua turbulência, minou nossos fundamentos por um lado, ao passo que a classe política, os partidos e o sistema político fizeram o mesmo pelo lado oposto. Em um vórtice de sobressaltos e desacertos, reduziu-se drasticamente a qualidade ética, técnica, discursiva, intelectual, da política, que hoje rasteja perante o país, numa busca desesperada por reconhecimento e legitimidade.

Sejamos francos: chegamos à beira do precipício. A política já não mais responde. Lateja como um coração enfartado. Claro, nem tudo é política, a vida pulsa com intensidade às vezes até explosiva, segue em frente. Nem tudo é política e a política não é tudo. Mas, sem ela, falta a presilha para fechar o colar, fica tudo meio solto, desgovernado, as pérolas saltam fora e esparramam pelo chão.

Seria então a hora dos setores mais lúcidos da sociedade fazerem alguma coisa. Como permitir que as coisas sigam nessa toada, insistindo em nos empurrar para o precipício?

Aí, você olha para a esquerda, para o centro e para a direita, para o Estado e a sociedade, para as universidades e as associações da sociedade civil, para trabalhadores e empresários, para ONGs e sindicatos, e constata que nada acontece. Há uma letargia solta no ar, misturada com indignação geral e o vozerio mouco da contestação, torta e inoperante. Onde estão os líderes, os pensadores, os organizadores, os que buscam saídas e anunciam novos tempos? Para onde ir? Quais as saídas?

A Câmara dos Deputados mergulhou na mediocridade. Vive hoje de manobras para se livrar da Lava Jato e chantagear o Executivo. Não se sabe quantos são os parlamentares que perdem o sono só para cogitarem da própria reeleição, mas suspeita-se que o número seja grande. São eles que lutam por uma “reforma política” que beira a obscenidade, que não só traz de volta a figura questionadíssima do “distritão”, que mata a proporcionalidade e dá força desproporcional aos mais conhecidos, como também propõe um Fundo Especial, dito para a “defesa da democracia”, mas na verdade concebido exclusivamente para bancar campanhas eleitorais. É uma facada no Erário Público de alguns bilhões de reais, a serem devidamente pagos pelos cidadãos. O objetivo é substituir o que os candidatos deveriam fazer diuturnamente — qual seja, procurar os eleitores e conquistá-los para que os ajudem em suas campanhas — pelas facilidades do financiamento estatal, que em tese permitiria que eleitores fossem seduzidos pelo marketing eleitoral. Uma imoralidade, que não ajuda a que se criem partidos, correntes de opinião, nichos de vida política.

O problema da política só pode ser resolvido mediante um novo pacto entre povo e políticos: o povo se dispondo a apoiar (com votos e dinheiro) os bons partidos e seus parlamentares, com a garantia mínima de que receberá em troca algo de substantivo em vez de promessas vãs, trejeitos apelativos e manifestações posticas de indignação e combatividade. O pacto vigente esgarçou.

Não dá para continuar assim. É um risco grande demais.

As sirenes dispararam, como se estivéssemos na iminência de um bombardeiro aéreo. Mas poucos ouvem. Os que deveriam agir fingem-se de mortos, repetem caminhos dantes trilhados, temem o que possa ter cheiro de novo, seguem pragmaticamente em frente sem se darem conta de que caminham para um buraco mais fundo. O panorama visto da janela de casa já fornece todos os indícios de que está em marcha um comprometimento não consciente do futuro. O mote “esgotou-se o modelo, precisamos fazer alguma coisa” reflete a exasperação, mas não é o que melhor aconselha.

Como mudanças sérias não estão à vista e terão de ser costuradas, o jeito é aprender a viver no risco e tentar manejá-lo com um mínimo de sensatez. Buscar pontes e coordenações de novo tipo, dosar energias, rever atitudes e convicções, calibrar o discurso, catar os cacos do que sobrou, desradicalizar e despolarizar, valorizar convergências e entendimentos. Há iniciativas ganhando corpo, grupos tentando se articular. Ainda não se sabe bem em torno de quais estratégias, com quais programas e com quais lideranças que “fulanizem” e deem fisionomia ao processo. Mas algo se move e em algum momento produzirá resultados.

A crise não se deve ao governo em sentido estrito, ao Poder Executivo. Michel Temer, seu ministério e suas práticas merecem toda a crítica que lhe têm sido feita. Por mais que existam em seu interior pessoas ilibadas e bons propósitos, o conjunto da obra é ruim, muito ruim. Não nos ajuda antever algo risonho à frente. Mas é inócuo ficar gritando contra sua “ilegitimidade”, seu espírito “golpista” ou seu “reformismo de direita”, coisas que de resto são discutíveis. Ele é só parte do problema, e não a parte principal. A crise envolve tudo o que respira na política nacional: parlamentares, juízes, procuradores, partidos, sindicatos, intelectuais, ativistas.

É esse conjunto — ou seja, “nós” — que precisa ser responsabilizado e que deveria se responsabilizar a si próprio, saindo das respectivas zonas de conforto em que repousam seus inúmeros pedaços.

 


Perdas e ganhos: Temer-Dodge na noite do Jaburu

Quem ganha, quem perde? Na base desta questão, bem ao estilo do noticiário político e das colunas de bastidores do começo dos anos 70, (quando ingressei no Jornal do Brasil, via sucursal de Salvador), giram nesta semana, de agosto de 2017, as avaliações sobre o mais recente, polêmico e surpreendente fato produzido no ninho de espantos e assombrações em que vai se transformando o palácio presidencial do Jaburu, em Brasília: o encontro na calada da noite, fora de agenda, entre o atual mandatário, Michel Temer, e a procuradora de Justiça, Raquel Dodge, escolhida para assumir, mês que vem, o comando da Procuradoria Geral da República – um dos postos mais cruciais e sensíveis no esforço para investigar, julgar e punir corruptos e corruptores no País - ; no lugar de Rodrigo Janot, que se despede entre tiros e flechadas. À favor e contra.

Anos depois, quando assumi a chefia da sucursal da VEJA para a Bahia e Sergipe, circulava na sede da mais importante revista semanal brasileira, em São Paulo, uma expressão bem própria para definir, a partir dos signos da comunicação e do poder, as perdas e danos nas biografias de personagens envolvidos em escândalos ou situações constrangedoras, decorrentes de passos em falso deste tipo, envolvendo ministros, figurões de alto coturno do serviço público, togados da justiça, parlamentares e governantes: “Subiu para baixo”.

No caso do presidente Temer – séria e profundamente enrolado, jurídica e moralmente, nos efeitos devastadores da conversa gravada pelo empresário Joesley Batista nos desvãos do mesmo palácio, recentemente – as dúvidas são maiores e fica mais difícil uma avaliação mais segura de qualquer analista, as perdas e ganhos neste episódio. Salvo, evidentemente, os arautos de encomenda da corte, ou os que ainda acreditam em Papai Noel, ou pensam que “o céu é perto”, como ouvia minha saudosa mãe dizer desde a infância, nas barrancas do São Francisco, o rio da minha aldeia.

Anda tão baixo o conceito do mandatário na avaliação da sociedade (as pesquisas de opinião deixam isso cada dia mais evidente), que fica quase impossível saber quanto o encontro desta semana, na noite do Jaburu, pode ter contribuído para fazer descer ainda mais o reduzido índice de prestígio e a escassa credibilidade do principal ocupante do palácio cercado de dúvidas e suspeitas.

Quanto à harvardiana Raquel Dodge, ungida pelo mandatário para ocupar o lugar de Janot – eleito inimigo número um pelo próprio presidente apanhado em flagrante delito criminal em pleno exercício do mandato, segundo denúncia da PGR barrada temporariamente pela Câmara- , o estrago é indubitavelmente devastador. No caso desta desgraçada tentativa de demonstração de controle e poder (que se pretendia manter submersa na sombra palaciana, sabe-se lá a conselho de quem), cabe com perfeição a constatação do conceito jornalístico citado no segundo parágrafo deste artigo: a futura chefe da PGR “subiu para baixo”. A conferir.

Mas, diga-se a bem da verdade, não há apenas perdedores, a exemplo dos dois principais personagens citados, que se meteram desgraçadamente nesta historia nada exemplar para a já combalida vida republicana nos dias que correm no Brasil. Há. Igualmente, meritórios vencedores neste caso.

O maior deles, a imprensa livre e democrática que felizmente ainda se pratica por estas bandas de baixo da linha do Equador. Trocando em miúdos, não se trata aqui de mera conquista conceitual ou retórica, mas envolve, igualmente, personagens de carne e osso, profissionais que merecem referência, destaque e aplausos. Prêmios também, quem sabe?

Por exemplo: o cinegrafista Wilson de Souza, da TV Globo. É dele o registro do flagrante implacável desta semana, na terça-feira, 8. As lentes potentes da câmera, sob seu atento e ágil comando, focalizou com notável nitidez (dá até para ver o número da placa) o estacionamento do carro oficial nas imediações do corredor arborizado (passarela?) da entrada do Jaburu. Do automóvel, desce a futura procuradora geral da República. Passos apressados, de quem parece estar fugindo de olhos curiosos ou perguntas incômodas, ela caminha para o encontro com Michel Temer, o mandatário inimigo de Janot, às 22 horas.

As imagens vistas na noite seguinte, no Jornal Nacional, são dessas de entendimento imediato e impacto fulminante. Dispensam comentários ou explicações. Principalmente aquelas, saídas apressadamente da cachola de assessores oficiais, jornalista chapa branca ou conselheiros palacianos que imaginam ser a sociedade brasileira formada por idiotas ou “abestalhados”, para usar o linguajar dos soteropolitanos. Ainda assim, tanto o Planalto quanto a procuradora afirmam, oficialmente, que o encontro noturno na residência presidencial foi só para uma conversa sobre a posse da futura chefe da PGR, marcada para daqui a quase 40 dias.

Aqui, mais uma vez, entra em campo o jornalismo preocupado com “Sua Excelência, o Fato”, no dizer de Charles de Gaulle, que Ulysses Guimarães gostava de repetir. A incansável e atenta repórter Andréia Sadi revelou, em seu blog, do G1, que houve pelo menos mais um assunto tratado no encontro: “Temer fez para Raquel Dodge um relato dos motivos que o levaram a pedir a suspeição do procurador geral Rodrigo Janot, ao Supremo, na terça, e seu embasamento jurídico”.

Além disso, a jornalista conta ainda, “que o presidente quer que Raquel Dodge tome posse no Palácio do Planalto como gesto simbólico da reaproximação institucional do Executivo com o Ministério Público”. E o mandatário quer, também, a solenidade de posse realizada de manhã cedo, porque na tarde do mesmo dia ele tem viagem marcada para os Estados Unidos, onde discursará na cerimônia de abertura da Assembleia Geral anual da ONU.

Eis mais um episódio da crítica realidade da política e do exercício do poder no Brasil, a cobrir de razão os historiadores e pensadores que identificam e apontam a histórica e profunda ligação entre a pólvora e a imprensa. No caso deste estranho encontro Temer - Dodge, tem muita pólvora e fumaça no meio. Mas o mérito maior, até aqui, é do jornalismo na busca da verdade. Viva!

Por Vitor Hugo Soares, jornalista, editor do site blog Bahia em Pauta.

 

 

 


Julianna Sofia: Pacote de maldades para servidor pode gerar onda de greves

O governo de Michel Temer não quis ver o que analistas do mercado financeiro e economistas davam como favas contadas desde o início de 2017. Com a economia em marcha à ré e o excesso de desonerações tributárias, as receitas da União estavam superestimadas, e o cumprimento da meta de deficit fiscal de R$ 139 bilhões neste ano seria missão impossível.

O Palácio do Planalto tapou o sol com a peneira ao endossar, em meados de 2016, negociações salariais com o funcionalismo feitas pela gestão dilmista. Preferiu fechar os olhos para o impacto sobre o Tesouro a comprar briga com as corporações naquele momento. O discurso era que precisava honrar acordos, e os novos gastos caberiam na conta.

A gestão peemedebista parece não ver que é ilimitada a voracidade de sua base de apoio parlamentar. Não importam os cargos e os bilhões em emendas liberadas, haverá sempre uma pauta-bomba para ser jogada no colo do Executivo.

Assim, a medida provisória da reoneração e a do novo Refis —tão caras ao ajuste fiscal— podem virar pó nas mãos de aliados descontentes. Até mesmo a MP do Funrural, já repleta de benesses a ruralistas e de pesado custo, pode transmutar-se em algo pior no Congresso.

Por lá também não passa, e só Temer não enxerga, aumento de imposto para o andar de cima. Tributar lucros e dividendos ou elevar Imposto de Renda de quem ganham mais de R$ 20 mil, nem pensar.

Temer não anteviu que a tesoura afiada nas despesas poderia paralisar a máquina pública. Não previu sequer que a boa notícia da queda acelerada da inflação poderia frustrar as receitas federais neste ano.

Na segunda (14), o presidente deve anunciar rombos maiores nas contas de 2017 e 2018. Junto, um pacote de maldades para servidores: congelamento de salários, redução de vencimento inicial e corte em benefícios, como auxílio-moradia.

Já dá pra ver greve no horizonte.

* Julianna Sofia é jornalista, secretária de Redação da sucursal da Folha em Brasília.


O Globo: Esquerda brasileira se divide sobre crise na Venezuela

O agravamento da crise política e social da Venezuela provocou fissuras na esquerda brasileira. Políticos ligados aos governos do PT, que defendem o presidente Nicolás Maduro, agora discutem se o regime vai ou não contaminar campanhas petistas de 2018. Se, por um lado, a ex-presidente Dilma Rousseff e a presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann (PR), defendem abertamente o regime bolivariano, por outro, o ex-ministro da Justiça e ex-governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, critica a falta de atualização programática do PT, que terá, segundo ele, sua imagem atrelada à da Venezuela de Maduro.

Enquanto isso, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva agora tenta não vincular seu partido ao regime bolivariano.

Em entrevista à BBC News, Dilma disse ontem, sexta-feira (11), que o Ocidente tem uma visão “irresponsável” sobre a crise política e social da Venezuela e que a imprensa internacional trata o país de forma “absurda”.

— Não vou culpar apenas o Maduro. Existe um conflito. É que nem o que fizeram com o Saddam Hussein. O criminoso era o Saddam Hussein. Mataram-no da forma mais bestial possível. Quando fizeram isso, destamparam a caixa de pandora e saíram todos os monstros possíveis. A ponto de armas iraquianas financiarem os terroristas do Mali. De onde saiu o EI? O Estado Islâmico saiu do fato de os EUA acharem que tinha ali uma posição democrática. E não tinha — afirmou Dilma.

Nos últimos quatro meses, a crise venezuelana deixou pelo menos 125 pessoas mortas e quatro mil feridas, além de cinco mil presos de forma arbitrária. Com muita controvérsia, uma assembleia constituinte destituiu a procuradora-geral. A prisão de prefeitos opositores continua a aumentar a quantidade de presos políticos no país. Com uma das maiores inflações do mundo — cerca de 700% ao ano — e com 81% da famílias em situação de pobreza, os venezuelanos estão fugindo. Estima-se que mais de 12 mil tenham chegado ao Brasil desde 2014.

Tarso Genro avalia que Maduro “não tinha estratégia econômica adequada” para retirar a Venezuela da dependência da renda do petróleo. Assim, para o ex-ministro, o governo não usou uma saída política para manter um mínimo de consenso e “enfrentar as desestabilizações que viriam”. Tarso diz que a associação entre o partido e o presidente venezuelano já está dada:

— A imagem do PT já está associada à do presidente Maduro, mas isso não decorre das posições que o PT assumiu no contexto atual. Vem de que o PT não conseguiu fazer um “aggiornamento” (uma atualização) programático e ideológico, para enfrentar os novos cenários pós-Lula — afirmou.

PT e PSOL se posicionaram oficialmente em apoio à eleição de uma Assembleia Constituinte, considerando que o mecanismo “reforçava a democracia” no país vizinho. Essa tendência, porém, foi contestada por alguns integrantes das duas legendas que consideraram um erro defender Maduro.

MENOS EXPOSIÇÃO

No PT, as declarações de Gleisi Hoffmann, que defendeu a convocação da Assembleia Constituinte, preocuparam Lula. Não por uma discordância com Maduro, mas porque Lula tem poucas informações confiáveis do que acontece na Venezuela, argumentou um petista próximo ao ex-presidente. Gleisi e Lula debateram o tema esta semana para evitar maior exposição do partido.

— Maduro está se isolando demais, não tem aceito os acenos para o diálogo. Então, a crítica do Lula é que não é o momento de se expor por causa da Venezuela — contou esse petista. Outros partidos de esquerda, como PSB, não se posicionaram oficialmente porque consideram que o governo Maduro não age democraticamente.

— Não é aceitável eleger uma Assembleia Constituinte para fechar o Congresso que é oposicionista — disse o ex-deputado Beto Albuquerque, um dos porta-vozes da legenda.

 


FHC vê sistema político 'podre' e defende mais privatizações contra corrupção

SÃO PAULO (Reuters) - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez duras críticas à classe política e pediu que o Brasil amplie as privatizações de estatais para evitar novos casos de corrupção nessas companhias, após recentes escândalos na Petrobras e na Eletrobras, as duas maiores empresas públicas do país.

"Nosso sistema político deu cupim nele, está todo podre, ele bichou, e a população percebeu isso", disse o ex-presidente, que participou nesta quarta-feira de evento para discutir o futuro da Eletrobras na Fundação Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo.

"O que puder privatizar, privatiza, porque não tem outro jeito. Essa não é minha formação cultural, mas não tem mais jeito, ou você realmente aumenta a dose de privatização, ou você vai ter de novo um assalto ao Estado pelos setores políticos e corporativos", disse o ex-presidente.

Ele ainda teceu elogios à gestão do atual presidente da Eletrobras, Wilson Ferreira Jr., que assumiu a companhia em julho passado, pouco após o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o início do governo Michel Temer.

O executivo tem conduzido um programa de reestruturação da companhia que prevê a privatização de suas seis distribuidoras de eletricidade que atuam no Norte e Nordeste até o final deste ano, além da venda de ativos de geração e transmissão.

Mas FHC ressaltou que as privatizações devem enfrentar resistência de políticos e sindicatos, e lembrou que seria preciso garantir que estatais como a Eletrobras pudessem continuar com boa gestão mesmo com futuras mudanças de governo e de executivos.

Ele lembrou que seu governo só conseguiu privatizar uma subsidiária da Eletrobras, a Gerasul, que reunia ativos de geração da companhia no Sul do país, vendida em 1998 à Tractebel, que atualmente opera com o nome de Engie Brasil Energia.

"Por que só conseguimos privatizar a Gerasul? Porque era impossível enfrentar os blocos de poder nas outras empresas. Tentei o que podia, era impossível, no fundo era um condomínio enorme...quando se fala 'uma estatal pertence ao povo', não, pertence aos políticos e aos grupos de interesse ali organizados, e isso continua", atacou o ex-presidente.

"Não é que a burocracia estatal não seja capaz de chegar a uma boa performance, o que não é capaz é o sistema político", concluiu.

Ele elogiou ainda o atual momento do Brasil com a operação Lava Jato, em que autoridades investigam um enorme esquema de corrupção no país, e disse que é importante haver prisões de políticos para gerar a possibilidade de mudanças na cultura do país.

Assista:


Luiz Carlos Azedo: A crise dos partidos

Três grandes partidos derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira

A crise de representação dos partidos políticos não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Ocorre em todo o mundo, em consequência de vários fenômenos, alguns mais antigos, como o surgimento dos meios de comunicação de massas, outros mais recentes, como o crescente papel das redes sociais na formação de opinião. Mas, no caso brasileiro, tem ingredientes que são bem característicos da nossa formação política.

Os partidos políticos, tal como os conhecemos, surgiram após a Revolução Francesa e na sociedade industrial estruturada em classes mais ou menos definidas. Sua transformação em partidos de massa, com características ideológicas definidas, a partir do final do século XIX, decorreu de projetos programáticos e do surgimento de democracias de massa, mas não se pode dizer que estivessem intrinsecamente comprometidos com elas. Os partidos comunista e fascista, por exemplo, foram vocacionados para assaltar e manter o poder pela força, não para exercê-lo no âmbito da democracia representativa.

No Brasil, onde as ideias políticas acabam sempre mitigadas, os partidos já nasceram dissociados de seus objetivos programáticos. No Império, por exemplo, a luta de liberais (luzias) e conservadores (saquaremas) gravitava em torno do tema centralização/descentralização, ou seja, do exercício e controle do poder nas províncias; do ponto de vista programático, porém, ambos eram monarquistas e intransigentes defensores da escravidão. O movimento abolicionista desenvolveu-se à margem dos partidos; assim como o movimento republicano, era mais bem representado pela Escola Militar da Praia Vermelha do que pelo minúsculo partido ao qual emprestava o nome.

De certa maneira, o mesmo fenômeno se repete na crise da República Velha, na qual as elites regionais se digladiaram na luta pelo poder, até que as sucessivas crises da economia do café e o grande debate “agrarismo e/ou industralização” implodiram o pacto perverso das elites oligárquicas e seu sistema excludente e elitista de partidos regionais que se revezavam no poder a partir do eixo Rio-São Paulo.

A opção da elite cafeeira paulista pela industrialização gerou uma disjuntiva na qual o eixo da modernização se deslocou da República Velha para o Estado Novo, depois da Revolução de 1930, da fracassada Revolta Constitucionalista de 1932 e do incipiente levante comunista de 1935. A tentativa de constituir um sistema de representação corporativista na Constituinte de 1937, claramente de inspiração fascista, com a entrada do Brasil na guerra contra o nazifascismo, morreu no nascedouro.

Com a redemocratização, em 1945, a Guerra Fria se encarregou de fraudar o sistema representativo da Segunda República. O Partido Comunista (PCB), que ressurge no pós-guerra como um partido de massas, foi posto na ilegalidade, o que reforçou sua vertente golpista; e a antiga União Democrática Nacional (UDN), que nasceu da resistência à ditadura de Vargas, derivou de forma irreversível para o golpismo. Os três partidos de vocação verdadeiramente democrática eram o Partido Social-Democrata (PSD), conservador, elitista e ligado às oligarquias; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um partido de massas, nacionalista e populista; e o pequeno Partido Socialista Brasileiro (PSB), uma pequena agremiação de intelectuais progressistas.

Depois do golpe

Esses partidos protagonizaram os melhores e piores momentos da vida nacional, até o golpe de 1964, após o qual foram todos expurgados da vida política, com a reforma partidária imposta pelos militares, uma tentativa frustrada de implantar o bipartidarismo no Brasil. O projeto de institucionalização do regime autoritário, que havia derivado para o fascismo após o Ato Institucional no. 5, era uma espécie de “mexicanização” do país, no qual a hegemonia absoluta da Arena seria a via de transferência do poder para os civis.

Esse projeto sofreu sucessivas derrotas eleitorais — 1974 e 1978 — e foi sepultado com a anistia e a volta do pluripartidarismo, em 1979. Nova derrota do regime nas eleições de 1982, nas quais a oposição conquistou os principais governos estaduais, e a campanha das Diretas, Já!, apesar de frustrada, resultaram na derrota definitiva do regime, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985, que não assumiu, mas cujo vice, José Sarney, convocou uma Constituinte e completou a transição.

O regime partidário que resultou da Constituição de 1988, cuja marca é a ampla liberdade para formação de partidos, já surgiu, porém, em meio às mudanças no mundo descritas no começo desse artigo, embora com a aparência de que algo novo estava nascendo. O PMDB emergiu da ditadura como o grande partido político liberal democrático. Com o colapso do socialismo real no Leste Europeu, o surgimento do PT como partido de massas, ligado aos sindicatos e aos movimentos sociais, sinalizava, porém, uma ruptura com o comunismo e o populismo. Fundado por políticos e intelectuais progressistas, o PSDB oferecia à sociedade brasileira um programa social-democrata moderno, em sintonia com as necessidades de modernização do país.

Esses três grandes partidos, mas não somente, derivaram para o patrimonialismo e o clientelismo. Com seu transformismo, ameaçam garrotear a democracia brasileira, como principais artífices de uma reforma política cujo objetivo principal é salvar seus quadros enrolados na Operação Lava-Jato de uma degola eleitoral, em vez de renovar os costumes políticos do país.

 


Fernando Gabeira: Uma vitória de Pirro

Políticos inescrupulosos compreenderam logo que o momento é do banquete das hienas

Trabalhando ao ar livre, em lugares de pobre conexão, nem sempre sigo os detalhes da patética cena política brasileira. Mas quando tento recuperar tudo no fim de semana, saio com uma sensação de que não perdi muito.

No caso da sobrevivência de Temer, triunfou a tese da estabilidade. Eu já a havia combatido, em nome de um equilíbrio dinâmico que soubesse combinar a retomada econômica com a luta contra a corrupção. Minha tese foi derrotada. Mas parcialmente, porque ela afirmava também que a estabilidade sem luta contra a corrupção se transformaria no seu contrário, era mais inquietante ainda.

A sobrevivência de Temer significou um golpe num dos pilares da luta contra a corrupção: a transparência. Não poderemos saber o que aconteceu de fato. Mas estimulou a distribuição de verbas e cargos. Ela põe em risco a própria aspiração dos defensores da estabilidade, a redução dos gastos públicos. Temer tornou-se refém do Congresso.

E a conta não será alta apenas pelas emendas ou pelos cargos. Em todas as frentes os recursos do Estado serão disputados como um butim.

O projeto de Refis, que reescalona dívidas públicas, ganhou uma versão no Congresso que não só perdoa às vezes 99% do valor a ser pago, como representa uma perda de R$ 252 bilhões para os cofres públicos. Os sindicatos querem muito mais do que perderam com o fim do imposto sindical. Os partidos, um modesto fundo de R$ 6 bilhões para disputarem as eleições sem buscar apoio nos eleitores ou sequer usar a imaginação para se financiarem.

Quanto mais denúncias surgirem contra Temer, mais alta será a conta. As bocas estão abertas à espera de novas chances, na verdade, antecipando-se a elas. Temer quer o cargo, eles querem os recursos, estão unidos nessa sinistra versão de estabilidade.

Fixando-me apenas na esfera política: a sobrevivência de Temer pode representar também um golpe no futuro, bloqueando a renovação. Embora sejam governantes diferentes em contextos diferentes, a salvação de Temer e a constituinte de Maduro partilham um perigo comum: desmoralizar as eleições. No caso do ditador venezuelano, o objetivo é afastar a oposição, caminhar para um sistema de partido único e eleições quase unânimes, como em Cuba. No caso brasileiro, o objetivo é manter um sistema partidário falido, em que é possível escolher apenas entre visões políticas fracassadas.

A sobrevivência de Temer foi o passo dado com os olhos na relativa quietude das ruas. A indiferença é relativa, porque a opinião manifestou-se em pesquisas, estimulou o Congresso a desafiá-las, a impor sua própria agenda.

Concessões à bancada dos ruralistas, redução de áreas de proteção ambiental na Amazônia, discursos, ombros tatuados com a palavra Temer, caímos num parlamentismo do horror. Mas isso também é a armadilha que tecem para que as pessoas se afastem enojadas da política, concluam que aquilo é um universo paralelo, o melhor é ignorá-lo.

Veio o aumento da gasolina. Vem aí mais imposto. As pessoas não vão ignorar facilmente a máquina que devora o seu dinheiro.

A tentativa de criar um mundo tão repulsivo que a maioria se afaste dele é um dado na mesa. As eleições desta semana no Estado do Amazonas fazem pensar: uma forte abstenção e a disputa entre duas figuras do sistema falido.

Por outro lado, a existência desse mundo repulsivo pode estimular a vontade de mudança. São duas ideias em constante tensão: virar as costas ou tentar mudar. Ainda que leves no momento, ventos de mudança começam a soprar. Grupos em fusão discutem como participar, propondo candidaturas independentes. Muitos viveram no exterior, acham que precisam contribuir para o País, estão sintonizados com a revolução digital e rejeitam todos os métodos que arruinaram o sistema político brasileiro.

Por dever de ofício, continuarei acompanhando a cena brasileira, aos trancos no meio da semana, em detalhes no fim. Mas na conjuntura que se abre, o investimento maior é na possibilidade de renovação.

Olhar apenas para o que está aí é deprimente. É preciso um horizonte, conhecer o que se move, apontar possíveis conexões e até ajudar com a experiência vivida de erros e acertos. Todos os países nessas circunstâncias tendem a achar seu caminho de renovação. O Brasil seria um caso inédito de país que não se mexe com vigor quando é explorado por sistema partidário voraz pilotando dispendiosa máquina estatal.

Não se trata de algo solene do tipo ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil. Mas para muitos o dilema pode ser no futuro próximo: ou acabar com essa pilhagem ou se despedir do Brasil.

Apesar de partilharmos uma cultura, uma História nacional, não dá para nos sentirmos num país de verdade quando as quadrilhas pilham os seus recursos. Nem acreditar em justiça quando se anula, em nome da privacidade empresarial, um processo de Mariana, que trata de 19 mortes, centenas de pessoas expulsas de casa e um rio envenenado.

Ao aceitar a permanência de Temer em nome da estabilidade, mercado, empresários e até mesmo uma parte da imprensa não percebem a mensagem que enviam aos políticos inescrupulosos que reinam em Brasília. Eles são espertos o bastante para avançarem sempre que, por meio de atos repulsivos, conseguem a indiferença enojada da sociedade. Mas são mais espertos ainda para entenderem que mercado e empresários estão dispostos a pagar tudo pelo que consideram, erroneamente, a estabilidade.

Sem pressão da sociedade e com o beneplácito de um mercado imediatista, compreenderam muito rapidamente que o momento é do banquete das hienas. Todo esse desastre por causa da estabilidade, do medo de caminhar, paralisia com o mito de que sem Temer acabaria a reconstrução econômica e um PT na lona é o bicho-papão que voltaria ao poder.

* Fernando Gabeira é jornalista


Murillo de Aragão: PSDB diminui de importância após a denúncia de Janot  

O PSDB definiu, na semana passada, que o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) continuará como presidente interino da sigla até dezembro, quando ocorrerá o encontro que escolherá o novo presidente nacional. Como consequência dessa decisão, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) seguirá afastado da presidência tucana.

A manutenção de Tasso como presidente interino agrada ao comando paulista da legenda, que enxerga no senador cearense um aliado interno importante para que os paulistas não apenas retomem o comando nacional do PSDB, mas também indiquem o candidato tucano ao Palácio do Planalto em 2018. Ou seja, o governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) ou o prefeito João Doria (PSDB-SP).

Além do apoio do tucanato paulista, Tasso Jereissati tem o respaldo de parcela expressiva da bancada de deputados federais do PSDB, além dos economistas tucanos (Elena Landau, Edmar Bacha, Gustavo Franco e Luiz Roberto Cunha), que na semana passada divulgaram uma carta em favor de sua continuidade como presidente interino.

Ainda que a manutenção de Tasso à frente do PSDB tenha agradado às mais diferentes alas do partido, o clima interno não é bom. Na votação da denúncia da Procuradoria Geral da República contra o presidente Michel Temer (PMDB) na Câmara, a bancada tucana rachou. Dos 47 deputados federais do PSDB, 22 votaram a favor de Temer, 21 contrários. Houve quatro ausências.

Da bancada do PSDB de São Paulo, composta por 12 deputados, 11 votaram contra Temer. O único voto favorável ao presidente veio de Bruna Furlan. Já na bancada mineira do PSDB, controlada por Aécio, dos seis deputados do PSDB, cinco votaram a favor de Temer. Eduardo Barbosa esteve ausente.

Ou seja, enquanto a bancada federal do PSDB de São Paulo, bastante influenciada por Alckmin, distancia-se de Temer, a bancada mineira, sob a influência de Aécio, segue ao lado do presidente.

Além do posicionamento em relação ao governo Michel Temer, outro tema que divide o PSDB é a sucessão presidencial de 2018. Alckmin intensifica movimentos (recentemente, reuniu-se com líderes nacionais do DEM e do PSB para discutir 2018) a fim de acelerar a escolha do candidato do PSDB ao Planalto. Já líderes como Aécio, o ex-presidente FHC, o senador José Serra e o prefeito João Doria preferem que a sigla debata 2018 mais adiante.

A tendência é que essa divisão no PSDB prevaleça até dezembro, quando o partido escolherá seu novo presidente nacional. Mesmo que a bancada da Câmara pressione pelo desembarque do governo, a tendência é que o PSDB continue na base, principalmente porque Temer fará o possível para tentar aprovar a reforma da Previdência, uma das bandeiras do PSDB. Além disso, a condução da política econômica do governo é respaldada pelos tucanos.

A unidade do PSDB foi uma das vítimas da denúncia de Rodrigo Janot. Expôs sua incapacidade de tomar uma decisão e seguir com ela. A divisão revelou indefinição e covardia institucional. E, pasmem, nem colocou o partido fora do governo, nem o manteve com o prestígio anterior na base política. Antes da denúncia, eram os tucanos que davam o software para a gestão Temer junto com o documento “A Ponte para o Futuro”, de Moreira Franco. Depois da tensão deflagrada por Rodrigo Janot, o partido encolheu.

Paradoxalmente, a crise ocorre às vésperas de ano eleitoral, quando o partido parece ter João Doria como o mais competitivo candidato do centro político nacional.

* Murillo de Aragão é cientista político

 


Roberto Freire: Por uma reforma política digna do nome

 

A pouco mais de um ano para as eleições de 2018, é chegado o momento de o Congresso Nacional se debruçar sobre as necessárias alterações no sistema político-eleitoral. Tenho afirmado que a mais efetiva reforma política de que o Brasil precisa é a instituição do parlamentarismo, um modelo avançado, dinâmico e flexível que permite a superação de impasses agudos sem traumas institucionais.

Já existe uma Proposta de Emenda à Constituição, de autoria do então deputado Eduardo Jorge e relatoria de Bonifácio de Andrada, que institui o parlamentarismo no Brasil. O texto, apresentado em março de 1995, já passou por todas as comissões da Câmara e está pronto para ser votado em plenário desde 2001. Em caso de aprovação, evidentemente precedida por um referendo popular, a mudança no sistema de governo valeria a partir de 2022, de modo que o país teria um tempo razoável de adaptação.

No parlamentarismo, quando não se consegue obter uma nova maioria parlamentar, a Câmara é dissolvida e são convocadas novas eleições. Não por acaso, trata-se do sistema vigente na maioria dos países do mundo democrático – à exceção dos Estados Unidos, todas as grandes nações desenvolvidas são parlamentaristas. O presidencialismo, por sua vez, é filho direto do absolutismo monárquico e gerador de impasses e crises permanentes. Especialmente no Brasil, esse sistema impulsiona os “salvadores da pátria” ou demiurgos que exercem um poder quase imperial.

Outro avanço fundamental seria a adoção do voto distrital talvez já para as eleições municipais de 2020, como uma espécie de transição. Nossa posição é favorável ao voto distrital misto, utilizado com êxito na Alemanha. Por esse modelo, metade dos representantes dos Estados da federação seria eleita pelo voto proporcional em lista partidária, e a outra metade, eleita majoritariamente em distritos eleitorais. O eleitor votaria duas vezes: no partido (em lista pré-ordenada de candidatos), valorizando o componente ideológico e programático; e em um candidato do seu distrito, o que aproximaria o representante do representado.

Infelizmente, o que temos observado é uma preocupante tendência pela aprovação do sistema eleitoral conhecido como “distritão” – uma evidente distorção da representação política no Parlamento. Seriam eleitos os candidatos mais votados a deputado, independentemente das coligações que integrassem ou dos partidos aos quais pertencessem, que se transformariam em meros cartórios para o registro de candidaturas. A Câmara seria formada por 513 entidades autônomas, cada uma valendo por si só, o que faria com que os governos tivessem de se articular sem qualquer mediação partidária com cada um desses “deputados de si mesmos”, inviabilizando totalmente a indispensável interlocução entre Executivo e Legislativo.

O absurdo da proposta é tão clamoroso que tal modelo vigora atualmente apenas no Afeganistão, na Jordânia e em pequenos países insulares. Já foi utilizado pelo Japão em uma única eleição, no pós-guerra, e imediatamente revogado diante de tamanho fracasso.

Ao invés de nos ocuparmos com teses despropositadas como o nefasto “distritão”, deveríamos trabalhar para corrigir as distorções de uma legislação que impede a oxigenação do ambiente político e afasta qualquer possibilidade do surgimento de novas forças representativas da cidadania. A chamada cláusula de barreira, cantada em prosa e verso como a solução para todas as nossas mazelas, atende apenas aos interesses dos grandes partidos e serve para manter a primazia da velha ordem.

Ao contrário do senso comum, as anomalias do modelo eleitoral brasileiro não têm relação com a possibilidade de criação de novas agremiações. Partido político é direito de cidadania e não pode ser tutelado ou regulamentado pelo Estado. Na realidade, o grande imbróglio é o acesso indiscriminado ao Fundo Partidário e ao tempo de propaganda eleitoral no rádio e na televisão. Criou-se no Brasil um amplo mercado de negociações espúrias e tentativas de enriquecimento fácil à custa do dinheiro público, com uma profusão de pedidos de registro de novos partidos.

Mal comparando, é algo semelhante ao que ocorre no sindicalismo, cada vez mais dependente dos valores provenientes do imposto sindical, felizmente abolido. Ou o que se vê com a proliferação de igrejas por força de uma imunidade tributária assegurada por lei, o que leva, infelizmente, à consolidação de um verdadeiro “negócio”. Nossa proposta é de que apenas os partidos que atingirem, pelo voto, uma representação mínima na Câmara dos Deputados tenham direito aos recursos do Fundo. Seria uma espécie de cláusula de desempenho para as legendas terem acesso ao Fundo Partidário, mas de forma a não impedir a representação política e o exercício dos mandatos.

Se o Congresso não se deixar levar por respostas fáceis e erradas para problemas complexos, pode fazer história e proporcionar uma mudança de patamar em nosso sistema político-eleitoral. Chegou a hora de termos um regime que permita o fortalecimento dos partidos e a participação mais ativa da sociedade. O Brasil precisa de uma reforma política digna do nome, e não de uma contrarreforma que agrave as distorções já existentes. Queremos avançar.

 


Cezar Vasquez: A Lava-Jato e o neolítico moral

A questão moral tem comandado o debate público brasileiro. A corrupção, que envolve políticos de todos os níveis e esferas de poder, paira como a causa de todos os males nacionais. Crise na saúde, falência dos Estados, desemprego, violência, quase tudo direta ou indiretamente parece estar relacionado com a decadência moral da classe política.

Desconfiança e baixa credibilidade da “classe política” não são fenômenos nacionais e muito menos novidades. Se tomarmos como referência o Índice de Confiança Social do Ibope, desde 2009 que o Congresso Nacional e os partidos políticos aparecem como as instituições com os menores índices de confiança entre as avaliadas. Há uma mudança no patamar da avaliação em 2013, anos das manifestações que, para muitos analistas políticos, são consideradas um marco de inflexão do modelo político brasileiro.

A baixa credibilidade por si só não explica a ascensão da questão moral como um dos elementos primordiais do debate público, muito embora tenha facilitado a utilização política do tema e servido como solo fértil para esse tipo de pregação. Certo mal-estar já havia se consolidado na percepção da opinião pública sobre as relações envolvendo classe política e recursos provenientes de corrupção. Poucos anos antes ocorrera a crise do mensalão, que revelou de forma clara certos meandros das relações entre financiamento de campanhas, agências de publicidade, partidos políticos e grandes empresas. Ao longo do processo de reconstrução democrática foram inúmeras as crises políticas com fortes bases de natureza moral. Impeachment do Presidente Collor, Anões do Orçamento, Crise do Painel do Senado e várias outras.

O novo e decisivo elemento no atual contexto foi a Lava-Jato. A operação começou em 2009 numa investigação sobre o crime de lavagem de recursos envolvendo o ex-deputado José Janene e doleiros. A partir de 2013, por meio de interceptações de conversas telefônicas é identificado um esquema de corrupção e lavagem de dinheiro envolvendo diretores da Petrobras. Em março de 2014 é deflagrada a primeira grande operação com prisões, ações de busca e apreensão e conduções coercitivas para tomada de depoimentos. É nesse momento, em função do uso de uma rede de postos de gasolina e lava jatos para movimentar recursos ilícitos por parte dos investigados que a operação é batizada com esse nome.

A discussão aqui não tem relação com os meandros técnicos da operação, com seus erros e acertos, ou com a culpa dos investigados e condenados. A ideia é discutir e avaliar discurso e estratégia política armada pelos próprios procuradores e o juiz Sérgio Moro em defesa da operação. Desta forma, estimar consequências para o futuro das instituições políticas e a vinculação de certas afirmações com determinadas visões de reformadores morais.

É impossível determinar se, no início das investigações, tinha-se noção do impacto que as mesmas teriam sobre a atividade política do país. A narrativa oficial é de que a partir de uma pista, a venda de um automóvel feita por um doleiro para um diretor da Petrobras, se puxou um fio, que trouxe um novelo. No entanto, a inspiração na Operação Mãos Limpas, da Itália, reiterada pelo próprio juiz Sérgio Moro, bem como a própria experiência pregressa do mesmo no processo do Banestado e do Mensalão, indicam que o alvo inicial das investigações não era apenas a lavagem de dinheiro por um grupo de doleiros.

Em entrevista, em 20 de dezembro de 2016, ao jornalista Wilson Tosta, do jornal O Estado de São Paulo, o cientista político Luiz Werneck Vianna atacou a cultura das corporações do ministério público e de certos setores do judiciário, classificando-os como sendo uma espécie de “Tenentismo Togado”.

Perguntado sobre a extensão da crise política após a revelação das delações premiadas da Odebrecht, ele respondeu: “Essas coisas não estão acontecendo naturalmente. Não são processos espontâneos. A essa altura, a meu ver, não há dúvida de que há uma inteligência organizando essa balbúrdia. Essa balbúrdia é provocada e manipulada com perícia”.

Mas para além da denúncia da luta dessas corporações para aumentar seus poderes e privilégios, o que realmente interessa é o sentido autoatribuído de certos personagens nesse processo. Perguntado se faltam controles, na Constituição, sobre essas instituições, Werneck Vianna oferece a seguinte resposta: “Em princípio, não. O problema é que as instituições tem que ser “vestidas” pelos personagens. E, a partir de certo momento, os personagens começaram a ter comportamentos bizarros. E que têm essa visão iluminada que os tenentes tiveram, nos anos 20. Só que os tenentes tinham um programa econômico e social para o país. E esses tenentes de toga não têm. São portadores apenas de uma reforma moral”.

As perguntas seguintes do jornalista levam o cientista político para o tema que nos interessa aqui: 1) “Mas o combate a corrupção não é importante?” 2) “E a atuação dessas corporações fortalece a negação da política?” E as respostas de Werneck Vianna abrem o caminho para a segunda parte desse artigo: 1) “Sem dúvida. Agora, política é política. Esse judiciário que está aí ignora a existência de Maquiavel. Ele se comporta apenas com um ímpeto virtuoso. Com um ímpeto  de  missão.” 2) “Sim.  Elas só  existem  desse  jeito  destravado,  sem  freios,  porque as instituições republicanas recuaram. E o presidencialismo de coalizão teve responsabilidade nisso. Porque rebaixou os partidos. Fez dos partidos balcões de negócios.”

 

O Neolítico moral

A referência a Maquiavel nos remete à discussão sobre a tese do Neolítico Moral, exposta no capítulo um do livro “Vícios Privados e Benefícios Públicos”. É interessante como a referência cifrada de Werneck Vianna coincide com uma passagem do texto de Eduardo Giannetti sobre a posição de Maquiavel. “Ao contrário de Lucrécio e Platão, tanto Hobbes como Maquiavel não embarcam num projeto de realçar com tintas fortes a realidade de um suposto hiato moral entre o que é e o que deve ser. Eles não se apresentam como portadores de valores puros e superiores aos do homem comum, ou como reformadores morais da sociedade”. (1)

A tese do Neolítico Moral baseia-se no conceito de que há um hiato entre o progresso material da sociedade humana, do conhecimento e da ciência e o progresso moral da humanidade. Há a ideia de que o progresso moral não acompanha o progresso material e as visões que colocam no próprio avanço da civilização a causa da degeneração moral. No texto de Giannetti o ponto de partida é a desilusão que a Primeira Guerra Mundial trouxe na crença quanto a certa infalibilidade do progresso humano. Entre a segunda metade do século XIX e o início da guerra, a civilização europeia vivia sob certa crença na inevitabilidade e infalibilidade do progresso. Em 1919, o filósofo inglês L.P.Jacks formula a ideia de que apesar de todo o avanço material conquistado “do ponto de vista moral, nós vivemos ainda na era neolítica...”

A noção de um descompasso entre o progresso da civilização e o progresso moral está presente, segundo Giannetti, desde o próprio surgimento da filosofia moral, no Iluminismo grego, no século V a.C. “O início da reflexão crítica sobre a conduta humana marcou também o início de expectativas mais elevadas sobre as capacidades e o potencial humano”. Se em Sócrates isso é um projeto de filosofia moral, em Platão ele se transforma em um projeto social, de construção de instituições capazes de reformar a conduta humana. Em Platão surge, segundo Giannetti, pela primeira vez a noção de degeneração moral em decorrência do progresso material.

Essa ideia teve em Lucrécio, expoente da filosofia epicurista, o grande defensor no mundo latino. A diferença para Platão é que ele não propunha um programa institucional, tampouco acreditava que o progresso fosse ruim em si. Mas apostava na moderação como elemento para uma mudança no modo de vida como o melhor caminho para o homem conviver com as “tentações” advindas do progresso.

Os temas da crítica moral da antiguidade são retomados pela filosofia moderna. Hobbes e Maquiavel têm uma visão pouco otimista sobre o comportamento humano. A diferença é que, como foi ressaltado acima, não se propõem a estabelecer um padrão ideal, mas passam a admitir “o comportamento irrefletido e inconstante da maioria dos cidadãos na sua relação com as leis e o poder público ” como um dado da realidade.

Mas o relativismo de Hobbes e Maquiavel não foi a atitude representativa da filosofia moderna. A postura normativa foi a tônica predominante e, a partir de meados do século XVIII, a tese do Neolítico Moral passa a ser um lugar comum. O melhor e mais influente representante desta posição seria Rousseau.

“Mais do que qualquer outro, Rousseau defendeu de maneira intransigente a ideia de que a civilização provocou o atraso moral do homem”. “Com a mesma intensidade com que denigre a situação existente Rousseau vai enaltecer o futuro sonhado e afirmar o potencial de mudança. Parte da receita é o estabelecimento de um novo (e genuínuo) “contrato social”, que, por meio de um drástico rearranjo jurídico e institucional, transforme a ordem opressiva e injusta como ela é na ordem democrática e igualitária como ela deve ser.” “Mas o principal ingrediente da mudança viria não de fora, mas de dentro do próprio homem. É a crença na “perfectibilidade humana” que vai alimentar a visão rousseauniana da possibilidade de uma completa regeneração da ordem política e social, isto é, da criação de uma sociedade justa na qual o homem – remodelado e apaziguado – deixou de ser o vaidoso e insaciável para se tornar o cidadão virtuoso e dedicado de uma democracia igualitária.”

No texto de Giannetti é apresentada uma resenha bastante completa sobre a evolução histórica das ideias. Evolui até a utilização do Neolítico Moral na discussão ambiental o seu uso por neurocientistas. A tese é contestável. Não é possível propor uma métrica de evolução histórica. E muito menos para a moral. No entanto, o descontentamento moral é positivo em si. O problema é quando a tentação à normatização descamba para o messianismo. E aqui retornamos à Lava-Jato.

Certos aspectos complexos da estratégia e do discurso

Quando analisamos as palestras e entrevistas do juiz Sérgio Moro, é possível notar que boa parte das explicações oferecidas é ancorada na posição institucional do poder judiciário. Uma profunda convicção, ou um discurso muito elaborado, retira qualquer possibilidade de atribuir intenção ou caráter político à operação Lava-Jato. É tudo dever de ofício. Ao mesmo tempo, no desenvolvimento do discurso, alguns conceitos começam a ser apresentados. Eles surgem como resultados ocasionais, descobertas das investigações. O primeiro deles é o conceito de corrupção sistêmica.

No evento “Vamos conversar sobre ética”, da Universidade Positivo, em 18 de agosto de 2016, o juiz Sérgio Moro falou por pouco mais de uma hora. Partindo do que teria sido uma impressão colhida numa confissão, em que o réu assumia com naturalidade a prática de corrupção e alegava ser isso uma praxe de mercado, parte para a conclusão de que mais do que um delito haviam se deparado com uma realidade de “corrupção sistêmica.” Na segunda parte da palestra, o juiz enaltece os aspectos positivos da operação para o país. E, além das punições, do desbaratamento das quadrilhas e da recuperação de recursos ele aponta para um benefício futuro. Historiando importantes conquistas da democracia brasileira, ele ressalta o fim da hiperinflação e a redução das desigualdades, de certa forma fazendo uma alusão indireta aos governos FHC, Plano Real e governo do PT. Em seguida, propõe que o fim da corrupção sistêmica poderia ocupar o mesmo papel na construção da democracia brasileira. Em outro momento chega a sugerir que a agenda anticorrupção era o único elemento de unidade nas grandes manifestações de massas de 2013.

Interessante também é analisar certos aspectos da estratégia de comunicação. O jovem procurador Daltan Dallagnol é considerado uma das estrelas desse processo e assim tem se comportado. Transcrevo abaixo dois trechos de artigos seus, publicados na mídia e postados no site da própria Lava-Jato do MPF.

“Além disso, a gravidade do tráfico não supera a da corrupção. Os desvios bilionários da corrupção corroem a saúde pela ausência de saneamento básico. Matam pela ausência de hospitais, aparelhos e medicamentos para atendimento. Fortalecem organizações criminosas pela educação e segurança deficientes, propiciando o aumento da violência e da marginalização. Geram um Estado paralelo, que governa para interesses privados. Para além do tráfico, a corrupção mina perigosamente a confiança da população nas instituições e no regime democrático”. (2)

“As características da corrupção, que pode ser praticada por meio de mensagens de telefone ou internet, impedem solução diversa. Não por outra razão, as custódias foram e são mantidas por três tribunais totalmente independentes em mais de trinta decisões. Solução dura e excepcional semelhante é aplicada no caso de traficantes de drogas que praticam reiteradamente o crime, ainda que o tráfico, como a corrupção, cause violência e milhões de mortes apenas indiretamente. Não há razão para distinguir, nessas circunstâncias, corrupção e tráfico”. (3)

A insistência em comparar a corrupção com o tráfico de drogas parece mais uma estratégia de comunicação política do que uma defesa jurídica. Primeiro pelo tráfico ser uma atividade ilícita fortemente controversa do ponto de vista moral. Segundo, por tentar reforçar a desigualdade entre “delinquentes pobres” e “delinquentes ricos”. Por fim, por articular a ideia de que ambas as atividades matam indiretamente, em suas consequências. Ora, o tráfico é letal na sua operação, não no consumo. Nesse caso o problema é o vício, um problema de saúde. A corrupção não é obrigatoriamente letal na operação (embora possa ocorrer ajustes de contas) e a letalidade como consequência é uma ilação tão descabida como atribuir aos privilégios dos procuradores da República a falta de remédios nas farmácias populares.

Ainda associado a esse último aspecto existe uma tentativa de responsabilizar, perante a opinião pública, a corrupção pela crise fiscal do país e dos estados. Como se a crise fiscal não tivesse relação com a própria crise econômica e fosse resultado exclusivo de um processo moral. É interessante notar que durante muitos anos houve resistência corporativa contra a reforma do Estado e da Previdência baseada num discurso semelhante. A ideia de que, se fossem fechados os ralos da corrupção, sobrariam recursos.

O problema é que o país está convivendo com duas agendas. Uma imposta pela crise econômica, de ajustes macroeconômicos e de reformas do estado e política. E outra pautada no combate à corrupção sistêmica, que está sendo imposta pelos “tenentes de toga”. Baseada no arcabouço legal, não resta dúvidas. Com ações justificadas. Especialmente pela transformação da política nacional em um grande balcão de negócios nas últimas décadas. Mas que se move sem um projeto para o país e se baseia exclusivamente numa perspectiva de reforma moral.

A suspeita de que por trás da Lava-Jato haja de fato um projeto corporativo e moral para o país pode ter consequências funestas. Talvez nem tanto pelo “empoderamento” dos paladinos    da justiça da Lava-Jato, mas pelo imponderável que possa seguir. Nesse sentido, cabe uma última citação de Giannetti a título de encerramento.

“Para o bem ou para o mal, a rica experiência política e econômica do século XX, com suas guerras, ondas de fanatismo e o espantoso débâcle do comunismo soviético mostrou de forma contundente que a psicologia moral dos homens está longe de ser tão plástica ou maleável quanto os iluministas exaltados e seus seguidores fariam crer”.

“A mente humana é ainda pouco conhecida, mas seguramente ela não é uma “página em  branco” da qual se pode erradicar, por qualquer método conhecido, as paixões não-racionais que os filósofos morais condenam há mais de dois mil anos. O que é certo, contudo, é que, quanto mais os moralistas e reformadores sociais bem-intencionados ignoram as realidades recalcitrantes da natureza humana, mais a natureza humana, por sua vez, os ignora.”

Não faltaram candidatos para ocupar o espaço!

* Cezar Vasquez é engenheiro.