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José Carlos Dias: 'Há um aparelhamento de algumas instituições por quadros conservadores e radicais'
José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e presidente da Comissão Arns, diz ver país caminhando ao autoritarismo. O também ex-ministro Seligman pondera: “Não vejo aparelhamento”
“As instituições estão funcionando”. A frase se tornou um bordão para acalmar os mais ansiosos com o rumos da política brasileira desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Agora, ela voltou com força durante a gestão de Jair Bolsonaro, quando analistas e, nos bastidores, políticos e chefes dos poderes, discutem se há em curso a deterioação de princípios democráticos e das ferramentas de peso e contrapeso do sistema de poder no Brasil, especiamente quando se fala do aparato legal, Ministério Público e Judiciário à frente. O debate cobrou força na semana que passou, quando um jornalista crítico do Governo, Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, foi alvo de denúncia do Ministério Público acusado de colaborar na espionagem de autoridades sem sequer ter sido investigado e contrariando as conclusões da própria Polícia Federal. Mas a pauta já estava na ordem do dia quando um juiz de segunda instância decidiu tirar do ar o vídeo humorístico com temática religiosa do grupo Porta dos Fundos (vetado pelo Supremo Tribunal Federal um dia depois). Ou quando um grupo de ativistas em Alter do Chão chegou a ser preso, sob acusação de atear fogo na floresta no Pará em um inquérito considerado frágil por especialistas na área.
“Eu entendo que há um aparelhamento de algumas instituições brasileiras por quadros conservadores e radicais”, afirma José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso entre 1999 e 2000 e atual presidente da Comissão Arns de defesa dos Direitos Humanos, um coletivo de juristas e intectuais de vários matizes políticos criado em 2019 como uma espécie de observatório do estado da democracia no país. “O Ministério Público não está se mostrando imparcial como deveria ser com relação ao Governo, e o mesmo vale para o Judiciário”, diz, apontando a convergência da denúncia contra Greenwald e os interesses do ministro da Justiça, Sergio Moro, e Bolsonaro. Para o advogado, “o momento é perigoso, nossa democracia tem se deteriorado de forma alarmante e estamos caminhando a passos largos para o autoritarismo”. Questionado se sua leitura não é alarmista, Dias responde: “Não. É realista”.
A denúncia contra Greenwald é vista pelo ex-ministro como um sinal claro de aparelhamento do Ministério Público. “O juiz não deve receber [a denúncia, o que tornaria o jornalista do The Intercept réu no processo] porque ela é inepta, não descreve crime. A ação praticada pelo Glenn foi posterior ao hackeamento”, explica. Dias afirma que a peça oferecida pelo procurador Wellington Divino de Oliveira tem “caráter político”, e busca “intimidar e silenciar" a imprensa livre. “Nesse caso, eu acho que se pode, inclusive, pensar em crime de abuso de autoridade por parte dele”. Milton Seligman, ex-ministro da Justiça de FHC em 1997 e atual professor do Insper, também é crítico com relação à ação do MP ante Greenwald: “A denúncia fere o Estado Democrático de Direito e a nossa Constituição”, afirma.
Seligman, no entanto, não se considera um “pessimista” como Dias com relação à força das instituições para reagir a eventuais erros e deslizes autoritários. “Desde que as questões sejam discutidas no âmbito delas [instituições], estamos no Estado de Direito. É previsto e normal, por exemplo, que um juiz tome decisão e depois ela seja revista em uma instância superior”, afirma. Ele também é contrário à tese de que há um aparelhamento do Judiciário e do MP: “Não vejo aparelhamento. Concordamos com algumas decisões, divergimos de outras, mas, no final das contas, tudo avança dentro de um debate que não só brasileiro, é mundial. É um momento de disrupção em vários lugares”.
Apesar da ressalva, o ex-ministro tucano reconhece que “vários setores” da sociedade são favoráveis a uma restrição das liberdades. “Todos os Governos têm, em algum momento, a tentação de implementar mecanismos autoritários. No Governo Lula e Dilma, por exemplo, houve uma tentativa de controle social da mídia que foi debatido. E sob Bolsonaro essa tentação [autoritária] também ocorre”, diz. Seligman aposta em um freio social a esse tipo de pulsão: “A sociedade se organiza e não permite. Não permitiu lá [durante a gestão petista] e não permitirá agora”. Do mercado financeiro, segundo o ex-ministro, não se pode esperar muito. Ele critica setores empresariais que se acomodam diante de uma deterioração democrática desde que haja recuperação econômica. “É uma miopia muito grande, a mesma liberdade de empreender que o mercado defende não pode ser restrita a um lado da calçada. Ou é pra todos ou não há liberdade. Não se pode vislumbrar liberdade de empreender com um governo autoritário”.
Tradicionalmente, um dos principais freios ao autoritarismo de promotores, juízes, parlamentares e do próprio presidente tem sido o Supremo Tribunal Federal. Mas, na avaliação de Dias, a Corte por vezes tem “batido cabeça” na hora de desempenhar esta função. A polêmica mais recente envolvendo os ministros foi a decisão de Luiz Fux de derrubar uma decisão do presidente do STF, Antonio Dias Toffoli, e suspender a implementação do juiz de garantias, aprovada no Congresso como parte do pacote anticrime. Esse segundo magistrado, que atuaria apenas na etapa de instrução do processo, autorizando ou não medidas como prisão coercitiva ou quebra de sigilo bancário, teria como missão impedir abusos contra investigados. O ministro Marco Aurélio classificou a manobra de Fux como “censura”. Dias prevê que a situação do Supremo deve se deteriorar ainda mais. “O decano Celso de Mello deve se afastar no final do ano, o que será uma grande perda para o Brasil, especialmente se ele for substituído por um ministro que tem o paladar do Bolsonaro. O STF só tende a piorar”.
El País: 'Estou disposto a pagar mais impostos para ter uma sociedade mais saudável', diz Paul Krugman
Prêmio Nobel de 2008, o economista americano lamenta em entrevista ao EL PAÍS que, diante de um novo “buraco” econômico, “os amortecedores do carro já foram usados”
No escritório de Paul Krugman (Albany, Nova York, 1953) reina a desordem que se poderia imaginar em um economista provocador e hiperativo, prolixo em artigos, em livros e, o mais polêmico, em previsões do futuro. Nobel de Economia de 2008, é membro destacado do clube de economistas americanos de tendência progressista, como os também premiados Joseph Stiglitz e Jeffrey Sachs. Integra também essa legião de democratas que não previram os estragos que a globalização —unida à robotização— causaria em partes da sociedade americana. Seu último livro, Arguing with Zombies: Economics, Politics, and the Fight for a Better America (“discutindo com zumbis: economia, política e a luta por uma América melhor”), de 2019, reúne artigos publicados nos últimos 15 anos, alguns no EL PAÍS, sobre assuntos como a Grande Recessão, a desigualdade e, é claro, Donald Trump. Dois bonés parodiando o lema eleitoral do republicano −Tornemos a Rússia grande de novo, Tornemos a ignorância grande de novo− se misturam em sua mesa com o último livro do economista sérvio-americano Branko Milanovic. “As pessoas enviam para mim, não sei”, comenta, rindo, o professor Krugman. Diz que ser comentarista na mídia “nunca fez parte do plano”. No entanto, ele é um dos economistas mais expostos da atualidade.
Pergunta. O senhor diz que hoje em dia tudo é político e que é preciso ser sincero sobre a desonestidade. Pode explicar?
Resposta. Em um debate econômico, muitas pessoas constroem argumentos de forma pouco honesta, falseiam ou deturpam os fatos, servem basicamente aos interesses de um grupo. E se você está tentando debater com essas pessoas, o que deve fazer? Fingir que é um debate sincero, responder com dados e explicar por que elas estão equivocadas? Ou dizer: “A verdade é que você não está sendo sincero”? Depende do contexto. Em uma publicação econômica, não falaria de desonestidade com pessoas com pontos de vista diferentes. Mas se você está escrevendo para um jornal e essa desonestidade é generalizada, é injusto que os leitores não saibam disso. Por exemplo, você basicamente não encontrará economistas honestos que digam que uma redução de impostos se pagará sozinha [como prometeu Donald Trump com seu grande corte fiscal]. Temos muitos exemplos de que não é assim, mas as pessoas continuam dizendo isso.
P. Acredita que existe a racionalidade econômica, ou a política sempre se impõe em alguma medida?
R. A análise econômica não é inútil, ou nem sempre. Há políticos que escutam e fazem as coisas bem. Acredito que as políticas de Barack Obama foram influenciadas por um bom pensamento econômico, mas muitas coisas ele não pôde fazer porque não tinha o poder do Congresso.
P. Dani Rodrik disse uma vez que o sucesso econômico dos Estados Unidos se devia ao fato de que, em última instância, o pragmatismo sempre vence, e que a política era mais protecionista, liberal ou keynesiana conforme as necessidades. Também pensa assim?
R. Os Estados Unidos tendiam a ser pragmáticos, mas não tenho certeza de que ainda sejamos esse país. É por isso que falo de ideias zumbis em meu livro. Há muitas coisas que sabemos que não funcionam, mas as pessoas continuam a dizê-las por motivos políticos. Não acredito que ainda sejamos esse país pragmático de 50 anos atrás.
P. Rodrik afirma que, de fato, isso mudou a partir de Ronald Reagan, nos anos oitenta. O senhor trabalhou como economista para essa Administração...
R. Isso foi divertido.
P. O que lembra sobre aqueles dias?
R. Bem, eu era um tecnocrata. Era o chefe de economia internacional no Conselho de Assessores Econômicos, e Larry Summers era o economista-chefe. Éramos dois democratas de carteirinha, trabalhando em assuntos técnicos. Foi fascinante ver como era o debate sobre as políticas. Provavelmente a Administração Reagan foi pior que as anteriores. Você via um monte de gente que não tinha nem ideia do que estava falando. Também aprendi como é difícil conseguir que algo seja feito. Isso faz você perceber que não vai mudar o mundo apenas por ter uma ideia inteligente.
P. Há quem situe naqueles anos de desregulamentação o início das desigualdades nos EUA.
R. Sim, é uma grande ruptura no rumo da economia americana, em direção a uma maior desigualdade e ao desmoronamento do movimento trabalhista. Reagan teve um grande impacto no tipo de economia que os EUA eram. Nunca nos recuperamos.
P. Muita gente também critica o consenso dos anos noventa [durante a Administração de Bill Clinton] sobre a globalização. O senhor mesmo mudou seu ponto de vista.
R. Ainda acredito que a globalização, em seu conjunto, funcionou bem. Do ponto de vista global, fez mas bem que mal. Possibilitou o crescimento de economias pobres em direção a um padrão de vida decente. Depois, também foi um fator de desigualdade em algumas comunidades específicas nos EUA.
P. Os economistas também vivem em uma bolha, como se diz, às vezes, a respeito dos jornalistas?
R. É claro que observar o que acontece com seus amigos é uma forma muito ruim de julgar o que acontece no mundo. E ver apenas o que as pessoas publicam em estudos pode ser um problema, porque esses autores podem ter pontos cegos. Nunca imaginei que a globalização teria apenas ganhadores, sem perdedores. O que não vi é algo muito específico, que é até que ponto algumas comunidades concretas ficariam tão mal. Perguntávamos o que iria acontecer com os trabalhadores do setor manufatureiro e pensávamos que provavelmente seu salário real [descontando o efeito da inflação] cairia em torno de 2%, o qual não é pouco, mas também não é enorme. O que não consideramos foi o que iria acontecer com as cidades da Carolina do Norte dedicadas apenas à indústria de móveis. E o fato é que [a globalização] estava destruindo essas cidades. Isso eu não soube ver porque o mundo é muito grande e, efetivamente, não conheço nenhum trabalhador do setor de móveis de Hickory, Carolina do Norte.
P. Essa crise industrial é frequentemente usada para explicar a ascensão do trumpismo. Acredita que isso também tem a ver com o crescimento do socialismo?
R. Não, são histórias distintas. A tecnologia tem sido mais importante que o comércio em relação ao pessoal da indústria. Se você observar os lugares mais favoráveis a Trump, são as zonas de carvão, e não porque perderam as exportações, nem pelas políticas ambientais, que são algo muito recente. O declínio se deve à mudança tecnológica, ao fato de que paramos de enviar tantos homens para as minas e usamos sistemas que precisam de menos mão-de-obra. Quanto ao socialismo... na verdade, em primeiro lugar, não acredito que existam muitos socialistas nos Estados Unidos.
P. Acredita que esse suposto crescimento do socialismo é superestimado?
R. Existem muitas pessoas que se definem como socialistas, mas são social-democratas. Em geral, são pessoas jovens e altamente qualificadas que veem o quanto é difícil ganhar a vida com essa economia. E nos últimos 60 anos, toda vez que alguém propôs algo para facilitar a vida das pessoas, foi chamado de socialistas pelos grupos de direita. Por isso, muita gente acaba dizendo: “Se isso é socialismo, então sou socialista”. Alexandria Ocasio-Cortez, por exemplo, representa uma mistura de pessoas formadas, de cor, em uma área muito democrata. Bernie Sanders diz: “Quero que sejamos como a Dinamarca”. Bem, a Dinamarca não é socialista, e sim uma forte social-democracia.
P. Fala-se muito da virada para a esquerda do Partido Democrata nas primárias. Acredita que eles estão indo longe demais?
R. Não, mesmo que Bernie Sanders se torne presidente, seu programa será mais gradual. Fico um pouco preocupado com que os democratas sejam retratados como radicais. Muitas das coisas que eles defendem, inclusive os mais esquerdistas, como aumentar os impostos dos ricos e ampliar a assistência social e a saúde pública −sem eliminar os seguros privados−, são bastante populares entre as pessoas. O problema é se fizerem com que essas coisas pareçam perigosas. É interessante o que ocorreu no Reino Unido. [O líder trabalhista] tinha um programa bastante radical em 2017 e teve um bom desempenho nas urnas. Em 2019 não era mais radical, mas foi mal devido à questão do antissemitismo e ao Brexit. Portanto, não tenho certeza de que o esquerdismo seja um problema para os democratas, [o que eles não devem fazer] é cair em coisas que alienem as pessoas.
P. O senhor diz que aumentar impostos dos ricos é popular. Quem é rico? O senhor deveria pagar mais do que paga?
R. Depende. Elizabeth Warren quer ir atrás das pessoas com mais de 50 milhões de dólares [209 milhões de reais], essas são claramente ricas. Obama aumentou impostos. Sua reforma de saúde foi paga em boa medida pelo aumento de impostos para quem ganhava mais de 250.000 dólares [1,04 milhão de reais] ao ano. Houve quem reclamasse que teria dificuldade para chegar ao fim do mês e, é claro, virou piada. Quanto a mim, muito bem, vou dizer desta forma: esse imposto sobre as grandes fortunas proposto por Warren não me afetaria, mas qualquer democrata que faça as coisas que eu gostaria de ver na política econômica acabaria precisando que eu pagasse mais impostos. E tudo bem com isso. Não sou santo, mas estou disposto a pagar mais impostos para ter uma sociedade mais saudável.
P. Apoia algum pré-candidato específico?
R. Não posso fazer isso, o The New York Times nos proíbe de declarar um apoio explícito, porque se um colunista faz isso, essa posição é atribuída ao jornal [a entrevista foi feita antes que o conselho editorial do The New York Times manifestasse seu apoio às candidatas democratas Elizabeth Warren e Amy Klobuchar]. O que posso dizer é que quem tem as melhores ideias em matéria de políticas é Warren, claramente. Ela tem pessoas muito inteligentes, embora eu ache que avaliou mal a questão da saúde [Warren iniciou sua campanha defendendo a eliminação dos seguros privados, agora se mostra mais flexível]. De qualquer forma, acredito que todos os democratas seriam bastante parecidos do ponto de vista de suas políticas. A de Sanders é a mais expansionista, mas ele não poderia levá-la adiante no Senado e acabaria sendo mais gradual. Talvez Joe Biden seja o mais moderado, mas todo o partido se moveu para a esquerda. Não tenho ideia de quem vai ter mais opções nas urnas. Acho que ninguém sabe. O que espero −e certamente também não é permitido dizer, segundo as regras do Times− é que Trump não ganhe.
P. O senhor é um dos que temiam que as políticas de Trump trouxessem uma recessão global. Como vê isso agora?
R. Eu disse isso na noite das eleições, levado pela emoção, mas me retratei em seguida. As consequências econômicas de Trump foram bastante tênues. O déficit aumentou e ele tem sido protecionista, mas se tivesse conseguido revogar a reforma de saúde [da Administração Obama], muita gente teria ficado em má situação, e pelo menos ele não conseguiu. Se você observar a tendência do emprego dos últimos 10 anos, não saberia se houve eleições nesse período. Talvez tenhamos um pouco menos de investimento devido à incerteza da guerra comercial e um pouco mais de consumo devido à redução de impostos e ao aumento do valor da Bolsa, mas há pouca diferença entre os números da economia com Trump e com Obama.
P. Outro prêmio Nobel [Kenneth Arrow] disse que as forças da economia são mais importantes que o impacto de um Governo.
R. Sim, na maior parte do tempo. As políticas monetárias podem importar muito, mas isso não está sob o controle de um presidente. Estes só têm muita importância em tempos de crise. Se Obama não houvesse promovido esses estímulos e o resgate dos bancos, teria sido muito grave.
P. Como imagina a próxima crise?
R. É difícil. De vez em quando se vê algo tão claro que a crise é previsível, como a bolha imobiliária, que foi um ciclo óbvio. Mas agora não há nada assim. O que quer que seja, não parece óbvio. Provavelmente a próxima crise virá de várias coisas ao mesmo tempo, uma mistura de muitas coisas pequenas. Também tivemos esse tipo de crise, a recessão de 30 anos atrás, por exemplo.
P. Essa próxima recessão encontrará as economias do G10 com taxas de juro zeradas.
R. Sim, essa é a principal preocupação.
P. Qual é a política cambial correta nesse caso?
R. Não tenho certeza. O que mais me preocupa não é ignorar de onde virá a crise, e sim o fato de não saber como responderemos. O Banco Central Europeu não pode baixar mais os juros, eles já são negativos. E a Reserva Federal [banco central dos EUA] tem pouca margem para fazer isso. Vamos nos deparar com um buraco na estrada e os amortecedores do carro já foram usados. Nesse caso, a política econômica do Governo ajuda, mas temo que talvez não tenhamos gente muito boa tomando decisões. Em 2008, tivemos sorte de ter pessoas inteligentes para enfrentar a crise. Agora a Europa não tem nenhuma liderança e Estados Unidos têm Trump. Não está claro que tenhamos uma boa resposta.
P. Que efeitos terá o Brexit?
R. O Brexit é negativo, prejudicará a economia britânica e a do resto da Europa, mas no longo prazo, não serão grandes números. As tarifas britânicas provavelmente serão mínimas, não será uma união alfandegária, mas haverá poucos impostos. Estados Unidos e Canadá têm um acordo de livre comércio sem união alfandegária. Assim, em uns cinco anos, o Reino Unido será um pouco mais pobre, talvez 2%, mas não será radical. O que acontecerá nos próximos seis meses é que assusta as pessoas.
P. O euro foi responsabilizado por muitas das disfunções da União Europeia, mas no final é um país com outra moeda que está saindo do bloco.
R. Acho que o euro foi um erro, causou muitos danos, mas a política não é tão racional. De fato, o Reino Unido não foi vítima da crise do euro, embora tenha imposto a si mesmo muita austeridade, enquanto a Grécia e a Espanha foram forçadas a ela. Se você observar a crise política na Europa, alguns dos países que aumentaram a rejeição à democracia não faziam parte do euro, mas o euro desacreditou as elites europeias, as pessoas pararam de acreditar que os tecnocratas de Bruxelas sabiam o que estavam fazendo e, sob esse ponto de vista, acabou contribuindo para o Brexit.
P. A mudança climática continua um pouco subestimada como um risco para a economia.
R. É o problema mais importante, alguns dos principais manuais falam bastante disso, incluindo o meu. Temos dois problemas: um, ter um Partido Republicano que é negacionista, e o outro, a mudança climática. Se Deus quis criar um problema realmente difícil de combater antes de ocorrer uma catástrofe natural, esse problema é a mudança climática. É gradual e tende a ser invisível até que seja tarde demais. Avança de forma progressiva e cada vez que não agimos, piora. A questão é: quais países podem fazer esforços para resolvê-lo? Se tivéssemos uma liderança forte nos Estados Unidos, poderíamos ter adotado uma ação efetiva, mas, em vez disso, temos um Partido Republicano que nega o problema. Assim, é bastante assustador. As possibilidades de catástrofe são muito altas.
Luiz Carlos Azedo: Criacionismo no poder
“Diante da revolução tecnológica global, a subordinação da ciência à religião e da razão à fé não tem a menor chance de dar certo. É um tiro no próprio pé. ‘Eppur si muove!’”
Houve vários momentos históricos de resultados desastrosos em consequência de políticas que, por razões religiosas e/ou dogmáticas, trataram a ciência com censura ou indução ideológicas. Por exemplo, a perseguição do Colégio de Roma aos monges matemáticos italianos, porque consideravam uma heresia o cálculo infinitesimal, que foi fundamental para o desenvolvimento da Ciência e a Revolução Industrial na Inglaterra. O mesmo aconteceu com a medicina europeia na Idade Média, com a perseguição aos médicos seculares e o desprezo pelas culturas judaica e islâmica por parte da Inquisição espanhola.
O fundamentalismo ideológico pode ser um desastre para o desenvolvimento, como na agricultura soviética, em razão das teorias genéticas de Trofim Lizenko. Ainda mais num momento em que o mundo passa por aceleradas transformações, em razão de novas descobertas da ciência e da permanente inovação tecnológica, em todas as áreas de atividades produtivas, que são impactadas pelos novos conhecimentos. No Brasil, que já enfrenta um retardo científico e tecnológico considerável, pelos mais diversos motivos, esse risco aumenta porque o governo Bolsonaro promoveu a algumas posições estratégicas de mando pessoas obscurantistas e reacionárias, algumas das quais se ufanam do seu próprio “analfabetismo científico”, a ponto defender a tese estapafúrdia de que a Terra é plana.
O falecido astrofísico norte-americano Carl Sagan dizia que a ignorância em ciência e matemática nos dias atuais é muito mais danosa do que em qualquer outra época. Essa é a raiz, por exemplo, da negação de fatos cientificamente comprovados, como o aquecimento global, a diminuição da camada de ozônio, a poluição do ar, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida, a erosão da camada superior do solo e o desflorestamento da Amazônia, temas que estiveram no centro dos debates do recém-realizado Fórum Econômico Mundial, em Davos.
A nomeação de Benedito Guimarães Aguiar Neto, reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, para presidir a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes), é mais uma decisão do presidente Bolsonaro na linha de subordinação das políticas públicas do governo federal ao crivo ideológico-religioso, embora o Estado brasileiro seja laico, segundo a Constituição de 1988. A Capes é o principal órgão responsável por conceder bolsas de pós-graduação e fomentar pesquisas; boa parte do conhecimento científico produzido no país deve-se a isso.
Benedito pavimentou sua ascensão ao cargo com declarações e frases de efeito que agradaram ao presidente da República, principalmente, sua enérgica intervenção no congresso da instituição, em novembro passado, na qual defendeu “um contraponto à teoria da evolução”. Na ocasião, propôs que se discutisse o criacionismo a partir da educação básica, com “argumentos científicos”, o chamado “design inteligente”. O ensino do criacionismo em instituições oficiais, porém, é contestado no mundo inteiro. A discussão proposta pelo presidente da Capes, na verdade, é uma cortina de fumaça para o profundo golpe sofrido pela pesquisa científica no Brasil: o MEC cortou pela metade o orçamento do órgão, reduzindo-o de R$ 4,25 bilhões, em 2019, para R$ 2,2 bilhões, em 2020. Além disso, a Capes teve R$ 300 milhões contingenciados no ano passado, deixando de oferecer 2,7 mil bolsas.
As origens
A polêmica “criação versus evolução” é uma disputa cultural, política e teológica recorrente sobre as origens da Terra, da humanidade, da vida e do universo, que envolve os campos da geologia, paleontologia, termodinâmica, física nuclear e cosmologia. Hoje, é protagonizada pelos Estados Unidos, com apoio de Donald Trump. Envolve a definição da ciência, a educação científica, a liberdade de expressão, a separação entre Igreja e Estado e a teologia. É um debate rejeitado pela maioria dos cientistas. Mesmo entre os teólogos, não é uma discussão simples. No fim do século 18, com o avanço da ciência e do Iluminismo, os teólogos foram em busca de novas explicações para os fenômenos que preservassem a coexistência entre a religião e a ciência, a razão e a fé, para evitar que o cristianismo fosse ultrapassado pelo materialismo.
O pulo do gato foi equiparar a crença aos sentimentos, seguindo a trilha do romantismo, que colocava a emoção acima da razão, em vez de utilizar os mesmos critérios do conhecimento científico, equiparando experimentação e “revelação”, para provar a verdade do cristianismo. A ciência usa a razão humana para descobrir as coisas do mundo e explicar como ele existe; a Bíblia registra a experiência religiosa de seus autores, explica por que o mundo existe como ele é. Dessa forma, a ciência pertence ao conhecimento, a ação à ética e o sentimento, à religião. “Deus existe” é um sentimento que depende de algo maior do que nós mesmos, não precisa de comprovação.
Essa visão foi batizada como “liberalismo protestante”, mas acabou sendo muito contestada por teólogos neo-ortodoxos, porque afastava a autoridade religiosa do âmbito público. Esse debate estava apartado da nossa política, mas não está mais, porque o governo Bolsonaro é “terrivelmente evangélico”. Diante da revolução tecnológica global, porém, a subordinação da ciência à religião e da razão à fé não tem a menor chance de dar certo. É um tiro no próprio pé. “Eppur si muove!” (Mas ela se move), como disse Galileu Galilei, referindo-se à Terra, perante a Inquisição Católica.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-criacionismo-no-poderx/
Alon Feuerwerker: E se Moro virar o 'candidato do centro'?
Quando Ernesto Geisel demitiu Sylvio Frota em 1977, e abortou o sonho da linha dura do regime de retornar ao poder na sucessão de 1979, iniciou a cristalização de uma dissidência que, no último capítulo, levou ao racha de 1984 e à eleição de Tancredo Neves com o apoio de uma ala do oficialismo. Esse movimento tivera um ensaio seis anos antes com a candidatura do general Euler Bentes pelo MDB no colégio eleitoral que viria a eleger João Figueiredo. Bentes não levou, mas deixou sementes.
Não seria algo inédito, portanto, se o embrião de articulação sucessória em torno de Sergio Moro produzisse uma divisão no campo bolsonarista que viesse a ajudar objetivamente na formação de uma frente ampla antibolsonaro. O morismo é uma modalidade linha dura do bolsonarismo, mas a história costuma ser dinâmica e, como visto, há precedentes. Não seria simples, também porque nas circunstâncias o PT, principal força da oposição, tem menos motivos para gostar de Moro que de Jair Bolsonaro.
Por enquanto, parece mais provável uma aliança informal da oposição com Bolsonaro para conter o apetite crescente de Moro. Veremos agora na retomada do Congresso Nacional.
Mas vai saber. O fato é que Moro parece mesmo na estrada para 2022, e o roteiro é conhecido. Nunca há espaço para dois reis num só palácio, e o ministro da Justiça parece já operar politicamente com uma estrutura própria, por enquanto informal. Junta braços e dá sinais de força na burocracia repressiva, no sistema de Justiça e até no Congresso, onde tem pronto um partido, o Podemos, para chamar de seu. Isso não vai passar assim batido no Planalto. Quem chega ali pode ser tudo, menos trouxa.
A política brasileira tem pouco ou quase nada de convencional, mas os movimentos de Moro soam algo prematuros. Talvez ele tenha acreditado demais no alarido em torno da suposta queda da popularidade de Bolsonaro, que só existiu na cabeça dos alquimistas de manchetes e profissionais do alvoroço a partir de flutuações nas margens de erro. Talvez Moro esteja se precipitando. O risco maior, para ele, é ser defenestrado e ter de passar três anos na chuva. Risco real.
Também porque tem pouco ou nenhum espaço por enquanto do outro lado. Se for ejetado do governo, mesmo com a versão de ter saído por desejo próprio, está arriscado a ser uma consciência crítica do bolsonarismo, um chamado à volta de certa pureza original que só existe no mundo da fantasia. E as pesquisas mostram que, se é muito competitivo num eventual segundo turno, faltam-lhe músculos até agora para enfrentar o atual chefe num primeiro.
Mas vivemos num país não convencional, então é o caso de perguntar se não está aberto diante de Moro um outro caminho, o do “candidato de centro”. O que é até agora esse “centro”? A economia de Paulo Guedes, a modernidade comportamental, o “o que vão dizer da gente lá fora?” na política ambiental e o aplauso incondicional ao próprio Moro. Qual seria a dificuldade de o atual ministro da Justiça se encaixar nessa fantasia para 2022? Em tese, nenhuma.
Depois de ver a “nova política” dar em Jair Bolsonaro seria no mínimo curioso que a articulação pelo “centro” desembocasse em Sérgio Moro. Ele liquidaria no nascedouro ambições como as de João Doria. E Luciano Huck poderia já ir preparando seu terceiro artigo de por que desistiu da disputa presidencial mas continua disposto a colaborar com o Brasil.
Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Míriam Leitão: Um governo que apequena o Brasil
O Brasil, com sua vasta diversidade humana e sua enorme biodiversidade, fica menor nas frases preconceituosas e nos erros do atual governo
O governo cria suas próprias crises e é autofágico. Não haveria problema com esta inclinação de se consumir, exceto pelo fato de que isso atinge o próprio país. Nos últimos dias, ele criou problemas em dose excessiva até para os seus padrões. O presidente anunciou que poderiacriar o Ministério da Segurança e 24 horas depois disse que isso tem chance zero. O ministro Paulo Guedes falou em criar o “imposto do pecado” e o presidente desmentiu. Mas isto é o governo andando em círculos e se consumindo em seus improvisos e brigas de facções. O que realmente importa é o que atinge o Brasil.
A cúpula financeira se reuniu em Davos, durante a semana, e deu um recado claro de que o rumo mudou e que o dinheiro irá para investimentos e países que tenham compromissos com o combate às causas da mudança climática. O Brasil foi para a reunião despreparado, o ministro da Economia fez um improviso infeliz e o presidente, na sexta, aqui no Brasil, deu uma declaração sobre os indígenas brasileiros que revela preconceito.
O Brasil errou muito, ao longo da sua história, na relação com os povos originais desta terra. Durante a ditadura, o governo seguiu a orientação de que era preciso “integrar”, forçar o contato, transformá-los em soldados, em moradores de áreas próximas às cidades. Foram muitos os absurdos e todos eles provocaram mortes e destruição cultural de várias etnias. Ao fim do regime militar, o país enfim formulou uma política indigenista de respeito às profundas diferenças entre os diversos povos, seja em estágio de contato com os não indígenas, seja em ritos de suas culturas. Estabeleceu que jamais forçaria o contato com os que se isolassem, a não ser que fosse para protegê-los, e intensificou o esforço de demarcação. Ficou escrito na Constituição que a terra é da União, mas nela os índios vivem. Os povos indígenas que estão na Amazônia são parte da estrutura de proteção das florestas, como se pode ver pelas imagens de satélites e se pode conferir em visitas às aldeias.
O presidente demonstrou em uma única fala toda a carga de preconceito que tem em relação aos indígenas. “O índio está evoluindo e cada vez mais ele é um ser humano igual nós”. A frase é tão ruim que dispensa críticas. Essa mesma ideia da sub-humanidade dos índios está contida em outras declarações do presidente. Revela preconceito e também desconhecimento do assunto. Se fosse só uma frase. Mas há toda uma política que ameaça repetir erros velhos e trágicos que resultaram em muitas mortes.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, entendeu o que está contido nos muitos documentos dos gestores de fundos e dos administradores de bancos durante a reunião do Fórum Econômico Mundial e disse ao “Valor” que “o tema ambiental afeta o fluxo financeiro”. Exato. Foi o recado de Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), foi o que disse o BIS, orientador dos bancos centrais. Foi o que disse Larry Fink, do BlackRock, o gestor do maior fundo do mundo em carta aos presidentes de empresas. O TCI, fundo de hedge conhecido por práticas agressivas, avisou que a mudança climática será critério para os seus investimentos. George Soros vai investir US$ 1 bilhão em uma universidade com o objetivo de combater o que ele chama de “desafios gêmeos”: a mudança climática e os governos autoritários. O Goldman Sachs não vai trabalhar na abertura de capital de empresas nas quais não haja diversidade em seus conselhos de administração. Até o capital veio mudando nos últimos anos, só o governo não viu. Esse encontro de Davos parece ter sido o ponto da virada.
O Brasil tem 60% da maior floresta tropical do mundo, a parte mais significativa da maior bacia hidrográfica e 300 povos indígenas. Poderia ter chegado a essa conversa com todo o amadurecimento que o tema já teve no país nos últimos anos. Mas o governo apequenou o Brasil. E, com o seu discurso ultrapassado, põe em risco a nossa inserção no mundo.
A criação do Conselho da Amazônia foi anunciada sem ter conteúdo. Por enquanto é só um nome. Para que este conselho funcione na direção certa será necessário que o governo abandone os preconceitos e os equívocos nas políticas ambiental, climática e indigenista. O governo precisaria entender, afinal, o tesouro imenso que é a diversidade ambiental e humana do Brasil.
El País: Impeachment de Trump chega a clímax com desfecho previsível e impacto eleitoral incerto
Advogados da Casa Branca alertam contra a destituição do mandatário: “Estão pedindo algo muito perigoso”
Os advogados de Donald Trump começaram no sábado seu turno de fala e defenderam que as manobras do presidente sobre o Governo da Ucrânia, a quem pedia investigações prejudiciais aos seus rivais democratas, eram de interesse legítimo e não foram apoiadas em coação. O advogado da Casa Branca, Pat Cipollone, acusou os democratas de usar um procedimento excepcional como o impeachment, que os Estados Unidos realizam pela terceira vez na história, para retirar o mandatário da reeleição em 2020. Cipollone tentou dessa forma dirigir a acusação que pesa sobre o acusado aos promotores. “Estão pedindo que façam algo muito perigoso”, alertou.
Trump tem o caminho à absolvição livre uma vez que a destituição precisa de dois terços da Câmara e os republicanos, que são maioria com 53 das 100 cadeiras, cerraram fileiras em torno ao mandatário. Os democratas têm problemas para conseguir convencer até mesmo quatro deles, com os quais somam 51 votos, para poder pedir a declaração de testemunhas no julgamento. Foi a maioria democrata na Câmara baixa que tornou possível a abertura do julgamento, mas o peso agora está na alta, território amigo do mandatário. O veredito do Senado é previsível, o efeito nas eleições presidenciais de 2020 é mais incerto.
A manhã começou com um gesto teatral por parte dos gestores do impeachment, os sete congressistas democratas que lideram a acusação e na sexta-feira concluíram sua exposição pedindo a destituição do presidente. Pouco antes das 10h, quando começava a sessão, marcharam em procissão da Câmara dos Representantes ao Senado para entregar um total de 28.578 páginas de transcrições e outros documentos divididos em caixas. Procuravam reforçar a solidez do caso diante do que estava por vir: a tentativa da defesa do presidente de dar uma guinada na acusação.
“Estão pedindo que revertam não só os resultados da última eleição, como pedem que retirem o presidente Trump de eleições que ocorrerão em nove meses”, afirmou Cipollone no começo de uma exposição de duas horas, breve, pelos parâmetros em que se move o impeachment. “Seria um abuso de poder completamente irresponsável fazer o que lhes estão pedindo que façam: interferir em uma eleição e excluir o presidente dos Estado Unidos das urnas”, afirmou ao concluir.
Trump é acusado de abuso de poder, em seu benefício eleitoral, por pressionar Kiev para que anunciasse duas investigações, uma relacionada ao pré-candidato presidencial que lidera as pesquisas, Joe Biden, e seu filho, Hunter, pelos negócios deste último na Ucrânia quando o pai era vice-presidente; e outra sobre uma teoria desacreditada segundo a qual o país europeu havia planejado uma campanha de ingerência nas eleições de 2016 para favorecer a vitória democrata. O próprio presidente norte-americano pede explicitamente as duas investigações a seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, na conversa de 25 de julho, cujo conteúdo se tornou público. A acusação também afirma que ele usou o congelamento de ajudas militares e um convite à Casa Branca como moeda de troca.
O insistente pedido de Trump não só fica corroborado pela ligação de julho, como por múltiplos depoimentos e documentos que mencionam o interesse do republicano pelo assunto, mas os advogados o apresentaram no sábado como uma preocupação legitima pela corrupção e negaram o quid pro quo. Cipollone frisou que Trump não mencionou na conversa nenhuma moeda de troca e atribuiu a retenção de quase 400 milhões de dólares (1,7 bilhão de reais) em ajudas militares, que haviam sido aprovadas pelo Congresso, à irritação da Administração pelo escasso apoio vindo da União Europeia. Em relação à reunião entre Trump e Zelensky, os advogados lembraram que ela acabou não ocorrendo.
O encontro aconteceu, entretanto, em 25 de setembro em Nova York, quando o escândalo já havia explodido e com investigação na Câmara dos Representantes já em andamento. E Gordon Sondland, embaixador norte-americano na União Europeia, que recebeu de Trump um papel importante nas manobras com a Ucrânia, admitiu em seu depoimento na Câmara dos Representantes que, “na ausência de uma explicação crível”, acabou concluindo que as ajudas militares não seriam entregues “enquanto não ocorresse uma declaração pública da Ucrânia comprometendo-se com as investigações de 2016 e com a Burisma”. Em um relatório oficial, o Escritório de Controle do Governo, uma agência independente dentro da Administração, chamou o congelamento de ajudas de ilegal.
O advogado adjunto da Casa Branca, Mike Purpura, se expressou em linha semelhante a Cipollone em relação à teoria da conspiração sobre as eleições de 2016, frisando que “não há absolutamente nada de errado em pedir ajuda a um líder estrangeiro para se chegar ao fundo de qualquer forma de interferência nas eleições americanas”. Essa teoria da conspiração já não tinha fundamento quando o presidente pediu a Kiev que anunciasse as investigações. Toda essa campanha de pressão foi orquestrada através de uma espécie de diplomacia extraoficial e paralela, em que o advogado pessoal de Trump, Rudy Giuliani, desempenhou papel essencial.
Também pesa sobre o republicano a acusação de obstrução ao Congresso por obstruir a investigação. O congressista Adam Schiff, na liderança dos gestores nomeados pela Câmara dos Representantes para comandar a acusação, concluiu na sexta-feira três dias de argumentos com um pedido final aos republicanos: “Sabem que não podem confiar em que esse presidente faça o correto para o país”.
Vários veículos de comunicação norte-americanos adiantaram na sexta-feira que a defesa se centraria em aprofundar as suspeitas sobre os Biden como maneira de justificar as manobras de Trump. Pode ser que seja a bala reservada para segunda, quando o julgamento continuar. Cada parte possui 24 horas divididas em três dias, mas os advogados de Trump indicaram que não esgotarão seu tempo, ao contrário do que fez a acusação. O republicano, mais do que o prazo, se preocupa pelas horas, como bom animal midiático que é. “Meus advogados começarão no sábado, que é o que em televisão se chama o Vale da Morte”.
Marco Aurélio Nogueira: São Paulo, a metrópole e o futuro
Na azáfama cotidiana, paulistano sofre sem compreender as razões de tanto sofrimento
As cidades dos dias atuais intrigam, causam perplexidade. Os humanos fizeram delas seu principal hábitat a partir da revolução moderna. A vida urbana generalizou-se, mas não a urbanidade. Faltam coisas demais para que as cidades possam ser tratadas como ambientes de plena civilidade, onde todos vivam com igual dignidade. Umas mais, outras menos, estão todas atravessadas por desafios e imperfeições, que avançaram à medida que avançou o capitalismo, se mundializou, ganhou maior ímpeto tecnológico, mas não conseguiu ser democraticamente regulado.
São Paulo, que em 2020 comemora 466 anos de existência, não é exceção. Instalada na periferia do mundo, coração de um país continental, dinâmica e superpovoada, com uma evolução que não conseguiu amalgamar adequadamente as populações que nela buscaram abrigo e que convive com problemas que parecem imunes à ação humana racional, a cidade é uma metrópole pujante, síntese expressiva dos problemas, promessas e virtudes da modernidade.
Metrópoles são espaços de ritmo acelerado, impessoalidade, isolamento e encontro. Sempre fascinaram os estudiosos, atraíram as massas e desafiaram os gestores. Foi nelas que a política moderna ganhou face e corpo. São lugares de muitos lugares, onde se combinam excessos e carecimentos, inclusões e exclusões, gente variada, múltiplos projetos existenciais.
O modo de vida industrial e pós-industrial turbinou as cidades. As maiores conheceram a conurbação, formando um gigantesco tecido de municípios unificados em termos socioeconômicos, ainda que preservando autonomias no plano jurídico e político. As cidades ficaram ainda mais vibrantes, heterogêneas, repletas de empresas e ofertas culturais, sobrecarregadas de automóveis e deslocamentos, só em parte atenuados com o avanço das tecnologias de comunicação. Nas grandes cidades o movimento e a circulação de pessoas, ideias, mercadorias são a regra.
As cidades encontram-se agora com a era digital. Precisam se adaptar a ela, aproveitá-la para melhorar a qualidade de vida e os parâmetros da gestão pública. A informatização geral, as novas tecnologias, o uso ampliado de energias alternativas, a reconfiguração do trabalho, o transporte movido a eletricidade, os “carros voadores”, a otimização do tempo, tudo isso já bateu às portas. Não são mais meras tendências.
A assimilação da era digital pode ser um importante fator de renovação das cidades, ajudando-as, no mínimo, a combater a praga da poluição ambiental, que ameaça a saúde e compromete o bem-estar. São Paulo convive intensamente com isso: a poluição encarece o dia a dia, o ar pesado e o barulho incessante dificultam o descanso, a cidade é a cada dia mais quente, o trânsito enlouquece e impacta o consumo, a produção, a cultura. Pouco se faz para equacionar essas questões. Há reclamações e promessas, mas a sensação é de que se está sempre no mesmo lugar, piorando.
A poluição ambiental é tóxica, visual e sonora. Torna feio o que poderia ser bonito. Segrega e distingue bairros, fazendo com que pouquíssimas regiões usufruam o que uma cidade deveria oferecer a todos. Na azáfama do cotidiano, a maioria dos paulistanos sofre sem compreender as razões de tanto sofrimento: no ar que se respira, no tempo desperdiçado, na tensão inerente às interações, na brutalidade de tantos comportamentos, no silêncio escasso.
O ruído é uma marca de São Paulo, produto da efervescência urbana e do tumulto por ela provocado. Diferentemente do ruído político, que confunde e distrai, os ruídos urbanos demarcam um espaço, exprimem a “potência” de quem os produz. Não são inocentes. Repetindo-se sem intervalo e sem controle, convertem-se em barulho. Fazem parte de um mesmo pacote, misturam-se com o ar contaminado, a falta de regras, o frenesi urbano, a multiplicação dos negócios, a concorrência, a orgia de informações, o extravasamento. Como escreveu a socióloga Isla Antonello, nos grandes aglomerados urbanos dá-se uma “ocupação através do barulho”, vontade de deixar tudo dominado.
Vivendo numa estrutura social definida por códigos morais que valorizam mais a liberdade individual do que a solidariedade cívica e o espaço público, o cidadão paulistano aceita como fatalidade o que o incomoda: um “custo do progresso”. A problematização da urbanidade vem na esteira, impulsionada pela pressa, que impede que se veja e sinta a cidade como “coisa sua” e de todos.
Desse ponto de vista, há um quê de terra de ninguém em São Paulo. A certeza da impunidade convive com a falta de consciência cívica e a ineficácia governamental. A poluição ambiental potencializa a confusão urbana, dificulta o encontro de culturas, a reposição de energias, atirando o paulistano num looping em que sempre se volta ao tumulto de que se deveria escapar.
Não é algo que diminua a grandeza de São Paulo, sua riqueza como locus de experiências, experimentação e oportunidades. Mas é um item estratégico da agenda com que a cidade ingressará no futuro.
*Professor titular de Teoria Política da UNESP
Demétrio Magnoli: Decisão de Fux sobre juiz das garantias ilumina os contornos do Partido de Moro
Inimigo dissimulado talvez revele-se mais perigoso para a democracia que o inimigo declarado
A alfabetização básica proporciona a leitura da mensagem direta, explícita e superficial, de um texto. Nesse registro, a liminar de Luiz Fux suspendendo a instituição do juiz das garantias foi lida como evidência do ativismo judicial, da incapacidade do STF de operar como corpo único e da sua inclinação a produzir incerteza jurídica. A alfabetização funcional propicia a interpretação do sentido profundo de um texto. Nesse registro, o ato de Fux deve ser decifrado como elemento da campanha presidencial de Sergio Moro.
A inclusão do juiz das garantias na Lei Anticrime nasceu da Vaza Jato. As provas do conluio entre Moro e os procuradores da força-tarefa evidenciaram o desprezo do juiz por seu juramento constitucional de submissão às tábuas da lei —e o perigo de subversão do sistema judicial. Os parlamentares agiram para assegurar a separação entre Estado-acusador e Estado-julgador, um pilar fundamental da democracia. “In Fux we trust”, escreveu Moro a seu comparsa Deltan Dallagnol numa das mensagens que vieram a público. A decisão monocrática do ministro do STF —um desafio a seu pares, ao Congresso e à separação de Poderes— atesta a confiança nele depositada. Mais que isso: ilumina os contornos do Partido de Moro.
Rússia, Turquia, Hungria e Venezuela contam-nos uma mesma história: a transição do governo populista ao regime autoritário passa, invariavelmente, pela politização do sistema judicial. A Justiça deve render-se à política, para calar as vozes dissonantes. Os diálogos expostos pela Vaza Jato mostraram que Moro e os procuradores não só operavam como parceiros mas também acalentavam um projeto de poder. Quando o juiz com causa metamorfoseou-se em ministro da Justiça, a articulação emergiu à luz do Sol. Moro, o homem que prometeu não se reinventar como político, traía sua palavra pela segunda vez.
Notícias periféricas desnudam as dimensões da articulação. As reclamações ao STF contra o juiz das garantias partiram do PSL, o antigo partido de Bolsonaro, de duas associações de juízes (Ajufe e AMB) e de uma entidade profissional do Ministério Público (Conamp). Numa nota oficial, Moro celebrou a liminar de Fux. Os elogios salpicaram algumas páginas de jornais assinadas por devotos do ex-juiz e as páginas eletrônicas de blogueiros fieis. O Partido de Moro compõe-se de uma sigla partidária e de porta-vozes midiáticos informais —mas, sobretudo, de organizações corporativas de juízes, promotores e procuradores.
Há tempos, a política infiltrou-se nos domínios do Ministério Público. Abertamente, no seu interior, organizaram-se “partidos” de esquerda (MPD, Ministério Público Democrático, fundado em 1991) e de direita (Ministério Público Pró-Sociedade, fundado em 2018). O primeiro, que sofreu uma cisão em 2016, circula na órbita ideológica do PT. O segundo, que apoiou a candidatura de Bolsonaro, gira no campo gravitacional do ministro da Justiça.
As implicações da politização do MP estão à vista de todos: o procurador Wellington Marques de Oliveira, que oferecera uma denúncia vazia contra Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, agora reincide na prática da intimidação. O procurador sem limites mira o jornalista Glenn Greenwald, protagonista da Vaza Jato, tentando transformar em crime a exposição de verdades inconvenientes. Sem surpresa, o Ministério Público Pró-Sociedade saiu em defesa do gesto de abuso de autoridade. O Partido de Moro instrumentaliza o sistema judicial antes mesmo de chegar ao poder.
A democracia traça uma fronteira nítida entre as esferas da Justiça e da política. Moro saltou, legitimamente, de uma a outra para, ilegitimamente, demolir a muralha que as separa. Bolsonaro, o nostálgico da ditadura militar, o adulador de torturadores, é um inimigo declarado da democracia. O inimigo dissimulado talvez revele-se mais perigoso.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Monica de Bolle: Os despreparados
“Despreparados” era como parte da população, em especial os industrialistas, se referia aos nazistas em 1933 quando Hitler foi nomeado chanceler. Como não tinha o partido qualquer proposta econômica que articulasse uma agenda de medidas para resolver os problemas da Alemanha em meio aos diversos entraves internos e à Grande Depressão, a “visão convencional” era a de que os nazistas não seriam capazes de se manter no poder. As críticas de Hitler ao capitalismo, centradas em seus excessos e no suposto domínio do sistema por forças estrangeiras, não formavam uma base coesa a partir da qual se pudesse elaborar políticas econômicas para a Alemanha no período entreguerras.
Foi assim que muitos sucumbiram facilmente à ideia de que mais cedo ou mais tarde os nazistas perderiam o apoio daqueles que haviam sido responsáveis por sua ascensão. A economia, entretanto, haveria de crescer 10,5% entre 1933 e 1935, o que acabou por consolidar as bases políticas do nazismo, formadas por camadas diversas da população, notavelmente os industrialistas e detentores do poder econômico, antes árduos críticos de Hitler.
Por que escrevo sobre o nazismo? Porque a Alemanha nazista foi o exemplo mais extremo do nacionalismo econômico posto em prática. Como já comentei, estou escrevendo um livro sobre esse tema. Parte do livro trata de uma metodologia para “medir” o grau, ou a intensidade, de motivações nacionalistas nas diversas esferas da política econômica — da política macroeconômica à política comercial, da política industrial ao tratamento conferido aos investidores estrangeiros. Para medir a intensidade do nacionalismo pontuações de 1 a 5 foram estabelecidas, em que 5 é o grau mais extremo possível — as referências históricas para elaborar a pontuação mais alta da escala são a Itália de Mussolini e a Alemanha nazista.
A recuperação econômica entre 1933 e 1935 conferiu a Hitler a legitimidade e o poder de que necessitava para levar a cabo seus planos. Planos que resultaram em crimes hediondos contra a humanidade, para não falar da completa destruição das instituições democráticas da Alemanha.
Diante dos horrores inomináveis do nazismo, é espantoso o sucesso econômico do regime antes da guerra. Após a consolidação do poder de Hitler, a Alemanha cresceu quase 13% entre 1936 e 1939, a fase áurea do Terceiro Reich. A inflação foi de apenas 1,8%, e o desemprego caiu de 44% no início dos anos 1930 para 1% às vésperas da Segunda Guerra Mundial. O triunfo do nazismo na economia se deu pelo nacionalismo mais extremista e escancarado. Não é exagero dizer que todas as esferas econômicas eram de alguma forma controladas pelo Estado, ainda que os industrialistas e os “mercados” de então fossem agentes privados. Agentes privados cooptados pelo Estado, dado o sucesso incomparável das medidas de cunho nacionalista.
O nazismo se escorou na expansão fiscal, nos controles cambiais, na eliminação das práticas de livre-comércio e na cartelização da economia para promover o crescimento. A cartelização foi muito bem recebida pelas grandes empresas industriais ao lhes conferir vultosas margens de lucro. Tais margens de lucro foram ainda beneficiadas pela total eliminação dos movimentos trabalhistas e dos sindicatos.
A marca do nazismo na economia — assim como do nacionalismo totalitário de Mussolini — foi a capacidade de reprimir salários e de instituir reduções dos rendimentos nominais. Por essas razões, pôde a economia crescer a taxas exorbitantes com inflação ineditamente baixa, a despeito dos excessos fiscais — entre 1932 e 1938, o déficit público aumentou de 1,1% do PIB para 7,9%. O resultado da compressão salarial foi uma forte redução do consumo como proporção do PIB e uma alta expressiva do investimento, tanto público quanto privado — as empresas, afinal, estavam esbanjando recursos com a opressão dos trabalhadores e a tolerância do regime com a concentração do mercado.
Para quem ainda confunde nazismo com socialismo, ou com comunismo, ou com políticas ditas “de esquerda”, é importante sublinhar que a compressão salarial na Alemanha nazista foi única. Até hoje, nenhum país foi capaz de replicá-la.
Quando deslanchou, olhos se fecharam e relativizações do totalitarismo em curso viraram regra. O nazismo não é o único exemplo de erro histórico cometido por aqueles que optaram por separar a economia do restante do governo devido à contradição em termos de uma moral privada dos mercados. É, entretanto, o exemplo mais assustador de como o despreparo se transforma em absoluto horror com a conivência daqueles que detêm o poder econômico.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
El País: Índia do conservador Modi estende tapete vermelho a Bolsonaro e anseia por acordos comerciais
Premiê indiano recebe brasileiro na data nacional mais importante do país, no domingo. Em comum, líderes enfrentam críticas por atacarem imprensa e minorias
Jair Bolsonaro chegou nesta sexta-feira à Índia como principal convidado para as comemorações do Dia da República, no domingo, dia 26, em Nova Délhi. A deferência de participar da festa mais importante do Estado indiano é lida com um aceno do primeiro-ministro Narendra Modi, que esteve no Brasil em novembro, ao ultradireitista brasileiro. Ambos os líderes das duas potências emergentes buscam melhorar a aliança estratégica diante do desafio comum da reativação econômica e em meio a críticas que recebem em âmbito doméstico e externo. Tanto Modi como Bolsonaro são criticados pelo acosso à mídia e por medidas e discursos que prejudicam as minorias dos dois países, também unidos por sua diversidade étnica e social. A agricultura e o meio ambiente são campos minados para ambos os líderes. Se Bolsonaro é criticado por negar a catástrofe dos incêndios na Amazônia, a passividade de Modi diante da poluição é denunciada por ativistas que os camponeses os apoiam em protestos nacionais.
“Enfrentamos as mesmas críticas", admitiu o embaixador brasileiro na Índia, André Aranha Correa do Lago, à televisão local. Em seguida, redirecionou a resposta ao escopo do encontro: "Nossas economias são tão profunda e tradicionalmente fechadas que, ao abri-las, descobre-se que há outros obstáculos a serem eliminados. Isso cria frustração no exterior”. Com um marcante caráter comercial, Bolsonaro visita a Índia com sete ministros e uma grande delegação de empresários que esperam assinar mais de 15 pactos com governos e instituições indianos, segundo Correa do Lago, que também afirmou que “os dois países firmarão um importante acordo sobre aceleração e proteção de investimentos ”.
Pioneiros na cooperação Sul-Sul e com agendas semelhantes no campo da parceria internacional, Índia e Brasil elevaram suas relações bilaterais a uma aliança estratégica em 2006, mas a separação geográfica e o fraco intercâmbio sociocultural entre estas duas potências regionais reduziram o alcance dos acordos. Para melhorar este aspecto, Bolsonaro aprovou a concessão de vistos gratuitos para turistas e empresários indianos, na última cúpula dos BRICs, num dos poucos resultados proveitosos do encontro multilateral realizado em novembro em Brasília. Modi correspondeu com este convite formal, durante o qual se esperam contratos importantes, especialmente em questões de energia, agricultura e defesa.
Fórum empresarial e queixa na OMC
Depois do desfile do Dia da República, Bolsonaro se reunirá com empresários de ambos os países no Fórum de Negócios Índia-Brasil para dar impulso a essas relações. O volume comercial bilateral foi de 8,2 bilhões de dólares (34 bilhões de reais) entre 2018 e 2019. Os investimentos indianos no Brasil são estimados em cerca de 6 bilhões de dólares (25 bilhões de reais), concentrados nos setores agrícola, farmacêutico, de energia, de mineração, de engenharia e de tecnologia. Já os de brasileiros na Índia são cerca de 1 bilhão (4,18 bilhões de reais), com foco na indústria automotiva, de tecnologia, de mineração e de biocombustíveis. A preocupação da Índia em matéria de energia direcionou seu interesse para o etanol brasileiro, após sanções dos EUA ao Irã e à Venezuela, o quarto maior exportador de petróleo bruto para a Índia.
Em meio à crescente polarização entre Estados Unidos, China e Rússia, as relações indo-brasileiras oferecem um horizonte para navegar sem receios das superpotências. Em 2016, o Brasil apoiou publicamente pela primeira vez a inclusão da Índia como membro do Grupo de Fornecedores Nucleares, abrindo espaço para cooperação nessa área. O Brasil tem em seu solo a terceira e a sexta reservas de urânio e tório, respectivamente. O país também tem terreno fértil para se beneficiar da cooperação técnica em questões espaciais, já que a Índia está se tornando uma plataforma de produção e lançamento de satélites, enquanto os países latino-americanos tradicionalmente dependem da especialização chinesa.
Há também terrenos escorregadios para explorar durante a visita, como os do setor agrícola, básico para a economia do Brasil e da Índia, primeiro e segundo produtor mundial de cana-de-açúcar, respectivamente. Os produtores indianos consideram inadmissível que o Brasil denuncie a Índia à Organização Mundial do Comércio pelos subsídios à produção e exportação.
Outro ponto de atenção são os protestos enfrentados por Modi. Desde o final de 2019, as grandes cidades da Índia abrigam grandes manifestações sociais contra o Governo, e as concentrações multitudinárias em Nova Délhi serão mantidas durante a visita de Bolsonaro à capital. Os manifestantes denunciam o nacionalismo hindu de Modi, acusado de discriminar os muçulmanos indianos e também criticado pela minoria cristã do país. Bolsonaro, por sua vez, representa a extrema direita aliada ao radicalismo evangélico brasileiro e coincide com o líder indiano em exibir um discurso populista nos tuítes e administrar seu país por meio de medidas que marginalizam minorias —os povos indígenas, no caso do Brasil. Uma maneira de fazer política que lhes deu vitórias eleitorais que lhes permitem levar adiante seus projetos nacionalistas conservadores. Ambos parecem apostar nos paralelismos no campo político-ideológico para driblar um certo isolamento internacional, o que também poderia ajudar a consolidar as relações econômicas em duas potências vistas há duas décadas como dominantes em suas regiões e cujas populações representam um quarto da população mundial.
Luiz Carlos Azedo: Ministério da ordem
“Embora tecnicamente justificável, o desmembramento do Ministério da Justiça é interpretado como uma medida para enfraquecer o ministro Sergio Moro, que carrega a bandeira da ética”
O presidente Jair Bolsonaro confirmou, ontem, que estuda a recriação do Ministério da Segurança Pública, desmembrando o Ministério da Justiça, mas garantiu que o ministro Sergio Moro permanecerá na pasta. O ex-deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF), amigo de Bolsonaro, é o mais cotado para ocupar o novo ministério, cuja recriação é defendida por secretários de segurança estaduais e pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). O Ministério da Segurança Pública foi criado no governo do presidente Michel Temer, para o qual foi deslocado o então ministro da Defesa, Raul Jungmann. É considerada uma experiência bem-sucedida.
Embora tecnicamente justificável, nos meios políticos e jurídicos, a decisão de Bolsonaro é interpretada como uma medida para enfraquecer o ministro da Justiça, Sergio Moro, que hoje carrega a bandeira da ética numa das mãos e a da ordem, na outra. Na quarta-feira, Bolsonaro se reuniu com secretários estaduais de segurança pública, que reforçaram o pedido, o que o levou a revelar que realmente a mudança está em estudos. Segundo Bolsonaro, Moro tem participado do processo. Como era de se esperar, o ministro da Justiça discorda do esvaziamento de sua pasta.
Caso seja efetivado o desmembramento, o Ministério da Justiça perderá o controle sobre os seguintes órgãos: Departamento de Polícia Federal (DPF); Departamento de Polícia Rodoviária Federal (DPRF); Departamento Penitenciário Nacional (Depen); Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp); Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP); e Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). Ou seja, Moro não teria mais poder de mando sobre o sistema de segurança pública.
As especulações políticas sobre a medida levaram o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, a fazer, ontem, um comentário pelo Twitter que Bolsonaro replicou nas redes sociais. Explicou que a proposta de recriar o Ministério da Segurança Pública não é do presidente Jair Bolsonaro e, sim, da maioria dos secretários de segurança estaduais, que estiveram em Brasília. Depois, deu ordem unida para a equipe do governo: “Em nenhum momento, o Presidente disse apoiar tal iniciativa. Apenas, educadamente, disse que enviaria a seus ministros, para estudo, entre eles o Ministro Sergio Moro. O que alguns não entendem é que o Presidente é o CAPITÃO DO TIME, ele escalou seus 22 ministros. As decisões são tomadas, ouvindo os ministros, mas cabe a ele, como Comandante, dar a palavra final, mesmo que isso contrarie alguns dos seus assessores ou eleitores”.
Antissistema
O general também teceu considerações políticas: “Mais ainda, foi esse Capitão que, com risco da própria vida, evitou a volta do PT ao Governo com Haddad. Esses críticos de plantão nunca fizeram 1% sequer do que foi feito por Jair Bolsonaro. Durante 28 anos, dentro da Câmara, ele conheceu o Sistema por dentro e se preparou para derrotá-lo. Repito, ISSO TUDO, SOZINHO”.
Depois, criticou os que veem na medida uma manobra para enfraquecer Moro: “O mesmo já aconteceu quando o Congresso passou o COAF da Justiça para o Banco Central. Os mesmos que, hoje, mentem ser de interesse do Presidente recriar a Segurança, acusaram o mesmo de enfraquecer Moro no caso COAF. Ou vocês confiam no Capitão Jair Bolsonaro, que teve visão e coragem para, sem recursos, enfrentar o Sistema e nos dar esperança de mudar, ou continuarão atacando-o e devolverão o Brasil à esquerda, em 2023. A Argentina está aí para provar que estou certo”.
Resumo da ópera: o ministro Moro é um potencial candidato a presidente da República e tem divergências com o presidente Bolsonaro quanto ao desmembramento de sua pasta. Se isso ocorrer, Moro será enfraquecido. Pode, sim, se conformar e prosseguir no governo. Se decidir sair, porém, estará criado um novo cenário político, pois Moro terá liberdade para se lançar candidato a presidente da República empunhando a bandeira da ética.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-ministerio-da-ordem/
Vera Magalhães: Huck é lançado candidato em Davos, e não refuta
Questionado no Fórum Econômico Mundial de Davos a respeito de uma futura candidatura à Presidência da República, Luciano Huck enrolou, falou de Amazônia, que não tinha nada a ver com a pergunta, mas acabou concluindo, para risos da plateia que acompanha a palestra: “Sua pergunta é muito difícil. Não tenho a resposta nem para mim mesmo”.
Mas o fato é que ele não só não refutou a ideia como, na resposta, deu justificativas de por que pode acabar trilhando este caminho. O “lançamento” de sua candidatura foi feito por Raiam Pinto dos Santos, que estava na audiência do almoço-painel, se apresentou como empreendedor e quis saber que garantias Huck daria de que seu projeto é para valer.
Para o apresentador, há “muitas maneiras” de se engajar nas mudanças que o País precisa. “Entrar para a política é uma delas”, afirmou. Mas também listou outras iniciativas que poderiam ser tomadas, como fomentar, inclusive por meio de financiamento, a qualificação de novos talentos da política –algo que já faz, por meio da parceria com os movimentos de renovação, que, por sua vez, são vistos como a plataforma inicial, anterior inclusive aos partidos, para seu lançamento na política.
“Todas as decisões que tomamos na vida são políticas”, afirmou o apresentador, que está circulando em Davos com uma inédita barba branca. Seria uma forma de testar uma aparência mais “presidenciável”?