Desigualdade

Pedro Fernando Nery: A falácia dos deveres que recai sobre os brasileiros mais pobres

A contrapartida de direitos são os tributos, que aparecem fartamente na Constituição

O argumento é recorrente. Os brasileiros mais pobres já possuem benefícios demais: a própria Constituição citaria “direitos” dezenas e dezenas de vezes, mas “deveres” somente em um punhado de ocasiões. Com tantos direitos sem deveres correspondentes, o arranjo seria insustentável. O argumento é falacioso: a contrapartida de direitos são os tributos, eles são fartamente previstos na Constituição e incidem mais justamente sobre os mais pobres – aqueles que teriam direitos demais.

Comecemos com um Ctrl+F na Constituição. Tributos e seus tipos – impostos e contribuições – aparecem mais de 300 vezes. São eles os espelhos dos direitos, e não um termo genérico como “dever”. O direito à saúde é concretizado com contribuições sociais. O direito à educação é efetivado com impostos. E assim vai.

No Brasil, muitos desses tributos, ou deveres, recaem sobre quem ganha menos, que paga a conta indiretamente quando compra um produto. Na verdade, os mais pobres pagam mais em tributos indiretos do que os mais ricos, quando considerado o peso dos tributos em proporção à renda de cada grupo.

Essa distribuição é muito diferente da de vários países desenvolvidos, que exigem mais esses deveres dos mais ricos. Mesmo uma reforma da tributação sobre o consumo, como a PEC 45, pode atenuar a situação, ao distribuir melhor a carga entre o que é consumido pelos mais bem posicionados na distribuição de renda e os mais vulneráveis. Estudo da economista Débora Freire conclui que essa reforma tributária traria “ganhos de bem-estar” para as famílias mais pobres, pelo seu efeito nos preços.

Para que as elites tenham mais deveres, são importantes também medidas relacionadas à tributação da renda. Embora a Constituição demande tratamento igual entre os cidadãos em geral, e progressividade no Imposto de Renda em particular, o fato é que ele é regressivo para rendas mais altas: quanto mais se ganha, menos se paga (a alíquota efetiva chega a 5% para o grupo que ganha mais de R$ 300 mil). Isso porque para este dever muitos pagam 0% em relação a certas rendas, isentas legalmente de pagar o IR – em provocação à Constituição.

Temos também muitos problemas com isenções ou outros auxílios a empresários de setores específicos da economia. Estes ficam dispensados de seus deveres constitucionais parcial ou totalmente, por um prazo definido ou indefinidamente. São os chamados gastos tributários (renúncias, benefícios fiscais): um montante que eleva a nossa dívida com pouca clareza sobre suas vantagens em termos de políticas públicas. 

Um passo, ainda que tímido, foi dado semana passada para que os deveres sejam distribuídos de forma mais igualitária. Com a nova Emenda Constitucional n.º 109, decorrente da PEC emergencial, uma nova lei complementar passa a ser exigida regulamentando a criação desses benefícios fiscais, regras para avaliação e um plano para sua redução. É importante que a regulamentação do tema enquadre mecanismos que dão menos deveres a grupos mais prósperos, como isenções no IR ou tributação do patrimônio favorecida, abaixo dos limites da Constituição.

É verdade que em nosso pacto social é possível identificar direitos em excesso, mas a evidência é de que isso não ocorre entre os mais pobres. Se consideramos deveres os tributos, consideremos agora o gasto público como uma aproximação de direitos. Os dados apontam que transferências do governo são regressivas quando dividimos a população – por exemplo – em cinco grandes grupos de renda: isto é, quanto menos pobre cada quinto da população, mais recursos recebem. 

De tal forma que para o quinto mais rico pesam em sua renda os recursos recebidos do governo quase o mesmo tanto que para os mais pobres. Como mostra estudo da antiga Secretaria de Acompanhamento Econômico, esse padrão é muito divergente do de países da OCDE, em que o gasto é muito mais direcionado aos mais vulneráveis.

Como evidencia o debate do auxílio emergencial, uma larga parcela da população está, na verdade, com poucos direitos. Centenas de economistas lançaram no último fim de semana uma carta que chamou atenção pelas cobranças quanto à pandemia, mas que também defende de forma contundente uma reforma no sistema de proteção social – exatamente pela cobertura insuficiente. 

Muito mudou no País desde que Roberto Campos fez a crítica que seria popularizada nas décadas seguintes – de que a Constituição prevê direitos demais e deveres de menos. À época, ainda não haviam sido montados os mecanismos legais que hoje distorcem tanto nosso sistema tributário em benefício de quem está no topo. Que as mudanças que esperam nosso País nos próximos anos se orientem por uma verdade inconveniente: são os mais ricos que têm deveres de menos.

*Doutor em economia 


Agência Senado: Brasil, recordista em desigualdade

Cintia Sasse, Agência Senado

A pandemia escancarou, mais uma vez, o péssimo quadro da desigualdade social e econômica no Brasil. Durante a primeira onda do coronavírus, no ano passado, mais de 30% dos 211,8 milhões de residentes no país tiveram de ser socorridos na etapa inicial do auxílio de R$ 600 aprovado pelo Congresso, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em julho de 2020.

O contingente dos que precisaram de ajuda espantou até mesmo algumas áreas de governo, mesmo tomando em consideração os desvios e irregularidades cadastrais. O Tribunal de Contas da União (TCU) estimou, em relatório divulgado ao final de fevereiro, que 7,3 milhões de brasileiros podem ter recebido o auxílio emergencial indevidamente. Mesmo quem não agiu de forma intencional terá que se acertar com o fisco agora em 2021.

Os cálculos quanto ao número total de beneficiários variam entre 67 e 68 milhões de brasileiros na primeira fase e cerca de 57 milhões na segunda rodada, a partir de setembro, quando o auxílio foi reduzido para R$ 300. Essa variação depende da fonte de informação consultada.

Além do espantoso número de beneficiários, o custo do chamado coronavoucher evidenciou o peso financeiro da desigualdade no país. Foram gastos praticamente R$ 293 bilhões no ano passado, cerca de 56% dos recursos federais desembolsados para enfrentar a primeira onda da pandemia, de acordo com o Siga Brasil, sistema do Senado que facilita a busca de dados do Tesouro Nacional. Ou R$ 321,8 bilhões, conforme os cálculos divulgados pelo Ministério da Economia sobre o gasto com o auxílio emergencial.

O importante é que qualquer uma das duas cifras reflete o custo elevado do perfil de distribuição de renda no país. Os recursos socorreram não só os que ficaram desempregados ou perderam seus pequenos negócios no meio da maior crise sanitária deste século. Entre os elegíveis ao benefício estavam brasileiros situados na base da pirâmide social. Ou seja, os pobres que vivem com menos de US$ 5,50 por dia ou os muito pobres que conseguem apenas US$ 1,90, conforme classificação do Banco Mundial.

Desigualdade
 

— O Brasil está entre os dez países mais desiguais do mundo — afirma o sociólogo Luis Henrique Paiva, coordenador de estudos em seguridade social do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
 

De fato. A publicação Síntese de Indicadores Sociais, divulgada pelo IBGE em 2020, trouxe estimativas do Banco Mundial com base no índice de Gini, instrumento criado pelo matemático italiano Conrado Gini para medir o grau de concentração de renda no grupo a ser avaliado. A variação numérica é de zero a um, sendo zero quando todos têm a mesma renda e um representando o extremo oposto.
 

Nesse ranking da desigualdade, o Brasil apresenta 0,539 pelo índice de Gini, com base em dados de 2018. Está enquadrado entre os dez países mais desiguais do mundo, sendo o único latino-americano na lista onde figuram os africanos. O Brasil é mais desigual que Botsuana, com 0,533 pelo índice de Gini, pequeno país vizinho à África do Sul com pouco mais que 2 milhões de habitantes.


Carlos Andreazza: O ano da desigualdade

A pobreza aumentará. A miséria se radicalizará

O sarrafo deixado por 2020 é baixíssimo. Foi um ano contudo em que — como resposta à peste — criaram-se soluções para proteger a sociedade. Estado de calamidade. Orçamento de Guerra. Auxílio emergencial. Uma cadeia de calor. Ante exigências de exceção, respostas excepcionais rapidamente formuladas e viabilizadas por meio da atividade legislativa. Dois mil e vinte acabou. Levou consigo, formalmente, o estado de calamidade. Parece ter levado também o bom senso, já que se fala, como se o vírus não mais houvesse, em retomada da agenda de austeridade fiscal; e sobre nós baixa novamente o teto de gastos.

O vírus permanece, no entanto. O estado de calamidade na vida dos brasileiros permanece. Tudo indica que se alargará, sem o auxílio emergencial; cujo fim terá por efeito empurrar as pessoas à busca de emprego. Não há emprego. Há a segunda onda.

A fotografia perversa não nos autoriza ao otimismo: temos um estado de calamidade de súbito sem reconhecimento oficial, um encilhamento fiscal num país que precisa de indução da economia popular (ou será a fome), um vírus de circulação recrudescente, um Parlamento paralisado por disputa interna de poder e um governo calamitoso, cujo líder populista-autoritário — a só pensar em reeleição — fortalece-se no caos.

Sou a favor do teto de gastos. Considero importantes as amarras de uma âncora fiscal. Mas em condições normais. Não é o caso.

O sarrafo legado por 2020 é baixo, mas 2021 salta sem qualquer colchão — sem qualquer rede de amparo. A pobreza aumentará. A miséria se radicalizará. Tudo o mais constante, sem respostas organizadas pelo Estado, 2021 será o ano do agravamento da desigualdade num país já barbaramente desigual.

Há muito escuto sobre crescimento econômico em K num Brasil minado pela pandemia. Aí está. A perna que ascende sendo a dos mais ricos — para os quais, o palestrante Guedes tem razão, a ereção já é em V. A que desce, a do tombo dos mais pobres. Dois mil e vinte ecoará longamente na vida dos ferrados. O mundo real se imporá; ao qual se reagirá com improviso e populismo.

Sem estado de calamidade formal, prorroga-se o estado de calamidade real em que prospera um governo calamitoso; em que os pobres serão mais desprovidos e em que avançará um presidente-candidato que se alimenta de crise. Estão dados os gatilhos para respostas economicamente populistas. Em vez de discutir-se a revisão, a flexibilização, do teto de gastos, movimento necessário face à peste, investe-se nas circunstâncias inseguras para sua violação. Questão de tempo até que o governo abra o tesouro e gaste sem planejamento para enfrentar um surto de miséria que ajudou a encorpar.

Países não quebram. Mal governados, porém, pioram a vida dos seus. Mal governados, aí sim, quebram, depauperam, mesmo matam, os seus — os mais pobres. É o que produz Jair Bolsonaro por meio de rara combinação de irresponsabilidade e incompetência, conjunto potencializado pela febre reacionária do fenômeno que encarna.

O que produz Bolsonaro: sustentação, alongamento, do estado de calamidade informal — devastador de pobres — de que depende a competitividade de um governo, de um governante, calamitoso.

O Brasil não está quebrado, mas a economia não reagirá enquanto não houver vacinação. E quem é nosso principal agente antivacinação? Bolsonaro. Aquele que, se vitimizando, diz que nada consegue fazer. Consegue, sim. Deformar. Destruir. Mesmo sem trabalhar: corrompe. Nunca trabalhou, o dilapidador. E queria conseguir mais? Alguém capaz de declarar que o país está quebrado, admitindo a inação-impossibilidade do próprio governo, logo após dezessete dias fritando ao sol em férias, cujo auge consistiu naquela encenação de mergulho nos braços do povo.

Neste período de vadiagem, em que o presidente reforçou seu compromisso de boicotar o Programa Nacional de Imunização, de cuja eficiência depende a liberação da economia com que diz se preocupar, o Brasil não pagou uma dívida de US$ 292 milhões para aporte de capital no Novo Banco de Desenvolvimento, instituição financeira do Brics de que é sócio. Calote. O governo caloteiro, porém, botou a culpa no Congresso. É, de novo, expressão do tal “não consigo fazer nada”. A operação da velha forja de inimigos artificiais de que Bolsonaro precisa para cultivar suas milícias e disfarçar suas incapacidades.

Lembro que este é o presidente que, assim que assumiu, disparou que o Brasil era ingovernável. A culpa sendo sempre dos outros. Do establishment etc. Uma mentira muito influente, que circula mesmo ante os fatos. Por exemplo: a Câmara, que criminaliza (mas desde a qual construiria tremenda empresa familiar), votou com seu governo em 74% de suas matérias de interesse. Fato. A Câmara é governista. Contra o governo, joga o próprio governo.

A incompetência — tanto mais em meio a um estado de exceção — pode ser muito lucrativa. Gera oportunidades — também políticas — a um autocrata. Bolsonaro é um irresponsável. Não tem a menor ideia do que seja a Presidência da República, mas não ignora o alcance da palavra do presidente difundindo-se no zap-profundo. Países não quebram. Mas instituições são corrompidas desde dentro. Países não quebram. Quebram as gentes. Matam.


BBC Brasil: Enem vai expor nova camada de exclusão entre alunos mais pobres

O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), que realizará sua edição 2020 em 17 e 24 de janeiro, vai escancarar novas camadas de desigualdade na educação surgidas durante a pandemia do coronavírus e que prejudicam principalmente os jovens mais vulneráveis no terceiro ano do ensino médio

Paula Adamo Idoeta, BBC News Brasil em São Paulo

A avaliação é de José Francisco Soares, especialista em mensuração de desigualdade de ensino que entre 2014 e 2016 foi presidente do Inep, órgão do Ministério da Educação responsável pela aplicação do Enem e das demais avaliações da educação no país.

É também professor emérito da UFMG e cocriador do Indicador de Desigualdades Educacionais e Aprendizagens (IDeA), índice que avalia, em cada município brasileiro, o nível de aprendizagem e suas desigualdades entre diferentes grupos sociais e raciais.

Na prática, essas novas camadas de desigualdade a que se refere Soares farão com que alunos com melhores condições de estudar - por exemplo, os que tiveram segurança alimentar, acesso à internet e às aulas - ou que já tivessem concluído o ensino médio terão mais chance de conseguir vagas em universidades via Enem.

Isso em detrimento dos alunos mais vulneráveis, que ficarão mais distantes do ensino superior e, como consequência, com menos chance de renda maior e de oportunidades melhores de empregos no futuro. Os mais prejudicados, na visão de Soares, tendem a ser os alunos de ensino médio que não conseguiram acompanhar as aulas.

Criaria-se, assim, uma nova exclusão, mesmo entre grupos que tradicionalmente já tinham dificuldades de acesso ao ensino superior.

Para Soares, a despeito dos novos entraves para a realização do Enem, depois de um ano de ensino remoto e em meio a um novo pico de casos de covid-19 no país, não faria sentido adiar o exame novamente - ele avalia que o Inep tem estrutura logística suficiente e que, ao adiar as provas, jogaria-se no aluno o ônus por seu possível mau desempenho, em vez de tratar o problema como algo estrutural.

"Prefiro dizer: há um problema novo (de desigualdade) que a gente precisa tratar", opina.

O tema, porém, tem despertado intensos debates nos últimos dias. Na sexta-feira (8/1), a Defensoria Pública da União entrou com uma ação na Justiça pedindo o adiamento do exame, afirmando que "não há maneira segura para a realização de um exame com quase seis milhões de estudantes neste momento, durante o novo pico de casos de covid-19".

Em entrevista à BBC News Brasil, Soares comentou também sobre outras manifestações crônicas da desigualdade de ensino e de estratégias para combatê-las - usando, inclusive, a tecnologia, que na pandemia ganhou espaço inédito na educação.

Francisco Soares
Francisco Soares foi presidente do Inep (órgão do MEC) e ajudou a criar novo indicador de desigualdade na educação

Veja a seguir trechos da conversa, divididos por tópicos:

Enem: logística e desigualdades

Questionado pela reportagem se este será o Enem mais desafiador dos cerca de 20 anos de história do exame, Soares diz que a equipe técnica do Inep está preparada para as questões logísticas da prova mesmo nas condições impostas pela pandemia.

"Costumo falar que se o Brasil entrasse numa guerra, o coordenador logístico teria que ser alguém dessa equipe (do Inep), que há muitos anos vem conseguindo fazer o exame no país: a prova chega, os fiscais chegam, é muito impressionante. O Brasil tem essa capacidade logística também nas vacinas, nas eleições. Esse é um lado que dá um certo conforto", diz.

"Neste ano tem o desafio do distanciamento social, mas o número (de 5,7 milhões de inscritos) é muito menor. Não estamos batendo nos 9 milhões. Esse grupo experiente vai abrir os espaços necessários (para a realização da prova)."

Do ponto de vista de ensino durante a pandemia, porém, a questão é mais grave, diz Soares.

Apesar de acreditar que a desigualdade de acesso ao ensino superior é bastante amenizada pela Lei das Cotas - que reserva 50% das vagas de universidades e institutos federais a alunos de escolas públicas -, o Enem deste ano vai escancarar problemas que se aprofundaram.

"A vantagem (dos jovens) que estudam em escolas privadas e que têm na família um apoio maior vai se compondo de tal maneira que, quando chega a hora do Enem, é quase um jogo de carta marcada. Ele escancara as desigualdades. Só que neste ano isso ficou pior, porque criamos uma nova desigualdade, entre os alunos que estão terminando o ensino médio (e não conseguiram acompanhar as aulas) e os que já tinham terminado. Uma nova desigualdade entre os mais pobres. Criamos uma exclusão nova", explica.

"Não estou dizendo que a gente deve adiar o Enem, que não deve ter Enem. O que estou dizendo é que a gente precisa tratar disso de forma concreta. (...) Uma hipótese provável é que vamos ter menos estudantes de ensino médio das escolas públicas sendo admitidos (em universidades públicas, em favor de alunos que já haviam concluído o ensino médio antes da pandemia). Não é fácil, porque é uma distinção entre dois grupos que já eram excluídos. Por isso falo que estamos inventando uma nova desigualdade."

Uma possível solução, embora de implementação difícil, seria reservar vagas nas universidades públicas para alunos que estavam no terceiro ano, em proporção semelhante ao que cada universidade aprovou no ano anterior, diz ele.

Debate sobre adiamento do Enem

Embora as soluções não sejam fáceis, Soares acha mais eficiente focar os esforços nelas do que em discutir um eventual novo adiamento do Enem - que tem sido defendido por parte dos estudantes, analistas de educação e grupos políticos, para dar mais tempo de preparo aos jovens e tentar sair do pico da pandemia.

"Acho que (adiar) não teria nenhum efeito, basicamente. Temos um processo de seleção, infelizmente, que vai separar (jovens admitidos ou não no ensino superior). Prefiro perceber que houve uma nova desigualdade e não deixar esses alunos padecerem. Mas acho que o sistema tem que continuar", afirma.

"O Brasil tem (o hábito) de transferir culpa. Então, quando adio o Enem, estou também criando uma fantástica justificativa: 'você não passou, o problema é seu'. Prefiro dizer: há um problema novo que a gente precisa tratar. Não vai ser com algo episódico (adiamento) que vamos resolver."

Evasão escolar, a 'batalha' principal de 2021

Pesquisas de opinião recentes com pais de alunos da rede pública de ensino sugerem que um alto índice deles - até um terço - teme que os filhos abandonem a escola por conta da pandemia.

Para Soares, evitar a evasão escolar será o maior desafio da educação neste ano.

"Com todas as críticas que a gente pode ter, o país vinha melhorando ao longo desses anos. A primeira melhoria foi levar o aluno para a escola. (...) Onde começa o problema? Aos 13 anos. A criança entra na adolescência e começa a desistir (da escola). É isso que a pandemia vai acirrar", afirma.

Especialistas apontam que, ao sair da escola e entrar precocemente no mercado de trabalho - particularmente em um momento de crise econômica -, esse jovem iniciará uma trajetória de piores perspectivas profissionais, menores salários e menor chance de mobilidade social.

"Temos que cuidar para a criança não sair da escola. Esse é o esforço de todo mundo - da igreja, da cidadania, dos partidos, de quem for. Essa é a batalha deste ano. Com acolhimento, preciso criar um ambiente para trazer o aluno para a escola. Tem também os professores, que passaram um ano muito difícil. E eles precisam ganhar prioridade na vacinação. A gente precisava sinalizar que isso é importante. Falta no Brasil essa vontade de colocar a criança no centro (das políticas públicas)."

A evasão e a repetência escolares são também uma grande fonte de desperdício de recursos, uma vez que mantêm o sistema educacional mais inchado para atender alunos que demoram a completar - ou sequer completam - o ciclo de anos de estudo.

"Quando a criança sai ou toma bomba, eu tenho um sistema maior do que preciso. Então a criança precisa ficar na escola."

Desigualdades educacionais crônicas

O mais recente Índice Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), principal mensuração da qualidade do ensino no país e divulgado pelo Ministério da Educação em setembro, apontou avanços na educação geral do Brasil, embora poucos Estados tenham alcançado as metas previstas.

Mesmo esses avanços devem ser lidos com cautela, explica Soares, porque mascaram desigualdades educacionais invisíveis aos dados.

"Eu colocaria a 'melhora no Ideb' entre aspas. Porque o Ideb (mensura o desempenho escolar) das crianças que estão na escola. As que saíram, já era. É algo tipicamente brasileiro", diz o pesquisador.

"Imagina: você é brasileiro e saiu da escola por um motivo qualquer. Você é quem mais precisa da escola. Mas você não impacta o indicador. Isso é de um cinismo estrutural. (...) Além disso, temos uma expectativa muito baixa" em relação à educação pública, argumenta.

Estratégias para avançar: de tecnologia a ensino integral

"A pandemia trouxe problemas novos para os quais não temos solução. Como fazer a escola funcionar em uma situação como esta? Mas tem uma coisa importante que a pandemia está nos ensinando a amadurecer à força: está nos dizendo que, para vencer a desigualdade, preciso da tecnologia", defende Soares.

"Na saúde, estamos perto de ter um prontuário único (para cada paciente), algo que traz muitos problemas em potencial, mas também muita facilidade: quando você for atendida, o médico vai conhecer toda a sua história. Mas na educação a gente não tem esses dados. Com a tecnologia, talvez a gente tenha uma ferramenta (para acompanhar todo o desenvolvimento escolar), não preciso esperar até o aluno estar no cursinho (para diagnosticar problemas)."

Um avanço que tem sido comemorado por Soares e outros especialistas em educação é a aprovação recente, pelo Congresso, do Fundeb, fundo de dinheiro público para a educação básica que passa a ser permanente e obrigatoriamente ganhará mais recursos por parte do governo federal.

"Isso é uma coisa boa, mas temos que usar bem: oferecendo escola de tempo integral, para professor e aluno. (...) E uma quantidade enorme de jovens gostaria de, durante o ensino médio, ter alguma certificação (técnica). Uma vez, uma pessoa que veio instalar uma antena na minha casa me disse: 'terminei o ensino médio e não sabia nada. Precisei pagar (para se capacitar e conseguir seu emprego)'. De novo, olha como o país é: não deu nada a ele e, para ele ter emprego, teve de pagar."

"Então essa é uma primeira mudança razoável: junto com a escola, ter uma certificação. E colocar o ensino superior no horizonte (dos jovens de escolas públicas). Tem muita iniciativa interessante. As escolas de tempo integral de Pernambuco, por exemplo, têm uma disciplina de projeto de vida. Não é dizer ao aluno: 'sonhe'. É dizer 'você está aqui, pense no que vai ser feito (para crescer)'".

Mas o ponto de partida é de fato enxergar cada brasileiro como merecedor de uma educação de alta qualidade e de acesso pleno à cidadania, opina Soares.

"O Brasil é um país que tem uma porta de entrada para a cidadania. Nós precisamos vencer isso. É uma decisão que precisa estar na nossa cabeça: todo brasileiro tem que ser brasileiro. O sonho brasileiro é ser o opressor. 'Eu quero estar no seu lugar'. (Mas) o projeto que vai nos mover é dizer: 'eu vou puxar todo mundo para cima'."


Silvio Almeida: Democracia e desigualdade devem ocupar lugar central no debate político pós-pandemia

Relação entre os dois temas será central no debate político pós-pandemia

Ano de 2021 começará com enormes desafios e não haverá mais lugar para pensamento idealista apartado dos conflitos da realidade.

Utilizo esta última coluna do ano para tratar do que considero os principais assuntos sobre os quais a sociedade terá que se debruçar nos próximos anos: democracia e desigualdade.

O debate sobre democracia e desigualdade não é recente nem uma novidade. Entretanto, a pandemia, a crise econômica e a incapacidade política demonstrada por grande parte dos governos expuseram as imensas contradições do que se convencionou chamar de democracia e a insuficiência das medidas contra a desigualdade.

O ano de 2020 evidenciou que as garantias jurídico-formais da democracia não são suficientes para assegurar a participação popular no processo político. Governos autoritários, com propensões genocidas e “suicidárias” (na expressão de Paul Virillo) foram eleitos e, utilizando-se da forma democrática, desorganizaram social e economicamente seus respectivos países, instalaram desconfiança no próprio sistema que os permitiu chegar ao poder e foram direta ou indiretamente responsáveis pela morte de milhares de pessoas devido ao modo com que se portaram no contexto da pandemia.

Da mesma forma mostraram-se falhas e limitadas as instituições encarregadas de zelar pela democracia. O domínio das fake news, o ambiente anti-intelectual e a distorção provocada pelos algoritmos das redes sociais colocam em xeque um dos postulados máximos do processo democrático, a informação baseada na verdade. Parte do problema também repousa na maneira como os interesses econômicos e o alinhamento às políticas neoliberais têm se refletido na tolerância da grande imprensa e do sistema de justiça com governos autoritários e comprovadamente incompetentes. Caminhamos para um mundo em que a degradação das condições de vida, a destruição ambiental e a desorientação existencial faz com que se instaure um grave dilema entre democracia e ordem social.

Tratar a questão da desigualdade será também assunto prioritário na próxima quadra histórica. Penso que o tema se desdobrará em duas grandes questões. O primeiro desdobramento será um novo debate sobre o papel do Estado na economia. Os delírios neoliberais de “cada vez menos Estado” mostraram-se um retumbante fracasso, inclusive para o mercado. Sem um sistema forte e coeso de proteção social, como é o caso do Sistema Único de Saúde, a tragédia da Covid-19 poderia ser muito maior. Nesse sentido, a instituição de uma renda básica universal está definitivamente na agenda brasileira, não apenas por sua capacidade de fortalecer o sistema de proteção social, mas pelos impactos positivos da medida sobre o conjunto da economia.

O segundo desdobramento será a questão racial. A ascensão de governos ancorados em um “neoliberalismo autoritário” expôs a forma como o racismo é um elemento organizador da desigualdade. O silêncio teórico da economia acerca do racismo foi quebrado, o que revelou ao fim e ao cabo a insuficiência de políticas de desenvolvimento econômico que não tratam da desigualdade racial. A partir de reflexões sobre política industrial, relações de trabalho, tributação, ciência e tecnologia e empreendedorismo terão que observar os impactos sociais do racismo.

O ano de 2021 começará com enormes desafios teóricos e práticos e não haverá mais lugar para que democracia e desigualdade sejam pensadas de modo idealista e apartado dos conflitos da realidade.

*Silvio Almeida, professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.


El País: Pandemia deteriora as democracias na AL e aumenta descontentamento

Relatório da IDEA Internacional alerta para o aprofundamento da desigualdade, da pobreza e da polarização política

Rócio Montes, Santiago do Chile, El País

Um relatório da IDEA Internacional, uma organização intergovernamental que apoia a democracia sustentável em todo o mundo, alertou que durante a pandemia houve um aprofundamento da desigualdade, da pobreza, da polarização política, da corrupção, altos níveis de criminalidade e de fragilidade do Estado na América Latina, embora a resiliência se mantenha. Segundo o documento In focus, divulgado nas últimas horas, a crise sanitária “atingiu severamente” uma região “assediada por problemas estruturais não resolvidos”, onde alguns países sofriam de “processos de erosão e retrocesso democrático” ou de “fragilidade e debilidade democrática” inclusive antes de a pandemia atingir esta região do planeta em março.

“A covid-19 não apenas ceifou a vida de centenas de milhares de pessoas, mas agravou ainda mais problemas estruturais como a desigualdade, a pobreza, a polarização política, a corrupção, altos níveis de criminalidade e fragilidade do Estado”, analisa Daniel Zovatto, diretor regional da IDEA Internacional.

O relatório destaca que as reformas políticas e socioeconômicas longamente adiadas na América Latina agravaram as crises econômicas e de saúde pública provocadas pela pandemia. Acrescenta-se um novo fator: as medidas restritivas aos direitos fundamentais para conter a propagação do coronavírus aumentaram o risco de consolidar ou agravar ainda mais as preocupantes tendências que a democracia apresentava na região antes da crise sanitária.

A magnitude da emergência levou ao uso das Forças Armadas para reforçar quarentenas, transportar pacientes e distribuir insumos médicos, complementando a ação das polícias. “Mas nem isso impediu os avanços da criminalidade e da violência persistente”, acrescenta Zovatto. “Em alguns casos, a mesma resposta do Estado contemplou abusos cometidos por agentes da ordem, violação da privacidade de dados para rastrear contágios (Equador) e restrições à liberdade de expressão para evitar alarme público (no México, o chefe de Estado atacou verbalmente jornalistas e veículos de comunicação por sua cobertura)”, acrescenta o diretor regional da IDEA Internacional.

Em ao menos oito países da região, as Forças Armadas foram instruídas a intervir para dirigir o combate à pandemia, especialmente em áreas como logística, transporte, serviços de saúde e rastreamento de contatos. Mas em alguns países elas também receberam poderes mais controvertidos, como a manutenção da ordem pública e a implementação de medidas restritivas à liberdade de circulação e de reunião durante toques de recolher e estados de sítio e emergência. O relatório dá o exemplo do Chile, onde os toques de recolher e a mobilização das Forças Armadas se tornaram comuns desde as manifestações que começaram em outubro de 2019. Devido à pandemia, o país decretou o estado de exceção constitucional desde o final de março, com proibição de circular entre meia-noite e cinco da manhã, que continua em vigor.

Nem todos os setores foram igualmente afetados pela pandemia: as mulheres, a comunidade LGTBI e os povos originários sofreram muito com a falta de proteção e o acesso desigual à Justiça, explica Zovatto. O relatório indica que nestes meses a violência doméstica e as disparidades entre homens e mulheres cresceram: “As desigualdades de gênero aumentaram durante a pandemia, com o fechamento de escolas e as medidas de confinamento, o que aumentou a carga de trabalho doméstico das mulheres, ao qual se soma uma participação já desequilibrada nas tarefas domésticas entre homens e mulheres na região”, enfatiza o In focus. De acordo com o estudo, isso provavelmente afetará a capacidade das mulheres de permanecer no mercado de trabalho, postular cargos públicos e participar em igualdade de condições nas esferas econômica e política.

Entre os desafios para a democracia na região durante a pandemia está incluído o adiamento de processos eleitorais. “Houve uma postergação generalizada de eleições de todo tipo, por compreensíveis motivos sanitários, mas a maioria delas poderia ter sido realizada”, acrescenta Zovatto. Apesar dos impactos negativos da pandemia nas democracias, felizmente estas continuam sendo majoritárias na região, acrescenta o diretor da IDEA Internacional, “com exceção de Cuba, Nicarágua e Venezuela, onde os regimes aprofundaram ainda mais sua natureza autoritária”.

Nesse quadro não é surpreendente que os protestos sociais de 2019 estejam sofrendo um ressurgimento que desafia até as restrições sanitárias impostas pela pandemia, como se viu na Colômbia, recentemente na Argentina e na Guatemala. “A frustração de alguns setores, ao invés de ter suspendido, parece ter se alimentado de novas razões de descontentamento”, diz Zovatto, que, no entanto, vê possibilidades nessa crise. “Existe um senso de urgência que pode ser aproveitado positivamente para fazer reformas longamente adiadas para otimizar a governabilidade democrática e neutralizar o clima de frustração reinante, aquele que foi expresso nos protestos de 2019 e que abre a porta para populismos de diferentes tipos” , analisa o cientista político argentino.


Vitruvius: Filosofia e desigualdade - A festa brasileira em Rouen em 1550

Luiz Philippe Torelly

Nos tempos antigos, os homens não conheciam as doenças, o sofrimento ou a morte. Não havia brigas. Todos eram felizes. Naquele tempo, os Espíritos da floresta viviam junto com os homens.” Relato dos índios guianenses (1).

Algumas coincidências acabam por nos fazer crer em sincronicidade e em como situações históricas de um passado remoto podem ressurgir, naturalmente, sob outras circunstâncias e roupagem. Esse é o caso do presente texto.

Fico sempre à procura de “novidades”, especialmente de relatos de viagens ou acontecimentos inusitados que fujam à regra da história dos vencedores e das grandes datas, que possam como uma lupa desvendar o particular (2). Foi assim que me deparei com um opúsculo de título curioso, Uma festa brasileira celebrada em Ruão em 1550. Foi amor à primeira vista. De autoria de Ferdinand Denis e publicado em 1850, relata um acontecimento na história da França e do Brasil, com profundas raízes na filosofia e no imaginário da desigualdade que sempre determinou as relações entre a maioria dos homens.

Tal fato foi inicialmente relatado na denominada Narrativa da suntuosa entrada, atribuída a Maurice Sève, publicada em Rouen em 1551. O texto registra a “entrada” (3) realizada em homenagem ao rei de França Henrique II e à rainha Catarina de Médicis, em 1550. As “entradas” eram celebrações, muitas vezes de caráter teatral ou religioso, em homenagem a acontecimentos ou personalidades de que se utilizava a realeza para exibir seu poderio e riqueza: a antiga fórmula do pão e circo. Frequentes no ancien régime francês, essas efemérides ocorreram até o século XIX, como na repatriação dos restos mortais de Napoleão Bonaparte ou no enterro de Victor Hugo, que atraiu mais de um milhão de parisienses.

O episódio de Rouen se tornou célebre e chegou aos nossos dias graças ao texto de Montaigne Os canibais, parte de seu livro Os ensaios. A festa teve um aspecto inusitado e grandiloquente por suas proporções e riqueza de detalhes. Envolvia a representação em grande escala de um cenário brasileiro, com fauna e flora originais, inclusive, onde trezentos homens, dentre eles cinquenta indígenas, simulavam um confronto entre tupinambás e tabajaras, com a vitória dos primeiros. Sua significância advém do ensaio de Montaigne e de sua influência sobre as ideias de Jean Jacques Rousseau, da Revolução Francesa de 1789 e das origens do socialismo, especialmente da luta de classes e da crítica ao fundamento da propriedade privada. Importante mencionar A utopia, de Thomas Morus, obra que antecede em algumas décadas a de Montaigne, como uma das fontes primeiras dessas formulações. Parte desse acontecimento perenizou-se em gravuras e na pedra, nos baixos relevos na Igreja de Saint-Jacques em Dieppe.

Em 1580, Montaigne publica a 1ª edição de Os ensaios, na qual está incluído aquele intitulado Os canibais. Nele retrata uma sociedade edênica e, num imaginário diálogo com Platão, afirma:

“É uma nação em que não há nenhuma espécie de comércio, nenhum conhecimento das letras, nenhuma ciência dos números, nenhum termo para magistrado nem para superior político, nenhuma prática de subordinação, de riqueza ou de pobreza, nem contratos nem sucessões, nem partilhas, nem ocupações além do ócio, nenhum respeito ao parentesco exceto o respeito mútuo, nem vestimentas, nem agricultura, nem metal, nem uso de vinho ou de trigo. As próprias palavras que significam mentira, traição, dissimulação, avareza, inveja, difamação, perdão são desconhecidas” (4).

Nosso autor relata em sua obra que tais informações sobre os indígenas brasileiros, no caso os tupinambás, teriam lhe sido narradas por um homem que havia morado no Novo Mundo por dez ou doze anos. Tudo indica que ele teve acesso, entre outras, às obras Singularidades da França Antártica, do abade e cosmógrafo André Thevet (5), e Viagem à terra do Brasil, do pastor Jean de Léry.

Importante destacar que as obras citadas lhe eram contemporâneas e seus autores, um católico e outro calvinista, se encontravam em lados opostos na guerra religiosa que incendiava a França do século 16. Tal guerra culminaria com a tristemente famosa Noite de São Bartolomeu de 1572, que desencadeou escaramuças em todo o país, ceifando milhares de vidas. Os franceses, desde o início do século 16, estiveram em contato com os indígenas na costa brasileira, com o objetivo de extrair o pau-brasil, a primeira riqueza a atrair navegantes e corsários. A tentativa de fundar a França Antárticana Baía da Guanabara e adjacências a partir de 1555 foi uma iniciativa que tinha por objetivo o estabelecimento de uma colônia permanente. A empreitada foi frustrada, pois, além da dura oposição militar dos portugueses, foi envolvida em lutas religiosas entre calvinistas e católicos, o que comprometeu seriamente sua unidade militar, favorecendo a vitória lusa.

Desde as primeiras viagens às Américas, os índios foram levados para além-mar, na condição de escravos ou troféus exóticos da “terra dos papagaios”. Um dos casos mais célebres foi o de Catharina Paraguassu, que se casou na cidade francesa de Saint-Malo, em 1528, com Diogo Álvares, o famoso Caramurunáufrago português que morava entre os índios onde hoje se localiza a cidade de Salvador, na Bahia. Há farta mitologia sobre o casal, tido como a primeira união entre brancos e índios no país. Outro caso emblemático foi o de Essomericq, levado para a França pelo capitão Binot Paulmier, em 1504, do qual adotou o nome de família.  Essomericqradicou-se no país e casou-se com uma natural. Ambientou-se de tal forma que um seu bisneto, o abade Jean de Paulmier, tornou-se cônego da Catedral de Lisieux. Nesse contexto é que foram levados para Rouen os cinquenta indígenas participantes da citada festa brasileiraA festa em si não é tratada por Montaigne, apenas o diálogo entre os índios e o rei Henrique II, ápice e corolário de seu ensaio que entraria para a história da filosofia.

entrada à qual me referi foi um acontecimento que procurava reproduzir para os franceses o modo de viver dos indígenas, classificados pelo senso comum de bárbaros ou selvagens por seus hábitos e costumes. Guardadas as devidas proporções, promoveu uma espécie de escola de samba a evoluir um enredo. Na época já existiam numerosas descrições de seres e plantas do Novo Mundo, alguns monstruosos, que mesclavam fantasia e realidade, com origem em mitos e lendas da Antiguidade e do Medievo.

Dois deles se tornaram particularmente famosos: a ipupiara, cabeça e focinho de cão, seios femininos, mãos e braços humanos e patas de ave de rapina e as famosas amazonas, mulheres guerreiras de seios desnudos, já mencionadas desde Alexandreo Grande.

Deixo a cargo do leitor a consulta a duas obras que descrevem com pormenores o acontecimento, por não ser esse o objetivo primeiro dessas anotações. A primeira delas é a de Ferdinand Denis, já citada. A segunda é o excepcional livro de Afonso Arinos de Melo Franco, O índio brasileiro e a Revolução Francesa,publicado em 1937 (6). Arinos realizou ampla e profunda pesquisa sobre a influência do índio brasileiro nas ideias do Iluminismo e da teoria da bondade natural, especialmente sobre Diderot e Rousseau e seus desdobramentos no ideário da Revolução Francesa. Livro de juventude, escrito aos 32 anos, figura como uma das obras mais importantes produzidas no país na primeira metade do século 20, malgrado sua ótica conservadora ao desenvolvimento de teorias calcadas no conceito de bondade natural dos indígenas, como por exemplo o marxismo, especialmente em sua crítica à propriedade privada.

Vários pensadores e filósofos antecederam Rousseau na formulação dos princípios da bondade natural e do mito do bom selvagem. Dentre eles, Thomas Morus, Erasmo de Roterdã, Montaigne e Diderot, apenas para citar os mais notórios. No entanto, coube a ele, especialmente em seus dois discursos – Sobre as ciências e as artes e Sobre as origens da desigualdade –, a síntese das ideias políticas que duas décadas depois influenciariam a Revolução Francesa, tendo como dístico os famosos princípios Igualdade, Liberdade e Fraternidade.  Mais tarde, duas outras obras se somam às primeiras para consolidar sua doutrina política e filosófica: Do contrato social, sobre os paradigmas políticos que podem reconduzir o homem ao seu estado natural e assegurar a soberania política da vontade coletiva, e Emílio, no qual formula uma proposta pedagógica coerente com suas concepções.

Em várias passagens do Discurso sobre as origens da desigualdade, Rousseau qualifica o conceito de bondade natural. Selecionamos uma delas5 para, inclusive, destacar as similitudes com a citação de Montaigne:

“Ora, nada é mais meigo do que o homem em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a igual distância da estupidez dos brutos e das luzes da sociedade civil, e compelido tanto pelo instinto quanto pela razão a defender-se do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de fazer mal a alguém sem ser a isso levado por alguma coisa ou mesmo depois de ser atingido por algum mal. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, não haveria afronta se não houvesse a propriedade” (7).

Pode-se dizer que as duas passagens fazem parte do mesmo discurso. Daí a longevidade das obras desses dois autores cuja influência sobre a filosofia, a literatura, a antropologia e a etnografia atravessou os séculos e alcançou os nossos dias.     Registre-se que ambos se valeram dos relatos de Thevet, Léry e Staden, que, embora naturalmente se surpreendessem com os casos de canibalismo e outras práticas dos indígenas, reconheceram suas inúmeras qualidades e virtudes, como na seguinte passagem de Jean de Léry: “O que disse é apenas para mostrar que não merecemos louvor por condená-los austeramente, só porque sem pudor andam desnudos, pois os excedemos no vício oposto, no da superficialidade de vestuário” (8). O indígena se transfigura em selvagem, bárbaro, preguiçoso à medida que avança a colonização, quando passa a conviver com os portugueses e com aqueles, muitas vezes  seus descendentes (mamelucos), que querem destruir seu mundo, subjugá-lo, subverter seus usos e costumes e roubar suas terras, como ainda vemos no Brasil de hoje.

A crítica, especialmente às ideias de Rousseau, advém em parte de seu comportamento exótico e de sua vida pessoal, dissociada de suas concepções, e de suas denúncias aos valores e instituições da civilização ocidental.  Marilena Chauí, na introdução à edição brasileira do livro Do contrato social, nos esclarece:

“Se os abusos do estado social civilizado não o colocassem abaixo da vida primitiva, o homem deveria bendizer sem cessar o instante feliz que o arrancou para sempre da animalidade e fez de um ser estúpido e limitado uma criatura inteligente. O propósito visado por Rousseau é combater os abusos e não repudiar os mais altos valores humanos” (9).

O achado do livro deFerdinand Denis me levou a outros, guiado por um magnetismo em que o acaso e a curiosidade têm certa participação. Montaigne nos deu a chave da relevância do episódio e de sua oportunidade na atualidade brasileira. Ao final da festa, o rei convidou três dos indígenas para uma conversa. Falou-lhes por muito tempo sobre as excelências da cidade de Rouen e da festa em si. Perguntou-lhes, então, do que mais tinham gostado. Eles responderam em primeiro lugar que achavam estranho que tantos homens fortes e armados obedecessem a uma criança e que não escolhessem entre eles um igual para comandante Em segundo lugar, mostraram seu espanto e indignação em ver que, enquanto alguns estavam abarrotados de todas as comodidades e tinham mesa farta, outros estivessem pelas ruas da cidade reduzidos à fome e à pobreza. Concluíram com essas palavras o seu diálogo com o rei: “e achavam estranho como essas metades daqui, necessitadas, podiam suportar tal injustiça, que não pegassem os outros pela goela ou ateassem fogo em suas casas” (10).

Decorridos 466 anos da Festa Brasileirae 227 da Revolução Francesa, infelizmente ainda remanescem a desigualdade, a pobreza, a violência, o etnocentrismo, apesar da criação de instituições aparentemente democráticas, esforço permanente desde a Renascença e o Iluminismo. Estudos recentes realizados na Itália, abarcando o período de 1427 a 2011, e na Inglaterra, de 1170 a 2012, a partir de censos e declarações de renda entre outras fontes, concluíram que os sobrenomes dos mais ricos e dos mais pobres não haviam se alterado. Guardadas possíveis imprecisões e distorções, esses estudos constituem indicativo de que o dinheiro não mudou de mãos, a par de avanços na educação e na saúde e na proteção ao trabalho. Gregory Clark e Neil Cummins, da London School of Economics, revelam que as universidades mais famosas do país, como Oxford e Cambridge, são quase que exclusivas dos mais ricos, mantendo uma elevada seletividade mesmo com ampliação das possibilidades de acesso. Segundo Neil Cummin:

“Essa correlação é inalterada ao longo dos séculos. Ainda mais notável é a falta de um sinal de qualquer declínio na persistência de status social durante períodos de mudanças institucionais, como a Revolução Industrial do século XVIII, a disseminação da escolarização universal no final do século XIX (no Brasil só a atingimos na 2ª década do século XXI), ou a ascensão do estado socialdemocrata no século XX” (11).

Thomas Piketty, em seu livro O capital no século XXI, lançado em 2014, causou furor, e às vezes críticas azedas, ao constatar a progressão da desigualdade. Ele analisa em profundidade a dinâmica de acumulação do capital e sua evolução em longo prazo, bem como a distribuição da renda entre o capital e o trabalho, em um período de três séculos, em vinte países. Na introdução de seu livro, afirma:

“O crescimento econômico moderno e a difusão do conhecimento tornaram possível evitar o apocalipse marxista, mas não modificaram as estruturas profundas do capital e da desigualdade – ou pelo menos não tanto quanto se imaginava nas décadas otimistas pós-Segunda Guerra Mundial. Quando a taxa de remuneração do capital ultrapassa a taxa de crescimento da produção e da renda, como ocorreu no século XIX e parece provável que volte a ocorrer no século XXI (caso brasileiro), o capitalismo produz automaticamente desigualdades insustentáveis, arbitrárias, que ameaçam de maneira radical os valores da meritocracia sobre os quais se fundam nossas sociedades democráticas” (12).

É exatamente isso o que está acontecendo no Brasil. Há sério risco de desmonte da política de recuperação dos salários, de ampliação dos direitos trabalhistas e dos benefícios sociais que, entre 2001 e 2013, reduziu o percentual de brasileiros que vivem em extrema pobreza de 10% para 4%.  Mais: 25 milhões de pessoas saíram da pobreza extrema ou moderada no mesmo período.  Saímos do malfadado mapa mundial da fome. É o que diz o relatório de abril de 2015 do insuspeito Banco Mundial, Prosperidade compartilhada e erradicação da pobreza na América Latina e Caribe (13). Refletindo sobre a crise política, institucional e moral na qual o país está imerso – na ineficácia e porque não falar na anomia de suas instituições, na instabilidade da economia, nos milhões de empregos perdidos, no retrocesso das conquistas sociais e políticas das últimas décadas, na corrupção e impunidade, exclamo: ainda temos muito a aprender com a bondade natural e o “bom selvagem”!

Notas

(1) Registro de Lévi-Strauss sobre relato de índios guianenses. In LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. São Paulo, Cosac Naify, 2010, p. 320.

(2) DENIS, Ferdinand. Uma festa brasileira celebrada em Ruão em 1550. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 38. Ver também JONES, Colin. Paris, biografia de uma cidade. 5 ed. Porto Alegre: L&PM, 2013, p.129-130.

(3) MONTAIGNE, Michel. Os ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, 146.

(4) FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O índio brasileiro e a Revolução Francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade natural. 2 ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1976, 48.

(5) ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 93, volume II.

(6) LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2007, p. 121.

(7) CHAUÍ, Marilena. Introdução a Rousseau. In: Coleção Os Pensadores – Rousseau, volume I. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 13.

(8) MONTAIGNE, Michel. Os ensaios: uma seleção. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.157.

(9) CLARK, Gregory e CUMMINS, Neil. Desigualdade: estudos sobre as famílias ricas mostram que os pobres são os mesmo de sempre. Disponível em: www.diariodocentrodomundo.com.br. Acesso em 14 jul. 2016.

(10) PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

(11) CLARK, Gregory; CUMMINS, Neil. Apud DONATO, Mauro. Desigualdade: estudos sobre as famílias ricas mostram que os pobres são os mesmo de sempre. São Paulo, Diário do Centro do Mundo, 13 jul. 2016 <www.diariodocentrodomundo.com.br/desigualdade-estudos-sobre-as-familias-ricas-mostram-que-os-pobres-sao-os-mesmos-de-sempre-por-donato>. Acesso em 14 jul. 2016.

(12) PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI. Rio de Janeiro, Intrínseca, 2014.

(13) CORD, Louise; GENONI, Maria Eugenia; RODRÍGUEZ-CASTELÁN, Carlos (org.). Shared Prosperity and Poverty Eradication in Latin America and the Caribbean. Washington, World Bank Group, 2015 <www.resbr.net.br/wp-content/uploads/2015/05/Shared.pdf>.

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sobre o autor

Luiz Philippe Peres Torelly é arquiteto e urbanista pela Universidade de Brasília em 1979. É especialista em gestão de políticas públicaspelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, e em Planejamento Urbano pela CAPES/CNDU. Cumpriu créditos do curso de mestrado em Planejamento Urbano pela Universidade de Brasília. Trabalhou em diversas instituições públicas voltadas para as questões habitacionais, urbanísticas, de planejamento urbano e regional e preservação do Patrimônio Cultural: Banco Nacional da Habitação, Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, Caixa Econômica FederalInstituto de Planejamento Territorial e Urbano do DF (diretor presidente), Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano do DF (secretário), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (diretor de Promoção do Patrimônio Cultural 2007/2009 e diretor de articulação e fomento (2013/2016). Foi eleito o Arquiteto do Ano de 2015, na categoria setor público pela Federação Nacional dos Arquitetos.


Luiz Carlos Trabuco Cappi: O ovo da serpente

Uma sociedade deficiente em educação não avança e, pior, aponta para o atraso

Bem mais precioso que uma sociedade pode legar aos seus cidadãos, a educação é uma das maiores vítimas dos efeitos destrutivos da pandemia de coronavírus. O fechamento compulsório de escolas, o isolamento de estudantes e as incertezas sobre a retomada de atividades presenciais restringiram, ao longo deste ano, o acesso ao ensino. Nessa medida, a desigualdade educacional se agravou.

É uma evidência que alunos com melhor acesso à tecnologia e suas ferramentas, da conexão firme e veloz à internet ao uso de iPads de última geração, têm melhores meios de mitigar os danos causados pela abrupta interrupção do ano letivo e a rápida introdução do ensino a distância.

Global, o fenômeno ganha relevância em países nos quais as diferenças sociais são mais acentuadas, como é o caso do Brasil. Esse desequilíbrio aumenta o déficit educacional. O preço a pagar projeta danos irreversíveis. Uma sociedade deficiente em educação não avança e, pior, aponta para o atraso. Forma cidadãos sem conteúdo para compartilhar conhecimento, construir sonhos e forjar oportunidades econômicas. Cria uma geração sem esperança.

É o ovo que gera a serpente da desinformação, da proliferação das fake news e da polarização política perigosa. Engessa o progresso, divide a cidadania, anula a solidariedade e radicaliza o individualismo. A deseducação é o que põe em risco a democracia.

A contraface dessa moeda é paz e prosperidade. Enfrentar com prioridade a questão da educação envolvendo soluções que unam governo, iniciativa privada e setores que acumulam massa crítica sobre o tema trará ganhos a todos.

O ensino abre portas para o desenvolvimento inclusivo, meio mais eficaz de combater as desigualdades. Aprimora e reforça os valores civilizatórios. Barra humilhações à Nação e seu povo.

A educação impulsiona política social de base ampla – abarca da criança ao jovem adulto, proporcionando desde o acesso à merenda, nos primeiros anos, ao emprego e renda, no curso da formação. O filósofo Immanuel Kant definiu o ensino como “o grande segredo do aperfeiçoamento da humanidade”.

Os indicadores atuais mostram a dimensão do desafio. Em 2019, somente 27% da população com 25 anos ou mais exibiam o ensino médio completo, enquanto 32% nessa faixa etária não tinham concluído o ensino fundamental. A evasão no ensino médio atingiu 18% entre jovens de 19 anos. Apenas 21% dos brasileiros de 24 a 35 anos têm ensino superior, segundo a OCDE, ante 70% na Coreia do Sul. As instituições privadas de ensino superior calculam que 400 mil dos seus 6,5 milhões de alunos deixaram de estudar este ano por conta da pandemia, maior evasão já registrada.

A inversão dessas tendências é tanto mais complexa pela delicada situação fiscal que o País atravessa. Não conseguimos hoje sequer sonhar com uma situação como a da Alemanha, cujo governo anunciou um aporte de € 160 bilhões, no período de 2021 a 2030, para universidades e centros de pesquisa.

O Brasil precisa de criatividade e sentido de urgência para encontrar os caminhos de um sistema educacional moderno e inclusivo em todos os níveis. A educação a distância, que os especialistas dizem ter vindo para ficar, é nossa aliada nessa corrida, mas é preciso equalizar os acessos à tecnologia a todas as camadas da sociedade, e isso demanda investimento. A qualificação de professores é outra condição para que o País saia do risco de apagão no setor que ilumina o futuro.

Os investimentos em educação têm maturação de longo prazo. Muitas vezes, os governantes preferem se ocupar de outras áreas, em busca de um reconhecimento mais rápido, do que tratar desse setor basal. Considerar, porém, a educação como uma rubrica de gastos incômodos leva à perpetuação do atraso.

Para nossa sorte, o nonagenário educador americano e ex-presidente de Harvard Derek Bok já esclareceu esse dilema: “Se você acha a educação cara, experimente verificar os custos da ignorância.”

PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS


Hélio Schwartsman: Um país racista ou desigual?

Brasil é as duas coisas ao mesmo tempo

O Brasil é um país desigual ou é um país racista? Ele é as duas coisas ao mesmo tempo, e destrinchá-las não é trivial. São conhecidas as estatísticas do IBGE que informam que trabalhadores brancos ganham quase 70% mais do que negros. A dificuldade com esse dado, da forma que costuma ser apresentado, é que ele soma os efeitos da desigualdade social com os do racismo e põe tudo na conta do segundo.

Há motivos legítimos para explicar diferenças salariais, como história educacional, cargo exercido, tempo de casa etc. Quando comparamos grupos semelhantes, isto é, negros e brancos com o mesmo grau de instrução, ou que ocupem postos no mesmo nível hierárquico, as disparidades diminuem. O problema é que só diminuem, sem desaparecer, sinal de que a cor da pele também faz diferença.

Há interessantes trabalhos, como o de André Salata (PUC-RS), que tentam separar os efeitos diretos do racismo dos indiretos, mediados por pobreza, educação.

E o mercado de trabalho é só uma das esferas em que o racismo estrutural se manifesta. Estudos mostram que negros também sofrem discriminação no sistema de Justiça (é mais provável um jovem negro apanhado com maconha ser enquadrado como traficante do que um branco flagrado na mesma situação) e até em hospitais (o controle de dor é mais precário para pacientes negros).

É raro encontrarmos um racista empedernido, daqueles que vestem lençóis na cabeça, por trás desse tipo de discriminação, que se materializa por canais mais sutis, como vieses e estereotipias, que afetam o comportamento das pessoas sem que elas se deem conta.

Combater o que acontece abaixo do radar da consciência é difícil. O reconhecimento do problema é o primeiro passo. A sociedade brasileira já parece tê-lo dado. Quiçá isso um dia chegue às escolas militares que formaram Bolsonaro, Mourão e outros que ainda acham que não existe racismo no Brasil.


Maria Hermínia Tavares: A desastrosa marcha à ré do combate à pobreza e à desigualdade

Os mais ricos ficaram com quase todo o crescimento da renda de 2017 para cá

Nos últimos dez anos, perdemos a luta contra a pobreza e a desigualdade, objetivo incontornável de qualquer país que se quer decente. Essa é a conclusão do primoroso trabalho "Distribuição de renda nos anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza", escrito por três ases --os pesquisadores Rogério Barbosa, Pedro Ferreira de Souza e Sergei Soares-- e recém-publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Economia, na série Textos de Discussão.

Ali se lê que os ganhos conseguidos entre 2012 e 2014 --e que davam prosseguimento a uma longa trajetória virtuosa de redução do número de pobres e das disparidades de renda-- cessaram com a crise econômica de 2015-2016 e foram literalmente revertidos nos dois anos seguintes.

O desarranjo da economia não atingiu a todos da mesma forma nem ao mesmo tempo. A derrocada começou no governo Dilma, provocada por uma leitura míope dos obstáculos da hora, conduzindo a soluções ineficazes para superá-los.

Mas foi ao longo da difícil recuperação que teve início em 2017, já sob o comando da centro direita de Temer & Meirelles, que a sorte dos mais pobres foi selada. Segundo os estudiosos citados, os brasileiros mais ricos se apropriaram de cerca de 80% do crescimento da renda no período, enquanto os ingressos da metade mais pobre caíram 4%. Na mesma proporção cresceu a desigualdade. Sem sombra de dúvida, esse aumento foi o responsável pela ampliação da pobreza.

Os pesquisadores demonstram que o inchaço do desemprego e a queda dos salários foram os vilões da tragédia que desfez sonhos e esperanças de milhões de famílias e multiplicou o número dos sem-teto nas grandes cidades.

A Previdência Social também teve seu papel: os maiores benefícios destinaram-se aos grupos de melhor remuneração. Finalmente, o estudo revela terem sido quase nulos os efeitos compensatórios dos programas de proteção da renda, como o Benefício de Prestação Continuada, o Seguro Desemprego e o Bolsa Família, cujos recursos não acompanharam o aumento dos que a ele teriam direito.

Uma administração que produziu muito progresso, mas não as condições fiscais para sustentá-lo, seguida de outra que em dois anos promoveu impressionante retrocesso social são responsáveis pela marcha à ré do país e pela perda de uma década de mitigação das injustiças.

Não é provável que o quadro melhore neste governo: reduzir pobreza e desigualdade não faz parte de sua agenda retrógrada. Que, ao menos, os democratas com preocupações sociais aprendam com o estrago e se preparem para fazer melhor.

*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.


Cacá Diegues: Um culto de crueldade

O aborto, enquanto crime, é uma invenção de católicos conservadores de meados do século XIX

Os antropólogos brasileiros nos falam de nossa formação, a partir do encontro entre os nativos e os civilizados, navegantes sujos e doentes, ávidos por riquezas, moralmente dispostos a tudo para não perder a oportunidade que a vida, Deus ou a sorte lhes davam com o novo mundo, prontinho para ser usado e explorado pela cobiça deles. Do outro lado, estavam, como escreveu Darcy Ribeiro, “a inocência e a beleza encarnadas”, um povo original, tentando entender aquela gente tão diferente. O poder acabou nas mãos dos que chegavam, os que escreveram a história e decretaram o que somos, um povo ao mesmo tempo cruel e generoso.

Hoje, no Brasil, vivemos um culto da crueldade. Não estamos nos referindo apenas aos grupos radicais de direita no poder ou ligados ao poder, que propõem a eliminação dos que não pensam como eles. Estamos falando de hábitos e costumes populares, de inesperadas ações cotidianas, quase sempre espontâneas, às vezes até inocentes.

A mais recente demonstração dessa perda de generosidade, em nome de regras e leis sobre as quais não refletimos, é o caso da menina de 10 anos, de São Mateus, no Espírito Santo, que apareceu grávida em decorrência do estupro sistemático de seu tio, praticado desde seus 6 anos de idade. Durante quatro anos, uma criança sofre tal violência, sob pretextos que a mente perversa do adulto deve ter criado, e grande parte da população pune (ou deseja punir) a vítima.

Segundo nos informa Flávia Oliveira, sempre atenta à desigualdade no país, só em 2018, mais de 21 mil bebês nasceram de mães com menos de 14 anos de idade. É nessa faixa de idade materna que se encontra o maior número de óbitos infantis, determinado pelas condições sociais e de saúde das mães precoces. Nosso Código Penal considera crime a relação sexual com menores de 14 anos, mesmo quando consentida. Conheço uniões com enorme diferença de idade em que os cônjuges são felizes até hoje. É muito difícil legislar sobre o amor, ele é sempre uma exceção. Mas a lei não impede que, no Brasil, quatro meninas nessa faixa etária sejam estupradas por hora.

A capixaba poderia, pelo menos, passar anônima por essa tragédia, no início de sua vida condenada ao sofrimento. Mas o fundamentalismo religioso, hoje exercido de modo medieval por parte de nossas autoridades, não deixou que nem isso ocorresse com essa vítima de nossa crueldade. Uma tal de Sara de muitos sobrenomes, ex-assessora e declarada discípula da ministra Damares Alves, pastora no Ministério da Mulher (?), Família (??) e Direitos Humanos (???), descobriu e deu, em redes sociais, o nome, o endereço da família e as características da menina de São Mateus (que seria negra, pobre e criada pelos avós). Ela anunciou o hospital em que a mãe violentada faria o aborto legal, incentivando grupos religiosos a se manifestar contra a interrupção da gravidez. A menina acabou tendo que deixar o Espírito Santo, indo se cuidar no Recife.

O aborto, enquanto crime, é uma invenção de católicos conservadores de meados do século XIX, estabelecida por motivos políticos e hereditários. Nem Cristo, nem nenhum dos fundadores de sua Igreja, se manifestou sobre o assunto. É difícil estabelecer regras rígidas para essa questão, mesmo que apenas do ponto de vista civil. Mas, em qualquer circunstância, para qualquer civilização, povo ou religião, é claro que o estupro é uma barbárie que não pode ser consagrada como boa origem de uma vida. Muito menos quando se trata de uma criança, que terá sua vida destruída por um erro ou um crime que não foi ela que cometeu.

Os que se manifestaram contra o aborto da menina não foram apenas militantes políticos que estão sendo processados por atividades antidemocráticas ou religiosos ignorantes e intolerantes, mas também autoridades formais de uma Igreja que tem hoje um líder que pensa, o Papa Francisco. Em que país estavam essas autoridades quando tantos meninos e meninas pobres foram mortos por balas perdidas ou bem miradas no alvo? Nunca vi nenhum deles acender velas públicas por essas crianças, como João Pedro, Jenifer, Kauan, Kauã, Kauê, Agatha, Ketellen e muitos outros. Essas, sim, são mortes que podiam ter sido evitadas.


Míriam Leitão: Imagine vencer a desigualdade

Para entender a desigualdade de gênero não basta olhar os dados, é preciso imaginar os sentimentos das mulheres discriminadas

Há vários estudos mostrando que existem vantagens econômicas em combater a desigualdade entre homens e mulheres em todas as áreas. No comando das empresas, por exemplo. Um estudo publicado na “Harvard Business Review” traz os resultados de uma pesquisa do Peterson Institute mostrando que há um aumento de 15% de lucratividade nas empresas que têm 30% de mulheres na diretoria em relação às que têm apenas homens. Mas o mais decisivo, quando o assunto é discriminação contra mulher, talvez não seja tangível.

Imagine um mundo em que nenhuma mulher seja morta pelo fato de ser mulher, em que jamais uma criança veja a sua mãe ser agredida, em que as meninas sejam estimuladas a pensar que seus sonhos não têm limites, em que não haja distribuição automática de papéis, em que os trabalhos da vida cotidiana sejam divididos harmoniosamente. Se você conseguiu pensar nesse mundo terá concluído que crianças terão menos traumas, mulheres, mais autoconfiança, a sociedade, mais igualdade e a economia, mais produtividade.

O estudo publicado na “Harvard Business Review” por Marcus Noland e Tyler Moran é de 2016, mas outros recentes confirmam o fenômeno. Eles fizeram uma pesquisa em 22 mil firmas globalmente. Em 60% delas, nenhum integrante do conselho de administração era mulher, em apenas metade delas havia algum integrante feminino na diretoria executiva e só 5% tinham mulher na presidência. Isso varia de país a país. A Noruega, de novo, na frente. O Japão, sempre atrás. O curioso é que os pesquisadores descobriram que não havia diferença na lucratividade se o CEO fosse homem ou mulher, mas diretorias e conselhos de administração com mais diversidade tinham melhor desempenho.

Imagine uma mulher que apanha do homem que um dia amou e escolheu para dividir a vida. Ela se encolhe e começa a considerar que é a culpada. Algo fez de errado. Se é dependente economicamente é ainda mais difícil reunir forças e ir numa delegacia denunciar o agressor. Imagine quantas palavras depreciativas ouviu enquanto apanhava e como isso sedimentou nela a dúvida sobre sua própria natureza. E mesmo que ela não tenha sofrido violência física, as agressões verbais a fizeram crer que é inferior.

“Existem notícias encorajadoras.” Assim começa um artigo postado por Roni Mermelshtine na Good&Co, uma empresa de orientação de carreira, com presença global, mas baseada na Califórnia. Uma dessas boas notícias é que pela primeira vez existe mulher no comando de uma empresa automobilística. Em setembro de 2018, uma mulher assumiu a presidência da General Motors, Mary Barra. Na empresa, a diretora financeira também é mulher. O problema é que nas 500 maiores da “Fortune” apenas 23 têm mulheres no comando. Segundo o texto desta semana, a diversidade de gênero é pífia no mundo inteiro. A pressão de investidores, as cotas, os grupos de defesa de direitos têm conseguido aumentar a presença de mulheres, mas ela é ainda muito baixa.

Imagine que você cresça ouvindo que não pode gostar de um determinado brinquedo porque ele é de homens, que você é fraca, que certas profissões são exclusivas para meninos. E, depois de crescer, dentro da empresa seja preterida nas promoções mesmo sendo mais qualificada, e, ao fim, seja constrangida por um chefe. Imagine que você more num país onde o presidente quando critica a imprensa escolhe as mulheres como alvo principal. E que em determinado dia faça um ataque claramente sexista a uma delas, iniciando uma onda de postagens machistas nas redes.

A McKinsey faz há cinco anos pesquisa sobre gênero e desigualdade nas empresas. Repete a mesma pesquisa a cada ano. Comparando 2015 com 2019 verificou que o percentual de mulheres no nível executivo aumentou de 17% para 21%. “Apesar de ser um passo na direção certa, a igualdade continua fora de alcance. Mulheres — e particularmente mulheres negras — estão sub-representadas em todos os níveis”, diz a última versão do estudo.

Imagine as meninas que estão crescendo hoje. E pense nos sonhos que elas podem sonhar. Imagine um mundo em que elas sejam protegidas de agressões e estimuladas em seus projetos, em que nas escolas e nos lares ninguém lhes diga “isso não é coisa de menina”. O futuro haverá de ser assim, mas o que temos diante de nós ainda é uma longa caminhada. Travessia.