desaparecimento
ONU alerta para malefícios na vida de vítimas de desaparecimentos forçados
ONU News*
Este 30 de agosto é o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados. Para as Nações Unidas, esse tipo de violência se tornou um problema global e não se restringe a uma região específica do mundo.
No passado, muitas pessoas desapareciam por consequência de ditaduras militares. Hoje, a prática acontece também em situações complexas de conflito interno, especialmente como meio de repressão política de opositores.
Impacto dos desaparecimentos forçados
Milhares de pessoas desapareceram durante conflitos ou períodos de repressão em pelo menos 85 países ao redor do mundo.
O desaparecimento forçado tem sido frequentemente usado como estratégia para espalhar terror na sociedade. O sentimento de insegurança gerado por essa prática não se limita aos familiares próximos dos desaparecidos, mas atinge também suas comunidades e a sociedade como um todo.
De particular preocupação são a perseguição contínua de defensores de direitos humanos, familiares de vítimas, testemunhas e advogados que lidam com casos de desaparecimento forçado, o uso pelos Estados de atividades antiterroristas como desculpa para o descumprimento de suas obrigações, e a impunidade.
A ONU também pede atenção especial a grupos específicos de pessoas especialmente vulneráveis, como crianças e pessoas com deficiência.
Tortura
As Nações Unidas também alertam que as vítimas de desaparecimentos forçados são frequentemente torturadas e temem constantemente por suas vidas, além de estarem cientes de que suas famílias não sabem o que aconteceu com elas e que há poucas chances pequenas de que alguém venha em seu auxílio.
Essas pessoas, quando retiradas do recinto de proteção da lei e ficam “desaparecidas” da sociedade, são privadas de todos os seus direitos e ficam à mercê de seus captores.
Mesmo que a morte não seja o resultado e a vítima seja finalmente libertada do pesadelo, as cicatrizes físicas e psicológicas desta “forma de desumanização e a brutalidade e tortura” que muitas vezes a acompanham permanecem.
Familiares das vítimas
Os familiares e amigos das vítimas experimentam angústia, sem saber se a vítima ainda está viva ou onde está detida, em que condições e em que estado de saúde. Além disso, sabem que estão ameaçados, que podem sofrer o mesmo destino e que a busca da verdade pode expô-los a um perigo ainda maior.
A angústia da família é frequentemente agravada pelas consequências materiais do desaparecimento. Em alguns casos, a legislação nacional pode impossibilitar o saque de uma pensão ou o recebimento de outros meios de subsistência na ausência de uma certidão de óbito.
Quando mulheres são vítimas diretas do desaparecimento, se tornam particularmente vulneráveis à violência sexual.
As crianças também podem ser vítimas, direta e indiretamente. A perda de um dos pais por desaparecimento também é uma grave violação dos direitos humanos de uma criança.
Origens do dia
O dia internacional aprovado na Assembleia Geral em dezembro de 2010. A resolução expressava profunda preocupação com o aumento de desaparecimentos forçados ou involuntários em várias regiões do mundo.
A ONU saudou a adoção da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, criada em 1992, que é um conjunto de princípios para todos os Estados.
*Texto publicado originalmente na ONU News. Título editado.
O que se sabe sobre desaparecimento de jornalista britânico e indigenista brasileiro
Da BBC News Brasil*
O jornalista britânico Dom Phillips e o servidor da Funai (Fundação Nacional do Índio) Bruno Araújo Pereira desapareceram quando se deslocavam de barco pelo rio Itaquaí após uma visita à Terra Indígena do Vale do Javari (Amazonas), território que tem sofrido com invasões de caçadores, pescadores e madeireiros.
O sumiço da dupla foi divulgado nesta segunda-feira (06/06) em uma nota assinada pela principal associação indígena do Vale do Javari (Unijava) e pelo Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI).
A Polícia Federal, a Funai, o Ministério Público Federal e a Marinha estão envolvidos nas buscas.
Phillips e Pereira desapareceram após fazerem uma pausa numa comunidade ribeirinha, quando estavam fora da terra indígena e voltavam para a cidade de Atalaia do Norte, a principal da região, no oeste do Amazonas.
A Unijava e o OPI dizem que a equipe recebeu "ameaças em campo" durante a visita.
Em nota, os órgãos dizem que Pereira e Phillips viajaram em 3 de junho até um posto de vigilância indígena próximo a uma localidade chamada Lago do Jaburu, "para que o jornalista visitasse o local e fizesse algumas entrevistas com os indígenas".
No dia 5, segundo a nota, os dois deveriam voltar para Atalaia do Norte, mas antes fizeram uma parada previamente agendada na comunidade ribeirinha São Rafael para visitar um líder comunitário conhecido como "Churrasco".
O objetivo da parada era " consolidar trabalhos conjuntos entre ribeirinhos e indígenas na vigilância do território bastante afetado pelas intensas invasões".
Segundo a nota, a dupla chegou à comunidade São Rafael por volta das 6h. Como não encontraram o líder, conversaram com sua esposa e partiram rumo a Atalaia do Norte.
A viagem normalmente dura cerca de duas horas. "Assim, deveriam ter chegado por volta de 8h/9h da manhã na cidade, o que não ocorreu", dizem a Unijava e o OPI.
Os órgãos dizem então que, às 14h, mandaram em busca da dupla uma equipe "formada por indígenas extremamente conhecedores da região".
A equipe teria percorrido inclusive os "furos" do rio Itaquaí, "mas nenhum vestígio foi encontrado".
"A última informação de avistamento deles é da comunidade São Gabriel - que fica abaixo da São Rafael - com relatos de que avistaram o barco passando em direção a Atalaia do Norte", diz a nota.
Às 16h, dizem os órgãos, "outra equipe de busca saiu de Tabatinga, em uma embarcação maior, retornando ao mesmo local, mas novamente nenhum vestígio foi localizado".
A nota diz que a ameaça recebida pela equipe na última semana "não foi a primeira".
Segundo as entidades, várias outras ameaças "já vinham sendo feitas a demais membros da equipe técnica da Unijava, além de outros relatos já oficializados para a Policia Federal, ao Ministério Público Federal em Tabatinga, ao Conselho nacional de Direitos Humanos e ao Indigenous Peoples Rights International".
O cunhado de Phillips publicou uma mensagem no Twitter em que a família "implora às autoridades brasileiras que enviem a guarda nacional, a polícia federal e todos os poderes à disposição" para encontrar o jornalista.
"Ele ama o Brasil e dedicou sua carreira à cobertura sobre a floresta Amazônica. Entendemos que o tempo é um fato crucial, então encontrem nosso querido Dom o mais rápido possível", escreveu Paul Sherwood, cunhado de Phillips.
Buscas
Em nota à BBC a Funai afirma que "acompanha o caso, está em contato com as forças de segurança que atuam na região e colabora com as buscas".
"Cumpre esclarecer que, embora o indigenista Bruno da Cunha Araújo Pereira integre o quadro de servidores da Funai, ele não estava na região em missão institucional, dado que se encontra de licença para tratar de interesses particulares", acrescenta a entidade.
A Polícia Federal disse em comunicado que está trabalhando no caso. Informou ainda que duas testemunhas, cujos nomes não foram divulgados, foram ouvidas nesta segunda.
O Ministério Público Federal diz ter acionado a Polícia Federal, a Força Nacional, a Polícia Civil, a Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari e a Marinha do Brasil. "Esta última já confirmou que conduzirá as atividades de busca na região, por meio do Comando de Operações Navais", diz o órgão em nota.
"O MPF seguirá intermediando as ações de buscas e mobilizando as forças para assegurar a atuação integrada e articulada das autoridades, visando solucionar o caso o mais rápido possível."
O Comando Militar na Amazônia afirmou que iniciou uma operação de busca na região do município de Atalaia do Norte com uma equipe de combatentes de selva.
Segundo o jornal O Globo, o governo federal está montando uma força-tarefa com agentes da Polícia Federal, oficiais da Marinha, do Exército, bombeiros, servidores da Funai, da Defesa Civil e da Força Nacional de Segurança em Tabatinga, no Amazonas. O governo federal no entanto ainda não confirmou oficialmente a informação.
Mas o governador do Estado do Amazonas, Wilson Lima, disse que determinou o envio de reforço policial especializado para a região de Atalaia do Norte para ajudar nas buscas.
O jornal The Guardian disse que "está muito preocupado" e buscando informações sobre o caso. "Estamos em contato com a embaixada britânica no Brasil e com autoridades locais e nacionais para tentar esclarecer os fatos assim que possível."
Servidor experiente
Segundo a nota conjunta do OPI e da Unijava, "Bruno Pereira é pessoa experiente e profundo conhecedor da região, pois foi Coordenador Regional da Funai de Atalaia do Norte por anos". As entidades afirmam que a dupla viajava com uma embarcação nova, com 70 litros de gasolina, "o suficiente para a viagem".
Pereira é um dos servidores da Funai com mais conhecimento sobre indígenas isolados e de recente contato.
Segundo o jornal The Guardian, Phillips "está trabalhando num livro sobre o meio ambiente com apoio da Alicia Patterson Foundation".
O jornal acrescenta que Phillips mora em Salvador e faz reportagens sobre o Brasil há mais de 15 anos, colaborando com veículos como o ; próprio The Guardian, o Washington Post, o New York Times e o Financial Times.
Jonathan Watts, editor de meio ambiente do Guardian, escreveu no Twitter que Dom Phillips, é um "jornalista excelente" e "grande amigo". Ele cobrou autoridades brasileiras a agir para solucionar o caso.
O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) diz ter contatado a Frente Parlamentar Indígena, que também teria se comprometido a cooperar com as investigações.
O Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) diz ter contatado a Frente Parlamentar Indígena, que também teria se comprometido a cooperar com as investigações.
*Texto publicado originalmente no BBC News Brasil: Título editado
Itamaraty e SNI inocentam seis desaparecidos políticos
Segunda reportagem da série Nada Consta revela documentos que negam perante a ONU qualquer antecedente criminal de vítimas da ditadura
Eumano Silva / Metrópoles
Um conjunto de documentos elaborados em 1981 pelo governo brasileiro trata como inocentes quatro desaparecidos políticos da ditadura. Em resposta a um organismo das Nações Unidas, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) informa que nada consta contra Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, Joel Vasconcelos Santos, Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva. A cúpula militar avalizou o comunicado oficial do Itamaraty.
O mesmo despacho telegráfico do MRE registra a absolvição de outros dois opositores listados entre os 210 desaparecidos durante os 21 anos do governo fardado. Edgard Aquino Duarte e Ísis Dias de Oliveira foram julgados à revelia pela Justiça Militar e eximidos dos crimes de que eram acusados. Apenas um dos citados no despacho, Mário Alves de Souza Vieira – também eliminado pela repressão -, recebeu condenação por atos contra a ditadura.
Classificado como “confidencial”, “secreto” e “urgentíssimo” o documento do Itamaraty foi produzido em resposta a um questionamento do Grupo de Trabalho sobre Desaparecidos Forçados ou Involuntários, ligado à Comissão dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). O organismo internacional pediu informações sobre os sete militantes no dia 29 de maio de 1981.
No dia 16 de setembro do mesmo ano, a Secretaria de Estado do Ministério das Relações Exteriores (Sere) enviou o despacho com instruções sobre o assunto para a Delegação do Brasil junto aos organismos internacionais em Genebra (Delbrasgen), com sede em Genebra, na Suíça. Na ocasião, o chanceler era Saraiva Guerreiro, experiente diplomata de carreira.
“Não se constaram antecedentes criminais sobre os senhores Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, Ana Rosa Kucinski, Wilson Silva e Joel Vasconcelos Santos, não havendo portanto registros policiais ou judiciais a respeito”, diz o documento.
Durante o governo João Figueiredo, entre 1979 e 1985, a abertura política iniciada pelo presidente anterior, Ernesto Geisel, facilitou o fluxo de informações dentro e fora do país. As denúncias contra prisões, torturas e mortes de adversários do regime autoritário circulavam no exterior e mobilizavam brasileiros e estrangeiros desde os primeiros anos da ditadura.
As famílias procuravam os parentes sem saber se estavam vivos ou mortos. As pressões aumentavam à medida que ficava evidente que surgiam evidências de eliminação dos militantes. Nesse contexto, o grupo de trabalho fez as indagações respondidas pelo MRE (imagens abaixo).
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Para escrever a mensagem, o Itamaraty contou com a ajuda do Conselho de Segurança Nacional (CSN), do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Ministério da Justiça. Juntos, compunham o Grupo Informal de Estudos sobre os Direitos Humanos, instalado dentro do Itamaraty para tratar das demandas exteriores relacionadas aos abusos do governo.
A participação desses órgãos nas declarações favoráveis às vítimas reforça a credibilidade do conteúdo do despacho. Os três ramos da segurança acumulavam dados e prontuários relativos a todos os suspeitos de atuação contra o governo militar. Ligado à Presidência da República, o SNI coordenava as atividade de espionagem, informação e contrainformação da ditadura. O CSN assessorava o Palácio do Planalto em assuntos de segurança nacional.
Com data do dia 28 de setembro de 1981, um documento “confidencial” escrito pela Agência Central do SNI registra o envolvimento desses setores do governo na preparação da resposta ao organismo ligado à ONU. Identificado como Informação 020/23/AC/81, o relato reproduz o texto do Itamaraty que inocenta seis dos sete desaparecidos.
Trinta e oito anos depois dos fatos, o Arquivo Nacional preserva despachos, ofícios e relatos oficiais relativos aos questionamentos do grupo de trabalho criado pelas Nações Unidas. Uma das vítimas da ditadura citada nos documentos é Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira. No último dia 4 de agosto, o Metrópoles publicou uma reportagem sobre uma ficha do SNI que, embora chame o militante de “terrorista”, não aponta qualquer ação violenta de sua autoria. Esse material foi produzido depois que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou que Santa Cruz foi morto pelos próprios companheiros, declaração desmentida pelos registros do órgão de espionagem do governo militar.
Os documentos agora revelados acrescentam novos elementos sobre a inocência do desaparecido político, preso pelos agentes da repressão em fevereiro de 1974, e nunca mais visto pela família. Ele era pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Mostram os dados mantidos sobre ele e outros cinco militantes pela área de segurança do governo.
Sobre Edgar Aquino Duarte, o governo brasileiro forneceu as seguintes informações para o grupo de trabalho da ONU: “Julgado à revelia pela 1ª Circunscrição Militar por infração do artigo 144 (crime de revelação de informações, notícias ou documentos de interesse para a segurança interna do país), o senhor Duarte foi absolvido nesse julgamento, em 8 de fevereiro de 1966”.
O despacho do Itamaraty e o relato do SNI referem-se a Ísis Dias de Oliveira da seguinte forma: “Julgada à revelia em três oportunidades em 1973 pela 1ª Circunscrição Militar, tendo sido absolvida das acusações que lhe haviam sido formuladas com base no Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1968, em seus artigos 28 (atos de terrorismo), 42 (participação em organização de tipo militar com finalidade combativa) e 45 (propaganda subversiva)”.
Único condenado citado nos documentos, Mário Alves de Souza Vieira foi julgado por associação ilícita para atos para a segurança nacional, participação de partido ilegal, associação sob orientação ou com o auxílio de governo estrangeiro com exercício de atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional e divulgação de informações comprometedoras para o país. As sentenças foram extintas por prescrição ou pela Lei da Anistia, de 1979.
Dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), organização que atuava na luta armada contra o governo militar, Mário Alves Vieira tinha 47 anos quando desapareceu, no dia 17 de janeiro de 1970, depois de preso pelo Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), um dos braços do aparelho repressivo.
Fernando Santa Cruz e o casal Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva fazem parte da lista de doze desaparecidos que, segundo o ex-delegado Cláudio Guerra, foram mortos incinerados no forno de uma usina no interior do Rio de Janeiro. Santa Cruz tinha 26 anos e, os outros dois, 32 anos. Os três sumiram em 1974. (ver galeria abaixo com as fotos das seis vítimas inocentadas pelos documentos)
Santa Cruz atuava na organização clandestina Ação Popular (AP) e não atuou na luta armada. Kucinski e Silva pertenciam à Ação Libertadora Nacional (ALN), um dos grupos mais violentos no combate à ditadura. Porém, segundo os documentos, nada fizeram de comprovado que justificasse a condenação.
Militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Joel Vasconcelos Santos presidiu a União dos Estudantes Secundaristas (Ubes/RJ). Foi preso em uma esquina no Rio de Janeiro no dia 15 de março de 1971. Ele tinha 21 anos, estava com um amigo, Antônio Carlos de Oliveira da Silva, e carregava panfletos com propaganda contra o governo militar.
Silva sobreviveu a torturas e, cinco anos depois de solto, deu um depoimento (ver galeria acima) sobre o sofrimento dos dois nas dependências do aparelho repressivo. “O Joel, coitado, nunca conseguiu sair de lá”, afirmou o amigo do desaparecido. Nesta época, o PCdoB preparava a implantação da Guerrilha do Araguaia, no Pará. Embora o partido fosse favorável à luta armada, não praticava ações urbanas. O relato do amigo do estudante comunista foi arquivado pela Câmara dos Deputados.
Aos 31 anos, Isis Dias de Oliveira também integrava a ALN quando foi presa em janeiro de 1972. Desde então, está desaparecida.
Ex-militar da Marinha, Edgar Aquino Duarte teve longa atuação contra a ditadura desde o golpe de 1964. Esteve preso em diferentes órgãos da repressão e exilado no México e em Cuba. Foi visto pela última vez em junho de 1973 no Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS) de São Paulo. Não há registro de que fizesse parte de alguma organização clandestina.
Série sobre desaparecidos sem crimes
Esta é a segunda reportagem produzida pelo Metrópoles sobre desaparecidos políticos da ditadura sem condenações ou, mesmo, sem antecedentes criminais. A primeira, como dito acima, abordou o caso de Fernando Santa Cruz. Contra ele, pesavam acusações de participar de passeatas e comícios.
Amparada em registros oficiais do governo militar, a série Nada Consta tem o objetivo de mostrar que adversários políticos foram perseguidos, presos e nunca mais vistos pelas famílias, embora não fossem acusados de ações violentas. Muitas vezes tratadas como “terroristas”, essas vítimas desapareceram pela vontade dos órgãos da repressão.
No total, a polícia política do governo militar matou 434 adversários – dos quais, 210 permanecem desaparecidos. Os documentos integram o acervo da ditadura preservado no Fundo SNI do Arquivo Nacional.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/exclusivo-itamaraty-e-sni-inocentam-seis-desaparecidos-politicos
Ficha limpa no SNI, advogada do DF desapareceu na ditadura
Terceira reportagem da série "Nada Consta" resgata a história de Ieda Santos Delgado, ex-estudante da UnB que sumiu em 1974
Eumano Silva / Metrópoles
No dia 11 de abril de 1974, a advogada Ieda Santos Delgado saiu do Rio de Janeiro rumo a São Paulo para cumprir uma tarefa sigilosa. Tinha 28 anos e militava na clandestina Ação Libertadora Nacional (ALN), organização armada de oposição à ditadura. Também trabalhava no Departamento Nacional de Produção Mineral.
Ieda nunca mais foi vista pela família. Quarenta e cinco anos depois da viagem, ela ainda faz parte da lista de 210 desaparecidos durante o governo militar.
Documentos inéditos mostram que os órgãos de segurança não dispunham de qualquer informação contra a advogada. Pelos arquivos oficiais, ela se tornou uma desaparecida política sem ter cometido irregularidades de qualquer natureza.
Esta é a terceira reportagem da série “Nada Consta”, produzida pelo Metrópoles, sobre vítimas do regime militar que não cometeram crimes contra a ditadura, segundo os órgãos de segurança. Sem acusações, processos, nem julgamentos, tiveram as vidas interrompidas sob a responsabilidade do Estado brasileiro.
Publicado no dia 4 de agosto, a primeira reportagem abordou o caso de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. A segunda, do dia 19 de agosto, tratou dos desaparecimentos de seis opositores da ditadura: Edgard Aquino Duarte, Ísis Dias de Oliveira Joel Vasconcelos Santos, Ana Rosa Kucinski, Wilson Silva e, de novo, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira.
A série foi motivada por declarações fantasiosas feitas pelo presidente Jair Bolsonaro sobre o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, filho do desaparecido Fernando Augusto. O material jornalístico se baseia em registros militares sigilosos preservados pelo Arquivo Nacional. Os documentos fazem parte do acervo do Fundo SNI (Serviço Nacional de Informações), órgão criado pelos militares para coordenar a espionagem e a repressão política.
A situação de Ieda foi tratada em documentos do SNI, do Centro de Informações do Exército (CIE), do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) e do Ministério da Justiça. Um relatório do SNI intitulado “Extrato de prontuário dos subversivos apontados como vítimas de tortura” faz uma espécie de resumo das informações existentes sobre 53 opositores do governo fardado.
Elaborada como uma denúncia, a lista com mais de cinco dezenas de nomes foi feita por um grupo de presos políticos conhecedores do que se passava nos porões do regime autoritário. As acusações se basearam em fatos que presenciaram ou em informações que ouviram nas cadeias por onde passaram.
“Nada consta”, diz o relatório no campo “filiação subversiva” no extrato sobre a advogada, prova de que o SNI desconhecia sua militância política. “Não tem registros nos órgãos de segurança”, acrescenta o levantamento no item “atividades desenvolvidas”, mais um sinal da ausência de informações sobre Ieda.
Sem timbre oficial, a relação de antecedentes dos opositores foi elaborada pelo SNI em resposta a um ofício, protocolado pela Agência Central do órgão no dia 6 de dezembro de 1975. No pé da página, o despacho tem um carimbo do então coronel Newton Cruz, chefe de gabinete do órgão e personagem relevante na história do aparato repressivo.
Entre outros cargos, como general, chefiou a Agência Central do SNI e o Comando Militar do Planalto (CMP). Nesse posto, Cruz ficou nacionalmente conhecido pelas cenas que protagonizou, montado a cavalo, quando tentava dispersar manifestantes durante as Medidas de Emergência de 1984 – período em que o Congresso rejeitou a emenda constitucional que mobilizou os brasileiros na campanha das Diretas Já, em defesa da eleição para presidente da República.
No relatório com os extratos, consta um endereço de Brasília, na SQS 308, como lugar de moradia de Ieda. De fato, ela vivera nesse apartamento na capital federal, mas quando desapareceu tinha domicílio no Rio, onde trabalhava no DNPM. Nesse período, cursou direito na Universidade de Brasília (UnB), onde ingressou na primeira metade da década de 1960.
O material do SNI sobre os prontuários atendeu uma demanda do chefe da Casa Civil da Presidência da República, general Golbery do Couto e Silva, destinatário de um ofício da OAB. A entidade questionava o governo sobre as denúncias de torturas feitas por 33 presos políticos. Ieda se encontra entre as 53 vítimas de maus-tratos apontadas no ofício da OAB. O nome dela aparece no tópico 40 da lista.
A mesma denúncia dos presos levou o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) a fazer uma pesquisa sobre os dados existentes a respeito dos 53 nomes listados pela OAB. O Documento de Informações nº 0008, com data de 19 de janeiro de 1976, resume as referências encontradas sobre Ieda.
“O Cisa nada tem a acrescentar à nota do exmo. Sr. Ministro da Justiça Publicada nos jornais de 7 de fevereiro de 1975, segundo a qual ‘nenhum registro há sobre a mesma [Ieda]’”, consta no documento.
De fato, junto com outros três militantes, o nome da advogada do DNPM consta em um relatório do Ministério da Justiça sobre desaparecidos políticos. “Nenhum registro foi encontrado sobre José Roman, Ana Rosa Kucinski [esposa de Wilson Silva], Ieda Rosa Delgado e Fernando Antonio da Silva Meirelles Neto”, afirma o texto. Por um erro do datilógrafo, o segundo nome da advogada, Santos, foi trocado por “Rosa”.
No dia 2 de outubro de 1978, o Centro de Informações do Exército (CIE) organizou as respostas para uma reportagem do Jornal do Brasil sobre 49 vítimas da ditadura. Um documento classificado como Informação nº 1224/S-102-A12-CIE apresenta fichas sobre cada um dos citados.
O anexo 9 contém os dados disponíveis sobre Ieda, compilados no Prontuário nº 094. No histórico da advogada, todas as referências têm datas posteriores ao desaparecimento, mais uma evidência da falta de ocorrências identificadas pela repressão.
Em pouco mais de uma página, o anexo resgata citações retiradas da imprensa e dos arquivos militares, todas relacionadas à repercussão do sumiço da militante da ALN. “Não registra antecedentes nos órgãos de segurança”, diz o documento em um tópico sobre as informações em poder do SNI.
A inexistência de maus antecedentes de Ieda também foi oficializada pela Agência Central do SNI no dia 23 de abril de 1981. O documento confidencial Informação nº 050/16/AC/81 revela ausência de elementos que envolvam a advogada com atividades políticas ou policias.
“Esta AC/SNI, anteriormente, em pesquisa nacional, levantou que a nominada [Ieda] não possui registros nas AR/SNI e nos Centros de Informações. Ela consta na relação de elementos desaparecidos”, diz o documento.
Elaborado sete anos depois do sumiço da militante, o texto do SNI tem características que reforçam a veracidade do conteúdo. A terminologia “Informação” se aplica a comunicados resultantes de dados processados a partir dos relatos disponíveis nos órgãos de segurança. Tem o objetivo de proporcionar às autoridades dados básicos necessários à tomada de decisões.
O SNI produziu o documento em resposta a uma carta escrita pela mãe de Ieda, Eunice Santos Delgado, a uma pessoa do governo tratada por “Sra. D. Dulce”. A mensagem pede ajuda para encontrar a “querida filha”. “Recorro a sua bondade como mãe que desde essa época se empenha na busca infrutífera, pois em todas as portas onde bato não obtenho resposta para seu paradeiro”, diz a carta de Eunice.
Os despachos do SNI indicam que o assunto despertou o interesse do então presidente da República, general João Figueiredo (1979-1985), conforme registrado no item 1 do Memorando nº 0422/02/CH/GAB/SNI: “Fins atender o Exmo. Sr. Pr, Verificar” e em uma “papeleta” do gabinete do ministro chefe do SNI. Na ocasião, o cargo era ocupado pelo general Octávio Aguiar de Medeiros.
A tramitação do caso nos altos escalões demonstra o grau de importância dado ao assunto pela burocracia do governo militar. O Metrópoles não confirmou a identidade da pessoa chamada da “D. Dulce”. Embora esse fosse o nome mulher de Figueiredo, não se pode afirmar com certeza de que se tratasse da primeira-dama do país.
Porém, como partiu do presidente a ordem para que o SNI verificasse as fichas de Ieda, essa hipótese deve ser considerada. De qualquer forma, foi um apelo de uma mãe desesperada para outra, com acesso ao poder.
Família mobilizou autoridades em busca de Ieda
Na Semana Santa de 1974, Ieda avisou a família que viajaria para São Paulo. Pretendia pegar um ônibus, mas acordou tarde e decidiu ir de avião. Não contou o que faria na capital paulista.
Uma semana antes, Ieda estivera em Brasília, recorda a irmã Eunice Scliar, a Nicinha. Aguardava uma transferência do emprego no DNPM para a capital federal, onde pretendia morar de novo. No Rio de Janeiro e no Distrito Federal, fazia cursos na área do direito e mantinha estreita ligação com as universidades.
Alguns familiares sabiam que a advogada apoiava a Ação Libertadora Nacional, o maior e mais atuante grupo de guerrilha urbana contra o regime militar. Seus integrantes assaltavam bancos, sequestravam diplomatas e executavam traidores. Fundada em 1967 pelo líder guerrilheiro Carlos Marighella, a ALN encontrava-se esfacelada no primeiro semestre de 1974. Os sobreviventes estavam presos, mortos ou no exílio.
Marighella foi morto em São Paulo em 4 de novembro de 1969. Nos cinco anos seguintes, sucessivos dirigentes tombaram em confrontos ou foram sacrificados na tortura.
A repressão matou dez guerrilheiros da ALN em 1973. Neste ano, no dia 30 de novembro, caíram, Antonio Carlos Bicalho Lana e Sônia Maria Moraes Angel Jones. Em 1974, depois de Ieda, os agentes de segurança eliminaram Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva no dia 22 de abril, como citado na segunda reportagem da série.
No dia 7 de maio do mesmo ano, a ditadura ainda desapareceu com Thomaz Meirelles. Um ano depois, em 14 de maio, outro integrante da ALN, Issami Okamo, sumiu nos porões do regime militar.
Assim, no primeiro semestre de 1974, não existia mais luta armada no Brasil. Segundo o site Terrorismo Nunca Mais (Ternuma), administrado por militares da reserva ligados à ditadura, a última ação armada contra o governo militar foi um atentado no Rio de Janeiro, no dia 1º de outubro de 1973.
“A bomba colocada na agência da Lan-Chile foi considerada a última manifestação de violência praticada pelas organizações subversivas e valiza o fim da tentativa armada comunista para a tomada do poder no Brasil”, diz um texto do Ternuma dedicado à ALN.
Os poucos sobreviventes soltos viviam acuados pela repressão. Segundo relatos de familiares e de ex-integrantes da ALN, Ieda viajou para São Paulo com o objetivo cumprir uma tarefa recebida dos dirigentes do grupo guerrilheiro no Rio.
Pelo que se soube depois do desaparecimento, a viagem se destinava a buscar roupas e passaporte para um casal que pretendia fugir do Brasil. Por não ser conhecida dos órgãos de segurança, imaginava-se, teria mais facilidade para driblar os agentes da repressão.
Betty Chachamovitz e Flávio Augusto Neves Leão de Salles – o casal – viviam escondidos em uma casa no Rio. Ela estava grávida.
No mesmo feriado, os familiares de Ieda viajaram para o Espírito Santo. Quatro dias depois, de volta ao Rio de Janeiro, receberam uma ligação anônima com a informação de que a advogada fora presa em São Paulo.
Eunice iniciou imediatamente uma busca incessante pela filha. Contratou advogados renomados, procurou amigos influentes entre os militares, escreveu cartas para a Presidência da República. Engajou-se também nos movimentos de parentes de vítimas da ditadura. Tudo em vão.
De concreto, a mãe descobriu no aeroporto que Ieda comprara a passagem e embarcara para São Paulo. O cheque usado no pagamento foi compensado pelo banco.
A procura por Ieda levou a mãe a informações sobre a filha com os sobreviventes da ALN. Eunice soube, então, que ela tinha ligações com o casal.
Flávio Salles e Betty Chachamovitz conseguiram fugir ainda em 1974. Depois da anistia, em 1979, retornaram para o Brasil. A irmã Nicinha disse ao Metrópoles que o casal conversou com a família, mas não quis a presença da mãe.
As irmãs aceitaram o encontro. A reunião, porém, nada esclareceu sobre os últimos passos da advogada. Flávio Salles e Betty Chachamovitz disseram não se recordar dos fatos abordados pela família.
O Metrópoles não conseguiu os contatos dos dois. Esta reportagem permanecerá aberta para comentários que porventura queiram fazer depois da publicação.
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Duas ex-militantes da ALN conversaram com o site sobre a convivência que tiveram com Ieda. Maria do Amparo Araújo participou de reuniões de formação política com a advogada no Rio de Janeiro em 1973 e 1974. Orientadas por superiores na hierarquia da organização, no processo de formação política, elas estudavam trechos de livros mais tarde discutidos com os dirigentes.
O primeiro a cumprir esse papel foi Merival Araújo, no primeiro semestre de 1973. Morreu em maio deste ano. No lugar dele, quem passou a orientar as leituras e as discussões foi Flávio Salles.
“Por razões de clandestinidade, não conversávamos sobre nada pessoal, mas meu sentimento sobre ela era de que era uma pessoa muito sozinha, muito calada, eu achava que ela era novata na ALN”, afirma Amparo.
Com Flávio, foram dois ou três encontros de Amparo e Ieda. O último foi debaixo de uma árvore no Recreio dos Bandeirantes. Uma viatura da polícia parou perto e olho para o grupo. Continuaram a leitura como se estivesse tudo normal, mas os militantes da ALN tinham armas escondidas sob as pernas.
“Não sei se a Ieda tinha uma arma ou se o Flávio levou para ela, mas nesse dia ela tinha um revólver”, diz Amparo.
Todos os dirigentes da ALN andavam armados. O mesmo ocorria com os militantes que participavam de ações violentas, os clandestinos ou os que eram conhecidos da repressão. Esse, porém, não era o perfil de Ieda. Ela ajudava a ALN com dinheiro para ajudar a manter os integrantes perseguidos, guardava e transportava documentos.
Ieda sumiu logo depois do encontro no Recreio dos Bandeirantes. Na ocasião, Amparo morava com o companheiro, Thomaz Antônio Meirelles, dirigente do grupo guerrilheiro.
Quando soube do desaparecimento da advogada, ele pediu que Amparo vigiasse por alguns dias, de longe, a casa onde moravam Salles e Betty. A tarefa foi cumprida por alguns dias, mas nenhuma anormalidade ocorreu.
Desse episódio, Amparo deduziu que Ieda conhecia a residência onde vivia o casal guerrilheiro. Meirelles queria, então, saber se, presa, ela fornecera o endereço aos órgãos de segurança. Como nada aconteceu na casa, concluíram que a advogada nada revelou à polícia.
Meirelles e Amparo guardavam no apartamento cerca de uma dezena de armas, como revólveres, pistolas e uma metralhadora. Um dia, ele saiu para encontrar Flávio e Betty e nunca mais voltou. Depois disso, Amparo passou a dormir cercada pelas armas, engatilhadas.
Em entrevista para o jornalista Luiz Maklouf Carvalho, Flávio disse que Meirelles não apareceu no encontro que tinham marcado para o Leblon. A informação foi publicada no livro Mulheres que foram à luta armada, publicado em 1998 pela Editora Globo.
Sem registros de participação em ações armadas
Por ter emprego público, a advogada levava uma vida legal. Não usava documentos falsos nem tinha vida clandestina. Por tudo o que se divulgou desde o desaparecimento e, também, pelos documentos preservados pelos arquivos oficiais, não há pistas de que ela tenha participado de ações violentas.
O nome de Ieda também não aparece nas relações de assaltos a bancos ou sequestros elaboradas por sites como o Ternuma para acusar os opositores da ditadura. A ausência antecedentes registrados nos papéis militares autorizam a conclusão de que se tratava de uma cidadã de ficha limpa, para se usar uma expressão atual. A foto usada em destaque nesta reportagem faz parte do álbum de família. A repressão também não tinha imagens da militante desaparecida.
Para se ter uma ideia da pouca importância da advogada para os órgãos de segurança, vale observar que o “Extrato de prontuário dos subversivos apontados como vítimas de tortura” citado no início desta reportagem, listou os antecedentes conhecidos dos 53 opositores citados na lista. O primeiro, Eduardo Collen Leite, conhecido por Bacuri, morto sob tortura em 1970, apresentado como autor de uma série de ações violentas.
Mesmo sem cometer atos de guerrilha, o ex-líder estudantil de Brasília, Honestino Guimarães, também desparecido político, tem uma longa ficha corrida no documento do SNI. Menos atuante, mas também sem cometer atos violentos, Fernando Santa Cruz é tratado como “terrorista” e “subversivo”. Veja na galeria abaixo.
O Metrópoles também conversou com outra ex-integrante da ALN, Sonia Hypolito. Ela conheceu e militou com Ieda no movimento estudantil de Brasília, no final dos anos 1960. “Éramos muito amigas e militamos juntas contra a ditadura. Fizemos passeata na W3 e sentimos gás lacrimogêneo”, conta Sonia.
Presa no congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) de Ibiúna, em 1968, ela retornou depois de solta para Brasília, onde aproximou-se de amigos que militavam na ALN. Mudou-se, então, para São Paulo.
Voltou para a cadeia por mais sete meses, saiu de novo e morou clandestina no Rio de Janeiro. Em 1973, exilou-se no Chile. “Desde que saí de Brasília, perdi contato com Ieda. Minha memória não anda boa, mas não me lembro de tê-la visto mais. Eu só soube que ela tinha entrado na ALN quando eu já estava exilada na Europa. Na clandestinidade, era normal não saber que os outros militavam”, afirma a ex-guerrilheira da ALN.
Sonia se emocionou e chorou no áudio enviado ao Metrópoles na entrevista. “A lembrança que eu tenho dela é de uma pessoa maravilhosa, séria, estudiosa”, recordou.
Também ex-militante do movimento estudantil em Brasília, a professora aposentada Betty Almeida dedica-se a pesquisar fatos relacionados à ditadura. Ela conviveu com Ieda na capital federal e, depois, também mudou-se para o Rio de Janeiro, onde frequentava a casa da advogada hoje desaparecida.
Betty Almeida ajudou o Metrópoles na pesquisa para esta reportagem. Vasculhou os documentos do Arquivo Nacional e buscou contatos que tivessem informações sobre a época. Autora do livro Paixão de Honestino, sobre o líder estudantil Honestino Guimarães, também desaparecido político da ditadura, ela obteve também a foto abaixo, tirada durante um churrasco em uma chácara em Brasília. Ieda é a única de pé, à direita. O último à esquerda é Álvaro Lins, também militante contra a ditadura, que passou a imagem para a pesquisadora.
“Àquela altura, qualquer um da organização provavelmente morreria se fosse preso. Quem a mandou a São Paulo sabia disso mas expôs Ieda assim mesmo”, opina a pesquisadora. “Ela deve ter caído em um ponto de chegada em São Paulo. A repressão deve ter achado que ela sabia muito e infelizmente isso deve ter aumentado o sofrimento dela”, acrescentou Betty Almeida.
O depoimento do ex-delegado Cláudio Guerra em 2014 para a Comissão Nacional da Verdade (CNV) leva a crer que a pesquisadora tem razão. Autor de revelações importantes sobre a morte e o desaparecimento de adversários da ditadura, Guerra contou que Ieda foi morta em São Paulo por Sergio Paranhos Fleury, comandante do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social).
Guerra afirmou ter recebido a informação do próprio Fleury, um dos mais sanguinários agentes da repressão. Eunice morreu em 1992 sem ter notícias da filha.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/exclusivo-ficha-limpa-no-sni-advogada-do-df-desapareceu-na-ditadura
Pioneiro e comunista, Geraldo Campos enfrentou a ditadura
Mesmo sem aderir à luta armada, sindicalista defensor dos servidores de Brasília foi condenado junto com grupo próximo a Carlos Marighella
Eumano Silva / Metrópoles
O ex-deputado constituinte Geraldo Campos construiu, nas últimas décadas, a imagem de cidadão pacato e político moderado. Fundador do PSDB, teve longa trajetória ligada ao sindicalismo dos servidores públicos do Distrito Federal. Na segunda-feira (17/12), aos 93 anos, ele morreu depois de uma parada cardiorrespiratória.
Nascido em Aracaju (SE), Campos chegou a Brasília em novembro de 1958. Pioneiro, ele se destacou como abnegado integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, nessa condição, foi perseguido pelos órgãos de repressão da ditadura implantada pelo golpe de 1964.
Documentos guardados pelo Arquivo Nacional, aos quais o Metrópoles teve acesso, mostram que, no auge dos Anos de Chumbo, Campos foi preso e processado por sua atuação política. Em um Inquérito Policial Militar (IPM) de 1969, acabou indiciado como integrante do grupo do líder guerrilheiro Carlos Marighella, morto pela repressão nesse mesmo ano.
Uma das referências a esta aparente ligação de Campos está registrada em um relatório do Serviço Nacional de Informações (SNI) classificado como Encaminhamento nº 542/SNI/ABSB, com data de 22 de agosto de 1969. Nesse documento, Campos é listado entre os 34 “elementos” investigados pelo IPM instaurado para “apurar atividades subversivas do Grupo Marighella”.
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Embora Campos e o líder guerrilheiro tenham militado no PCB, a suspeita do SNI não procedia. Marighella abriu uma dissidência no partido na segunda metade da década de 1960, mas o pioneiro de Brasília não o acompanhou na opção pela luta armada. “Os IPMs eram meio fictícios, baseados em acusações falsas. Meu pai não teve contato com Marighella”, diz Vivian, filha de Geraldo Campos.
Outros integrantes do partido seguiram o caminho do radicalismo e chegaram a praticar tiro em fazendas próximas à capital. Campos permaneceu no PCB, que adotou a linha pacífica como tática para enfrentar a ditadura. Depois da dissidência, o Grupo Marighella ganhou o nome Ação Libertadora Nacional (ALN) e se transformou em uma das mais atuantes organizações armadas contrárias ao governo militar.
Mesmo sem aderir à guerrilha, Campos foi condenado no dia 24 de março de 1971 a dois anos de reclusão pelo Conselho de Justiça 11ª Circunscrição Judiciárias Militar (CJM), enquadrado na Lei de Segurança Nacional (LSN). Contra ele, pesou a acusação de tentar, junto com outras pessoas, reorganizar o PCB no Distrito Federal em 1967 sob a orientação de Carlos Marighella e de Joaquim Câmara Ferreira, outro dirigente comunista. A condenação do pioneiro ficou registrada no relatório Informação nº 378/ABSB/SNI/1971, da Agência Brasília do SNI (confira cópia abaixo).
A militância comunista de Campos, na verdade, era anterior à mudança para o Planalto Central. Ex-integrante da Marinha, ele participou da Segunda Guerra Mundial na costa brasileira e de operações contra submarinos alemães. Em decorrência da atuação política, foi expulso da corporação. Os arquivos da repressão preservam uma foto na qual ele aparece vestido com roupa de marinheiro. Na identificação, por um erro do arquivista, o nome dele recebeu um sobrenome que na verdade não tinha, “Rodrigues”.
A punição pela Marinha aproximou Campos ainda mais do Partido Comunista. “Nesse período, levado pela direção do partido, ele entrou para a clandestinidade. Sempre foi muito disciplinado”, afirma Flávio Coutinho de Carvalho, genro do ex-constituinte.
Sempre ao lado dos servidores
Também antes de fixar residência em Brasília, em meados da década de 1950, levado pelo PCB, Campos morou e estudou na União Soviética, principal polo do comunismo internacional. Em Moscou, conheceu Maria de Lourdes Almeida, também militante do partido, com quem se casou depois de voltar ao Brasil. Logo depois, eles tiveram a filha, Vivian, mulher de Flávio.
De volta ao Brasil, Geraldo Campos deixou a clandestinidade e se mudou para Brasília. Na capital, ganhou projeção depois que, em 1960, foi eleito presidente da Associação dos Servidores da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap). Com o golpe de 1964, foi cassado do cargo e demitido do emprego.
Desse tempo, contam os parentes, ele setia orgulho por ter conseguido, como líder da categoria, que o governo contratasse os antigos trabalhadores das obras da cidade. Assim, evitou que os candangos tivessem de deixar Brasília depois da inauguração.
Mesmo depois de cumprir pena, o aparato repressivo continuou a perseguição contra Campos. O acervo do Arquivo Nacional guarda uma foto tirada pelos espiões da ditadura em 1978, quando o país tomava o caminho da redemocratização. No dia 27 de abril daquele ano, Campos foi flagrado pelas lentes da repressão quando deixava uma loja de material de construção em Taguatinga. De pé, ao lado de uma pilha de tijolos, ele aparece de frente para a câmera (foto em destaque). “É ele mesmo. Ele trabalhou alguns anos na Tapuia Indústria e Comércio, de seu cunhado Ary Demóstenes”, diz a filha.
O nome do militante também consta em um relatório confidencial sobre a visita a Brasília, no dia 9 de novembro de 1979, do líder comunista Luiz Carlos Prestes. Nessa data, o então secretário-geral do PCB chegou à cidade, acompanhado pela esposa, Maria Ribeiro.
Produzido pela Divisão de Informações da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, o Informe nº 175/79/DI/CIPO/SEP (abaixo) detalha, com fotos, o giro de Prestes pela capital. Campos foi citado como dono do carro usado para transportar o dirigente comunista, na companhia de uma jornalista não identificada, em um passeio turístico por Brasília.
Com o fim da ditadura, o veterano comunista filiou-se ao então PMDB, partido que acolheu parcela considerável dos militantes do PCB. Eleito em 1986 para a Assembleia Nacional Constituinte, ele acompanhou a ala do partido que criou o PSDB dois anos depois. Na Câmara, notabilizou-se pela defesa dos direitos dos servidores e relatou a Lei 8.112, que institui o Regime Jurídico Único do Servidor Público, na Comissão de Justiça, Finanças e Trabalho
Entre 2005 e 2007, Campos presidiu o PSDB do Distrito Federal e, desde então, diminuiu a participação política. Com sua morte, Brasília perdeu o maior símbolo do sindicalismo estatal na história da capital. O jeito pacato disfarçava a atuação persistente e determinada do ex-marinheiro Geraldo Campos.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/distrito-federal/politica-df/obituario-pioneiro-e-comunista-geraldo-campos-enfrentou-a-ditadura
Documentos inéditos - Com AI-5, bastava ser comunista para morrer
Quarta reportagem da série Nada Consta mostra que o governo eliminou militantes e dirigentes do PCB, apesar da conhecida atuação pacífica
Eumano Silva / Metrópoles
Enquanto existiu, o Ato Institucional nº 5 (AI-5) permitiu a agentes do governo matar brasileiros por causa de crimes políticos. Mesmo quando se posicionavam contra a luta armada, adversários da ditadura perderam a vida pelo fato de militarem em organização comunista.
Nesta quarta reportagem da série Nada Consta, o Metrópoles apresenta casos de vítimas sem vinculação com assaltos a bancos, sequestros, guerrilhas ou qualquer tipo de violência. Nada os aproximava do perfil de “terroristas” propagado pelos militares para justificar a eliminação de opositores.
Dos 434 mortos sob responsabilidade da ditadura, 38 integravam o PCB, tratado como “Partidão” por militantes e simpatizantes. A reportagem destaca a trajetória de seis dessas vítimas da repressão.
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João Massena Melo, José Roman, David Capistrano da Costa, Elson Costa, José Montenegro de Lima e Vladimir Herzog morreram por pertencer ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foram eliminados entre abril de 1974 e outubro de 1975. Nessa época, a esquerda armada encontrava-se desmantelada.
Os órgãos de segurança do governo militar tinham conhecimento do caminho da não violência adotado pelo PCB. Um relatório produzido pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar), com data do dia 17 de outubro de 1969, registra a estratégia do partido.https://0468000b396cae4a441cf3cd6ea312a7.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
“Ao contrário das demais organizações clandestinas, o Comitê Central do PCB conclui que a revolução brasileira deve ser processada de forma pacífica, adotando-se um processo político que vise conscientizar as massas contra a opressão que lhes é imposta pelos agentes do imperialismo”, diz trecho do documento.
Desde dezembro de 1967, reunido no VI Congresso, o partido decidira pelo enfrentamento sem violência ao regime fardado. Uma série de dissidências esvaziou o PCB das correntes adeptas da luta armada.
Com raízes na década de 1920, o partido resistia clandestino desde 1947. Mortes, prisões e defecções comprimiam o raio de ação dos integrantes da organização a partir do golpe de 1964.
As últimas dissidências deram origem a organizações radicais, como o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e a Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella. Antes, em 1962, as divergências em torno de mudanças políticas na União Soviética provocaram a divisão que deu origem ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), também engajado na luta armada.
Por causa da repressão, parte da cúpula do Partidão se transferiu para o exterior. O principal líder da organização, Luiz Carlos Prestes, e outros dirigentes viviam na União Soviética. A sucessão de quedas reforçava a suspeita de que havia infiltrados dos serviços secretos da ditadura na direção do PCB.
Documentos militares inéditos obtidos pelo Metrópoles no Arquivo Nacional mostram o histórico dos comunistas do “Partidão”. Os registros foram produzidos pelos serviços secretos do governo fardado e têm timbres e carimbos do Cenimar, do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Centro de Informações do Exército (CIE).
Os 10 anos que o Brasil viveu sob as regras do AI-5 mergulharam o país no período mais sangrento do regime militar. Extinto em 1979, o Ato Institucional nº 5 voltou a ser tema de debate depois de citado por integrantes do governo, como o ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo deputado Eduardo Bolsonaro (SP), filho do presidente Jair Bolsonaro. Essas circunstâncias reforçam a importância deste quarto trabalho da série Nada Consta, produzida com o intuito de mostrar como a ditadura fez vítimas sem registros de atuação em ações armadas.
A primeira reportagem contou a história de Fernando Santa Cruz de Oliveira, pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. A segunda revelou que seis opositores assassinados pela ditadura eram inocentes, conforme mostram documentos do SNI e do Itamaraty. Na terceira reportagem, o Metrópoles reconstituiu a história de Ieda Santos Delgado, advogada formada na Universidade de Brasília e desconhecida dos órgãos da repressão antes de ser morta.
Veja, a seguir, os seis casos de militantes do PCB eliminados pelos organismos de repressão. Foram escolhidos em função das informações disponíveis no Fundo SNI do Arquivo Nacional.
1 – João Massena Melo
Elaborado pelo SNI, o relatório “Extrato de prontuário dos subversivos apontados como vítimas de tortura” apresenta um resumo das informações existentes sobre 53 opositores do governo fardado. Desaparecido em abril de 1974, quando tinha 55 anos, o pernambucano João Massena Melo é um dos nomes da lista.
O documento mostra a trajetória de um militante ligado ao partido comunista desde 1945. Não há qualquer referência a ações violentas. Eleito deputado estadual em 1962, Massena teve o mandato cassado depois do golpe militar. Por causa da atuação política, em 1966, foi condenado a 5 anos de reclusão. Entrou para o Comitê Central do PCB em 1967.
Em 1970, esteve preso em decorrência de um inquérito policial militar (IPM) instaurado pela Marinha. Era um dos poucos detentos que não optaram pela luta armada.
“Conheci Massena na cadeia na Ilha das Flores. Ele e o Elson Costa quase morreram na tortura”, afirma Carlos Alberto Muller Torres, ex-dirigente do “Partidão”. “Como ele era experiente e demonstrava liderança, uma semana depois de chegar foi escolhido representante do coletivo junto à direção do presídio”, lembrou Muller em entrevista ao Metrópoles.
Pesava contra Massena as acusações de contribuir financeiramente com o PCB, distribuir uma revista comunista no meio sindical e usar documentos falsos para ir à União Soviética.
Em 1971, foi absolvido pelo Superior Tribunal Militar (STM) por uma condenação. Segundo o relatório do SNI, o dirigente comunista era “subversivo”. Em 1974, depois de solto, continuava no partido e engajara-se no movimento sindical.
“Acha-se, provavelmente, atuando na clandestinidade”, diz o relatório do SNI. O documento acrescenta que Massena era considerado desaparecido pela Anistia Internacional e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
De fato, o dirigente comunista foi morto pelo aparato repressivo. Desapareceu no dia 3 de abril de 1974 durante uma viagem a São Paulo.
Ex-integrantes do aparato repressivo, o delegado Cláudio Guerra e o ex-sargento Marival Chaves afirmaram em depoimentos que Massena foi morto em um centro de tortura da ditadura.
2 – José Roman
Filhos de espanhóis, José Roman nasceu em São Paulo no ano de 1926 e era desconhecido pelos órgãos de segurança antes de ser morto em setembro de 1974. Entrou para o partido comunista na década de 1950.
A falta de referências a Roman foi explicitada na Informação nº 1152/S-102-A12-CIE, produzida pelo Centro de Informações do Exército (CIE) com data de 13 de setembro de 1978.
“Sem dados de qualificação. Os registros existentes são posteriores, e em função do seu suposto desaparecimento. Destino atual: ignorado”, registra o documento.
Outro relatório, feito pelo Ministério da Justiça, atesta a falta de informações sobre o militante do PCB, conforme publicado na terceira reportagem da série Nada Consta.
“Nenhum registro foi encontrado sobre José Roman, Ana Rosa Kucinski, Ieda Rosa Delgado e Fernando Antonio da Silva Meirelles Neto”, diz o texto.
Roman desapareceu junto com David Capistrano da Costa, dirigente do PCB que voltava ao Brasil depois de uma temporada no Leste da Europa.
Assim como no caso de João Massena, o ex-delegado Cláudio Guerra e o ex-sargento Marival Chaves confirmaram que David Capistrano e José Roman foram presos pelo CIE quando viajavam de Uruguaiana (RS) para São Paulo. Ambos teriam sido mortos e incinerados no forno de uma usina no interior do Rio de Janeiro.
3 – David Capistrano da Costa
Dos seis nomes abordados nesta reportagem, David Capistrano Costa é o único com reconhecida atuação em movimentos armados. A militância política começou ainda na década de 1930.
Capistrano entrou para o partido e participou da tentativa de tomada do poder de 1935, conhecida como Intentona Comunista. Pela atuação no golpe frustrado, foi preso e condenado, mas fugiu em 1936 do presídio da Ilha Grande.
Nos anos seguintes, saiu do Brasil e engajou-se nas Brigadas Internacionais que lutaram na Guerra Civil Espanhola. Depois, mudou-se para a França e integrou a resistência contra a invasão nazista na Segunda Guerra Mundial.
Preso pelos alemães, esteve em um campo de concentração, mas escapou por não ser judeu. Retornou ao Brasil em 1942 e, três anos depois, foi preso e anistiado. Solto, retomou a militância no PCB, desta vez em Pernambuco.
Os documentos da ditadura contam parte da história de Capistrano. O mesmo relatório de 1978 do CIE, que trata de José Roman, tem um anexo com uma ficha de Capistrano. Cita o envolvimento na “revolução” de 1935, mas não faz referência às participações nas guerras na Espanha e na França.
Arte/Metrópoles
O CIE também anotou desempenho de Capistrano em Pernambuco, onde o militante comunista integrou a direção do partido e se elegeu deputado estadual em 1947, mas teve o mandato cassado com o cancelamento do registro do PCB.
Na ficha de Capistrano, também constam dados sobre condenações pela atuação política, uma delas a 19 anos de prisão. Não existe qualquer referência sobre sua participação na luta armada contra a ditadura militar. No final, o documento diz desconhecer o paradeiro do dirigente comunista.
“Situação atual. Foragido. Consta estar no exterior em Praga ou Paris.”
Depois do desaparecimento, companheiros de partido e familiares reconstituíram alguns dos últimos passos de Capistrano. Na volta ao Brasil, depois de alguns anos na Europa, o dirigente comunista atravessou a fronteira na altura de Uruguaiana (RS). Trazia volumosa bagagem de livros e documentos do partido.
Os riscos de cair nas mãos da repressão fizeram Capistrano esperar cerca de 10 dias na fronteira. O PCB, então, enviou Roman em um fusca para buscá-lo. A operação fracassou e os dois tombaram nas mãos da repressão.
Segundo o ex-delegado Cláudio Guerra, Capistrano também foi incinerado em uma usina no interior do Rio de Janeiro depois de assassinado pelos agentes do governo militar.
“Meu pai confiava muito na segurança proporcionada pelo PCB e, também, na própria experiência nas guerras”, afirmou ao Metrópoles Cristina Capistrano, filha do comunista.
Um relatório interno do partido, elaborado na década de 1970 pelo dirigente Hércules Corrêa, aponta falhas nessa rede de segurança. O documento conclui que houve negligência por parte dos envolvidos, a começar pelo fato de que Capistrano demorou muito tempo na fronteira, o que pode ter facilitado a captura pela repressão.
O trabalho organizado por Corrêa chama a atenção para os espiões infiltrados até na cúpula do Partidão. Por esse roteiro, pode-se concluir que o dirigente era acompanhado por agentes do governo antes mesmo de chegar ao Brasil.
4 – Elson Costa
Responsável pela área de agitação e propaganda do PCB, Elson Costa tinha 61 anos quando desapareceu em março de 1975 nas mãos da repressão militar. Nascido em Prata (MG), teve longa trajetória no “Partidão”. Em 1970, foi condenado pela Justiça Militar e cumpriu pena em Curitiba.
O documento Informação nº 025/16/75/ARJ/SNI, com data de 29 de abril de 1975, lista algumas atividades políticas de Costa. Em 1964, teve os direitos políticos cassados por 10 anos.
Elson costa foi preso em 1970, depois de condenado por crimes contra a Lei de Segurança Nacional (LSN). Também teve citação como participante do V e do VI congressos do PCB.
Na ficha do militante comunista, também consta a atuação na Seção de Agitação e Propaganda do partido.
Em entrevista concedida em 1992 ao jornalista Expedito Filho, da revista Veja, o ex-sargento Marival Chaves contou como foi o fim do homem que cuidava da agitação e propaganda do PCB. “Foi interrogado durante 20 dias e submetido a todo tipo de tortura e barbaridade. Seu corpo foi queimado. Banharam-no com álcool e tocaram fogo. Depois, Elson ainda recebeu a injeção para matar cavalo.”
5 – José Montenegro de Lima
Integrante do Comitê Central do PCB, José Montenegro de Lima era responsável pelo setor de juventude, com larga atuação junto ao movimento estudantil nas décadas de 1960 e 1970. Trabalhava, principalmente, nos bastidores e no recrutamento de novos militantes.
O documento Informação nº 1152/S-102-A12-CIE, com data de 13 de setembro de 1978, tem uma ficha do dirigente comunista. Nesse registro, Lima aparece como indiciado em um IPM da Faculdade Nacional do Rio de Janeiro em 1964/65.
Em 1968 e 1969, segundo a ficha, o dirigente participou do movimento estudantil em São Paulo. Na primeira metade da década de 1970, era encarregado da Comissão Nacional Juvenil do PCB.
Por fim, o documento tenta disfarçar a queda de Lima: “Seu destino atual é ignorado”.
De acordo com o ex-sargento Marival Chaves, Montenegro também foi morto pelos agente da repressão e jogado em um rio perto da cidade de Avaré (SP).
6 – Vladimir Herzog
Jornalista de destaque na imprensa paulista, Vladimir Herzog morreu no dia 25 de outubro de 1975, nas dependências do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi) em decorrência de torturas.
Herzog se apresentara voluntariamente para depor junto com um grupo de comunistas. Não resistiu aos interrogatórios.
Preso na mesma época, o jornalista Paulo Markun escreveu um livro sobre Herzog, com quem trabalhava na TV Cultura. A obra “Meu querido Vlado” descreve a trajetória do amigo, observado pela repressão desde logo depois do golpe militar.
Judeu, nascido na antiga Iugoslávia, Herzog mudou-se com a família para o Brasil ainda criança, depois de expulsos de sua cidade pelos nazistas. Viveu em um campo de refugiados na Itália antes de atravessar o Atlântico.
Antes de ser morto pela ditadura, o jornalista voltou a viver na Europa com a família. Retornou ao Brasil logo depois da edição do AI-5, baixado no dia 13 de dezembro de 1969.
Nos documentos dos militares, o nome de Herzog se torna constante depois de sua morte. A repercussão negativa do episódio levou à queda do general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, com sede em São Paulo. A falsa versão de suicídio não se sustentou diante das evidências apontadas pelos outros presos, também torturados.
Um documento da agência do SNI do Rio de Janeiro, com data de 24 de junho de 1974, registra alguns dados sobre Herzog, na época editor em São Paulo da revista Visão.
A ficha diz que Herzog é “prontuariado” (ou seja, tem um prontuário) no SNI, mas “sem dados de qualificação”. A única atividade do jornalista citada no documento é a assinatura de um manifesto pela libertação, em 1965, de Enio Silveira, proprietário da editora Civilização Brasileira.
Assim como os outros militantes destacados nesta reportagem, Herzog não participou da luta armada no Brasil. Sua atuação no partido comunista era meramente política e tinha o objetivo de ajudar na redemocratização do Brasil. Lamentavelmente, o jornalista não chegou vivo ao fim da ditadura.
As décadas seguintes às mortes desses comunistas demonstraram que o PCB, de fato, trilhava o caminho pacífico na luta contra o regime militar. Legalizada no governo de José Sarney, a organização mudou de nome para PPS depois da queda do Muro de Berlim.
Em 2019, nova mudança na denominação transformou o antigo PCB no partido Cidadania, presidido pelo ex-deputado Roberto Freire. O antigo “Partidão” integrou-se completamente à vida democrática do país e participou de alguns governos.
No governo Temer, por exemplo, Freire foi ministro da Cultura. Outro ex-militante do PCB, Raul Jungmann, comandou as pastas da Defesa e da Segurança Pública. Pela histórica política dos seis comunistas apresentadas nesta reportagem, eles também teriam colaborado com a redemocratização caso não tivessem sido assassinados pela repressão militar.
O perfil pacifista das vítimas leva à conclusão óbvia de que, se não existisse o AI-5, não fariam parte da lista de mortos e desaparecidos da ditadura.
“Penso que a perseguição ao PCB aconteceu, em grande parte, pela nossa atuação tipo formiguinha na organização da sociedade”, opina Carlos Alberto Muller Torres, ex-militante e dirigente do velho “Partidão”.
Nesse sentido, os fatos narrados neste trabalho demonstram que, mais do que por qualquer outro motivo, os seis brasileiros foram eliminados por atuar em uma organização comunista – mesmo que fosse de paz.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/documentos-ineditos-com-ai-5-bastava-ser-comunista-para-morrer
Sem apontar violência, ficha do SNI chama Santa Cruz de “terrorista”
Militante da organização clandestina APML, pai de presidente da OAB participou de passeatas e comícios, mas não se envolveu com luta armada
Eumano Silva / Metrópoles
Uma ficha do Serviço Nacional de Informações (SNI) sobre o desaparecido político Fernando Santa Cruz usa as expressões “terrorista”, “subversivo” e “suspeito” para definir sua atuação nos movimentos contra a ditadura. Ao listar as atividades do militante, cita a participação em comícios, passeatas e agitações no movimento estudantil. O material, porém, não faz qualquer referência a ações violentas.
O nome do militante pernambucano entrou para o noticiário na última semana, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) fez insinuações sobre sua morte. O objetivo do chefe do Executivo foi atacar o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, filho do estudante desaparecido desde o dia 23 de fevereiro de 1974.
Caracterizado como “dossiê”, o documento localizado pelo Metrópoles faz parte do acervo da ditadura preservado no Fundo SNI do Arquivo Nacional. O prontuário de Santa Cruz foi organizado em 25 de abril de 1983, nove anos depois do desaparecimento.
SNI foi o órgão responsável por coordenar o sistema de informação e espionagem da ditadura. Em duas folhas, o registro trata de fatos relacionados ao militante em 1967 e, também, das pressões feitas pela família e pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição, sobre o governo militar em busca de esclarecimentos.
A primeira página, uma espécie de folha de rosto, foi produzida pela agência do SNI em Recife. Tem o título “Informe 359”. Classificada como “confidencial 4611/87”, ostenta também a marca da Presidência da República.
No cabeçalho da segunda folha, Santa Cruz é tratado como “suspeito (agitador)”. Esse prontuário lista cinco episódios relacionados a Santa Cruz, quatro deles posteriores ao desaparecimento.conteudo patrocinadoAMERICANAS.COMAr-Condicionado Portátil DeLonghi Pinguino 12.000 BTUs Só Frio 127VSUBMARINOLente Objetiva EF-M 22mm F/2 STM Canon PretaMOBLYMobly, o melhor preço
Além de apontar atividades do movimento estudantil em 1967, o documento faz inferências sem evidências sobre aspectos de sua atuação. “É subversivo e terrorista. Provavelmente atuando na clandestinidade. É procurado pelos órgãos de segurança”, diz a ficha. Cita também a filiação de Santa Cruz à Ação Popular Marxista Leninista do Brasil (APML do B).
Pelo menos uma informação é falsa. O prontuário aponta um suposto endereço do militante, em Olinda (PE), em julho de 1974. Nessa data, ele já havia sido preso pelos militares.
O dossiê contém anotações úteis para se reconstituir a militância de Santa Cruz. Tem valor, ainda, como pista para se constatar como os agentes responsáveis pelos arquivos militares atribuíam crimes aos inimigos sem lastro nas investigações.
Nos anos mais sangrentos do regime fardado, ser acusado de terrorista equivalia a uma sentença de morte. Foi o que, segundo todos relatos e registros, aconteceu com Santa Cruz.
O conteúdo do prontuário reforça a impressão de que Bolsonaro falou sobre fatos inexistentes ao atribuir a morte a companheiros de Santa Cruz. Neste e nos outros documentos sobre o militante da APML, não existe qualquer pista nessa direção.
Criada em 1962 por uma ala católica, a Ação Popular (AP) foi a mais influente corrente política no meio estudantil até o final da década. Integraram a organização, por exemplo, o ex-ministro da Saúde, ex-governador de São Paulo e hoje senador José Serra (PSDB-SP), o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho – falecido em 1997 – e os ex-deputados Aldo Arantes (PCdoB-GO) e Haroldo Lima (PCdoB-BA).
Distrito Federal
Em Brasília, fizeram parte da APML, por exemplo, os estudantes Honestino Guimarães, outro desaparecido político, e Maria José da Conceição, a Maninha, que fez carreira política, foi deputada federal pelo PT e secretária de Saúde do Distrito Federal.
Depois do golpe, a AP sofreu perseguição política e líderes expressivos foram para o exílio. Os que ficaram aproximaram-se do comunismo e, no início da década de 1970, o grupo majoritário incorporou-se ao PCdoB.
Santa Cruz pertencia à ala que não entrou para o partido comunista e adotou a denominação Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Não se tem notícia de participação desse grupo em ações de guerrilha.
No que diz respeito a informações sobre execuções de militantes pelos próprios companheiros, vale ressaltar que os órgãos de segurança tinham todo interesse em registrar nos documentos secretos. Isso se deu, por exemplo, em relação à morte de Salatiel Teixeira Rolim, militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), executado a tiros por ex-companheiros.
O caso foi narrado pelo Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) em relatório de março de 1974, também arquivado pelo SNI. Um grupo de integrantes do PCBR decidiu matá-lo por considerá-lo traidor. Teria, sob tortura, fornecido dados que contribuíram para o esfacelamento do partido.
A execução de Rolim pelos companheiros se tornou pública, em 1987, com o lançamento do livro Combate nas trevas, escrito pelo historiador comunista Jacob Gorender, ex-dirigente do PCBR. Trata-se de uma das obras mais importantes para se conhecer a atuação das organizações de esquerda durante a ditadura.
Sobre Santa Cruz, nunca se ouviu nada parecido antes de Bolsonaro resolver atacar o presidente da OAB. Jamais foi comentado que ele poderia ter sido assassinado por companheiros da APML.
Importante destacar que o presidente não apresentou qualquer fonte. Indagado sobre a origem da informação, saiu-se com evasivas: “Com quem eu conversei na época, oras bolas. Conversava com muita gente, estive na fronteira… Conversava. (…) Essa é a informação que tive na época, sobre esse episódio”.
Do ponto de vista de quem pesquisa os fatos escondidos pela ditadura, a declaração de Bolsonaro tem as características de um boato sem valor histórico. Assemelha-se às mentiras, como os atropelamentos forjados, divulgadas pelos órgãos da repressão para encobrir os assassinatos nos porões do regime militar.
Um sinal evidente de que o presidente não tem compromisso com a verdade está em outra afirmação, feita em rede social. Para Bolsonaro, a Ação Popular era o “grupo terrorista mais sanguinário que tinha”.
Quem conhece minimamente a história da repressão durante os 21 anos de ditadura sabe que essa afirmação aleatória não faz o menor sentido. A AP foi uma das organizações da luta armada que menos praticou ações sanguinárias.
Seguramente, em um grau bastante superior de violência, destacaram-se em atividades de guerrilha a Ação Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).
A APML não praticou sequestros, assaltos a bancos ou núcleos de guerrilha armada. Os casos conhecidos de crimes da organização nos anos 1970 relatados por militantes foram desvios de dinheiro do mercado financeiro para capitanear a vida na clandestinidade.
A organização priorizou a infiltração de militantes em fábricas e no meio rural para politização e maior aproximação com as classes trabalhadoras. Assim mesmo, teve a cúpula estudantil dizimada pela repressão.
Atentado a bomba
A rigor, pelo que se registrou, sabe-se de uma única ação violenta praticada por integrantes da APML: foi um atentado a bomba no aeroporto de Guararapes, em Recife, no dia 25 de julho de 1966. O ataque foi preparado, aparentemente, contra o marechal Artur da Costa e Silva, que fazia campanha para suceder Humberto de Alencar Castelo Branco na Presidência da República – o que se confirmou.
Em vez de ir para o aeroporto de Guararapes, no entanto, Costa e Silva tomou outro destino, mas a bomba explodiu assim mesmo. Nesse episódio, morreram o jornalista Edson Regis de Carvalho e o almirante reformado Nelson Gomes Fernandes. Mais de uma dezena de pessoas ficaram feridas, algumas com gravidade.
Esse é um dos poucos casos de terrorismo com bombas e vítimas praticado por grupos de esquerda durante a ditadura. O responsável pelo planejamento da ação, Padre Alípio de Freitas, pertencia à AP e entrou em atrito com o comando da organização depois desse ataque.
Embora a cúpula não assumisse o atentado, na história da guerrilha urbana, a responsabilidade pelo atentado ficou com a Ação Popular. Apesar da defesa da luta armada, por princípio, a AP nunca mais a praticou, segundo as informações disponíveis.
Fernando Santa Cruz nada teve a ver com a bomba no aeroporto de Guararapes. Rigorosamente nada. Na época, tinha 16 anos e era estudante secundarista na capital pernambucana. Embora, nesse ano, tenha sido detido durante uma semana por participar de uma manifestação, seu nome nunca esteve associado a qualquer ação da luta armada.
Tampouco se vê referência ao pai do presidente da OAB em atos de violência nos documentos militares ou nos relatos de ex-companheiros da APML. O livro de cabeceira de Bolsonaro, A verdade sufocada, escrito pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, tem um capítulo dedicado ao atentado no aeroporto de Guararapes. Santa Cruz não é citado entre os envolvidos.
Trinta e cinco anos depois do fim da ditadura, para merecer consideração, as informações sobre o período de sombras devem ser referendadas por documentos da época ou por declarações assumidas por quem viu ou praticou atos relacionados à morte e ao desaparecimento de militantes.
O boato tornado público na semana passada teria saído de “conversas” que Bolsonaro manteve na época em que Santa Cruz sumiu. Nada mais vago. Na prática, se não surgir nenhuma outra evidência, as declarações se enquadram por enquanto na categoria de fofoca presidencial.
Em linguagem popular, tem jeito de fuxico ou futrica. Só serve para incomodar desafetos e tumultuar o ambiente político.
Incinerado no forno de uma usina
Em relação a Fernando Santa Cruz, especificamente, um ex-agente da repressão assumiu a responsabilidade pelo seu desaparecimento. Segundo o ex-delegado Cláudio Guerra, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo, o militante da APML foi incinerado no forno de uma usina depois de morto por agentes da repressão.
Não há razão para se duvidar de Guerra. Convertido a uma religião evangélica, o ex-delegado leva vida pacífica e se diz arrependido do que fez no passado. Nenhuma informação que tornou pública desde 2012 – quando resolveu contar os fatos que viveu nos Anos de Chumbo – foi desmentida pelos envolvidos, pelos órgãos de direitos humanos ou pelos pesquisadores do assunto.
Outra evidência da falta de periculosidade – e até de relevância – de Santa Cruz se encontra no Encaminhamento nº 97916E/71/AC/SNI, do mesmo fundo do Arquivo Nacional, com data de 8 de dezembro de 1971. Na folha de rosto, lê-se “relação nominal de elementos implicados com as atividades da ‘Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil – APML-doB’, no período compreendido entre 1968 e o 1º semestre de 1971”.
Em 18 páginas, o SNI lista 719 integrantes da “APML do Brasil”. Todos os líderes conhecidos da organização estão identificados. Santa Cruz nem aparece no rol de mais de sete centenas de pessoas recrutadas pela Ação Popular.
Observa-se, em resumo, que os fatos reconstituídos com base em documentos dos militares indicam que Fernando Santa Cruz atuou como militante do movimento estudantil e integrou uma organização clandestina que defendia a luta armada. Porém, nunca se envolveu em ação violenta.
Não cabia, portanto, no figurino de “terrorista”, propalado pelos órgãos de repressão a fim de justificar para a população as prisões, torturas e mortes de adversários. Quando desapareceu, o militante da APML morava em São Paulo com a mulher e o filho, Felipe. Era funcionário concursado do Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado.
No Carnaval de 1974, a família foi visitar amigos, alguns também da APML, no Rio de Janeiro. No dia 23 de fevereiro, saiu sozinho para se encontrar com Eduardo Collier Filho, da mesma organização.
Nunca mais os dois foram vistos e o quarto de Collier foi revirado por desconhecidos logo depois. Segundo documentos da Aeronáutica, da Marinha e do DOPS de São Paulo, Santa Cruz foi preso por órgãos de segurança.
Os dois militantes caíram quando a luta armada no Brasil se encontrava nos estertores. Derrotadas pelo aparato repressivo, as organizações clandestinas não tinham mais poder de fogo para a guerrilha urbana ou rural. Prisões, mortes e banimentos esfacelaram as correntes radicais de esquerda.
Dilma Rousseff
Para se ter uma ideia do momento vivido pelos grupos clandestinos, a então militante da VPR Dilma Rousseff – presidente da República entre 2011 e 2016, estava livre desde 1972, depois de quase três anos na cadeia. Vencida, a esquerda saía aos poucos da clandestinidade e retomava a vida na sociedade brasileira.
Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier faziam parte de um grupo da APML que foi perseguido por tentar manter a mobilização nas universidades depois do fechamento da União Nacional dos Estudantes (UNE). Nessas atividades, estavam José Carlos da Mata Machado, Gildo Macedo Lacerda, Humberto Albuquerque Câmara Neto e Honestino Guimarães.
Da AP, também foram mortos pela ditadura o deputado estadual (SC) Paulo Stuart Wright, o engenheiro Jorge Leal e o operário Raimundo Eduardo da Silva. Ao todo, pelo menos nove militantes da AP se encontram na lista de vítimas do governo militar.
Sem registro de participação de Santa Cruz em ações violentas – ou mesmo contato com armas – a explicação pelo desaparecimento se dá pela fase de endurecimento das atividades repressivas quando uma ala dos militares iniciava os movimentos de abertura política.
Nesse contexto, a linha mais radical dos porões lançou-se contra o que ainda restava dos movimentos de esquerda, mesmo os que pregavam o enfrentamento pacífico com a ditadura – caso do Partido Comunista Brasileiro (PCB), também vitimado com o desaparecimento de dirigentes.
Pelo que relatam os documentos – e também ex-companheiros de militância e familiares –, o pai do presidente da OAB era um típico agitador de movimento estudantil, recrutado pelo grupo mais forte na política universitária no início da ditadura.
Com esse perfil, tornou-se um dos 210 desaparecidos políticos da ditadura. No total, durante os 21 anos do governo militar, 434 adversários foram mortos.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/sem-apontar-violencia-ficha-do-sni-chama-santa-cruz-de-terrorista