Desafio monstruoso
Ana Cristina Rosa: Desafio monstruoso
Toda pessoa negra no Brasil tem ao menos uma história de racismo relacionado ao cabelo para contar
Toda pessoa negra no Brasil tem ao menos uma história de racismo relacionado ao cabelo para contar. Para a maioria de nós, negros, essa vivência começa na infância —em geral quando entramos na escola e passamos a frequentar um microcosmo que reproduz a malignidade do racismo impregnado na sociedade brasileira – e se manifesta pela vida afora.
Acontece com o negro pobre e com o endinheirado, com o desconhecido e o famoso. O episódio mais recente ocorreu no BBB 21, quando o cabelo afro de um dos participantes da edição foi comparado à peruca da fantasia do castigo do monstro. Em março, durante o programa Roda Viva, da TV Cultura, a atriz Taís Araújo contou a experiência da filha de seis anos com um coleguinha de colégio que zombou do cabelo da menina.
Mas o que soa realmente surpreendente é a naturalização desse tipo de situação, tratada como desentendimento, mal entendido ou brincadeira em pleno século 21. Assim os fatos vão sendo escamoteados como se fossem qualquer coisa menos o que realmente são: atitudes racistas.
“Brincadeiras” e comparações com o cabelo do negro são tão corriqueiras que, desde que me conheço por gente, dão azo a apelidos pejorativos e fica por isso mesmo. Como se não fossem uma forma de violência, não ferissem e não afetassem a autoestima de milhões de pessoas. Sinceramente, é muita subjetividade envolvida numa questão que parece bastante objetiva.[ x ]
Por mais que se exalte a beleza negra, persiste uma tensão em torno dos fios de cabelo crespos e cacheados, fruto do estrago causado por séculos de imposição de um padrão de beleza eurocêntrico, que desvaloriza e menospreza tudo o que se difere.
Como destacou Nilma Lino Gomes em sua tese de doutorado Sem Perder a Raiz –corpo e cabelo como símbolos da identidade negra, “desde a escravidão, a mulher e o homem negro convivem com o desafio de desconstruir o olhar negativo sobre o seu corpo e o seu cabelo”. E o desafio é monstruoso.
*Ana Cristina Rosa é jornalista especializada em comunicação pública e coordenadora da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPÚBLICA) - Seção Distrito Federal.