dependentes químicos
RPD || Especial: Bolsonaro quer destruir política nacional de saúde mental para favorecer evangélicos
Em São Paulo, João Doria e Bruno Covas seguem na mesma linha do governo federal, mostra a reportagem especial da Revista Política Democrática Online de janeiro
Cleomar Almeida
Uma multidão de dependentes químicos ocupa parte da Alameda Dino Bueno, no Centro de São Paulo, na região conhecida pelo intenso consumo e tráfico de crack. Alguns improvisam tendas para se protegerem de sol e chuva e não interromperem a fumaça que exala do cachimbo, mesmo com a cracolândia cercada por tropas da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana e um número ínfimo de profissionais de saúde e assistência social.
A cena, que já é comum para quem vive na região, pode se espalhar para outras capitais diante do risco de retrocesso no socorro a dependentes químicos no país. O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) planeja desmontar a Política Nacional de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS), que ainda garante o mínimo desse tipo de atendimento a dependentes químicos e outras pessoas em diferentes situações de vulnerabilidade social, agravada pela pandemia do coronavírus.
Sem se identificar, a equipe de reportagem da revista Política Democrática Online transitou pela cracolândia de São Paulo e constatou a ausência do Estado para garantir atendimento adequado e resposta efetiva ao problema. Por um lado, essa omissão faz aumentar a reclamação de moradores contrários à aglomeração de dependentes químicos na região, que, por outro lado, ficam ainda mais suscetíveis ao tráfico e imersos na onda de desassistência à saúde.
A última pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre a cracolândia mostrou que 50,3% dos frequentadores da região tinham algum nível de quadro psicótico, 48,4% já haviam praticado automutilação e 38,2%, tentado suicídio. Além disso, 63% da população local já havia contraído sífilis, a doença que mais se manifesta entre essas pessoas.
Compilados no Levantamento de Cenas de Uso de Capitais (Lecuca), os dados da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Unifesp foram extraídos de entrevistas com 240 pessoas que afirmaram consumir crack na cracolândia. Divulgada no ano passado, a pesquisa sobre a região é a mais recente realizada por uma universidade e exemplifica a necessidade de fortalecimento do atendimento em saúde mental do SUS.
Em São Paulo, apesar de se apresentarem como oposição ao bolsonarismo, o governador João Dória e o prefeito Bruno Covas, ambos do PSDB, estão totalmente alinhados com Bolsonaro no plano de desmonte da política de saúde pública mental. Defensores da internação, eles agem para favorecer comunidades terapêuticas, alvo de denúncias em todo o país e mantidas em sua maioria por igrejas, como forma de devolver favores dos evangélicos em apoio às suas eleições.
Na capital paulista, desde 2017, quando Dória assumiu a prefeitura, intensificou-se um processo de enfraquecimento do atendimento a dependentes químicos. Ele substituiu o programa Braços Abertos, da administração de Fernando Haddad (PT), que oferecia trabalho, moradia e outras formas de acolhimento como estímulo para que cada dependente químico pudesse reduzir o uso de drogas. No lugar, instituiu o Redenção, focado na internação e ligado a clínicas religiosas, além de instalar laboratórios de militarização na região, para aumentar as operações policiais. Covas mantém essa linha.
“O que se vê é o esvaziamento de qualquer política na cracolândia. A principal política atual da gestão Dória e Covas é bater nas pessoas que estão ali”, afirma Daniel Mello, ativista da Craco Resiste, movimento que existe desde o final de 2016, logo após Dória ser eleito para a prefeitura com a promessa de que iria acabar com a cracolândia. “As pessoas usam drogas para suprir outras necessidades. Quando tinha oferta de abrigo e emprego, a grande maioria mantinha o uso, mas sob controle”, diz.
No mês passado, o Ministério da Saúde apresentou a proposta de revogar cerca de 100 portarias editadas entre 1991 e 2014. Exposta em reunião com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e as Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), a medida pode atingir estratégias de cuidado das pessoas com problema psíquico baseadas nos direitos humanos e conquistadas com a reforma psiquiátrica, instituída pela Lei Federal 10.2016 de 2001. O cuidado em rede pode ser desmontado para favorecer a internação em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.
Na prática, a proposta tem o objetivo de rever a atual política de saúde mental, desarticulando a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que é baseada na humanização do tratamento e formada por estratégias e equipamentos. Entre eles estão os centros de atenção psicossocial (Caps) nos tipos I, II, álcool e outras drogas, álcool e outras drogas 24h (III) e infantil; leitos de atenção Integral em saúde mental em hospital geral; unidade de acolhimento transitório; serviço residencial terapêutico; consultório na rua e iniciativas de geração de renda.
O plano do governo federal é cortar mais verba do SUS, que em 2019 teve perda de R$20 bilhões, pois pretende revogar portarias que instituem procedimentos ambulatoriais e a revisão do financiamento dos Caps. Os centros de atenção psicossocial fortalecem vínculos dos usuários da saúde mental nos seus territórios, como alternativa à internação em hospitais psiquiátricos, os chamados manicômios.
No entanto, a proposta do Ministério da Saúde quer criar ambulatórios gerais de psiquiatria e unidades especializadas em emergências psiquiátricas. Pela atual Política de Saúde Mental do SUS, somente pessoas em situações mais graves são encaminhadas para internação, que deve ocorrer em hospitais gerais.
O risco de desmonte dessa política do SUS fez mais de 100 entidades e movimentos sociais de todo o Brasil criarem, no mês passado, a Frente Ampla em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. “Tal mudança projeta mais dor em um contexto já trágico de pandemia por covid19: por que querem causar mais sofrimento mental às pessoas? Como fechar serviços de saúde em plena pandemia?”, questiona um trecho do manifesto.
Na avaliação das pesquisadoras Elizabeth Sousa Hernandes, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (Neppos), e Waleska Batista Fernandes, tutora da residência multiprofissional em saúde mental do adulto da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (Fepecs), o risco é iminente. Segundo elas, “o Brasil não pode permitir um retrocesso em termos de política de saúde mental”.
“É fundamental que a comunidade acadêmica, os movimentos sociais e todo indivíduo ou instituição que se importe com direitos humanos levantem a voz para mudar o rumo dessa história. Com isso, ganhará quem deve ganhar: a sociedade, que é afetada pelo sofrimento mental de qualquer dos seus indivíduos e por todas as situações de destituição de direitos”, escrevem elas, em análise sobre o risco de desmonte.
Artista visual, ativista de movimentos sociais e morador da região da cracolândia, Paulo Fluxos disse que a situação dos dependentes químicos e outras pessoas em situação de vulnerabilidade no local piorou ainda mais durante a crise sanitária global provocada pelo coronavírus. “Já passei aqui oito meses, escutando, acompanhando como essa população de rua enfrentou a pandemia. Completamente abandonada”, diz ele. “Única coisa que a Prefeitura e o Estado de São Paulo ofereceram foi a polícia”, acrescenta.
A Defensoria Pública da União (DPU) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) já solicitaram ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, uma série de informações sobre as medidas adotadas pela pasta, com o objetivo de alterar políticas públicas destinadas ao tratamento em saúde mental e de dependentes químicos no país. Ele ainda não respondeu.
Procurados pela reportagem, o Ministério da Saúde, o governo de São Paulo e a prefeitura da cidade não se pronunciaram. A Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas também não retornou ao pedido de resposta.
Governo desconsidera alertas sobre violação de direitos em comunidades terapêuticas
Para favorecer comunidades terapêuticas, o governo brasileiro tem agido na contramão de alertas feitos por instituições nacionais, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e o Ministério Público Federal (MPF). Relatório de fiscalização chama atenção da sociedade para o risco de o país reviver o “holocausto brasileiro”.
Uma série de violação de direitos humanos em comunidades terapêuticas no país foi constatada em fiscalização dessas instituições e registradas no mais recente Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, divulgado em 2018. Entre os principais problemas identificados estão privação de liberdade, castigos, punições, indícios de tortura, trabalhos forçados e sem remuneração – conhecidos como laborterapia –, e violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual.
Mesmo com os diversos alertas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou, em julho de 2019, a lei das comunidades terapêuticas, retirando recursos da saúde para colocá-los na assistência social, área em que elas estão classificadas. No entanto, prometem tratamento e, muitas vezes, “cura” para dependentes químicos, sem receber qualquer fiscalização da vigilância em saúde.
O médico psiquiatra e artista Flávio Falcone, conhecido como o palhaço da cracolândia, critica a política proibicionista e punitivista em relação ao consumo de drogas, que, segundo ele, reforça a estratégia manicomial contra dependentes químicos. “As comunidades terapêuticas são os novos manicômios”, afirma.
Falcone, que já atuou em programas de atendimento e acolhimento a dependentes químicos em São Paulo, ressalta que, por lei, as comunidades terapêuticas são de assistência, mas, na prática, fazem tratamento. “É comum uma pessoa ter passado por 20 ou 25 internações em comunidades, mas continuam na cracolândia”, afirma.
Na avaliação do psiquiatra, o modelo de internação não tem êxito porque reforça o foco proibicionista e punitivista. “A oferta de tratamento é sempre na visão de abstinência e quem não a consegue é punido pela segurança pública, com repressão policial e violação de direitos humanos. Vejo isso acontecer cotidianamente na região”, lamenta.
De acordo com Falcone, a estratégia proibicionista e punitivista e o foco na abstinência também se sustentam na perversão do conceito de redução de danos, dizendo que é caminho para a abstinência, sendo que é um dos recursos disponíveis para tratamento das pessoas.
“A redução de danos é um conceito, não tem uma fórmula nem protocolo que vai dar certo para todas as pessoas. Precisa de projeto terapêutico singular entendendo que cada pessoa tem um processo”, explica o psiquiatra, ressaltando que esse conceito é uma das bases do tratamento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que está em risco.
Michel Temer iniciou processo de desmonte contrário à luta antimanicomial
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ameaça emplacar um desmonte da Política Nacional de Saúde Mental, em um esforço para cortar mais verbas da saúde e que começou antes de seu mandato, no governo Michel Temer (MDB). Pesquisadores analisaram os efeitos das primeiras mudanças que pretendiam vencer a luta antimanicomial no Brasil.
No trabalho intitulado Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019, os pesquisadores Nelson Cruz, Renata Gonçalves e Pedro Delgado constataram que o governo Temer iniciou o processo de desmonte.
Eles analisaram 14 documentos – portarias, resoluções, nota técnica e decreto – publicados entre outubro de 2016 e abril de 2019, que, afirmam, indicam “os primeiros efeitos das mudanças na rede de atenção psicossocial, como o incentivo à internação psiquiátrica e ao financiamento de comunidades terapêuticas”. Essas ações, ressaltam, são fundamentadas em abordagem proibicionista de questões sobre o uso de álcool e outras drogas e, ainda, confirmam “tendência de estagnação do ritmo de implantação de serviços de base comunitária”.
De 2003 a 2016, houve a implementação da Política Nacional de Saúde Mental, que rendeu ao país o reconhecimento da comunidade internacional. Nesse período, houve destinação de recursos para serviços de natureza extra-hospitalar, fechamento e descredenciamento significativo de leitos e hospitais psiquiátricos e publicação de portarias que visaram à expansão dos serviços e ações.
Na última década, também houve significativos avanços na construção da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), além da reestruturação da assistência psiquiátrica e atenção ao usuário de álcool e outras drogas.
Especialistas internacionais chegaram a reconhecer resultados práticos da política de saúde mental. Ela ficou conhecida, principalmente, por extinguir “depósitos de loucos e indesejáveis” e propor a inclusão das pessoas com doença mental na comunidade. Elas recebiam os cuidados adequados nos três níveis de atenção do SUS (básica, média e alta complexidade), por meio de equipes interdisciplinares que retiravam o foco da doença e do médico, priorizando a pessoa com doença mental e seu tratamento, sem a obrigatoriedade de exclusão da comunidade.