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Monica de Bolle: A reconstrução dos EUA com Joe Biden é um nó na cabeça dos “liberais à brasileira”

Muito se tem falado e escrito no Brasil, com lentes brasileiras, sobre o Governo Biden e seus planos. Contudo, e isso não é novidade, tais lentes distorcem e deturpam ao fazerem ver um país que não existe e jamais existiu. Conta-se, por exemplo, uma história no Brasil de que o desenvolvimento dos Estados Unidos se deu pelo papel preponderante da iniciativa privada. Não há ideia mais errada do que essa para quem conhece a história deste país em que vivo há mais tempo do que no Brasil e no qual finquei as bases da minha carreira como economista, a qual passa hoje por uma espécie de transição. Os EUA sempre viram no Estado o papel de indutor do desenvolvimento de longo prazo. Não se trata da visão nacional-desenvolvimentista da América Latina, tampouco pode ser compreendida com lentes sulistas. O desenvolvimento norte-americano e a atuação do Estado têm contextos, texturas, estruturas e história próprios.

Pode ser uma história pouco contada no Brasil aquela segundo a qual os EUA se industrializaram por meio de políticas de substituição de importações e muitas práticas protecionistas inspiradas na obra de 1791 do primeiro secretário do Tesouro norte-americano, Alexander Hamilton. Em seu Report on the subject of manufactures, Hamilton delineou os conceitos de indústria nascente e apoio estatal, que, mais tarde, influenciariam não apenas a industrialização de seu país, mas a da Alemanha, a do Japão, a da França, chegando à América Latina nos anos 1930, quarenta e cinquenta. A obra de Raúl Prebisch e o que ficou conhecido como pensamento Cepalino cita Hamilton recorrentemente, e não é por acaso.

O Estado indutor norte-americano seria revisto e reinventado ao longo de toda a história, passando pela corrida espacial da Guerra Fria, o surgimento da Internet, o desenvolvimento do setor de tecnologia, sobretudo o de bioteconologia, que tanta relevância tem tido na atual pandemia. Para que as vacinas gênicas, as mais sofisticadas contra covid-19, saíssem dos laboratórios para os nossos braços, o Governo de Donald Trump fez a enorme Operação Warp Speed. Logo, no mundo real se deu o contrário do que sustenta o ministro da Economia brasileiro, e não haveria Moderna ou Pfizer sem a atuação vultosa do Estado.

Então entra em cena o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Muitos no Brasil têm interpretado os planos de Biden como uma ruptura em relação ao passado, seja o passado recente, seja o longínquo. Também entendo que há ruptura; mas penso não ser a que imaginam. A ruptura que se deu nas eleições de 2020 foi a passagem de um país liderado por uma pessoa despreparada para o cargo e com instintos nitidamente autoritários para outra com largo, orgulhosamente reclamado histórico político e um democrata, não somente pelo nome do partido ao qual pertence. Quanto ao resto, não há rompimento: os planos de Biden, vulgarmente apelidados de “Bidenomics”, são profundamente marcados pela tradição norte-americana do Estado indutor. Há, sim, diferenças marcantes, que reanimam essa tradição.

Os planos de Biden, literalmente trilionários, compreendem o American Rescue Plan, o American Jobs Plan e o American Families Plan. Todos eles aparecem em destaque no site da Casa Branca, em que são apresentados de forma clara e resumida, com acesso à integra do documento e convite a compartilhar como a política econômica lhe pode ajudar. Para entender melhor essa política, tomemos o American Families Plan, o seu segundo. Trata-se, como disse a Casa Branca, de um plano de “infraestrutura humana”, isto é, de uma agenda que parte do foco nas pessoas, em particular, das famílias, para dar forma a um Estado de Bem-Estar Social. Lembro aqui que, entre as economias maduras, os EUA são o único país que não têm as redes de proteção social robustas, como seus pares europeus. O nome do plano toma as famílias como elo de articulação das políticas de redistribuição de renda. A escolha reflete a percepção compartilhada de que a família é a unidade de cuidado por definição na sociedade norte-americana, como também é, por sinal, no Brasil.

O que saltar a olhos de “liberais à brasileira” como excessivo é o entendimento de que, quando as desigualdades são demasiadas, políticas incrementais de proteção social não resolvem os problemas econômicos, sociais, e políticos. Primeiro, para equacioná-los pode ser importante ter um horizonte de igualdade, a qual é inalcançável, mas nem por isso precisa deixar de ser buscada. Sua busca pode criar condições que tornam a liberdade possível. Segundo, políticas incrementais dificilmente têm o condão de reconstituir um senso de união nacional, de identidade comum, em sociedades extremamente fragmentadas e polarizadas. Quando Biden falava em unificação durante a campanha, a necessidade da ousadia estava explícita. Não viu quem não quis, ou quem não soube interpretar por desconhecimento. É realmente muito difícil entender os Estados Unidos e suas contradições quando não se vive no país: a máxima de Tom Jobim sobre os principiantes e seus olhares não vale apenas para o Brasil.

Tenho visto gente no Brasil dizer com grande confiança que a agenda de Biden está fadada ao fracasso no Congresso. A afirmação se baseia no fato de que os democratas têm uma maioria muito estreita no Congresso, sobretudo no Senado. Mas, novamente, essa é uma visão equivocada sobre as transformações que acometeram os partidos políticos daqui, especialmente o partido Republicano. Sob Trump, o partido Republicano deixou de ser aquele que defendia a “responsabilidade fiscal” na representação de déficits e dívida baixos. As reduções tributárias de Trump e os aumentos de despesas em 2017 levaram os EUA ao maior déficit em décadas, e esse cenário se produziu com o aval dos Republicanos no geral e, em particular, dos Republicanos mais tradicionais, como os Senadores Mitch McConnell e Lindsey Graham. Tivesse Trump sido um político mais dedicado, teria conseguido emplacar seu próprio plano de infraestrutura, no valor de 1,5 trilhão de dólares, alardeado por Steve Bannon durante a campanha de 2016 e tantas vezes mencionado nos anos trumpistas. É curioso que algumas pessoas tenham escolhido apagar isso de suas memórias.

O partido Republicano, hoje, tem dificuldades de enfrentar agendas que preveem grandes despesas, sobretudo se essas despesas forem facilmente sentidas e compreendidas pelas pessoas, pelas famílias. A aprovação de Trump subiu no início da pandemia quando seu pacote de assistência passou no Congresso, assim como a de Biden aumentou desde o início de seu Governo, mesmo o país estando muito dividido. Aqui nos Estados Unidos há eleições a cada dois anos: no ano que vem haverá eleições legislativas. O custo para os Republicanos poderá ser alto caso eles rejeitem por completo a agenda de Biden ―e o partido sabe disso. É claro que os Republicanos haverão de se opor aos aumentos de tributação sobre corporações, os mais ricos, os ganhos de capitais, que devem financiar parcialmente os ambiciosos planos. Porém, apostar no fracasso da agenda Biden é nada entender do que aconteceu com os Republicanos e com os Democratas nos últimos quatro anos. Enquanto Republicanos buscam novos caminhos e narrativas políticas, Democratas se reinventaram a partir de algumas noções básicas de justiça social. Sim, básicas, pois os democratas mais à esquerda estão muito longe daquilo que brasileiros consideram ser “de esquerda”.

Com Biden, os Estados Unidos estão fazendo aquilo que sempre fizeram de melhor: se reimaginando e reiventando. Por certo, há lições aí para o Brasil. Mas elas estão longe de ser o que tantos regurgitam nos jornais ou na TV.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.

Fonte:

El País

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-04-30/a-reconstrucao-dos-eua-com-joe-biden-e-um-no-na-cabeca-dos-liberais-a-brasileira.html


Folha de S. Paulo: Em 100 dias, Biden toma medidas ousadas em busca de marcas permanentes

Presidente dos EUA precisa enfrentar crise migratória, seu principal foco de críticas

Marina Dias, Folha de S. Paulo

Joe Biden já tem um elogio favorito nos corredores da Casa Branca. Assessores próximos dizem que o presidente dos Estados Unidos comemora, mesmo que discretamente, quando ouve que sua largada tem sido mais ambiciosa que a de Barack Obama, de quem foi vice de 2009 a 2017.

Nos primeiros cem dias de seu governo, que serão completados nesta quinta-feira (29), Biden sinalizou o desejo de ser um dos presidentes mais transformadores da história americana. Mas, para isso, precisa fazer com que suas propostas ousadas se tornem marcas permanentes, reformulando o país em termos de desigualdade, direito ao voto e papel do Estado no crescimento econômico.

A marca dos cem dias é recheada de simbolismo, geralmente sem grandes efeitos práticos. Neste ano, porém, com o adiamento causado pelas restrições da pandemia, a data vai praticamente coincidir com o primeiro discurso de Biden na sessão conjunta do Congresso, sua oportunidade de celebrar vitórias e elencar prioridades que podem desenhar o legado de sua Presidência.

Nesta quarta-feira (28), o democrata deve enumerar avanços de seu plano contra a Covid-19, que contou com a distribuição de mais de 200 milhões de vacinas em cem dias e freou o recorde de casos e mortes causadas pela doença no país. Com a urgência ecoada do Salão Oval, Biden alçou os EUA de desastre sanitário ao posto de um dos maiores sucessos de vacinação em massa do mundo e conseguiu apontar para uma recuperação econômica mais rápida com a aprovação de um pacote de alívio econômico no valor de US$ 1,9 trilhão, com auxílio específico aos mais vulneráveis.

Diante dos parlamentares, o presidente quer chamar atenção para os próximos desafios e deve anunciar o aumento de impostos sobre os mais ricos, em parte para financiar sua proposta trilionária de reforma na infraestrutura. Ele sabe que os próximos cem dias serão mais difíceis —e arriscados—, pois precisa avançar com essa agenda, que mistura criação de empregos e economia verde, sem deixar de lado a crise imigratória, a maior de seu governo e seu principal arcabouço de críticas até agora.

O pacote de socorro econômico foi a grande vitória de Biden no Congresso até aqui, e 1 das 11 leis que o presidente assinou desde que tomou posse, em 20 de janeiro. O número é pequeno se comparado a seus antecessores mais recentes —Donald Trump chancelou 28 leis nos cem primeiros dias e Obama, 14—, mas o dado define a arriscada forma de governar do democrata.

Em termos de ordens executivas, mecanismo que não precisa do aval do Congresso para entrar em vigor, mas pode ser revertido mais facilmente, o presidente é o recordista desde Franklin Delano Roosevelt (1933-1945), que governou o país em meio à Grande Depressão e à Segunda Guerra Mundial.

Biden assinou 42 delas, muitas para cancelar políticas de Trump, como a saída dos EUA do Acordo Climático de Paris e da Organização Mundial da Saúde, o veto à entrada de pessoas de alguns países de maioria muçulmana em território americano e a liberação de recursos para a construção de um muro na fronteira com o México.

Político tradicional e senador por quase quatro décadas, Biden entende que ordens executivas são efêmeras e, para que suas políticas não sejam revertidas por um eventual próximo presidente, é preciso que o Congresso as torne leis.

O presidente tem pressa porque a frágil maioria de seu partido no Senado —são 50 votos para os democratas e 50 para os republicanos, com desempate nas mãos da vice-presidente, Kamala Harris— pode terminar nas eleições legislativas de 2022.

Projetos que não envolvem orçamento precisam de mais do que apenas maioria simples para serem aprovados, como medidas que estão no pacote de infraestrutura ou sobre controle de armas e para frear as restrições de direito ao voto, temas que Biden tem abordado publicamente.

Enaltecido durante a posse, o discurso pelo bipartidarismo, entretanto, tem ficado para trás. A fórmula de Biden é convencer o Congresso a aprovar suas medidas impulsionado pelo apoio popular —e é por isso que ele tem apresentado as propostas de reforma na infraestrutura e investimento em economia verde atreladas à criação de milhões de empregos e aumento da competitividade no país.

Segundo o site FiveThirtyEight, a média de aprovação do presidente é de 54,4% —mais popular do que Trump durante todo o seu mandato, mas menos do que Obama, que tinha 60% no mesmo período.

Um dos poucos temas que tem unido Biden aos republicanos é a tensa relação com a China e a Rússia.Até agora, o democrata manteve ou até reforçou as políticas assertivas de Trump contra Pequim e aplicou sanções ao regime de Vladimir Putin por interferência nas eleições americanas e ataques virtuais.

Segundo um integrante do Departamento de Estado, os governos passados tiveram o luxo de escolher as ameaças de segurança nacional contra as quais iriam atacar primeiro, mas Biden não teve essa opção. Nas palavras do diplomata, China, Rússia, Covid-19 e mudanças climáticas se impuseram à Casa Branca.

Na semana passada, Biden liderou a Cúpula de Líderes sobre o Clima, para tentar reposicionar os EUA na liderança da geopolítica mundial, ditada pelo meio ambiente, considerado mais um trunfo do democrata.

falta de comprometimento claro de países como China e Índia com a redução nas emissões de poluentes na próxima década, porém, podem atrapalhar os planos do americano.

Mas sua maior dor de cabeça hoje é a crise nas fronteiras, com o maior fluxo de imigrantes nos EUA em 20 anos. Durante a campanha, Biden prometeu dar tratamento mais humanitário aos estrangeiros que tentam entrar nos EUA sem documento e facilitar o acesso à cidadania americana a 11 milhões de imigrantes, mas o descontrole nas fronteiras eclipsou medidas já colocadas em prática, como a que pretende reunir as famílias de separadas na divisa no governo Trump.

Biden tem sido duramente atacado, inclusive por aliados, por ter restringido o acesso à imprensa para acompanhar o trabalho das patrulhas na divisa com o México e pelo alto volume de crianças desacompanhadas que ficam em centros de detenção mais do que as 72 horas permitidas por lei.

Ele ainda não conseguiu dar uma resposta efetiva sobre a crise, mas, nesta terça-feira (27), nomeou para o comando da ICE (Agência de Imigração e Alfândega, na sigla em inglês) uma autoridade do Texas conhecida por ser crítica das políticas imigratórias de Trump.

Sob enxurradas de críticas na mesma área, a imigração, Obama carrega a pecha de que podia ter sido mais audacioso durante seu governo, mas, ainda assim, o primeiro presidente negro da história americana deixou duas marcas na história: Obamacare e a reforma financeira para sair da crise de 2008.

O senso de urgência mostra que Biden sabe que o tempo é curto para fazer mudanças estruturais em um país tão polarizado, mas os entraves podem ser grandes, e a possibilidade de concorrer à reeleição —que antes não era cogitada— já apareceu em um pronunciamento do democrata.


El País: 100 dias de Biden, uma profunda mudança de rumo nos Estados Unidos

O presidente norte-americano pisou no acelerador em questões relevantes como a vacinação maciça, a volta ao multilateralismo, a modernização do país e o novo rumo nas políticas sociais. Seu grande desafio continua sendo a imigração

ANTONIA LABORDE, YOLANDA MONGE, MARÍA ANTONIA SÁNCHEZ-VALLEJO e LUIS PABLO BEAUREGARD, El País

Apenas 100 dias de Joe Biden na Casa Branca bastaram para comprovar a profunda guinada nos Estados Unidos. O presidente da grande potência quis deixar claro desde o início a diferença abissal em relação ao seu antecessor, Donald Trump. No aspecto econômico; em política externa; nos assuntos sociais e nas políticas migratórias ―embora neste caso tenha tido que recuar de suas ambiciosas promessas. Também, ou talvez acima de tudo, pela forma como encarou a pandemia: os Estados Unidos colocaram a vacinação maciça como a principal meta da sua agenda nos seus 100 dias primeiros como presidente. E cumpriu com sobras.

Com Biden, EUA adotou vacinação em massa contra a Covid-19. Foto: Alex Wong/Getty Images

Uma vacinação maciça

Desde o primeiro dia, tudo precisava estar condicionado a frear a pandemia e suas consequências. Para reativar a economia, em queda livre e com os piores índices desde a Grande Depressão da década de 1930, era preciso a todo custo frear os contágios e mortes. A poucos dias de completar, nesta quinta-feira, uma centena de jornadas no comando de um país que havia fracassado na contenção do vírus e soma atualmente mais de 570.000 mortes, o presidente dos Estados Unidos anunciou que já foram administradas 200 milhões de doses de vacinas contra a covid-19. Neste momento, 27% da população está completamente vacinada, o que se traduz em algo mais de 90 milhões de pessoas (de uma população total próxima de 330 milhões).  

Biden superou seus objetivos em relação à vacinação, pois nenhum dos prazos anunciados foi descumprido. Logo que assumiu, o mandatário disse que haveria 100 milhões de pessoas vacinadas em seus primeiros 100 dias na Casa Branca, e esse marco se deu no 58º dia de mandato. “Quando cheguei ao poder, apenas 8% da população estava vacinada”, disse o presidente ao informar na quarta-feira, 21 de abril, que 200 milhões de pessoas já haviam sido inoculadas. Era o 93º dia de sua presidência, e Biden observava que mais de 50% dos moradores adultos dos Estados Unidos tinham recebido pelo menos a primeira dose de alguma das três vacinas disponíveis no país. No começo deste mês, a Casa Branca comunicava que a partir do dia 19 abriria a vacinação a todos os adultos do país, o que, novamente, representava uma antecipação de duas semanas sobre o prazo de 1º de maio anunciado anteriormente por sua Administração. Ainda assim, e, apesar da boa notícia, o mandatário quis apelar à prudência ao declarar que os Estados Unidos continuam “numa carreira de vida ou morte contra o vírus”.

A última medida do mandatário para estimular a população a se vacinar foi um crédito fiscal para cobrir gastos com horas não trabalhadas por causa da vacinação dos funcionários de empresas com até 500 assalariados. “Nenhum trabalhador dos Estados Unidos deveria perder um só dólar do seu salário para ter tempo de se vacinar ou se recuperar da doença”, afirmou Biden. Como o democrata conseguiu essas cifras? Recorrendo, segundo suas palavras, a uma tática de colaboração entre empresas semelhante à que se viveu “na II Guerra Mundial”, comparou Biden. Porém, a ideia de ressuscitar uma lei de períodos bélicos para frear os contágios e mortes por covid-19 não surgiu com Biden. O ex-presidente Donald Trump conseguiu fabricar os primeiros lotes de vacinas com a ajuda da Lei de Defesa da Produção, uma norma que datava da Guerra da Coreia (1950) e que confere ao presidente dos Estados Unidos o poder de obrigar as empresas a aceitarem e priorizarem contratos necessários para preservar a segurança nacional.

A pandemia levou o Governo Trump a invocá-la, tanto para acelerar a produção de máscaras como para poder depois assegurar certos suprimentos para a produção da vacina. A receita do sucesso de Biden foi que o presidente reforçou as ajudas aos Estados, multiplicou os centros de vacinação federais e apostou numa rede de farmácias de proximidade. Essa foi uma das chaves do triunfo: que as vacinas estejam disponíveis em muitos lugares, seja um campo de beisebol ou em grandes descampados onde não é preciso nem descer do carro para receber a injeção. A produção e a distribuição foram decisivas e são as responsáveis, em grande medida, por esses resultados. Algo que o Governo Trump não conseguiu, por ter deixado o plano a cargo de cada Estado. Biden, ao contrário, assumiu as rédeas a partir de Washington para garantir que a vacinação fosse realmente maciça e se centrou na compra de suficientes doses não só para centros de atendimento médico, os primeiros a receberem as vacinas, mas também para que chegassem o quanto antes a toda a população, nos lugares menos esperados e sem parar por causa de feriados. “Se fizermos isto juntos, até 4 de julho é possível que você, sua família e amigos possam se reunir no quintal ou no bairro para organizar um almoço ou um churrasco e comemorar o Dia da Independência.” Esse é o objetivo máximo de Biden.

Ambição para superar a pandemia e modernizar o país

A ambição dos planos de estímulo e reconstrução, sem precedentes desde o New Deal de Franklin Roosevelt, definiu o programa econômico de Joe Biden nos primeiros 100 dias de seu mandato, mas seus objetivos vão além. É o que demonstra sua proposta de reforma fiscal, para exigir uma prestação de contas de multinacionais ―incluídas as grandes tecnológicas―, que durante anos esquivaram o pagamento de impostos federais e para obter financiamento para seus programas. Depois de sua declaração de intenções ―o plano de resgate da pandemia, de 1,9 trilhão de dólares (equivalente ao PIB do Brasil), aprovado pelo Congresso em março―, a Administração democrata se dispõe a modernizar os EUA mediante um colossal plano de infraestruturas, com investimentos de dois trilhões de dólares em oito anos para gerar milhões de empregos. A reforma fiscal será, se aprovada no Congresso, o instrumento para isso. O objetivo maior da sua política é combater pela raiz males como a pobreza infantil e, acima de tudo, uma desigualdade social sistêmica; os dois planos (o resgate e o programa de infraestrutura) incluem numerosas iniciativas a esse respeito. A principal diferença entre ambos está no financiamento: o primeiro fica a cargo do orçamento federal, o que aumentará o endividamento; o segundo depende dos contribuintes.

Mediante a projetada reforma fiscal, que pretende elevar o imposto empresarial de 21% para 28%, o presidente não só aspira a arrecadar 2,5 trilhões de dólares nos próximos 15 anos para financiar seu exaustivo programa de reconstrução; ele quer mudar as regras do jogo. Esse propósito precisará ser visto com o Congresso, e não só os republicanos. “Os [democratas] moderados propõem uma menor elevação do imposto empresarial, para 25%”, aponta Jack Janasiewicz, da administradora de recursos Natixis.

Quando chegou à Casa Branca, ainda não se via a luz ao final do túnel da pandemia. Por isso, como prometeu em campanha, a primeira medida foi o plano de 1,9 trilhão de dólares como injeção econômica direta, a metade em forma de cheques em dinheiro para famílias e negócios afetados pela emergência, e o resto para ampliar a cobertura dos desempregados. O plano incluía uma verba de 400 bilhões (2,19 trilhões de reais) para incentivar a vacinação. A julgar pelos resultados (25% da população está imunizada), o objetivo se cumpriu. Pelo caminho da tramitação parlamentar ficou, entretanto, a promessa eleitoral de aumentar o salário mínimo federal para 15 dólares por hora.

O plano de infraestrutura aspira a reforçar o país frente ao avanço da mudança climática; de fato, a proposta do primeiro orçamento federal da Administração democrata prioriza a luta contra o aquecimento global. “Biden está preparando uma ordem executiva para insistir com as agências federais para que tomem medidas de combate aos riscos financeiros relacionados ao clima, incluindo medidas que poderiam impor uma nova regulação às empresas”, antecipa Janasiewicz. O principal temor é um repique da inflação, que, até agora, graças à intervenção do Federal Reserve (banco central), ficou sob controle. “O déficit subirá para 3,5 trilhões de dólares, uma cifra recorde, e esperamos que o crescimento do PIB possa superar 7% neste ano [6,5%, segundo o Fed]; isto só aconteceu três vezes nos últimos 70 anos. Agora cresceram as probabilidades de um período de inflação acima da meta do banco central”, apontavam recentemente em nota Libby Cantrill e Tiffany Wilding, da firma de investimentos Pimco, ressalvando que “a probabilidade de um processo inflacionário similar ao ocorrido na década de 1970 continua sendo relativamente baixa”.

Joe Biden e o presidente chinês Xi Jinping: aposta no multilateralismo. Foto: Lintao Zhang/Getty Images

Reabertura ao mundo, com a China na mira

A reabertura dos EUA ao mundo após quatro anos de isolamento percorreu várias estações nestes 100 primeiros dias do mandato de Joe Biden, com uma clara aposta no multilateralismo. As sanções à Rússia por sua ingerência eleitoral e um ataque cibernético maciço; a retirada definitiva das tropas do Afeganistão e o diálogo para reavivar o pacto nuclear com o Irã, que os EUA abandonaram em 2018, marcaram este período de graça, tanto como o fiasco da primeira reunião bilateral com a China. Além disso, Biden procurou na recente cúpula climática internacional recuperar a liderança para os EUA com um ambicioso plano de redução de emissões. Trata-se de uma guinada importante na política adotada pelo país nos últimos anos e implicará uma profunda transformação econômica desta potência.

Rússia, Afeganistão e Irã monopolizam os holofotes, enquanto a forja de velhas e novas alianças para rebater a pujança chinesa é a parte menos visível do iceberg diplomático. O fato de Yoshihide Suga, primeiro-ministro do Japão, ter protagonizado na semana passada a primeira visita oficial a Biden na Casa Branca indica qual é o objetivo primordial da sua política externa: frear a China e todos os seus desafios, tanto dentro do seu território (a repressão da minoria muçulmana aos uigures em Xinjiang) como no mar do Sul da China ou em seu apoio ao regime nuclear da Coreia do Norte, para não falar de suas ingerências em Hong Kong, Taiwan e Tibete. A primeira viagem oficial dos secretários de Estado e Defesa foi ao Japão, Coreia do Sul ―dois países onde os EUA mantêm tropas― e Índia, outro aliado crucial para domar a voracidade estratégica chinesa.

Apesar de ter devolvido a diplomacia ao cenário internacional, Biden não se privou de dar alguns murros na mesa, como ao anunciar as sanções mais duras contra o Kremlin desde a presidência de Barack Obama, fechando o parênteses de suposta cumplicidade ou negligência por parte de Trump, e a denúncia da implicação do poderoso príncipe herdeiro saudita, Mohamed bin Salman, no assassinato do jornalista crítico Jamal Khashoggi. Este último foi um movimento decepcionante para quem esperava medidas mais duras, inclusive sanções, mas soou como um aviso a um aliado tradicional, vital no equilíbrio regional do Oriente Médio. Apontar o dedo para o herdeiro foi a segunda advertência a Riad depois da retirada do apoio ao regime saudita na guerra do Iêmen, que o presidente democrata qualificou de “catástrofe humanitária e estratégica”.

A sombra da síndrome do Vietnã é alongada, e Biden começou seu mandato pondo limites a guerras sem fim como a do Iêmen, a da Síria ―parte do legado de Barack Obama― e a mais prolongada de todas, a do Afeganistão, quando se aproxima o vigésimo aniversário dos atentados do 11 de Setembro, origem da chamada “guerra ao terrorismo” declarada por George W. Bush. A permanência das tropas norte-americanas no país do Oriente Médio tinha chegado anos atrás a um beco sem saída, que as ações letais do Talibã e a dificuldade de levar adiante o diálogo com Cabul só contribuem para ressaltar. Sair do atoleiro afegão é um alívio para um país que continua recebendo corpos de soldados em sacos plásticos.

Apesar do que prometeu em campanha, Biden não retirará as tropas da Europa, e menos ainda em pleno reaquecimento da tensão na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia. Biden paralisou a retirada militar da Alemanha anunciada por Trump e vigia qualquer movimento no flanco oriental europeu, que representaria uma ameaça tanto para seus efetivos como para a linha de defesa da OTAN. A nova Guerra Fria com Moscou dominará as relações euro-atlânticas, junto com a declaração de boas intenções à União Europeia, pendente de se concretizar. Em outra mudança na política externa, o democrata reconheceu pela primeira vez neste sábado como “genocídio” a matança de armênios por parte do império turco, uma declaração que eleva a tensão com a Turquia, país que também é sócio da aliança atlântica.

Com exceção do México e do chamado Triângulo Norte (El Salvador, Honduras e Guatemala), para frear a saída de imigrantes irregulares, Biden não prestou atenção à América Latina.

Reviravolta nas políticas sociais

Antes de completar uma semana na Casa Branca, Joe Biden assinou uma ordem que proíbe a expulsão de qualquer membro do Exército por causa da sua identidade de gênero, levantando o veto imposto pelo ex-presidente Trump às pessoas transgênero. O decreto estabelece também que os departamentos de Defesa e de Segurança Nacional devem revisar os históricos de serviço dos militares que foram demitidos ou que tiveram sua reincorporação vetada por este motivo. O democrata se tornou o primeiro presidente a comemorar o Dia da Visibilidade das Pessoas Transgênero, celebrado desde 2009. O mandatário está pressionando para que o Senado aprove a Lei de Igualdade, que modifica a Lei de Direitos Civis de 1964 para incluir a proteção contra discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, junto com os casos motivados por raça, religião, sexo e origem nacional. Essas proteções se estenderiam a questões de emprego, moradia, educação, solicitação de crédito, entre outras áreas em que o coletivo costuma sofrer discriminações.

Os republicanos se opõem, entre outras razões, por medo de que isso obrigue pessoas religiosas a tomarem decisões que contrariem suas crenças, como a contratação em escolas privadas de pessoas cuja conduta viole seus princípios de fé. Para que o projeto se transforme em lei, deve obter 60 votos no Senado, que está dividido em metades iguais (50/50). Quanto ao direito ao aborto, a Administração de Biden também trabalha para reverter as decisões de seu antecessor. O democrata já revogou a medida que proibia ONGs e prestadores de serviços de saúde no exterior de utilizarem recursos do Governo norte-americano para prestar assessoria sobre aborto. Trump também proibiu que clínicas de planejamento familiar financiadas com recursos federais encaminhem suas pacientes para clínicas de aborto e cortou o orçamento destes centros, que atendem a mulheres de baixa renda. O Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS, na sigla em inglês) elaborou uma proposta para revogar esta última medida, que está em fase de discussão pública.

Em outra frente relevante, a agenda contra o racismo, Biden assinou quatro ordens executivas. Uma delas obriga o Departamento de Moradia e Desenvolvimento Urbano a tomar as medidas necessárias para “reparar as políticas federais racialmente discriminatórias que contribuíram para a desigualdade da riqueza durante gerações”. Outro decreto elimina os contratos do Departamento de Justiça com as prisões privadas. Os Estados Unidos são o país com maior população carcerária do mundo, composta desproporcionalmente por negros e latinos. As duas ordens restantes procuram combater a xenofobia contra os norte-americanos de ascendência asiática e aumentar a soberania das tribos nativas americanas.

Embora esteja em fase preliminar, o Governo democrata também quer reformar as normas sobre o assédio sexual em escolas. Biden assinou uma ordem executiva para que o Departamento de Educação revise as regras estabelecidas pelo Governo Trump, redefinindo o assédio sexual como uma gama limitada de ações “severas, generalizadas e objetivamente ofensivas”. O democrata afirmou que o Departamento de Educação deve “considerar suspender, revisar ou rescindir” qualquer política que não proteja os estudantes. Esse órgão prevê ―ainda sem data― convocar uma audiência pública para que estudantes, pais e profissionais da educação deem suas ideias antes que a Administração divulgue sua proposta sobre como colégios e universidades que recebem recursos públicos devem responder às acusações de agressão e assédio sexual.

Biden, além disso, criou o Conselho de Políticas de Gênero da Casa Branca, um organismo que coordenará os esforços do Governo para promover a equidade e igualdade de gênero mediante políticas e programas de combate aos preconceitos e à discriminação, e aumentar a segurança e as oportunidades econômicas. Também proporcionará recomendações legislativas e de política ao mandatário.

Desafio migratório

imigração é, junto com a crise do coronavírus, um dos principais problemas deste começo de Governo Biden. Os especialistas consultados para esta reportagem concordam que o Governo democrata estabeleceu a direção correta neste tema, mas as mudanças para desmontar o perverso sistema herdado de Donald Trump não chegaram com a velocidade esperada. O modelo migratório da nova era é um assunto pendente e, como muito do legado trumpista, terá sua sorte decidida num Congresso dividido e polarizado. “Esta direção é apenas parte de uma visão que está em construção. A Administração encara opções muito difíceis, e resta ver quais caminhos pode tomar no clima político atual”, afirma Hiroshi Motomura, acadêmico da Escola de Direito de Universidade de Califórnia em Los Angeles (UCLA).

Biden desenhou o perfil de sua reforma imaginada com uma série de ações nas primeiras horas de seu mandato. Prometeu regularizar 11 milhões de imigrantes irregulares, revogou o veto de viagens a alguns países muçulmanos e recriou os programas que garantem proteção a mais de um milhão de pessoas entre os jovens que chegaram aos EUA na infância (os chamados dreamers) e os migrantes provenientes de países afetados pela mudança climática e a pobreza, incluindo cidadãos venezuelanos. Também pôs fim à desumana política de separação de famílias e de expulsão de menores migrantes.

Câmara de Representantes, de maioria democrata, aprovou o plano de Biden. O Senado o tem em suas mãos, e seu aval é mais complexo. “Necessita 60 votos, e tem 50. Estamos esperando que passe, mas será preciso convencer 10 republicanos, e não será simples”, considera a advogada Alma Rosa Nieto, integrante da Associação de Advogados de Imigração. “Ainda estamos lutando com um partido republicano pró-Trump com muitos legisladores anti-imigrantes”, afirma. O senador Lindsey Graham, muito influente entre os republicanos, disse em março que não apoiará reforma migratória alguma “enquanto a fronteira [com o México] não estiver controlada”. É apenas um exemplo do duro pedágio que aguarda a Administração democrata, à espera também de que a Câmara Alta aprove uma série de nomeações que renovarão a cúpula de Segurança Doméstica e da vigilância de fronteiras com perfis progressistas de ativistas e policiais.

Washington nega que a atual situação configure uma crise. Os agentes da patrulha fronteiriça detiveram em março 172.331 migrantes. É um aumento de mais de 100.000 detenções desde janeiro, e o maior registrado desde março de 2001. Este aumento de entradas causa tensão em várias regiões fronteiriças. Bruno Lozano, prefeito de Del Río (Texas), uma cidade que viveu a chegada da onda, enviou em fevereiro passado um SOS a Biden. “Não temos recursos para acomodar estes migrantes em nossa comunidade”, disse o democrata, conhecido por ser o prefeito mais jovem (e abertamente gay) na história desta localidade de 35.000 habitantes. A mensagem se tornou viral e foi amplamente repercutida pelos setores mais conservadores, interessados em manter a ideia de que a fronteira está fora de controle.

Os analistas põem em perspectiva essas históricas cifras. “É falso dizer que as fronteiras estão abertas”, afirma Aaron Reichlin-Melnick, do Conselho Americano da Imigração. “Nos últimos três meses, quase 70% das pessoas que entraram foram expulsas rapidamente graças a uma norma implementada no ano passado por Trump durante a pandemia e que Biden manteve. Menos famílias estão sendo autorizadas a ficar em 2021 do que em 2019 com a Administração Trump”, acrescenta. Os adultos sozinhos continuam sendo o grupo mais numeroso de migrantes, embora o fenômeno dos menores desacompanhados tenha voltado a crescer até níveis inéditos. Em março foram 18.000, um número que superlotou os albergues do Governo, cuja manutenção custa pelo menos 60 milhões de dólares (328,6 milhões de reais) por semana ao Departamento de Saúde e Serviços Sociais.

Biden também manteve do Governo anterior o teto de 15.000 refugiados anuais autorizados a entrar nos Estados Unidos. A decisão causou alvoroço entre as bases democratas, que consideram rompida uma promessa de campanha de elevar os acolhidos a mais de 60.000. A polêmica forçou o Executivo a recuar. Deve anunciar medidas definitivas em maio, mas muitos concordam que foi uma oportunidade perdida para estabelecer um antes e um depois em relação a Trump, uma era que não acaba de desaparecer por completo.


Folha de S. Paulo: EUA veem onda de ofensivas para restringir acesso ao voto em estados republicanos

Diversos estados americanos debatem mudanças que podem tornar pleitos menos democráticos

Marina Dias, Folha de S. Paulo

O comparecimento recorde às urnas na disputa que levou Joe Biden à Casa Branca ainda reverbera e tem gerado uma reação histórica contra o sistema eleitoral americano. Sob o pretexto de responder às falsas alegações de que houve fraude na eleição de 2020, diversos estados estão aprovando leis que restringem o voto e podem tornar os pleitos cada vez menos democráticos nos EUA.

Desde a derrota de Donald Trump, em novembro do ano passado, legisladores republicanos protocolaram centenas de projetos de lei para fazer do ato de votar mais difícil para pessoas negras e vulneráveis, em uma investida vista por especialistas como a mais perigosa desde as chamadas leis Jim Crow, que legalizaram a segregação racial no final do século 19.

Levantamento do Brennan Center for Justice, da Universidade de Nova York, mostra que, de novembro até 24 de março, 361 projetos de leis com restrições ao voto haviam sido apresentados em 47 dos 50 estados americanos. Em 19 de fevereiro, o número era 253, ou seja, um aumento de 43% nas ações em pouco mais de um mês.

A maioria desses projetos visa restringir o voto por correio, prática comum nos EUA e cuja utilização bateu recorde nas eleições do ano passado devido à pandemia —e um dos fatores para a vitória de Biden.

No fim do mês passado, a aprovação de um pacote eleitoral bastante restritivo na Geórgia alarmou especialistas, que detectaram uma espécie de efeito cascata sobre estados geralmente definidores da corrida à Casa Branca, como Texas, Arizona, Flórida e Michigan. Todos eles também avaliam aprovar novas normas eleitorais.

Com 10,6 milhões de habitantes, 32,6% dos quais negros, a Geórgia não votava em um democrata para a Presidência há 28 anos, mas em 2020 deu vitória dupla aos opositores de Trump: elegeu Biden e a cadeira que deu maioria aos democratas no Senado.https://s.dynad.net/stack/928W5r5IndTfocT3VdUV-AB8UVlc0JbnGWyFZsei5gU.html[ x ]

Os resultados mexeram com o humor dos aliados de Trump, que agiram rapidamente. Entre as medidas aprovadas pela Assembleia Legislativa do estado, de maioria republicana, está a exigência de um documento com foto para quem votar por correio, além da redução do tempo e do número de locais de votação onde essas cédulas podem ser depositadas. Houve até mesmo a criminalização do ato de distribuir comida ou bebida para quem estiver nas filas de votação.

Especialista em estatística para políticas públicas da Universidade de Michigan, Jonathan Hanson concorda que essa é a maior onda contra o sistema eleitoral que os EUA já viram desde as leis segregacionistas e que os pleitos têm ficado cada vez menos democráticos em estados republicanos.

“O impacto da aprovação dessas leis será a redução da participação eleitoral”, explica o professor. “A maioria delas é desenhada para tornar o voto mais difícil aos eleitores democratas, que tendem a ser de renda mais baixa, com empregos que não permitem, muitas vezes, dispensa para comparecer às urnas [eleições nos EUA acontecem em dia útil], e são menos propensos a ter documentos com foto.”

Nos EUA, o voto não é obrigatório, e o eleitor pode escolher seu candidato de três maneiras: a mais tradicional é ir à urna no dia da eleição, mas é possível também votar pessoalmente de forma antecipada ou depositar o voto por correio.

A democrata Stacey Abrams, que deve concorrer ao governo da Geórgia em 2022, condena as novas legislações. Ela foi um personagem-chave para estimular o comparecimento de jovens e negros às urnas no ano passado​.

“Esses projetos de lei estão sendo promulgados em todo o país com o objetivo de bloquear eleitores que estão se tornando inconvenientes para o Partido Republicano: minorias, jovens e pobres”, afirmou em entrevista ao Atlanta Journal-Constitution.

Ainda de acordo com dados do Brennan Center for Justice, das centenas de projetos protocolados com restrições ao voto, cinco foram aprovados —um deles o da Geórgia— e outros 55 estão caminhando rapidamente em 24 estados diferentes —29 deles já foram aprovados ao menos pela Câmara estadual e outros 26 passaram por comissões.

Os estados com maior número de projetos de lei desse tipo apresentados foram Texas (29), Geórgia (25) e Arizona (23), todos de tradição republicana mas que têm caminhado à centro-esquerda, com mudanças demográficas que refletem na tendência política de suas populações.

A avaliação de que o acesso ao voto tem ficado cada vez mais difícil em algumas regiões do país é cristalizada em um estudo da Universidade de Washington, liderado pelo cientista político Jake Grumbach. Ele mostra que essas leis restritivas seguem um padrão mais amplo e têm tornado as eleições menos democráticas nas duas últimas décadas, quase que exclusivamente em estados controlados por republicanos.

Grumbach desenvolveu o que nomeou de índice de democracia estadual, para medir a saúde das instituições democráticas em todos os 50 estados americanos entre 2000 e 2018, com base em direitos de voto e liberdades civis. Em um intervalo de -1 a 1, no qual 1 é mais democrático e -1 é menos democrático, estados comandados por republicanos têm ficado cada vez mais próximos do -1, enquanto aqueles controlados por democratas estão perto do 0,5.

Algumas regiões democratas têm investido em leis que ampliem o direito ao voto, mas ainda são minoria, já que cerca de 30 dos 50 estados americanos têm ao menos a assembleia legislativa controlada
por correligionários de Trump.

Não é de hoje que os republicanos tentam dificultar o voto de eleitores negros, mais pobres e mais vulneráveis, mas a batalha deste ano chamou a atenção pelo volume de esforços às vésperas das disputas de meio de mandato, em 2022, e pela tentativa de interferência direta de Biden. O presidente chamou a lei aprovada na Geórgia de “anti-americana” e pediu ao Departamento de Justiça avaliar as mudanças.

O professor Hanson, porém, alerta que Biden não pode fazer muita coisa sozinho —os estados têm autonomia para controlar seus processos eleitorais nos EUA— e diz que, em última instância, somente a Suprema Corte poderia barrar ações caso haja violações à Constituição americana.

“A Justiça pode impedir que pessoas negras sejam proibidas de votar, por exemplo, porque isso é uma violação do direito ao voto. Mas há ainda áreas cinzentas, como sobre o prazo para voto antecipado, em que o estado pode argumentar que é sua atribuição. O sistema eleitoral americano é tão complicado que, na verdade, cabe um pouco de tudo.”

Parte dos republicanos —que compõe a ala mais fiel a Trump— diz que as novas regras vão deixar as eleições mais seguras e acessíveis, mas os quadros mais moderados do partido temem o custo político da investida.

Em vez de tentar conquistar os grupos que votaram em peso em Biden, avaliam, o partido está tentando afastá-los do processo democrático em nome de teorias conspiratórias patrocinadas pelo presidente mais controverso da história americana.


Demétrio Magnoli: O maior erro de Biden

Joe Biden imagina-se, com boas razões, na posição ocupada por Franklin Roosevelt em 1933. Seu pacote fiscal de US$ 1,9 trilhão aquecerá uma economia que já retomou a expansão, direcionando-a para tecnologias transformadoras. Seus primeiros gestos diplomáticos revitalizam as alianças transatlântica e transpacífica que sustentam a influência global dos EUA. Mas nada disso minimizará as consequências de um pecado capital: seu governo segue o roteiro do nacionalismo vacinal de Donald Trump.

O nacionalismo vacinal é a regra entre os países ricos. O Canadá comprou vacinas para imunizar cinco vezes sua população, mas enfrenta dificuldades com o lento fornecimento de doses. A União Europeia adquiriu vacinas em abundância, mas o fez tarde demais e enfrenta carência de imunizantes. Por isso, em desespero, ameaça invocar o Artigo 122 do Tratado da UE, uma lei extraordinária, para impedir a exportação de doses da Oxford/AstraZeneca produzidas em seu território ao Reino Unido. O governo britânico, que aplicou rapidamente a primeira dose em dois quintos da população, impôs um controle oculto à exportação de vacinas.

“As vacinas são para braços americanos primeiro”, declarou Biden, alinhando-se ao nacionalismo vacinal de Trump. Os EUA utilizam a Lei de Produção de Defesa, instrumento criado durante a Guerra da Coreia (1950-53), para impedir exportações de imunizantes sem autorização federal. O America First não terminou com a troca de comando na Casa Branca, mas retraiu-se à esfera da vacinação.

Há exceções pontuais dignas de nota. O Quad, articulação de segurança patrocinada pelos EUA que abrange Japão, Índia e Austrália, prometeu fornecer um bilhão de doses aos países do Sudeste Asiático, num gesto de contenção da influência regional da China. Há pouco, Washington concordou em remeter suas doses estocadas da Oxford/AstraZeneca ao Canadá e ao México. Nesse caso, a “generosidade” é apenas uma extensão do nacionalismo vacinal: a reabertura da fronteira norte depende da imunização no Canadá, e a pandemia só poderá ser declarada extinta nos EUA quando o México vacinar a maior parte de sua população.

A vacinação em massa nos EUA, além de medida sanitária urgente, é parte da estratégia geopolítica de Biden, que depende de uma pujante retomada do crescimento econômico. Mas o nacionalismo vacinal implica renúncia à projeção de influência americana em vastas áreas do mundo em desenvolvimento. China e Rússia agem, agressivamente, para preencher o vácuo.

Três vacinas de origem chinesa (Sinopharm, Sinovac e Cansino) são os principais imunizantes aplicados em parte do Sudeste Asiático, no Paquistão, na Turquia e em países da África do Norte. A Sputnik V, de origem russa, também difundiu-se por países da Ásia Central e do Oriente Médio, da África e mesmo da Europa Central (Hungria e Sérvia).

Pior para os EUA, do ponto de vista geopolítico, é o sucesso da diplomacia vacinal chinesa e russa na América do Sul. O Brasil vacina essencialmente com o imunizante da Sinovac, algo que obrigou o governo Bolsonaro a desistir da aventura insana de barrar a chinesa Huawei do leilão de 5G. No Chile, único país que imuniza velozmente na região, mais de 90% das doses aplicadas são da vacina da Sinovac, sobrando à da Pfizer/BioNTech cerca de 8%. A Argentina, por sua vez, depende principalmente da Sputnik V.

A vacina da Pfizer/BioNTech é quase exclusivamente aplicada em países ricos. A vacina da Moderna não foi nem sequer oferecida a países em desenvolvimento. A África do Sul adquire o imunizante da Oxford/AstraZeneca por mais de duas vezes o preço pago pela União Europeia. A África inteira, com população de 1,3 bilhão, só garantiu 300 milhões de doses para os próximos meses.

Tedhros Adhanom, da OMS, descreveu o cenário como um “fracasso moral catastrófico”. Na hora decisiva da pandemia, o abandono do mundo em desenvolvimento pelos EUA e por seus aliados europeus tende a provocar, ao lado do “fracasso moral”, uma marcante redução da influência global das potências ocidentais. A sombra destrutiva de Trump ainda pesa sobre a Casa Branca.


Ribamar Oliveira: A derrota do governo evita o pior para Guedes

Como estava, a PEC 186 promovia uma super vinculação

O governo perdeu ontem na votação de um dispositivo da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 186, aquele que trata da proibição de vinculação das receitas públicas a órgão, fundo ou despesa. A derrota, no entanto, pode ter sido um alívio para o ministro da Economia, Paulo Guedes. A derrubada evita um engessamento ainda maior do Orçamento da União.

A Câmara dos Deputados já tinha aprovado, em primeiro turno, a PEC que veio do Senado e votava as emendas destacadas. Da forma como estava redigido, o texto promoveria uma super vinculação de receitas, na contramão da defesa que o ministro Guedes vem fazendo, desde que tomou posse no cargo.

Uma das emendas destacadas, apresentada pelo líder do PDT, Wolney Queiroz (PE), eliminava a mudança no inciso IV do artigo 167 da Constituição, que trata da proibição de vinculação das receitas públicas a órgão, fundo ou despesa. A desvinculação da receita a despesas orçamentárias é um dos 3 D da estratégia de Guedes. Os outros dois são a desindexação e a desobrigação do gasto.

Atualmente, o inciso IV do artigo 167 da Constituição veda a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa. E ressalva a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde e para manutenção e desenvolvimento do ensino.

Ressalva também a destinação para a realização de atividades da administração tributária, que beneficia a Receita Federal, a prestação de garantias às operações de créditos por antecipação de receita e para prestação de garantia e contragarantia à União para o pagamento de débitos, além das transferências por repartição de receitas para Estados e municípios.

Guedes queria eliminar, principalmente, a vinculação de recursos para saúde e educação. Na primeira versão de seu substitutivo, o senador Márcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC 186 no Senado, atendeu ao ministro e acabou com essa vinculação. A forte reação da opinião pública obrigou Bittar a retroceder.

O relator, no entanto, ampliou substancialmente as ressalvas à proibição de vinculação de receitas. Em seu parecer ele permitiu vincular as receitas oriundas da arrecadação de taxas, doações, de atividades de fornecimento de bens ou serviços facultativos e na exploração econômica do patrimônio próprio dos órgãos e entidades da administração, remunerados por preço público, bem como o produto da aplicação financeira desses recursos, transferências recebidas para o atendimento de finalidades determinadas e as receitas de capital.

Nada disso está no atual texto constitucional. “A Constituição só trata de vinculação de impostos e de contribuições sociais”, explicou o ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, em conversa com o Valor. “A vinculação das receitas oriundas de taxas e de atividades da administração remuneradas por preços públicos é matéria de lei. Assim, ao levar para a Constituição, em vez de desvincular, a PEC vinculou”, disse.

Quando os senadores perceberam a ampliação feita por Bittar, apresentaram suas reivindicações. Assim, a PEC 186 aprovada pelo Senado passou a ressalvar as vinculações de receitas para o Fundo Nacional de Segurança Pública, o Fundo Penitenciário Nacional, o Fundo Nacional Antidrogas, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o Fundo de Defesa da Economia Cafeeira, o Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-fim da Polícia Federal, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente, o Fundo Nacional da Cultura e para manter os programas de financiamento a estudantes de cursos superiores não gratuitos.

Além disso, a PEC permitiria a vinculação de receitas “de interesse à defesa nacional e as destinadas à atuação das Forças Armadas”. Este comando abriria possibilidades de numerosas novas vinculações de receita, principalmente porque ele foi redigido de forma genérica, sem especificações mínimas de sua amplitude.

Durante a tramitação da PEC na Câmara, o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), disse aos repórteres Raphael Di Cunto e Marcelo Ribeiro, do Valor, que recebeu mensagens de ministros tentando criar exceções ao texto. “Recebi mensagem da ministra Damares Alves (ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) para retirar o fundo dos idosos (da proibição de vinculação de receita)”, informou o parlamentar.

Mesmo aceitando todas as ressalvas à proibição de vinculação em seu substitutivo, Bittar excluiu da relação os recursos para a realização de atividades da administração tributária, ou seja, aquele que beneficia atualmente a Receita Federal. Isso revoltou os servidores da Receita, que ameaçavam entregar os cargos comissionados que ocupam e realizar uma paralisação dos serviços.

Quando foi colocado o destaque apresentado pelo PDT, todos aqueles que desejavam mudar o texto sobre vinculação de receita, uniram-se. A Câmara dos Deputados aprovou o destaque por apenas seis votos: 302 deputados votaram contra a proposta pedetista, quando eram necessários 308.

Guedes ficou sem a desvinculação das receitas, mas evitou o pior: uma super vinculação. De sua estratégia dos 3 D, o ministro da Economia já tinha perdido a desindexação (não correção por um índice de inflação) do salário mínimo, dos benefícios previdenciários e assistenciais. Essa proposta foi vetada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro. O secretário especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, quase perdeu o cargo ao defender a desindexação, em nome de seu chefe imediato.

A PEC 186 aumentou também aquilo que Guedes queria diminuir, que são os comandos constitucionais obrigando o governo a realizar despesas. A desoneração da cesta básica passou a ser uma obrigação constitucional. O ministro da economia queria substituir esse benefício por outro que chegasse melhor a quem necessita. Não poderá mais. Assim, com a aprovação da PEC 186, a estratégia dos 3 D de Guedes foi definitivamente arquivada.


José Serra: A pressa é inimiga da Constituição

Sociedade tem o direito de esperar que processo legislativo seja seguido com absoluto rigor

O escritor português José Saramago é conhecido por tiradas geniais que nos fazem refletir diante de encruzilhadas. Lembrei-me de uma delas em plena votação da chamada PEC Emergencial: “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo”. O Senado aprovou celeremente uma emenda constitucional que autoriza o pagamento do auxílio emergencial, mas, ao mesmo tempo, cobre a Constituição com uma cortina de fumaça que compromete a credibilidade do nosso arcabouço fiscal.

Nosso país enfrenta a pior fase da pandemia, com nosso sistema público de saúde próximo do colapso. Diante disso, infelizmente, o governo vem sendo negligente: critica o uso de máscaras, condena o distanciamento e dificulta a vacinação.

Na discussão da PEC Emergencial o governo adotou uma estratégia que consiste em acuar o Congresso, com o objetivo de aprovar a agenda de austeridade improvisada pelo Ministério da Economia. Usou seu poder para introduzir na PEC um dispositivo que torna viável o pagamento de um benefício emergencial ao mesmo tempo que, em troca, embute uma obscura reforma estrutural nas demais partes da emenda.

Às limitações do sistema semipresencial de votações junta-se uma celeridade que torna a discussão precipitada e os resultados, confusos. Analisando a proposta com a experiência que tive de relator dos capítulos de finanças públicas na Constituinte, percebi a armadilha em que fui colocado: sem poder votar contra o auxílio emergencial, nem concordar com que se manipule a Constituição.

Julgo que emendar a Constituição implica responsabilidade análoga à tarefa de elaborá-la. A maioria dos estudiosos classifica as alterações constitucionais como emanadas do poder constituinte. Assim sendo, sua execução exige o máximo de cautela, a fim de evitar casuísmos e imprudências com a norma jurídica mais importante da fundação do Estado.

O próprio texto constitucional se protege de mudanças improvisadas e arriscadas: estabelece que não se pode emendá-lo na vigência de situações emergenciais, como o estado de defesa, o estado de sítio e a intervenção federal. Esse dispositivo, aliás, remonta à Constituição de 1934, em resposta à Emenda Constitucional n;° 3, promulgada em plena vigência do estado de sítio decretado em 1926 pelo presidente Artur Bernardes.

A pandemia permanece assolando nosso país e impedindo a volta da normalidade. Neste contexto, várias comissões do Congresso Nacional nem sequer voltaram a funcionar. Isso por si só já justifica postergar a votação de emendas constitucionais, a não ser que haja absoluto consenso, como no caso do Fundeb.

Mas o texto da PEC Emergencial exige considerações acerca das duas dimensões: uma emergencial, outra estrutural. Considero a emergência a dimensão mais importante para enfrentar o vírus e nela constato uma tática do tipo tudo ou nada. A medida torna viável o pagamento de auxílio emergencial limitado a R$ 44 bilhões, o que pode ser considerado o plano oficial do governo para enfrentar o vírus neste ano.

Assim como não foi possível combater a emergência sanitária no ano passado com R$ 5 bilhões – de acordo com os planos do governo no início da crise –, é improvável que a estimativa atual seja suficiente para enfrentar todos os efeitos da pandemia em 2021. Para resolver esse impasse previsível a PEC apresenta outra saída emergencial: suspender todas as regras fiscais do País. Uma emenda comparável a um AI-5 sobre o sistema fiscal previsto na Constituição.

Um plano fiscal para enfrentar a crise é o mínimo que se espera de um governo responsável. Não temos plano. Nem mesmo o Orçamento anual foi aprovado.

Ademais, a proposta encaminhada à Câmara compromete a credibilidade do nosso arcabouço fiscal. Criam-se regras fiscais com lacunas jurídicas e incentivos à contabilidade criativa, levando ao crescimento do gasto público.

Sabe-se que a crise fiscal tem um viés eminentemente federativo. Hoje, 68% das despesas com funcionários e 84% das verbas destinadas ao consumo de bens e serviços têm sua origem nos Estados e nos municípios. A PEC 186 estabelece que as medidas de ajuste fiscal a serem adotadas por governadores e prefeitos limitem a despesa corrente a um máximo de 95% da receita corrente.

Uma análise, mesmo superficial, revela que esse porcentual pode estimular o aumento da despesa: governadores e prefeitos que gastam menos de 95% poderão aumentar as despesas até esse patamar, especialmente em épocas de eleição. O Executivo poderá aumentar os gastos correntes dando aumentos salariais e subsídios, pois a regra tem por alvo o gasto passado, mas não o futuro.

Numa situação emergencial como a que vivemos hoje, não se deveria sequer pensar em alterar regras estruturais do Estado brasileiro. O momento não é propício, o contexto é temerário. A sociedade tem direito a esperar de nós, seus representantes na Câmara e no Senado, que o processo legislativo seja seguido com absoluto rigor.

Em poucas palavras: a pressa é inimiga da Constituição.

*Senador (PSDB-SP)


O Estado de S. Paulo: Eduardo Bolsonaro manda população ‘enfiar no rabo’ máscara contra covid-19

Filho do presidente, deputado federal critica cobertura da imprensa sobre uso de itens de proteção contra infecções pelo coronavírus

André Borges, Lorenna Rodrigues e André Shalders, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Visivelmente irritado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) mandou a população brasileira enfiar as máscaras de proteção contra a covid-19 “no rabo”. Em uma aparição ao vivo que fez em seu perfil pelo Instagram, o filho “03” de Bolsonaro criticou o uso do principal item de proteção contra a contaminação do vírus que, dia após dia, causa recordes de mortes no País. 

“Eu acho uma pena, né, (que) essa imprensa mequetrefe que a gente tem aqui no Brasil fique dando conta de cobrir apenas a máscara. 'Ah a máscara, está sem máscara, está com máscara'. Enfia no rabo gente, porra! A gente está lá trabalhando, ralando”, afirmou o deputado. As declarações de Eduardo foram feitas no dia em que o presidente Jair Bolsonaro mudou o discurso, usou máscara e passou a defender as vacinas. Nesta quarta-feira, 10, o Brasil também atingiu mais um recorde de mortes: pela primeira vez foram registradas 2.349 mortes por covid-19 em 24 horas.

Em tom agressivo, enquanto seguia em um carro no banco de carona, o deputado comentou, ainda, o caso das rachadinhas de Fabrício Queiroz e a compra de uma mansão de R$ 6 milhões por seu irmão, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

“Você, retardado mental, que fica falando ‘o problema são os filhos, cadê o Queiroz?’, pagou o apartamento R$ 50 mil em dinheiro. Seu animal, larga de ser um peão nesse tabuleiro de xadrez chamado política e começa a pensar um pouquinho, ver o perigo que está por vir e ver como o sistema trabalha porque não dá ponto sem nó, não. Fique com Deus e não consuma cachaça em excesso igual a uns e outros aí”, disse.

Eduardo Bolsonaro também afirmou que iria comentar o resultado da viagem que fez com uma comitiva para conhecer o spray contra a covid-19 em testes iniciais em Israel. Na prática, porém, o que acabou dizendo é que o Brasil é que está desenvolvendo a sua vacina. E não só uma, mas três vacinas próprias.

“Você sabia que o Brasil está desenvolvendo três vacinas?”, perguntou. “A vacina brasileira ainda está em desenvolvimento, não é para agora”, comentou ele, acrescentando que o Brasil terá seu próprio spray e que outros países deverão vir ao País comprar esse produto. Ele não deu nenhum detalhe sobre o que estava falando.

“É importante a gente dominar essa tecnologia e dominar, ter a vacina brasileira. Além disso, isso coloca o Brasil em outro patamar internacional. Ao invés de nós irmos atrás de outros países, eles é que virão atrás de nós. Pode ser inaugurada uma vacina que não precise mais de insumos de outros países. Os israelenses gostaram muito disso”, afirmou.

Além do spray definido pelo presidente de “milagroso”,  que atuaria em conjunto com uma vacina, Eduardo disse que o Brasil tem uma segunda tecnologia em análise, com efeito “dois em um”, que curaria covid-19 e influenza.

“A terceira vacina vai diretamente em seu sistema imunológico. O Brasil está desenvolvendo tecnologia nesta área”, observou, sem nenhum detalhe, data ou previsão de testes.

“Depois que está a invenção feita, aí ‘tá’ o mundo inteiro correndo atrás da vacina, o mundo inteiro correndo atrás dos insumos… Aí já era. Isso que a gente foi fazer em Israel é à semelhança do que ocorreu com a vacina de Oxford. É chegar primeiro, chegar no começo. Quando estávamos saindo de Israel, estava chegando uma delegação de outro país, da República Checa”, lembrou o deputado. “Já procurou Israel não só a Grécia, mas também a Dinamarca, o Chipre, e alguns outros países. Acho que a Áustria também. Então, onde há tecnologia, o mundo inteiro está proativamente se deslocando.”


Eugênio Bucci: Justiça performática

Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do STF nos sobressaltam

Em dois dias, mudou tudo. Na segunda-feira, em despacho monocrático, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), devolveu os direitos políticos a Luiz Inácio Lula da Silva. Ao anular as sentenças da Lava Jato contra o ex-presidente, sob o argumento de que o juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba, Sergio Moro, não era aquele a quem cabia a competência para decidir sobre as acusações que pesavam contra o réu, Fachin limpou a ficha de Lula, que agora está livre para se candidatar em 2022.

No dia seguinte veio mais. A Segunda Turma do mesmo STF começou a julgar a parcialidade e a suspeição do juiz Sergio Moro nas sentenças contra Lula. O julgamento levado a efeito pela Segunda Turma ainda não foi concluído, pois o ministro Nunes Marques pediu vista, dizendo que precisava estudar melhor o processo antes de votar, mas o que os ministros disseram na tarde de anteontem abalou o que se tinha por certo e sabido. Quando se referiu à Operação Lava Jato como “o maior escândalo judicial da nossa história”, o ministro Gilmar Mendes deixou claro: tudo mudou.

Nada contra o veredicto de segunda. Nada contra a sessão de terça. As razões processuais alegadas pela defesa do ex-presidente Lula vão se demonstrando irrefutáveis. A incompetência do juízo de Curitiba só demorou uns anos para ser admitida no STF, mas é cristalina. Ninguém mais parece disposto a refutá-la, a não ser que tudo mude de novo. Quanto aos sinais de parcialidade do magistrado responsável pela Operação Lava Jato, que foram enumerados na terça pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, não há peneira hermenêutica que dê conta de encobri-los. Houve abusos, alguns provados, outros até tacitamente admitidos.

Ao menos no caso de Lula, o juiz da Lava Jato perpetrou injustiças em série, ainda que tenham sido injustiças estritamente processuais, formais, como vem postulando a defesa. Por isso já se sabia que, em algum prazo, de alguma forma, essas injustiças acabariam sendo reconhecidas pelo Supremo, como começou a ser feito nestes dois dias. Só não se sabia que as coisas viriam assim, tão espetaculosas, alvoroçadas e atordoantes.

Portanto, o problema não é o que se decidiu. Ao contrário, a nova postura do STF sobre a matéria talvez seja até parte da solução. O problema é o risco imenso de se aprofundar uma impressão generalizada de que a mais alta instância da Justiça no Brasil se pauta pela inconsistência e pela imprevisibilidade errática. O risco não deveria ser desprezado. Justiça não combina com ciclotimia.

A instituição incumbida de julgar todos nós não deveria sentir-se à vontade para mudar assim ao sabor das brisas, dos ventos e mesmo dos furacões. Alguma linha de coerência há de perdurar entre as decisões, sob pena de a sociedade parar de acreditar de vez na magistratura. Deus, que é Deus, pode escrever por linhas tortas. Os juízes, não, por mais que alguns insistam.

E agora? A sociedade brasileira assimilará bem a incongruência entre os acórdãos impenetráveis da mais alta Corte do País? Qual o limite para tantas idas e vindas? Se as arbitrariedades contra Lula eram patentes e gritantes, como eram, por que se permitiu que elas fossem tão longe? Por que se permitiu que elas o tirassem da eleição de 2018 e o enjaulassem. E por que reconsiderá-las agora, justo agora e só agora?

Se Moro praticou atos inadequados, que incidiram sobre o andamento de momentos históricos de enorme repercussão, por que ele seguiu imune e adulado por tanto tempo? E por que questioná-lo agora, assim? A impressão que se tem é que no Brasil de hoje tudo está sub judice: a prisão de Lula, que agora transparece como uma violência indizível, está sub judice e, junto com ela, a posse de Michel Temer na Presidência da República, a abolição da escravatura, a Guerra do Paraguai e o descobrimento do Brasil. É como se na segunda que vem o STF declarasse nulas as violações ao Tratado de Tordesilhas e, em seguida, anulasse também o próprio tratado, porque uma das firmas não foi devidamente reconhecida. Vai saber... O STF parece acreditar que faz o tempo retroceder.

Normalmente os críticos do Judiciário, focados nas tecnicalidades da aplicação da lei, esmiúçam a observância ou a inobservância dos ritos e o rigor ou a frouxidão das derivações jurisprudenciais de cada fundamentação. A esta altura nós deveríamos preocupar-nos igualmente com a percepção que os brasileiros terão da Justiça nos próximos anos.

O leigo pode não saber o que é heurística, pode não entender o significado de expressões como ex ofício ou ex ante e ex post, mas sabe perfeitamente o que é certo e o que é errado. Todo ser humano tem senso moral, percebe intuitivamente a iniquidade, separa o justo do injusto. Se, por algum motivo, os seres humanos deste país não virem mais no Poder Judiciário a encarnação legítima da justiça, tudo o que está mudando vai abaixo.

Eis o “ó do borogodó”, para invocarmos o novo brocardo jurídico. Vivemos num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do Supremo Tribunal nos sobressaltam. Enquanto tudo muda, e alguma coisa está fora de prumo.

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Ascânio Seleme: Lula foi ainda mais Lula

Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas ex-presidente foi mais longe

Retire os excessos de retórica e as figuras de linguagem, sublime os trechos destinados ao público interno e à militância. Ignore os erros involuntários e mesmo os estudados. Esqueça o tom de campanha. O resultado será um discurso grande, importante. Lula voltou com tudo. É verdade que o ex-presidente foi beneficiado pela torpeza e pela ignorância do seu oposto.

Depois de dois anos ouvindo Bolsonaro, qualquer um que lhe fizesse frente se destacaria com louvor. Mas Lula foi mais longe. Falou de política, economia, saúde; conversou com os brasileiros nos seus termos; mostrou que está pronto para negociar em todos os âmbitos; e apontou quem é o seu inimigo.

Isso, sem texto pronto, sem teleprompter, apenas com uma lista de tópicos em sua frente.

Com a mesma empatia de sempre, mas sério, sem se permitir às gracinhas habituais de seus discursos, Lula se posicionou de maneira inequívoca como uma opção para o Brasil e os brasileiros. Os diversos pontos do discurso, mesmo os que não pareciam apontar na mesma direção, tinham Bolsonaro como alvo. Mas sempre com postura presidencial.

Ao lembrar que a terra é redonda ou ao criticar a política de liberação de armas, o tom foi de compromisso, não de chacota. Mesmo ao defender uma política econômica não liberal, dizendo que o governo não tem ministro da Economia, o ex-presidente queria mesmo era mostrar seu apoio à política de distribuição de renda através do salário emergencial, substituto provisório do seu Bolsa Família.

A insistência ao tratar do coronavírus também tinha endereço. E o destinatário do Palácio do Planalto recebeu a mensagem no mesmo dia, se apresentando logo em seguida para falar sobre a vacinação e, incrível, usando máscara.

Aos brasileiros, Lula falou da fome, do preço da gasolina, da picanha na mesa do trabalhador, do seu eterno objetivo de chegar à raiz dos problemas nacionais por querer um mundo mais justo. Retórica, claro, mas que toca no coração das pessoas. Se Bolsonaro consegue acertar o estômago dos brasileiros com suas grosserias, Lula busca o coração com suas sutilezas. E é isso o que o distingue do outro.

Negociação com o Congresso, com toda a classe política, nas suas palavras, e com os empresários é aceno do Lulinha, Paz e Amor. O mesmo que disse não guardar mágoas, apesar das chibatadas que levou.

Os claros exageros, como a afirmação de que Marisa, sua mulher, morreu por causa da Lava Jato, serviram apenas para ele reiterar que apesar de tudo não tem mágoas. Porque, disse, não há espaço nem tempo para guardar ódio. Mesmo quando atacou injustamente jornais e jornalistas, ofereceu um afago ao defender a liberdade de imprensa e ao elogiar a edição de ontem do Jornal Nacional.

Aliás, uma frase do discurso explica o morde e assopra de Lula com relação à imprensa.

“A gente começa a gostar da vida quando está mais perto do céu”, disse o ex-presidente.

Pois Lula esteve muito perto do inferno, quando aliados seus, do seu partido e dos que o apoiavam, saquearam em conjunto a Petrobras. Também quando seu governo foi denunciado por pagar por apoio de partidos com dinheiro público, o famoso mensalão. Ou quando sua sucessora, Dilma Rousseff, quase quebrou o país. Ou ainda quando um apartamento e um sítio foram estruturados por empreiteiras para atender o gosto da sua família.

Nestes momentos em que esteve bem próximo do fogo eterno, Lula não gostava dos jornais e muito menos do JN.

Mas mesmo esse desvio pode rapidamente virar passado na retórica política de Lula. O que não mudou e não vai mudar, é a grandeza do seu discurso. Lula sabe com quem fala, sabe bem o que quer falar e sabe melhor ainda como falar. Bolsonaro não está mais só.


Carlos Andreazza: O discurso de Lula

Não vi “paz e amor”. E nem me pareceu que fosse essa a intenção. Seria falso. Um sujeito, depois de mais de quinhentos dias de cana, cujo algoz – um juiz – decompõe-se em (justa) suspeição quer é guerra. Mas sem pressa; e de paletó, camisa impecavelmente passada. Sem pressa para se declarar candidato; antes – senhor do tempo – à frente do projeto que difundirá a sua inocência. Inocente não é; mas inocente será o que julgado por um acusador. Não havia “paz e amor”. Havia essa verdade; a de Gilmar Mendes: a de que corrupção nenhuma pode ser condenada com corrupção. Errado não está.

Esse foi o palanque – armado na altitude de quem conversa com o Papa – desde o qual falou Lula. Uma aula de discurso político – admita-se. (E seria aula mesmo se estivesse o sarrafo lá no alto.) Construção de profissional a serviço de rara capacidade de farejar para onde os ventos pandêmicos levam as demandas da sociedade. Articulação retórica de mestre para, se quiserem mesmo estabelecer o debate na cancha da polarização, aceitá-la nas bases que ditou: ele sendo o que usa máscara, prega distanciamento social e defende vacinação em massa. Radicalmente.

Com cálculo de provocador: se Bolsonaro, o capitão, investe em facilitar o comércio – sem fiscalização – de armas, Lula será o preocupado com o sucateamento das Forças Armadas.

Aula – e aqui fala Carlos Andreazza, jamais um esquerdista.

Para que fiquem claros os termos em que topa polarizar com o presidente: Lula associou Bolsonaro – com ênfase – às milícias. Será assim doravante. O discurso: não pode admitir que o país que governou – que fez respeitado no mundo – ora vá nas mãos de um miliciano.

Nem tudo foi verdadeiro, porém. Mentiu um lote – disparou números como nem Ciro Gomes. (As agência de checagem cortarão um dobrado.) E foi especialmente duro vê-lo falar sobre uma bem-sucedida gestão petista na Petrobras, como se não houvesse, entre esses gestores, Paulo Roberto Costa, Renato Duque e Nestor Cerveró – como se não houvesse, apenas como um exemplo, a barbaridade chamada Pasadena.

É um fato que a petroleira foi pilhada durante os governos do PT – fato também sendo que, como empresa, em função das escolhas lulopetistas para sua administração, quebrou. E a esse prejuízo – bilionário – não se referiu; pancada que ceifou empregos.

Mas aqui se analisa o discurso e só discurso; sendo fato também que a Petrobras de Lula – aquela onipresente, indutora maior da economia – simboliza um projeto de Brasil; de Brasil grande, independente, autossuficiente. (Que exportava óleo; e que, por isso, jamais poderia ser refém do dólar. O que fizeram

com essa nação para que se achatasse assim?) O Brasil de Lula – em que havia fábrica da Ford e onde quatro milhões de carros eram vendidos por ano – comunica. Alcança. Mobiliza. Atrai.

É um fato que a Petrobras de Lula – apesar da corrupção que abrigou profundamente – mobiliza memórias. Boas. A estatal que se expandia, quase uma casa moeda, distribuindo riquezas e gerando oportunidades – e não apenas, atenção, aos pobres. O ex-presidente jogou várias iscas. Quer ouvir os empresários – diz. Quer mesmo é lembrá-los de que foram felizes com ele; naquele Brasil-Petrobras que fabricava navios-sonda e multiplicava postos de trabalho (e propinas). Quer conversar com os políticos – com o Centrão. Quer de todos – e também dos mercados – compreender (como se Dilma Rousseff não tivesse existido) por que se foram associar ao liberal-bolsonarismo. Quer mesmo é fazer ver a todos que foram muito felizes com ele; e sem (promessas de) privatizações.

Um projeto de Brasil. Foi com isto que o ex-presidente jogou em seu primeiro pronunciamento – a aula – após reaver os direitos políticos: ele tem um projeto de Brasil. Goste-se ou não, Lula tem um. Em resumo: um país miserável como o Brasil não pode prescindir da mão forte do Estado. Simples e poderoso; tanto mais em meio a uma pandemia de efeito depauperante sobre os mais pobres.

É para onde o vento varrido pela peste levou o desejo da sociedade: para um lugar – espaço natural a Lula, que joga em casa – em que o governo injete dinheiros emergenciais na economia de modo a que o povo empobrecido sobreviva à falta de empregos, circunstância agravada pela incompetência-insensibilidade de Bolsonaro/Guedes.

Esse foi o discurso. O recado. Mais claro impossível. Lula – sangue nos olhos – desdobrar-se-á daí. Vem para a guerra – ou não seria um miliciano o seu adversário. E vem gigante. A caneta, porém, está com o outro. Que reagirá – acelerando o populismo que já vai em curso – com um derramamento de Estado. Precisa amarrar o Centrão, cujo preço subiu pela hora do almoço.


Fernando Schüler: Sinal de alerta para o centro político

A polarização tende a produzir uma fuga do centro, que deve buscar consenso

Lula fez discurso de candidato, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, e era seu direito fazê-lo. Disse que no seu governo a Petrobras era bem administrada e que o Brasil era o país “mais admirado do mundo”. Chamou a turma da Lava Jato de “quadrilha” e culpou a operação pela perda de mais de 4 milhões de empregos.

Mas o centro do discurso foi mesmo sobre Bolsonaro. Governo de milicianos, eleito pelas fake news, feito de gente que acredita que a Terra é plana. Governo de “imbecis”, em relação ao qual “alguma atitude nós vamos ter que tomar”.

É interessante que Lula não investiu na retórica da “ameaça à democracia”, que é a marca registrada da oposição a Bolsonaro desde a campanha de Fernando Haddad. Sua ênfase é no “pão com manteiga” na mesa do trabalhador, emprego, investimento público (“o que faz o país crescer). Talvez vá aí uma mudança, quem sabe um esgotamento do tema. Ou tenha apenas faltado combinar isso melhor.

A “narrativa”, como agora é moda dizer, parece clara: a decisão de Fachin foi, para todos os efeitos, uma absolvição, um reconhecimento tardio da inocência de Lula. Lava Jato, pois, é coisa do passado. Lula aguentou firme e sempre soube que este dia (esta quarta) iria chegar. E chegou.

OK, discurso político nem sempre se pode levar ao pé da letra, e sempre há aqui e ali algum excesso retórico. Mas o fato é que, escutando essas coisas, é surpreendente que alguém diga que a polarização política não tenha voltado, e voltado com tudo, com a entrada de Lula no jogo.

Se a disputa entre Lula e Bolsonaro é uma polarização entre dois “extremos” e se são extremos “equivalentes”, é um debate para a militância política. Um lado irá falar da corrupção, da quebradeira econômica e o risco de “venezuelização” (como li de um porta-voz bolsonarista), e o outro dirá o que Lula disse nesta quarta. Governo de milicianos, imbecis, feito à base de fake news etc. Não vi Lula usando a palavra “fascista”, mas é possível que ela apareça logo à frente.

Se isso não é uma polarização, o que seria, exatamente? Mais do que isto: é um tipo de debate de baixíssima qualidade política, que infelizmente preside nossa democracia.

É previsível que interlocutores do lulismo no debate público fiquem nervosos com a tese da “polarização entre os extremos”. Seu desejo é de que Lula pudesse liderar uma ampla frente, envolvendo o centro político, contra Bolsonaro. Ouvi de alguém que os elogios de Rodrigo Maia a Lula indicavam algo nesta direção.

Seria curioso uma aliança entre Lula e o Democratas, reunindo todos os que lutaram bravamente a favor das reformas, nos últimos anos, e todos os que o fizeram, também bravamente, na direção oposta. O lógico é que Lula seja candidato de uma frente reunindo seus tradicionais aliados na esquerda.

Se a polarização agrada ao Palácio do Planalto? Parece evidente que sim. À parte desviar o foco das debilidades do governo, a curto prazo, a presença de Lula permite a Bolsonaro reanimar a militância entediada ao ressuscitar sua retórica “identitária”, com um olhar no passado, reanimando velhos fantasmas do embate político brasileiro.

O principal motivo da discreta satisfação do Planalto, no entanto, é outro. A entrada de Lula e a crispação política criam um efeito de fuga do centro político. Eleitores à direita, decepcionados com Bolsonaro e dispostos a uma alternativa, tendem a reconsiderar diante do espectro de Lula. Nesse plano arriscamos enveredar em uma disputa de rejeições: o antipetismo contra o antibolsonarismo.

A conclusão é que o principal sinal de alerta soou para o centro político. Em 2018, vamos lembrar, Alckmin, Meirelles e Amoêdo somaram menos de 10% dos votos. É apenas uma lembrança. O centro político não tem, no atual cenário, outra tarefa a não ser buscar um candidato de consenso e um programa capaz de se colocar consistentemente como alternativa a Lula e a Bolsonaro.

Observando a nova coalizão majoritária em funcionamento no Congresso, não penso que seja uma tarefa simples.​

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.