democracia
Brasil vive 'mistura tóxica de ódio pessoal e polarização política'
Leandro Prazeres*, BBC news Brasil
Nem mesmo a experiência de quem acompanha a política e as eleições na América Latina há mais de 30 anos foi suficiente para evitar o espanto que o professor americano Scott Mainwaring sentiu ao saber da morte de Marcelo Arruda, um membro do PT morto a tiros por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL).
"É um fato grave, não lembro de nada parecido no Brasil", disse à BBC News Brasil.
Scott Mainwaring é um dos maiores especialistas do mundo em política, democracias e ditaduras na América Latina. Ele já morou em países como a Argentina e o Brasil (onde fez pesquisa de campo para o seu doutorado) e fala português fluentemente. Nestes países, ele investigou a redemocratização na região e viu como, em alguns casos, esse processo envolveu casos de violência política.
Mainwaring foi professor na Universidade de Harvard, da qual é um membro associado. Em 2019, ele foi apontado como um dos 50 cientistas políticos mais citados em trabalhos acadêmicos do mundo. Atualmente, é professor de Ciências Políticas da Universidade de Notre Dame.
O americano é autor de dezenas de livros sobre a política da América Latina, entre eles: Decay and Collapse (Sistemas Partidários na América Latina: Institucionalização, Decadência e Colapso), Democracies and Dictatorships in Latin America: Emergence, Survival and Fall (Democracias e Ditaduras na América Latina: Surgimento, Sobrevivência e Queda), e Party Systems in Latin America: Institutionalization (Sistemas partidários na América Latina: Institucionalização).
É com essa experiência que ele analisa, com preocupação, a escalada de violência às vésperas das eleições deste ano no Brasil.
Em entrevista à BBC News Brasil, Mainwaring diz que a morte de Marcelo Arruda é resultado da "relação tóxica" entre a violência e poder político presente no país.
Segundo ele, o Brasil, assim como os Estados Unidos, vive um ambiente de "ódio pessoal e polarização política".
Para o professor, a polarização no Brasil não vai desaparecer e os principais pré-candidatos à Presidência da República, Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), precisam condenar atos de violência.
"Você não pode reduzir a zero a possibilidade de um cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante", disse o professor.
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - Nas últimas semanas, ocorreram alguns incidentes violentos no Brasil relacionados à campanha política. O último foi o assassinato de um membro do Partido dos Trabalhadores (PT) praticado por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro. E isso lança algum tipo de alerta sobre o que está ocorrendo no Brasil?
Scott Mainwaring - Certamente. Não pode ter espaço para esse tipo de violência política. É um ato de criminalidade comum e, além disso, é um tipo de ato que atinge a democracia.
BBC News Brasil - Que sinal a morte de alguém nessas circunstâncias manda para a comunidade internacional?
Mainwaring - Para mim, é mais um indicador de uma relação tóxica entre violência e poder político. Como fato isolado, não acho preocupante. O que é preocupante é quando você combina isso com outros incidentes de violência.
Mainwaring - Me refiro a outros incidentes de violência. Estou pensando na relação da política com as milícias, com o crime organizado, nos assassinatos de candidatos a prefeitos, vereador. Quando você combina tudo isso, aí, sim, é preocupante.
BBC News Brasil - Considerando o histórico político do Brasil, quão grave é a morte de um militante político por um oposicionista?
Mainwaring - É um fato grave. Não lembro de acontecimentos parecidos no Brasil. Isso lembra, por exemplo, os brownshirts (camisas marrons) da Alemanha nos anos 1920 e começo dos 1930. Atinge de forma profunda a democracia.
[Nota: "camisas marrons" era o nome pelo qual ficaram conhecidos os primeiros integrantes de uma organização paramilitar nazista fundada por Adolf Hitler em 1921]
BBC News Brasil - O senhor mencionou os camisas marrons. Na sua avaliação, esse episódio lembra a Alemanha pré-nazismo ou a Alemanha nazista?
Mainwaring - Não quero exagerar. Na Alemanha pré-nazista isso era comum. Tanto os nazistas como os comunistas tinham milícias muito grandes, inclusive maiores que o Exército alemão naquela época. Mas vai nesse sentido. Vai nessa direção.
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BBC News Brasil - Quais foram os fatores que levaram o Brasil a esse nível de animosidade que resultou, por exemplo, na morte desse membro do Partido dos Trabalhadores?
Mainwaring - Desde 2014, o Brasil sofre um processo muito grave de polarização política. E isso se acentua pela presença das mídias sociais, que exacerba a polarização política e cria uma animosidade. Elas levam essa polarização para um processo de animosidade, de ódio. É possível ter um processo de polarização que não se baseia em ódios pessoais. Mas no Brasil de hoje, como também nos Estados Unidos, você tem essa mistura tóxica de ódio pessoal e polarização política.
BBC News Brasil - Considerando essa escalada de violência, o Sr. acredita que o Brasil poderia ser palco de algo semelhante à invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, caso um candidato não aceite o resultado das eleições?
Mainwaring - É um risco.
BBC News Brasil - É um risco alto, médio, baixo? Como o senhor classificaria?
Mainwaring - Não acho que seja grande, mas eu diria que é médio. O fato de Bolsonaro denunciar os mecanismos eleitorais brasileiros e dar sinais de que pode não aceitar o resultado caso ele perca as eleições, é aí que reside o maior risco. Isso, para a democracia, é muito grave.
BBC News Brasil - O Brasil tem sido descrito por especialistas como um dos países da terceira onda de democratização onde os fundamentos e funcionamento da democracia iam relativamente bem. Esses episódios violentos mais recentes indicam uma deterioração da democracia brasileira?
Mainwaring - Sem dúvida. A democracia brasileira entre 1985 e 2012 ou 2014, realmente, tinha muitos aspectos altamente positivos. Acho que a degradação da democracia brasileira nos últimos cinco ou seis anos é real.
A eleição de um presidente com perfil tão autoritário como o Bolsonaro é um sinal em si mesmo.
Quando você elege um presidente iliberal, com traços muito autoritários, isso já representa um perigo para a democracia.
Os problemas antecediam a eleição de Bolsonaro, como a corrupção, os problemas econômicos, o aumento da violência e a perda de credibilidade, por um lado, do PT, e por outro do establishment ao centro e à direita.
BBC News Brasil - Considerando a quantidade de armas circulando no Brasil, o Sr. teme que o país vá na direção de uma realidade em que atos de violência política sejam mais comuns? Há ambiente para uma deterioração ainda maior?
Mainwaring - Isso é possível e acho que não devíamos subestimar o quanto isso já aconteceu. O exemplo mais famoso é o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). Mas também já aumentou o número de assassinatos de candidatos a prefeito e vereador. Isso é grave e poderia se acentuar, mas não vejo como algo inevitável.
BBC News Brasil - O nível de polarização tende a piorar ou melhorar até as eleições?
Mainwaring - Acho que vai piorar, porque a campanha política vai ser, certamente, entre Lula e Bolsonaro. E 40% do país tem ódio do Lula e outros 40% têm ódio do Bolsonaro. A tendência provável de Lula não vai ser polarizar. Ele vai polarizar contra o Bolsonaro, mas não vai assumir posições radicais. Mas Bolsonaro sempre polariza e certamente ele vai pintar Lula como um diabo. Eu acho quase inevitável que a polarização se exacerbe nos próximos meses. Agora, depois da eleição é um momento de possível diminuição da polarização. Os dois candidatos vão ter que costurar alianças para governar o país.
BBC News Brasil - Qual é a responsabilidade de Lula nesse cenário de polarização?
Mainwaring - Acredito que o Lula poderia polarizar contra Bolsonaro, mas buscar o eleitor médio. Lula, provavelmente, vai se posicionar para ganhar o centro do Brasil. A probabilidade de ele ganhar aumenta se ele pode capturar o centro do país. Para mim, a estratégia mais óbvia do Lula seria lógico denunciar o Bolsonaro, polarizar contra ele, mas se posicionar como uma alternativa sensata, uma alternativa viável ou uma alternativa que no governo não vai ser radical, não vai polarizar.
BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem sido acusado por alguns críticos de incentivar os seus apoiadores contra esquerdistas. Por outro lado, alguns dias atrás, o presidente Lula agradeceu a um membro do Partido dos Trabalhadores que atacou um manifestante antilula. Na sua avaliação, é justo dizer que Lula e Bolsonaro são igualmente responsáveis por esse ambiente de tensão que a gente vê no Brasil?
Mainwaring - Teria que estar no Brasil para fazer uma avaliação mais equilibrada sobre essa pergunta.
BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem questionado, ainda que sem apresentar provas, a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro. Os militares, que são muito próximos do presidente, têm colocado a integridade do sistema em dúvida. O senhor acredita que as Forças Armadas brasileiras vão aceitar o resultado das eleições se Bolsonaro perder?
Mainwaring - Se Lula ganha por uma vantagem razoável, acho que a tendência dos militares, neste caso, é aceitar o resultado. E se a eleição for muito apertada? Aí, digamos, teria mais espaço para os militares não aceitarem. Acho, de qualquer maneira, pouco provável que os militares não aceitem [o resultado]. Mas essa possibilidade aumenta se a eleição for extremamente apertada.
BBC News Brasil - O senhor é um dos principais especialistas em democracia, ditaduras e ditaduras militares na América Latina. Na sua avaliação, existe algum espaço para uma ruptura democrática no Brasil hoje?
Mainwaring - Para a ruptura clássica via golpe militar, acho que não há espaço. Desde o fim da Guerra Fria, a maneira mais frequente de a democracia se romper é pela via do que chamamos de "executive takeover". Seria, digamos, quando o presidente, ao longo do tempo, degrada a democracia a tal ponto que ela deixa de ser um regime democrático. Um exemplo clássico é a Venezuela pós-Hugo Chávez. Outro exemplo claro é a Nicarágua e o regime de Daniel Ortega. Mas poderíamos pegar um caso como a Hungria de Viktor Orbán. Esse risco eu acho que é real, especialmente se Bolsonaro ganhar de novo. O risco de ele procurar concentrar mais o poder... os ataques dele ao STF são um indicador nefasto. Agora, Bolsonaro não deverá ter uma maioria no Congresso e isso dificulta as coisas para ele.
BBC News Brasil - Nos últimos anos, houve um relaxamento das normas no Brasil em relação à compra de armas e alguns especialistas dizem hoje que o Brasil tem mais armas circulando hoje do que no passado. Considerando todo esse ambiente de tensão das nossas eleições, quão preocupante é termos uma eleição neste ambiente?
Mainwaring - Não sei quão preocupante isso é para a eleição. Acho que (assassinatos como o de Marcelo) são um episódio raro e que não se repetem muito. O que é mais preocupante em termos do aumento de número de armas é a prática quotidiana da democracia nas áreas pobres do Brasil como as favelas do Rio de Janeiro. É o controle que as milícias e as organizações criminosas exercem nessas áreas e na região amazônica. Eu diria que aí a democracia brasileira sofre muito e isso não é uma novidade.
BBC News Brasil - O senhor sente que há uma preocupação maior neste ano, fora do Brasil, em relação às eleições deste ano na comparação com outros anos?
Mainwaring - Certamente. A preocupação não é porque o sistema eleitoral seja frágil, mas é que um dos candidatos, Bolsonaro, poderia não aceitar o resultado.
BBC News Brasil - Existe, na sua avaliação, algum sinal de que essa tensão que existe hoje possa se dissipar depois das eleições? Ou esse nível de polarização é algo que veio para ficar e que vai demorar um tempo para desaparecer, se é que vai desaparecer?
Mainwaring - Se Lula ganhar, vai depender de como ele governará. A polarização não vai se dissipar. Não há nenhuma forma para que isso passe, mas poderia diminuir. E de quê maneira? Se o governo de Lula for exitoso, a tendência é diminuir a polarização. Por outro lado, se ele toma posições mais moderadas, isso ajudaria a diminuir a polarização. Por outro lado, se se repetem os casos de corrupção, se a economia não retomar um caminho mais positivo, se a violência não diminuir, aí a polarização provavelmente não vai diminuir.
BBC News Brasil - O Sr. mencionou que a morte de Marcelo Arruda é mais um indicador de uma relação tóxica entre violência e poder político. O que é exatamente os atores políticos podem ou deveriam fazer para que episódios como esses não acontecessem?
Mainwaring - Para os candidatos Bolsonaro e Lula, sobretudo porque são os únicos que têm uma chance viável, eles têm que denunciar essa violência. Isso é muito importante. Você não pode reduzir a zero a possibilidade de um cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante. Você tem que renunciar o uso da violência.
BBC News Brasil - Numa declaração, o presidente Bolsonaro disse o seguinte: "Vocês viram o que aconteceu ontem? Uma briga entre duas pessoas lá em Foz do Iguaçu? Bolsonaro isso não sei o que ela. Agora ninguém fala que o Adélio", que é a pessoa que o esfaqueou em 2018 e que foi filiado ao PSOL. Nas suas redes sociais, ele não chegou a lamentar a morte do Marcelo e acusou a esquerda de violenta. Esse tipo de declaração ajuda a acalmar os ânimos?
Mainwaring - Evidente que não. Agora, eu não sabia do incidente no qual o Lula aplaudiu a agressão de um petista contra um Bolsonaro. E isso também, no meu ver, é lamentável. Os dois têm que se pronunciar contra o uso da violência.
*Texto publicado orginalmente em BBC news Brasil. Título editado.
Nas entrelinhas: Supremo volta do recesso fortalecido
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, no discurso de abertura do semestre, reverberou o fortalecimento da Corte em razão do maciço apoio que recebeu da sociedade civil, nos dois manifestos anunciados na semana passada, um liderado por juristas ligados à tradicional Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, e o outro por empresários e banqueiros ligados à Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) e à Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), respectivamente. Ambos foram uma resposta aos ataques feitos pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) às urnas eletrônicas, à Justiça Eleitoral e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em particular, aos ministros do STF Luís Roberto Barroso, Édson Fachin e Alexandre de Moraes — respectivamente ex, atual e futuro presidente da Corte eleitoral.
Fux reiterou que “nossa democracia conta com um dos sistemas eleitorais mais eficientes, confiáveis e modernos de todo o mundo” e “uma Justiça Eleitoral transparente, compreensível e aberta a todos aqueles que desejam contribuir positivamente para a lisura do prélio eleitoral”. O presidente do STF também condenou a violência nas eleições: “O Supremo Tribunal Federal anseia que todos os candidatos aos cargos eletivos respeitem os seus adversários, que, efetivamente, não são seus inimigos. Confia na civilidade dos debates e, principalmente, na paz que nos permita encerrar o ciclo de 2022 sem incidentes”, disse.
Na mesma sessão, o ministro Alexandre de Moraes, que presidirá o TSE durante as eleições de outubro, fez uma defesa enfática do atual sistema de votação: “Quem conhece as urnas eletrônicas, quem conhece o sistema de votação, se de boa-fé for, certamente vai verificar que nós podemos nos orgulhar do nosso sistema eleitoral”.
Entretanto, no mesmo dia de reabertura dos trabalhos da Corte, Bolsonaro exibiu os músculos, anunciando a indicação de dois ministros para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) que não estavam entre os preferidos da maioria do Supremo: Paulo Sérgio Domingues, juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), que tem o apoio de Humberto Martins e da futura presidente do STJ, Maria Thereza de Assis Moura; e Messod Azulay Neto, juiz do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, indicado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do presidente.
Queda de braços
Nos bastidores do Supremo, ontem, o mal-estar era grande. O preterido nas indicações foi o desembargador do Tribunal Regional Federal da Região (TRF-1) Ney Bello, cujo nome era articulado pelo ministro do STF Gilmar Mendes. Paulo Sérgio é ligado ao ministro Nunes Marques, aliado incondicional de Bolsonaro na Corte. Os dois nomes ainda precisam ser aprovados pelo Senado, o que deve ocorrer antes das eleições. Bello foi responsável pela decisão que tirou o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro da cadeia, mas isso não adiantou muito.
Mesmo fortalecido, outro sinal de que o Supremo não terá vida fácil foi o pedido de arquivamento do inquérito que apura se Bolsonaro vazou dados sigilosos de uma investigação da Polícia Federal (PF) ainda não finalizada, feito ontem pelo Ministério Público Federal (MPF). A vice-procuradora-geral, Lindôra Araújo, braço direto do procurador-geral, Augusto Aras, no texto do pedido, acusou nominalmente Alexandre de Moraes de violar o sistema acusatório ao determinar novas medidas na apuração.
Lindôra saiu em defesa da atuação de Aras, ao pedir o encerramento da investigação. Segundo ela, seu chefe atuou de forma técnica, jurídica, isenta, sem intenção de “prejudicar ou beneficiar determinadas pessoas”. O inquérito foi aberto porque Bolsonaro, em agosto de 2021, divulgou nas redes sociais a íntegra de um inquérito da PF que apura um suposto ataque ao sistema interno do TSE, em 2018. Segundo a Corte, não houve risco às eleições.
A urgência da fome é a urgência pela democracia
Denise De Sordi*, Brasil de Fato
“Geografia da fome”, de Josué de Castro é um livro que nos chama à ação. Daqueles que lemos e nos sentimos atordoados. Tem um sentido de urgência, de chamado da história. Foi este livro que nos explicou – e segue nos lembrando - que a fome não é natural, é um “fenômeno” social, é “marcante”, é “regular”, é “gritante” e é “extensa”. Um “problema” que, na década de 1940 – quando foi publicado, demandava uma “nova perspectiva” ofertada pelas ciências humanas e sociais, que estava ali, pelas mãos do autor, articulada num “método geográfico”, permitindo o estudo do problema sem “arrebentar as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos” (p.16). A publicação deste livro, mais do que alertar para a fome, permitiu ainda dizer em alto e bom som que o acesso aos alimentos está ligado à renda dos trabalhadores.
Como nos alertou Milton Santos na Apresentação, se a fome fosse algo da “natureza” a culpa seria “de ninguém”, o livro subverte, a partir de extenso estudo, este entendimento. Há uma culpa que está relacionada à organização da sociedade, aos “sistemas econômicos e sociais” (p.30). A pobreza generalizada da população explicava – e ainda explica – a fome mais do que outros fenômenos.
Não à toa, a publicação do livro potencializou um debate que já corria ao longo dos anos da década de 1930 e que se estenderá para a concretização do salário mínimo como forma de garantia de acesso aos mínimos de sobrevivência aos trabalhadores. “Geografia da Fome” revirou as discussões políticas no período em que foi lançado e abriu um campo de discussões no qual a dimensão do que conhecemos por segurança alimentar foi incorporada ao campo das políticas públicas que começavam então a se desenhar e ser implementadas.
Entretanto, é preciso lembrar que a fome hoje, esta que se alastrou pelo país desde 2016 e que se acentuou entre 2021 e 2022 provocando o retorno do país ao Mapa da Fome (FAO) não tem o mesmo sentido histórico que possuía em 1940, ou nos anos que seguiram, cortados por um intervalo histórico sombrio que travou as iniciativas, por exemplo, de programas alimentares. Período que foi finalizado pelas mobilizações populares e pela conquista da democracia, materializada como o pacto social que firmamos em 1988. Foi justamente por meio do acúmulo de experiências históricas derivado de inúmeras mobilizações populares engajadas na construção da redemocratização do país que a democracia brasileira tomou forma como prática de Estado e, assim, as políticas públicas sociais em nível nacional foram gradativamente conquistadas, ao longo dos anos da década de 1990, enquanto uma das principais formas de operacionalizar o pacto democrático.
Políticas e programas sociais não são, portanto, ações voltadas apenas para aqueles que são caracterizados pelo Estado como “pobres” – figura técnica e institucionalmente definida nos anos 2000 por linhas de corte de renda - políticas e programas sociais são parte orgânica da forma que assume a relação entre Estado e sociedade, são para todos nós. A experiência do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) – extinto em 1995, retomado em 2003 e extinto novamente em 2019 - talvez seja o exemplo mais claro de como esta relação pode se concretizar e ampliar a democracia.
Uma das características do projeto Cozinhas Solidárias é o plantio de hortas para aproximar as comunidades dos cuidados e usos dos alimentos / Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil
Programas e políticas sociais não resolvem todas as questões sociais, mas indicam os termos do pacto social para lidarmos com a educação, a saúde, a pobreza, a fome, o emprego, o consumo, o acesso aos alimentos, a cultura, a política e assim por diante. Desde 2016 vivemos uma virada discursiva que intenciona resumir as políticas e programas sociais ao papel de “atenção aos pobres”. Esta é uma estratégia de “redução do Estado”, por meio da qual, cada vez mais, os Direitos Sociais deixam de ter como horizonte a universalização e são cada vez mais restringidos, isto é; focalizados.
Mais recentemente, no desaguar das consequências deste discurso, programas sociais construídos tendo em vista a complexidade da sociedade brasileira, foram desmanchados e/ou tornados inoperantes para atender ao processo de aprofundamento da exploração e expropriação dos trabalhadores. É uma agenda política e econômica que não só reproduz o empobrecimento e a pobreza como condição de vida majoritária, mas para a qual a permanência da pobreza no país é favorável.
Dentre os programas extintos estão o Programa Bolsa Família (PBF) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Ambos nos remetem à conquista histórica da democracia no Brasil contemporâneo. A existência deles só foi possível porque o jogo democrático permitiu, ao longo dos anos de 1990 e 2000, a confluência de interesses diversos, a soma de diferentes perspectivas sobre quais são os melhores caminhos para se gerir o ritmo do empobrecimento, equilibrando as agendas econômica e social. Enquanto expressão das relações entre Estado e sociedade, não foi sem pressão e sem olhar para as práticas dos movimentos sociais e dos sujeitos organizados nas áreas urbanas e rurais, que estas políticas e programas foram formulados. É um tipo de dinâmica das relações entre Estado e sociedade que, para ser legítima e duradoura, deve contar com movimentos de baixo para cima que se traduzam em políticas e programas que os traduzam de cima para baixo.
É esta dinâmica que é também preventiva da corrosão democrática, por isto, a reconstrução destas políticas e programas sociais parece demandar novamente um olhar para compreender o que está a ocorrer nas cozinhas solidárias, na constituição dos bancos de alimentos, e nas formas pelas quais movimentos sociais têm se organizado para garantir a sobrevivência da população, a partir de concepções que estão fincadas na solidariedade social. Isto é, a solidariedade como um valor democrático e um projeto de sociedade.
Não se trata de uma agenda de ações emergenciais, mas de práticas para o agora que auxiliam na formulação política do futuro. A formulação de agendas deste tipo é algo que, historicamente – basta olharmos para as mobilizações ao longo dos anos de 1990 –, se potencializa quando emerge pelas mãos dos movimentos sociais, a exemplo das dezenas de cozinhas solidárias espalhadas pelos estados brasileiros pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST. As cozinhas solidárias - diferentes das comunitárias – oferecem uma experiência social inédita, revisitando a ideia das cozinhas coletivas das próprias ocupações urbanas para que se promova, no cenário de agora, um elo entre a produção dos alimentos e seus produtores, o consumo e a distribuição. É um tipo de ação que ganha relevo mediante o fim do PBF e a desarticulação do PAA em seu papel social.
A soberania e a segurança alimentar andam junto com práticas democráticas. Lidar com a condição de insegurança alimentar, caracterizada por sua dimensão da fome, é também um compromisso histórico com a democracia. Ambas são tarefas urgentes. Há 33 milhões de nós impacientes e com fome.
*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato.
Nas entrelinhas: O establishment se mexe em defesa das urnas
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
O encontro do presidente Jair Bolsonaro com diplomatas estrangeiros para falar mal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e levantar suspeitas de que haveria fraudes nas urnas eletrônicas virou uma espécie de “efeito borboleta”, uma variante da Teoria do Caos, que consiste em grandes acontecimentos provocados inicialmente por pequenas alterações. O conceito passou a ser usado quando certas escolhas provocam desastres, principalmente depois do filme Efeito Borboleta, lançado em 2004, pela dupla Eric Bress e J. Mackye Gruber.
Evan Treborn (Ashton Kutcher), um jovem de 20 e poucos anos, em luta contra as memórias traumáticas de sua infância, descobre uma técnica que pode levá-lo de volta ao passado e passa a alterar diversos acontecimentos, com objetivo de mudar para sempre o seu futuro. Porém, o “efeito borboleta” trará consequências inesperadas para sua vida e daqueles que estão ao seu redor. Na tentativa de ficar com a namorada, Kayleigh, cria realidades alternativas que não terminam como gostaria. Entretanto, o que nos interessa não é um “spoiler”, mas o fenômeno ligado à Teoria do Caos.
Em 1952, o escritor de ficção científica norte-americano Ray Bradbury publicou o conto O som do trovão, no qual um personagem pisa em uma borboleta, provocando graves consequências, inclusive a chegada de um líder fascista ao poder. Em 1961, o que era ficção virou realidade científica. O meteorologista norte-americano Edward Lorenz desenvolveu um modelo matemático para a previsão do tempo, processando dados como temperatura, umidade, pressão e direção do vento no seu computador. Depois de observar os resultados, repetiu a operação. Inesperadamente, a segunda previsão foi completamente diferente da primeira.
Quanto mais o modelo avançava no tempo, as diferenças entre os dois resultados se tornavam maiores. O computador de Lorenz havia arredondado os dados de algumas casas decimais. Para Lorenz, isso equivalia a dizer que o vento provocado pelo bater de asas de uma borboleta no Brasil poderia ocasionar um tornado no Texas, nos Estados Unidos. Assim nasceu a Teoria do Caos, com seu “efeito borboleta”. É mais ou menos o que conseguiu o presidente Jair Bolsonaro com o seu inusitado e espantoso ataque às urnas eletrônicas na reunião de presentantes de quase 70 países, que provocou a forte reação da sociedade civil.
Manifestos
O establishment jurídico e empresarial resolveu dar um basta aos ataques de Bolsonaro à democracia. Suprapartidariamente, saiu em defesa do Supremo Tribunal Federal (STF). A iniciativa partiu de ex-ministros da Corte, professores e estudantes da tradicional Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (USP), com uma declaração que começou com três mil assinaturas e já soma mais de 300 mil signatários. Outro manifesto, organizado pela poderosa Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), mobilizou o grande empresariado nacional, inclusive a Febraban. Recebeu apoio da Central Única dos Trabalhadores (CUT), da Força Sindical e de outras centrais sindicais. Os principais banqueiros do país assinaram os dois manifestos, como pessoa física.
Enquanto o establishment se mexia, o governo divulgava dados positivos sobre a economia, entre os quais a redução do preço da gasolina, a geração de emprego e a distribuição do Auxílio Brasil. O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, tentava minimizar a importância dos manifestos. Segundo ele, os banqueiros assinaram os documentos porque perderam R$ 40 bilhões com o PIX. O lucro dos bancos não condiz com essa tese. A adesão também é resultado da PEC das Eleições, que agrediu a institucionalidade da economia e a segurança jurídica.
Protagonista do rolo compressor governista montado no Congresso, com recursos das emendas secretas ao Orçamento da União (somam R$ 16,5 bilhões), o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi ao Twitter como se nada houvesse: “Má notícia para os pessimistas de plantão! Estamos na contramão do mundo, mas isso é bom! Inflação em baixa, PIB em alta”. Levou um banho de água fria com a divulgação do DataFolha de ontem. O pacote de bondades do governo ainda não mudou os humores dos eleitores. Na pesquisa estimulada, Lula (PT) tem 47% e Bolsonaro (PL), 29%; Ciro (PDT), 8%; Simone (MDB), 2%; Janones (Avante), Marçal (Pros)n e Vera Lúcia (PSTU) têm 1%. Branco/nulo/nenhum: 6%. Não sabe: 3% (4% na pesquisa anterior). Os demais candidatos não pontuaram. Lula venceria no primeiro turno.
Nas entrelinhas: Simone Tebet completa a fila de largada da campanha
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
A confirmação da candidatura de Simone Tebet, ontem, pela convenção nacional do MDB e da coligação que a apoia, integrada pela federação PSDB-Cidadania, completou a fila de largada das eleições deste ano. O cenário mantém como tendência principal a polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 44% das intenções de voto, e o presidente Jair Bolsonaro (PL), com 35%, segundo a pesquisa XP/Ipespe divulgada na segunda-feira. O que pode alterar esse quadro, ou consolidá-lo, será a propaganda eleitoral de rádio e tevê, que começa em 16 de agosto.
O ex-ministro Ciro Gomes (PDT), com 9%, a senadora Simone Tebet (MDB), com 4%, e André Janones (Avante), com 2%, são os candidatos mais bem posicionados para construir uma terceira via, alternativa muito difícil. Nenhum dos três, até agora, definiu o vice. Simone contava com o apoio do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), mas o tucano histórico, mais uma vez, movimenta-se em função da política do Ceará. A senadora Eliziane Gama (Cidadania-AM) pleiteia a vaga. Pablo Marçal (Pros) e Luiz Felipe d’Avila (Novo) têm 1%. Vera Lúcia (PSTU), Sofia Manzano (PCB), Luciano Bivar (União Brasil), Eymael (DC) e Leonardo Péricles (UP) completam a fila de largada, com menos de 1% cada.
Votos nulos ou que não votariam em nenhum dos candidatos somam 4%. Não sabem/não responderam representam apenas 2% dos entrevistados, o que indica um cenário de grande participação eleitoral. Ontem, o Datafolha divulgou uma pesquisa entre jovens eleitores, que confirmou o que já se previa: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem a preferência no eleitorado adolescente e jovem nas 12 maiores capitais do país, com 51%. Jair Bolsonaro (PL) tem 20%. Depois, vem Ciro, com 12%. São jovens de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza, Recife, Porto Alegre, Curitiba, Goiânia, Brasília, Manaus e Belém. A margem de erro é de três pontos para mais ou para menos. A pesquisa eleitoral completa do DataFolha sobre as eleições presidenciais deve ser divulgada hoje.
Nenhuma grande alteração no quadro deve ocorrer até o horário eleitoral, pois a prioridade dos candidatos agora é a articulação dos palanques regionais, resolvendo conflitos e recolhendo náufragos das alianças. Como o registro das candidaturas deve ocorrer até 5 de agosto, muita água vai rolar ainda nos estados, e os candidatos terão de conciliar as articulações de campanha com a própria movimentação eleitoral. Lula passa a ter a segurança sob responsabilidade da Polícia Federal. Como ex-presidente, já tinha esse direito, mas, agora, o esquema será reforçado em razão dos riscos de atentado.
Regras do jogo
Bolsonaro passa à desvantagem de ter que se comportar de acordo com as regras eleitorais, ou seja, será tratado como os demais candidatos, estando sujeito a punições toda vez que sair das regras do jogo. Como está em guerra com o Supremo Tribunal Federal (STF), pode ser que queira esticar a corda, para passar por vítima e ilustrar a narrativa de que não existe imparcialidade da Corte. Entretanto, essa postura aumenta seu risco eleitoral, porque a opinião pública confia na Justiça Eleitoral, e isso gera grandes desgastes políticos.
Por exemplo, o manifesto em defesa do Estado de direito organizado por juristas e estudantes da tradicional Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (USP), berço da elite política e jurídica paulista, com apoio de empresários, intelectuais e artistas, subscrito por três mil personalidades, em 24 horas obteve a adesão de mais de 100 mil representantes da sociedade civil. Entre os signatários estão os ex-ministros do STF Carlos Ayres Britto, Carlos Velloso, Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Eros Grau, Marco Aurélio Mello, Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, além de artistas, intelectuais, executivos, empresários e até banqueiros. É o tipo de fato político que pode impactar negativamente a candidatura de Bolsonaro em que ela é mais forte: os eleitores com renda acima de 10 salários mínimos.
No rastro do encontro com diplomatas no qual levantou suspeitas sobre a urna eletrônica e atacou a Justiça Eleitoral, Bolsonaro vive, também, a rebordosa da reação negativa da comunidade internacional. A mais importante foi o pronunciamento do secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, na terça-feira, durante a 15ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas, em Brasília: “Os nossos países não estão ligados apenas pela geografia. Também somos atraídos pelos interesses e valores em comum, pelo nosso profundo respeito pelos direitos humanos e pela dignidade humana, pelo nosso compromisso com o Estado de direito e por nossa devoção à democracia”, disse.
Revista online | Em busca do Exército cidadão na república democrática
Ricardo José de Azevedo Marinho*, especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)
O que pensam os oficiais do Exército Brasileiro1 é um livro que aparece no percurso da pandemia do coronavírus e tem o propósito de discernir o principal marco da percepção dos oficiais do Exército Brasileiro (EB) em face da instituição em que atuam e da nossa democracia.
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Fruto de uma pesquisa, patrocinada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no âmbito de convênio celebrado entre o Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e o Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias (CEP-FDC), da Diretoria de Educação Técnica Militar (DETMil) do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx), na linha do Edital do Programa de Apoio ao Ensino e à Pesquisa Científica e Tecnológica em Defesa Nacional (Pró-Defesa) de 2008, tratou-se de um survey em âmbito nacional, que envolveu questionário a 20.435 oficiais da ativa, o que possibilitou a construção de um banco de dados contendo os retornos de 2.423 respondentes.
Este livro oferece instigante interpretação sobre o EB, colocando seu foco nos oficiais. Trata-se de um retrato deles, obtido a partir do uso de potente zoom. O alcance destas lentes não deixa de lado sequer as forças que impelem o EB a tentar redefinir, tanto seu formato, como suas funções, sobretudo, após a Constituição de 1988. Assim, ainda que se possa sustentar que se trata de um "retardatário", quando comparado com outras instituições, também o EB se vê convidado a adaptar-se a um novo contexto democrático.
Duas ordens de questões são analisadas: de um lado, a questão institucional propriamente dita e, de outro, a característica das demandas que chegam até eles. E o resultado encontrado foi: um oficialato compassivo na avaliação do sistema de educação continuada que caracteriza sua formação; o deslocamento da ideia de vocação para a carreira militar em favor da ideia de sua estabilidade; a ênfase na capacitação profissional, com sua exigência correlata por melhor formação; e a demanda por acesso a vantagens conferidas a outras carreiras de Estado, dimensões que apontam para a ideia de profissão.
Veja, a seguir, galeria de fotos:
O novo formato institucional assumido pelo EB é, como sustentam as autoras e o autor, menos o efeito de uma política desejada por estes do que uma consequência de um complexo processo de transição para a democracia.
Além do texto coletivo que dá corpo ao livro, ele conta ainda com um prefácio do professor Francisco Fonseca – Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Centro de Estudos em Administração Pública e Governo da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP) –, uma apresentação do nosso imortal da Academia Brasileira de Letras José Murilo de Carvalho e posfácio do Eduardo Raposo, onde fazem a ponte da publicação com o contexto em que a vê surgir, aludindo que o 38º presidente do Brasil tenta usar os militares para forçar a barra na disputa política.
Isso não retira a importância do EB na balança política de 2022, ainda que seus oficiais não estejam majoritariamente dispostos a apoiar políticas momentâneas que alterem o curso de suas preferências, como revela a pesquisa em tela.
Importa reter que, quando entendeu que a pandemia não cabia na securitização e nas metáforas dos conflitos armados, o Ministério da Defesa (MD) oportunizou, para os profissionais civis e militares da área de saúde, treinamento para mitigar o coronavírus no Brasil. A capacitação dos profissionais vem sendo realizada em unidades de saúde militares, a exemplo do Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, e da Escola de Saúde do Exército (EsSEx), o estabelecimento de ensino militar responsável pela seleção e formação do Quadro do Serviço de Saúde do EB, no Rio de Janeiro.
Por tudo isso, O que pensam os oficiais do Exército Brasileiro realiza a tarefa de mostrar quem são eles, e o faz com maestria, traçando o perfil demográfico e social desses oficiais, sua trajetória profissional e suas atitudes em face de questões atinentes ao seu exercício profissional, ao sistema político e à sociedade. O livro é mais do que um simples retrato, sem consequências. É um retrato que, ao conferir estatura a esse grupo profissional, fornece elementos para a discussão tanto de questões relativas à própria corporação como dos desafios de uma democracia em busca de equalizar sua jornada.
1 Raposo, Eduardo, Carvalho, Maria Alice Rezende de e Schaffel, Sarita. O que pensam os oficiais do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio. São Paulo: Hucitec Editora, 2022. 152 p.
Sobre o autor
*Ricardo José de Azevedo Marinho é professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de junho de 2022 (44ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Bolsonaro e embaixadores: vexame internacional e atentado à democracia
Roberto Freire, presidente nacional do Cidadania*
Entre atônitos e perplexos, embaixadores de dezenas de países assistiram a um espetáculo tão deprimente quanto ridículo protagonizado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, que perdeu qualquer compostura que ainda pudesse ter pelo cargo que ocupa.
Bolsonaro expôs o Brasil e os brasileiros diante do mundo. Colocou abaixo de seus interesses mais paroquiais a pátria que no seu slogan estaria acima de todos. Tal desequilíbrio se explica pelo verdadeiro pavor que tem de ser preso pelos crimes que, no íntimo, sabe ter cometido.
As urnas eletrônicas que deram a ele e a seus filhos diversos mandatos tirarão de Bolsonaro em outubro não apenas o cargo, mas o foro especial por prerrogativa de função. E o poder e a influência que hoje detém sobre os órgãos de controle.
Mas isso não exime o Congresso Nacional de cumprir o seu papel e abrir um processo de impeachment. Senão pelo conjunto da obra, pelos crimes contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais e contra o livre exercício dos Poderes constitucionais praticados hoje aos olhos do mundo.
Bolsonaro está usando o poder federal para impedir a livre execução da Lei Eleitoral e incitando militares à desobediência à lei e à infração à disciplina. Os presidentes da Câmara e do Senado precisam evitar a mais completa desmoralização não de Bolsonaro, essa já consumada, mas do Brasil.
*Nota oficial publicada originalmente no site Cidadania
Dia de Nelson Mandela é celebrado hoje; relembre a trajetória do líder sul-africano
Tiago Tortella*, CNN
“Está em suas mãos tornar o mundo um lugar melhor”. Há 104 anos nascia o autor da frase: Nelson Mandela, ex-presidente sul-africano, ganhador do Nobel da Paz e um dos principais líderes na luta contra o Apartheid, um regime de discriminação racial na África do Sul.
Defensor dos direitos humanos, Mandela foi preso diversas vezes, enfrentou quatro julgamentos e passou 27 anos na prisão. Ele foi o primeiro presidente democraticamente eleito na África do Sul.
Ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1993, é descrito pela Organização das Nações Unidas (ONU) como alguém que “dedicou sua vida a serviço da humanidade”.
Desde novembro de 2009, o dia 18 de julho é reconhecido pela ONU como o Dia Internacional de Nelson Mandela. “Em reconhecimento à contribuição do ex-presidente sul-africano para a cultura de paz e liberdade e luta pela democracia internacionalmente”, justificou a ONU sobre a celebração.
A organização ressalta ainda que a data é “uma ocasião para todos agirem e inspirarem mudanças”.
Em 2015, a data também foi reconhecida para promover “condições humanas de reclusão, consciencializar para que os presos sejam uma parte contínua da sociedade e valorizar o trabalho dos agentes penitenciários como serviço social de particular importância”.
Abaixo, relembre a história de Nelson Mandela:
"É fácil quebrar e destruir. Os heróis são aqueles que fazem a paz e constroem." Nelson Mandela
Mvezo, África do Sul
Rolihlahla Mandela nasceu no dia 18 de julho de 1918, na vila de Mvezo, na África do Sul. O nome “Nelson” foi adicionado durante a escola primária por uma professora, em Qunu. Era um costume dar às crianças na escola um “nome cristão”.
Seu pai, Nkosi Mphakanyiswa Gadla Mandela, morreu quando ele tinha 12 anos.
Ele começou um curso de bacharelado em Artes na Universidade de Fort Hare, mas não o concluiu, pois foi expulso por participar de um protesto estudantil.
Mandela chegou a Joanesburgo, capital do país, em 1941, e trabalhou como oficial de segurança de minas. Ele completou o bacharelado na Universidade da África do Sul e voltou para Fort Hare para sua graduação em 1943.
Ele se casou pela primeira vez em 1944, com a enfermeira Evelyn Mase, com quem teve dois filhos e duas filhas (a primeira delas morreu durante a infância). Mandela e Mase se separaram em 1958.
Mandela também começou a estudar um curso de Bacharel em Direito na Universidade de Witwatersrand. Porém, deixou a universidade em 1952, sem se formar.
"Nossa marcha para a liberdade é irreversível. Não devemos permitir que o medo fique em nosso caminho." Nelson Mandela
Apartheid
O Apartheid passou a existir formalmente após a Segunda Guerra Mundial no país, quando o Partido Nacional, liderado por descendentes de colonos europeus, chegou ao poder na África do Sul.
Entre 1949 e 1953, os legisladores sul-africanos aprovaram uma série de leis cada vez mais opressivas, que regulavam até atividades cotidianas.
Havia a proibição de casamento entre negros e brancos, divisões da população por cor, reservando os melhores equipamentos públicos para brancos, e a criação de um sistema de educação separado e inferior para negros.
Outro ponto imposto pelo regime era que negros também tinham que usar praias e banheiros públicos diferentes. Os salários também eram desiguais.
Foi contra este regime que Nelson Mandela lutou.
Vida política
Em 1944, o líder ajudou a criar a Liga da Juventude do Congresso Nacional Africano (ANCYL, em inglês). Ele foi eleito secretário nacional do grupo em 1948.
Conforme explica a Fundação Nelson Mandela, através de seus esforços, a Casa adotou o Programa de Ação, em 1949, que visava uma política de massa.
Em 1952, foi lançada a Campanha Desafio. Ela instigava desobediência civil e resistência popular contra seis leis consideradas injustas. Mandela foi eleito Voluntário-Chefe Nacional, com Maulvi Cachalia como seu vice.
“Ele e outros 19 foram acusados pela Lei de Supressão do Comunismo por sua participação na campanha e sentenciados a nove meses de trabalhos forçados, suspensos por dois anos”, diz a fundação.
Um diploma de dois anos em direito, além de seu bacharelado, permitiu que Mandela exercesse a advocacia e, em agosto de 1952, ele e Oliver Tambo fundaram o escritório de advocacia Mandela & Tambo.
Ele foi banido pela primeira vez em 1952, e a Carta da Liberdade foi adotada em 1955
"Verdadeiros líderes devem estar prontos para sacrificar tudo pela liberdade de seu povo." Nelson Mandela
Acusação de traição e prisão
Em 1956, Nelson Mandela foi acusado de traição. Em 1958, ele se casou pela segunda vez, agora com Winnie Madikizela, com quem teve duas filhas. Se separaram em 1996.
O julgamento só terminou em 1961, com ele e seus colegas sendo absolvidos.
Antes disso, em 1960, 69 pessoas foram mortas e outras 200 ficaram feridas pela repressão policial em um protesto em Sharpeville. Em seguida, o governo declarou estado de emergência e baniu o Congresso. Cerca de 18 mil manifestantes foram presos durante o período, entre eles, Mandela.
Com o fim do julgamento, “Mandela passou à clandestinidade e começou a planejar uma greve nacional para 29, 30 e 31 de março”. Porém, a ideia foi cancelada devido à forte repressão governamental.
Em 1961, foi criado o movimento armado da ANC, o Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação, em tradução livre), com Mandela sendo escolhido líder. Em dezembro daquele ano, o grupo começou ataques com uma série de explosões.
Em janeiro 1962, ele sai secretamente da África do Sul com um passaporte etiópio, viajando pela África e Europa para obter apoio para a luta armada, retornando em julho do mesmo ano.
Mandela foi preso meses depois, em agosto. Ele foi acusado de deixar o país sem permissão e incitar greve e insurreição, condenado a cinco anos de prisão.
Em 1963, líderes da ANC foram presos, e Mandela foi acusado junto a eles por sabotagem. A apuração das autoridades ficou conhecida como “Julgamento de Rivonia”, no qual ele corria risco de pena de morte.
Em seu discurso no tribunal, disse:
"Lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra. Acalento o ideal de uma sociedade democrática e livre, na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e alcançar. Mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer." Nelson Mandela
Em junho de 1964, Nelson Mandela e sete outros foram condenados à prisão perpétua. Ele percorreu três prisões: Robben Island, Pollsmoor e Victor Verster.
Durante o cárcere, em 1968 e 1969, sua mãe e filho mais velho morreram, mas ele não foi autorizado a comparecer aos enterros.
Conversas com o governo e liberdade
Em 1985, em meio a recorrentes protestos em massa contra o regime do Apartheid, a ANC iniciou conversas com o governo sul-africano.
“Em 12 de agosto de 1988, ele foi levado ao hospital, onde foi diagnosticado com tuberculose. Depois de mais de três meses em dois hospitais, ele foi transferido em 7 de dezembro de 1988 para uma casa na Prisão Victor Verster, perto de Paarl, onde passou seus últimos 14 meses de prisão”, diz o site da Fundação.
“Ele foi libertado no domingo, 11 de fevereiro de 1990, nove dias após a retirada do banimento do ANC e quase quatro meses após a libertação de seus camaradas restantes de Rivonia. Ao longo de sua prisão, ele rejeitou pelo menos três ofertas condicionais de libertação”, complementa.
Em junho de 1990, Mandela compareceu pela primeira vez à ONU, no Comitê Especial Contra o Apartheid, no Salão da Assembleia-Geral, em Nova York.
Em 1991, foi eleito presidente do ANC e manteve negociações para “acabar com o governo da minoria branca”.
"Diz-se que ninguém conhece verdadeiramente uma nação até que esteja dentro de suas prisões. Uma nação não deve ser julgada pela forma como trata seus cidadãos mais elevados, mas sim os mais baixos." Nelson Mandela
Nobel da Paz
Em 1993, Nelson Mandela ganhou o prêmio Nobel da Paz, “pelo seu trabalho pelo fim pacífico do regime do Apartheid e por lançar as bases para uma nova África do Sul democrática”, de acordo com a descrição no site da instituição.
Ele dividiu o prêmio com “o homem que o libertou, o presidente Frederik Willem de Klerk, porque eles concordaram com uma transição pacífica para o governo da maioria”.
Eleito presidente
Em 1994, foram realizadas as primeiras eleições “multirraciais” na África do Sul. Mandela pôde votar pela primeira vez em sua vida.
A ANC ganhou com grande maioria e, em 10 de maio, Nelson Mandela assumiu como o primeiro presidente democraticamente eleito do país. Porém, ele afirmou que não buscaria reeleição e, após um mandato, deixou o cargo.
Em 1998, se casou pela terceira vez, com Graça Machel.
Nelson Mandela faleceu em 5 de dezembro de 2013, em sua casa em Joanesburgo.
"Nossa liberdade não pode ser completa enquanto outros no mundo não são livres." Nelson Mandela
Outras partes de seu legado
O ex-presidente sul-africano fundou algumas organizações sociais. Em 1995, o Fundo para a Infância Nelson Mandela, que “se esforça para mudar a forma como a sociedade trata suas crianças e jovens”.
A Fundação Nelson Mandela, por sua vez, foi criada logo depois que ele deixou a presidência, em 1999. Ela é focada no diálogo e legado do líder, tendo também o Centro de Memória dedicado a ele, inaugurado em novembro de 2013.
Há também a Fundação Mandela Rhodes, que fornece bolsas de pós-graduação para estudantes em um Programa de Desenvolvimento de Liderança na África do Sul. Ela foi fundada em 2003.
"Se eu tivesse a vida novamente, faria o mesmo de novo, assim como qualquer homem que ouse se chamar de homem." Nelson Mandela
*Texto publicado originalmente na CNN.
Revista online | 10 anos do Código Florestal: retrocessos e pouco a comemorar
Raul Valle*, especial para a revista Política Democrática online (45ª edição: julho/2022)
“Agora temos a lei ambiental mais rigorosa do mundo”, bradou o então deputado federal Paulo Piau (MG) sobre o novo Código Florestal que acabava de ser aprovado pelo Congresso Nacional – com seu voto e atuação proativa. Para a senadora Kátia Abreu (TO), outra fervorosa defensora da nova lei, ao contrário do que as ONGs diziam, o desmatamento ilegal iria cair “drasticamente” nos anos seguintes com a aprovação do novo texto, não havendo, portanto, porque temê-lo.
No último dia 25 de maio completou-se 10 anos da aprovação do novo Código Florestal (Lei Federal 12651/12). Em 2021, o desmatamento na Amazônia foi 200% superior ao do ano anterior ao da aprovação da lei. Mesmo na Mata Atlântica, que havia atingido o estágio de quase “desmatamento zero”, este atingiu patamares maiores do que antes da aprovação da nova lei. No Mato Grosso, capital do agronegócio, o desmatamento não apenas aumentou, mas continuou ilegal: 92% do desmatado até 2019 não tinha qualquer tipo de autorização, embora a quase totalidade dos imóveis rurais já esteja dentro do Cadastro Ambiental Rural – CAR. A promessa vendida à sociedade à época da aprovação da lei era de que, em troca das muitas anistias concedidas aos produtores rurais, estes iriam a partir de então parar de desmatar e começar a restaurar os seus passivos remanescentes, pois ao entrar no CAR seriam vigiados de perto pelos órgãos ambientais, que poderiam enviar as multas “pelo correio” caso verificassem qualquer desmatamento ilegal. Ledo engano.
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Fruto de um longo embate dentro do Congresso Nacional, o qual opôs representantes do agronegócio, de um lado, e ambientalistas, cientistas e pequenos agricultores de outro, a lei foi a primeira vitória maiúscula que a então crescente bancada ruralista obteve na sua guerra contra o que, em sua visão, conformava o “eixo do mal”: as regras de proteção ao ambiente, de reconhecimento de terras indígenas e de garantia de direitos trabalhistas. Até então, desde a redemocratização, o setor havia acumulado apenas “derrotas”, com a aprovação de leis ambientais mais rigorosas, que impunham limites ao uso de recursos naturais em propriedades privadas e aprimoravam a forma de punir o descumprimento das regras estabelecidas. Foi após a aprovação do Decreto Federal 6514, em 2008, que o setor resolveu dar um basta e pressionar por uma mudança na lei, que datava de 1965. Até então era simples descumprir as regras estabelecidas. O decreto, no entanto, fechou lacunas jurídicas há muito usadas e tornou real a possibilidade de que a lei teria que ser cumprida. Confrontado com essa perspectiva, o setor resolveu que era melhor mudar a lei do que se esforçar para cumpri-la.
Confira, a seguir, galeria de fotos:
O balanço de 10 anos da aprovação da lei não é bom. Embora a maior parte dos imóveis rurais já estejam inscritos no CAR – em alguns estados os números superam os 100%, dentre outras razões porque houve fracionamento artificial de imóveis para aproveitar o máximo as benesses da lei, maiores para pequenas propriedades – é ínfima a quantia dos que foram efetivamente analisados para saber se há passivos e obter do proprietário o compromisso de recupera-los. No Pará, apenas 0,1% chegaram nessa etapa e na maioria dos estados o número é ainda menor. A honrosa exceção é o Espírito Santo, que tem o mais robusto programa de apoio à restauração florestal do país e mais de 70% dos imóveis já analisados.
Quando a lei foi aprovada muitos elogiaram seu suposto equilíbrio. Por não ter agradado nem os ambientalistas, que viam com horror regras que dispensavam a recuperação de 21 milhões de hectares de florestas, nem os representantes do agronegócio, que gostariam de eliminar totalmente qualquer restrição legal ao desmatamento, vendeu-se a ideia de que ela seria justa. Se efetivamente o setor agropecuário tivesse se engajado em sua implementação, cumprindo com a promessa de que dali pra frente a coisa seria diferente, ou seja, que mesmo menos protetiva a lei finalmente sairia do papel, talvez pudéssemos concordar com essa análise.
O que vemos, no entanto, é que a aprovação do novo Código Florestal foi a abertura de uma caixa de pandora. Ao conseguir uma vitória tão maiúscula, o setor agropecuário descobriu que podia fazer muito mais. De alguma forma, normalizou-se a lógica de que, com poder, é melhor mudar a lei que impõe alguma restrição do que cumpri-la. Disso resultaram muitos outros projetos de lei que avançam rapidamente no Congresso Nacional para anistiar grileiros e permitir mais desmatamento. Como podemos perceber, isso tem feito muito mal não apenas ao meio ambiente no país, mas à própria qualidade de nossa democracia.
Sobre o autor
*Raul Valle é advogado, mestre em Direito Econômico e coordenador de incidência política do WWF Brasil.
* Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de julho/2022 (45ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Frente popular: o caso do Chile
Alberto Aggio, Horizontes Democráticos*
Muito se tem falado e escrito nos dias que correm sobre a atualidade das frentes populares, em especial no Brasil nesses meses que antecedem as eleições presidenciais. Esse interesse vem se cristalizando, não apenas no Brasil, por conta da necessidade de se enfrentar os chamados regimes, governos ou tendências que hoje caracterizamos como iliberais, reconhecendo que alguns personagens a eles referidos apresentam vivíssimos traços fascistas. Evidentemente, não se trata de imaginar uma repetição do passado, contudo, a perspectiva de enfrentamento a essa situação tem suscitado a lembrança das Frentes Populares que tiveram vigência a partir de meados da década de 1930. A menção ao tipo de aliança política que comportava a estratégia política da frente popular nem sempre tem enfatizado a necessidade de compreender a sua história bem como suas vicissitudes. A ênfase recai, no mais das vezes, na intenção ou na necessidade premente de ultrapassar um governo marcado permanentemente por ameaças a democracia brasileira. Nesse sentido, refletir sobre a trajetória histórica da frente popular no Chile, único país latino-americano a vivenciar concreta e objetivamente uma política com essas características, torna-se importante para se perceber tanto a positividade quanto os desafios e limites que esse resgate pode implicar.
Em função da vitória do nazismo na Alemanha no início da década de 1930, a Internacional Comunista (IC), passou a adotar, a partir de agosto de 1935, uma nova orientação política: a estratégia da Frente Popular. Embora não tão conhecida, ao lado da França e da Espanha, o Chile conheceu a vitória eleitoral e o estabelecimento de um governo baseado na política de Frente Popular, em 1938. Para o movimento global do comunismo, essa estratégia significava a ultrapassagem da política anterior de “classe contra classe” que não tinha gerado nenhum ganho efetivo ao movimento. Para a IC, haveria a necessidade de se impulsionar a unidade de ação entre os comunistas e outras forças políticas com o intuito de se fazer frente, política e ideologicamente, ao fascismo e ao nazismo, então em ascensão na Europa ocidental. Ainda que a América Latina figurasse como absolutamente secundária frente aos propósitos da IC, Brasil e Chile, em virtude de suas posições estratégicas, em relação ao Atlântico e ao Pacífico, passaram a ser vistos como países importantes para que se estimulasse a nova linha política.
Escute Podcast sobre o Chile:
Apesar de cronologicamente posterior às experiências da França e da Espanha, as vicissitudes que deram origem a Frente Popular no Chile foram, de certa forma, similares. Tratava-se da necessidade de unidade político-social de setores populares para resistir ou impedir a instalação de um governo repressor. Da mesma maneira que na Europa, a Frente Popular articulou-se no Chile como uma aliança político-eleitoral que abrigava correntes político-ideológicas mais amplas do que o espectro formado pela esquerda de matriz marxista. Em oposição ao segundo governo de Arturo Alessandri (1932-1938), marcadamente autoritário e repressivo, a Frente Popular chilena foi composta essencialmente pelos partidos Radical, Socialista e Comunista, que assumiram, gradativamente, a defesa da democracia política como fundamento de uma coalizão de centro-esquerda, ainda que, à época, ela fosse caracterizada como um agrupamento genuinamente “esquerdista” por seus adversários.
Igualmente efêmeras, essas três experiências governativas de Frentes Populares foram historicamente decisivas em suas histórias nacionais, a despeito dos desfechos tão dispares que tiveram. A frente popular na Espanha redundou, como se sabe, no banho de sangue da guerra civil, iniciada em 1936, e, na França terminou, sumariamente, em função da falta de apoio parlamentar ao gabinete socialista de Léon Blum, em abril de 1938. No Chile, ao contrário da Espanha, não eclodiu a guerra civil. No entanto, a Frente Popular não conseguiu sustentar-se como aliança política passados os dois anos de sua chegada ao poder. Em 1941, ela seria irreparavelmente rompida. Mesmo assim, diferentemente da França, a ruptura da coalizão de centro-esquerda não significou, no Chile, o colapso do governo iniciado em 1938. Sustentado pelo presidencialismo da Carta Constitucional de 1925, o governo do presidente Pedro Aguirre Cerda (eleito em 1938 pela Frente Popular) prosseguiu mesmo após a ruptura da coalizão originária e seu mandato somente foi interrompido em virtude de sua morte, no mesmo ano em que se rompia a aliança dos partidos da Frente Popular.
Ainda que as alianças eleitorais e de governo posteriores a 1941 tenham sido mais amplas e variáveis do que a coalizão vitoriosa em 1938, a característica distintiva assumida pelo Chile está no fato de que a experiência da Frente Popular proporcionou ao país mais de uma década de governos sob sua inspiração, tendo sempre à testa um presidente vinculado ao Partido Radical. Depois da vitória de 1938 e da ruptura da Frente Popular em 1941, os Radicais venceram as duas eleições consecutivas para a Presidência da República. Na primeira, em 1942, com Juan Antonio Ríos encabeçando uma coalizão amplíssima, denominada “Aliança Democrática”. Na segunda, em 1946, Jorge González Videla foi o candidato da “União Nacional”, alcançando o poder com um forte e explícito apoio dos comunistas para em seguida colocá-los na ilegalidade, em 1947. Em ambas, como se nota, a consigna “Frente Popular” cedeu lugar, significativamente, a outras expressões. Depois de 1938, Videla foi o único presidente Radical do período que terminou seu mandato – Antonio Ríos, da mesma forma que Aguirre Cerda, morreu antes de concluí-lo. O desprestígio do Partido Radical como força política governante e as divisões no seio da esquerda no início da década de 1950 possibilitaram a eleição presidencial do ex-ditador Carlos Ibáñez del Campo, em 1952.
A Frente Popular e o Radicalismo, seguindo a dinâmica do processo de modernização iniciado na década de 1920, assentaram e implementaram profunda e sistematicamente, mas sem assumir uma feição revolucionária, políticas que possibilitaram a alteração da fisionomia econômico-social do país, através da ação estatal. Se os quatorze anos que se seguiram à vitória eleitoral de 1938 não devem ser compreendidos, em sua integralidade, como um período articulado pela linha política da Frente Popular, tampouco podem ser vistos em descontinuidade com as forças políticas que assumiram o poder em 1938 ou como externo às mudanças que a partir daquele momento se processaram. Numa visão comparativa, não seria despropositado um paralelo entre os quatorze anos de predomínio Radical no Chile e o período em que Getúlio Vargas governou o Brasil, entre 1930 e 1945, ainda que as diferenças no que se refere à dimensão política sejam contundentes e expressivas. Entretanto, o que mais chama atenção, além do contexto cronológico, são os projetos econômicos que foram implementados, mesclando nacionalismo e integração internacional, tendo como base a sedução pelo “americanismo”, apesar de ambos os países manifestarem também à época uma adesão incontestável aos fundamentos organicistas de matriz fortemente europeia.
No entanto, ao contrário do Brasil, a partir de 1938, a política conciliatória, flexível e pragmática do Partido Radical passou a ser o ponto de referência central na vida política do país, fortalecendo as convicções democráticas do republicanismo chileno. Isso acabou por gerar, a despeito das enormes divergências internas desde o estabelecimento da Frente Popular e dos conflitos latentes com as forças de direita, um clima de relativo consenso em torno de temas como a industrialização e a intervenção continuada do Estado na economia. À testa dos governos que se sucederam, o Partido Radical garantiu uma relativa estabilidade do sistema político e pautou-se pela conciliação, em quase todo o período a partir de 1938, em relação aos interesses das camadas subalternas, em especial as urbanas. Acomodando-se também às oscilações dos outros segmentos políticos, o Partido Radical pôde realizar, ao longo deste período (sobretudo depois de rompida a Frente Popular), alianças eleitorais e de governo de amplo espectro, ora encaminhando-se mais à esquerda, ora à direita, conforme os ditames da conjuntura. No geral, as alianças eleitorais lideradas pelos Radicais foram de centro-esquerda. Uma vez vitoriosos e no poder, os Radicais buscavam, e por vezes conseguiam, o apoio de frações dos Liberais, dos Conservadores e da Falange Nacional (futuro Partido Democrata-Cristão). Entre 1932 e 1952, os Radicais e os Conservadores nunca compuseram alianças eleitorais, ainda que tenham participado de algumas alianças de governo, no início e no final deste período.
Numa visão de conjunto do processo aberto em 1938, o consenso a que nos referimos anteriormente jogou um papel muito mais decisivo do que a natureza das coalizões levadas a efeito pelas políticas de esquerda ou aquelas do Radicalismo. Por esta razão, a ascensão ao poder da Frente Popular abriu um período na história do Chile que não correspondeu integral e precisamente aos anseios que expressavam (retoricamente ou não) suas bases de apoio e as representações políticas e sociais que lhe deram origem na conjuntura repressiva de 1936[4].
Neste sentido, pode-se dizer que o destino reservado aos atores políticos que operaram as mudanças empreendidas naquele período não corresponde à envergadura da tarefa realizada. Em relação à esquerda, ainda que as consequências da sua participação nos governos de coalizão tenham sido prontamente avaliadas como negativas – e esta visão será predominante no seio da esquerda chilena até a década de 1970 –, pode-se dizer que, em favor desta participação está o fato de que os partidos Comunista e Socialista não somente conseguiram assegurar o seu papel de representantes dos trabalhadores organizados, como também puderam aumentar suas bases e seu prestígio para, enfim, atuarem como forças proeminentes do processo político nacional, em condições de igualdade com os demais partidos. Isso é extremamente importante porque, além da experiência governativa, permitiu assegurar a autonomia política e organizativa das classes subalternas no processo de modernização que o país viveria a partir deste período.
Por outro lado, levando-se em conta que uma das bases do seu programa era o nacionalismo, podemos dizer que, no plano da economia, a esquerda foi incapaz de influenciar no sentido de se promover o desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, diminuir a vulnerabilidade e a dependência do país em relação ao exterior. No plano da cidadania, verificou-se a impossibilidade de se ampliar o eleitorado nacional e de se conseguir estender o processo de sindicalização ao campo. A ascensão ao poder das forças que se articularam na Frente Popular não levou a um processo de democratização, via ampliação do eleitorado. No final da década de 1940, o percentual de votantes em relação à população era menor do que ao término da década anterior e se comparamos as eleições presidenciais de 1932 e de 1946 verificamos que o crescimento da participação eleitoral foi insignificante: de 7,6% para 8,5%[5].
Este conjunto de resultados não se encontra fora do âmbito explicativo. Em primeiro lugar, é verdadeiro que a correlação de forças não era inteiramente favorável à esquerda e que a direita (Conservadores e Liberais, fundamentalmente), em maioria no Parlamento por quase todo o tempo, conseguiu bloquear a implementação de medidas voltadas para os objetivos democratizantes que constavam do programa da Frente Popular de 1938. Além disso, em diversas oportunidades, a direita demonstrou claramente aos Radicais que seus interesses teriam preferência até mesmo sobre a manutenção da democracia representativa. A direita combinou assim a sua força eleitoral com o seu poderio econômico: vetou tudo o que afetava seus interesses imediatos, especialmente a sindicalização camponesa, e permitiu as mudanças que expressavam os interesses das organizações empresariais, acomodando seus potenciais conflitos internos.
Neste sentido, operando a situação política para permanecer sempre com o controle da presidência da República, a disposição do Partido Radical em ceder às pressões da direita seguiu à lógica de afirmação histórica deste partido. Nela, o tema da ordem assumia importância equivalente ao da mudança. A afirmação das representações da esquerda, em função da estabilização democrática do sistema político, empurrou o Radicalismo para o centro. Nessa posição, os Radicais tinham tudo a oferecer aos dois lados do espectro político, desde que estes o brindassem, conforme as circunstâncias, com o posto maior da República e/ou com o apoio ao futuro governo. A leitura que os Radicais fizeram desta situação definiu com maior precisão o seu papel político. A partir dai, a combinação mais eficaz para dar andamento à modernização e garantir a estabilidade estava na sua própria razão de ser como ator político.
A trajetória histórica da Frente Popular no Chile chama atenção para inúmeras dimensões, especialmente para o conflito político, as representações da esquerda bem como para a estabilização de um sistema político democrático e pluralista. Seria importante atentar também para a difícil e complicada relação entre a proposição de origem, enfaticamente democratizadora, e os resultados alcançados que limitaram esse avanço, embora não o tenham suprimido integralmente. Contudo, comparada com França – onde sobreveio a invasão do nazismo – e com a Espanha – que imergiu numa guerra civil sangrenta –, a Frente Popular no Chile conseguiu realizar uma façanha histórica, especialmente se pensarmos no contexto latino-americano da época: conciliar democracia política e modernização econômico-social, mesmo com todas as limitações que se evidenciaram no percurso de quatorze anos.
Ps. A imagem de capa desse artigo registra a manifestação popular em frente ao palacio La Moneda, no dia da posse de Pedro Aguirre Cerda, presidente eleito pela Frente Popular em 1938.
*Publicado simultaneamente em Estado da Arte, em 30 de junho de 2022; https://estadodaarte.estadao.com.br/frente-popular-chile-aggio/
Editora resgata extensa obra literária de Astrojildo Pereira
A editora Boitempo e a Fundação Astrojildo Pereira (FAP) lançam amanhã, às 16h, na Biblioteca Salomão Malina, no Conic, a Coleção Astrojildo Pereira, com as obras completas do jornalista, ensaísta e fundador do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1922, do qual seria expulso em 1930, por ordens de Moscou, no período stalinista marcado pelo chamado “obreirismo”. Na programação, haverá um debate seguido de sessão de autógrafos.
Astrojildo somente seria reintegrado ao partido em 1946. Dedicou-se ao jornalismo, com destaque para a atuação como diretor da revista Estudos Sociais, que circulou de 1958 a 1964. Foi um dos intérpretes do processo de urbanização e industrialização do Brasil e revelou-se excepcional crítico literário. Destacou-se também como biógrafo de Machado de Assis, de quem foi admirador desde a adolescência e personagem de sua despedida, no leito de morte, testemunhada por Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José
Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Otávio, grandes intelectuais da época.
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Euclides da Cunha descreveu, no Jornal do Commercio de 30 de setembro de 1908, o encontro do jovem e ainda anônimo intelectual com o escritor já moribundo. “Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo — no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.”
Somente em 1936, o nome do adolescente foi revelado pela escritora Lúcia Miguel Pereira. O episódio serviu de roteiro para um curta-metragem de Zelito Vianna, com Marcos Palmeira no papel do autor de Os Sertões.
Livros raros
Os livros Crítica Impura, Formação do PCB, Interpretações, Machado de Assis e URSS Itália Brasil compõem a coleção, além da biografia Um revolucionário cordial, de autoria do professor e historiador Martim Cézar Feijó, que participará do encontro, ao lado do jornalista Carlos Marchi, biógrafo de Carlos Castello Branco
e Teotônio Vilela. O debate será aberto ao público, na auditório da biblioteca, mediado pelo sociólogo Caetano Araújo, diretor geral da FAP, e transmitido pelas redes sociais.
O lançamento torna acessível ao grande público e aos pesquisadores da história das ideias políticas no Brasil e da literatura brasileira a matriz de uma vertente de pensamento que influenciaria a esquerda brasileira até os dias de hoje e, também, toda uma geração de romancistas que protagonizou a crítica social na nossa literatura, inclusive Jorge Amado. Dentre as obras agora reeditadas, destaca-se Interpretações, publicada pela Casa do Estudante do Brasil, em 1944.
Com prefácio de Flávio Aguiar, professor de Letras aposentado da Universidade de São Paulo, Interpretações analisa as obras de Machado de Assis, Lima Barreto, Manoel Antônio de Almeida, Joaquim Manuel de Almeida, Gastão Cruls e Graciliano Ramos, além de Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana.
Confira debate sobre Astrojildo Pereira no 7º Salão do Livro Político
Veja vídeo de lançamento da Coleção Astrojildo Pereira, em Brasília
Paz e democracia
Surpreendem, ao final da obra, dois textos sobre a II Guerra Mundial. No primeiro, Astrojildo faz uma interessante leitura das referências bíblicas às guerras, com claro objetivo de confrontar as atitudes de Hitler e o antissemitismo nazista; no segundo, escrito quando a Força Expedicionária Brasileira (FEB) já lutava nos campos da Itália e a ditadura de Getúlio Vargas estava com os dias contados, debate o papel dos intelectuais na luta contra as ideias fascistas e a importância da consolidação da democracia no pós-guerra.
Textos de Florestan Fernandes dialogando com Astrojildo sobre o papel dos intelectuais, e de Nelson Werneck Sodré, sobre a trajetória política e intelectual de seu amigo, completam a nova edição de Interpretações, que também pode ser adquirida separadamente.
*Texto publicado originalmente em Correio Braziliense
Editorial revista online | O quadro eleitoral
A pouco mais de um mês do início das campanhas eleitorais e a menos de cem dias das eleições de outubro, é tempo de tentar um balanço da situação atual do pleito, a partir do conjunto de informações disponíveis.
Conforme pesquisas recentes, a disputa nas eleições presidenciais não mostra alteração aparente significativa. Lula lidera nas intenções de voto, com larga margem sobre o presidente da República. O terceiro colocado permanece imóvel na sua posição, enquanto a candidata do campo chamado de terceira via não logrou ainda, ao que tudo indica, decolar junto ao eleitorado.
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A persistência dos mesmos resultados por meses seguidos, contudo, não é suficiente para assegurar sua continuidade até o dia do pleito. Como bem sabemos, eventos imprevistos, com grande impacto potencial sobre os eleitores, podem ocorrer até o último dia de campanha, com exposição pública em tempo real.
Mesmo na ausência de eventos dessa ordem, duas linhas de mudança possível são detectáveis nesse quadro. Em primeiro lugar, o candidato do governo atingiu, ao que tudo indica, seu teto de intenções de voto, enquanto crescem as pressões no sentido da perda de sua popularidade. Escândalos novos vêm à tona nos altos escalões do governo, reforçando um cenário que combina incompetência com ilegalidades de toda ordem. O caso da vez é a investigação sobre os dutos da corrupção presentes no Ministério da Educação que já resultaram na prisão do ex-ministro e na suspeita de vazamento de informação sigilosa por parte do próprio presidente da República.
A apuração dos fatos aos olhos do público, por meio de Comissão Parlamentar de Inquérito, teria efeito desastroso na corrente de opinião a ele favorável, repelindo os apoiadores ocasionais, motivados pela rejeição aos demais candidatos, e isolando, por consequência, o núcleo radical, imune a qualquer evidência empírica capaz de desqualificar seu líder.
Em segundo lugar, parece haver espaço para o crescimento da candidata do campo denominado terceira via, espaço que precisa, contudo, ser ocupado de imediato, sob pena de estreitar-se progressivamente até às vésperas da eleição. De acordo com um ator experiente da política, que reivindica a classificação de direita democrática, o primeiro passo para a ocupação desse campo deveria ser a recuperação dos eleitores tradicionais do centro, que engrossam hoje as fileiras da candidatura Lula por rejeição ao candidato governista, percebido, corretamente, como um nome da extrema direita no país, com viés autoritário explícito. Esses eleitores que pousaram provisoriamente na esfera eleitoral do candidato Lula só se afastarão dela em benefício de um candidato que afirme, sem ambiguidade, sua crítica ao governo e seu pertencimento ao campo das forças democráticas.
A situação não favorece a reeleição, como demonstrado pelas tentativas de abrir caminho, por meio de seguidas declarações, para a insubordinação, a desordem e a deslegitimação de eventuais resultados eleitorais desfavoráveis. Cabe às forças democráticas, contudo, redobrar a vigilância e levar a outro patamar o necessário diálogo entre seus representantes.
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