democracia

Alberto Aggio: As falácias vão ficando pelo caminho

Mesmo antes de ser aprovada a admissibilidade do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, o caudal de argumentos contra o impeachment, na imprensa e na opinião pública, adensou-se de maneira impressionante, ganhando parâmetros discursivos que ultrapassavam a fábula do golpe, ainda que este tenha permanecido como o eixo principal da retórica esgrimida pelo petismo para obter apoio, dentro e fora do País, a uma presidente sub judice.

No mais paradoxal de todos os argumentos, afirmava-se que uma possível vitória do impeachment não mudaria em nada a situação do País; não aplacaria a crise econômica e não possibilitaria a retomada do crescimento; não se conseguiria sustar a crise social que bate às portas dos lares brasileiros e, portanto, o desemprego seguiria crescendo.

E que o impeachment tampouco daria fim à corrupção, muito ao contrário: a presença do presidente da Câmara na condução do processo era o sinal de que um futuro governo Michel Temer exterminaria por completo as operações da Lava Jato. O curioso é que, ao se negar qualquer positividade ao impeachment, também se espera tudo dele. No fundo, retoricamente, cobra-se o restabelecimento in acto de um País novamente republicano, próspero e democrático. É um argumento de pés de barro. Como se sabe que, do ponto de vista do realismo político, se trata de uma expectativa inalcançável, pelo menos na dimensão imediata, denota-se que o impeachment, mesmo sendo bem-sucedido, apenas causaria aos brasileiros uma “frustração coletiva”, já que não solucionaria as profundas crises que assolam o Brasil.

Essa narrativa está centrada na interpretação de que o País entrou num beco sem saída, mas governo Dilma Rousseff estaria eximido de qualquer responsabilidade, tendo sido a oposição a causadora de toda a crise. Supostamente, a crise política teria sido iniciada no pedido de recontagem de votos e, em seguida, na cândida ideia de que a oposição não deu trégua à presidente reeleita, apostando no caos e prejudicando a Nação, especialmente os mais pobres. Esse argumento, por demais conhecido, oculta o fato de que o PT nunca admitiu sofrer oposição, mas especializou- se em fazê-la de forma contundente, já que se julga o único portador de uma política social digna do nome, o que é flagrantemente contestado por qualquer pesquisa séria a respeito da realidade nacional recente, desde a redemocratização.

Quando a admissibilidade do impeachment foi aprovada na Câmara, a falácia do golpe ganhou a companhia de discursos laterais: a vitória da “vingança” de um político corrupto, em referência ao deputado Eduardo Cunha, presidente daquela Casa, e a imposição à Nação de uma “eleição indireta” para presidente, representado no embate Dilma versus Temer. Essas avaliações falaciosas se combinaram com ameaças de violência e a busca de “alternativas” políticas à débâcle do governo petista. O ponto nevrálgico dessas alternativas emergiu na proposta, primeiro, de “eleições gerais” e, depois, de “novas eleições” para presidente, expressa na consigna “nem Dilma, nem Temer”.

Duas alternativas inviáveis do ponto de vista constitucional, sem levar em conta a oposição que teriam nas duas Casas do Congresso e, ao que parece, entre as lideranças das bases sociais do PT. Vê-se claramente que não se trata mais de defender o governo Dilma. O que sustenta a inflação de falácias do petismo é a perspectiva de garantir algum futuro ao PT como ator político, levando a conjuntura a um grau extremo de polarização por meio de discursos que afrontam as instituições de representação da cidadania e visam à radicalização das ruas. Derrotado, o PT passou a adotar todo e qualquer casuísmo a fim de evitar que o impeachment devolva normalidade ao País e credibilidade ao novo governo.

Daí as artimanhas, as ameaças e, por fim, a negativa de um processo de transição administrativa, sonegando informações aos futuros governantes. O PT tanto falou em golpe que agora pretende aplicá-lo, com requintes de vingança, em relação ao futuro governo. Já se tornou exaustivo explicar que o processo de impeachment está plenamente justificado em termos legais e que sua legitimidade é indiscutível. Dilma violou a Lei de Responsabilidade Fiscal por meio de mecanismos fraudulentos para esconder, no período eleitoral e depois dele, que não tinha sustentação financeira para manter a economia em bom curso e evitar a crise. Uma política econômica desastrosa se somou a níveis de corrupção jamais vistos, jogando o Brasil numa crise inaudita e de grande profundidade.

Dilma é, portanto, o nome do “retrocesso” que o País está vivendo, em termos econômicos, políticos e até mesmo de convivência democrática. Assim como não há espaço vazio em política, também não há a possibilidade de deixarmos de atribuir a responsabilidade por todo este estado de coisas. Os verdadeiros culpados são mais do que evidentes. Um novo governo pós-impeachment, legítimo em termos constitucionais e necessariamente de transição até 2018, terá como missão primeira tentar paralisar o desastre e de nenhuma forma poderá ser inculpado pela situação do País.

As encruzilhadas da História brasileira invariavelmente encontraram soluções sustentadas pela “via autoritária”. Pode ser que esta seja a primeira vez que estejamos enfrentando um impasse condicionado e determinado pela democracia, que já é, entre nós, uma experiência concreta em termos constitucionais e institucionais, embora nos falte um lastro maior de cultura política democrática.

A insistência na falácia do golpe, com o seu vitimismo, sua artificialidade e suas ameaças, atua no sentido de enfraquecer e virtualmente bloquear a democracia. Desmistificar as falácias do petismo e superar a “herança maldita” do governo Dilma assumem hoje o mesmo significado. (O Estado de S. Paulo – 07/05/2016)


ALBERTO AGGIO É HISTORIADOR, É PROFESSOR TITULAR DA UNESP


OEA e PNUD lançam guia sobre gestão de conflitos sociais

Novo documento propõe mecanismos de prevenção e resolução de conflitos para fortalecer a democracia.

do PNUD

Washington, DC, 31 de março de 2016 – Melhorar a capacidade de gestão das instituições locais e nacionais é crucial para prevenir e promover a resolução pacífica de disputas e conflitos, ressaltaram hoje a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) para América Latina e o Caribe, quando apresentaram um novo guia intitulado “Sistema de Alerta e Resposta Antecipada de Conflitos Sociais”.

O guia da OEA-PNUD busca ajudar servidores públicos e as organizações da sociedade civil na criação de mecanismos de prevenção e melhorar a resolução de conflitos para poder evitar escaladas de violência que possam pôr em risco as pessoas, grupos e a governabilidade democrática em conjunto.

“Os sistemas de alerta e resposta antecipadas são só uma das tantas ferramentas dentro do arsenal de ações durante a prevenção e abordagem dos conflitos sociais, já que é melhor investir na prevenção dos mesmos e não pagar os altos custos políticos, sociais e humanos que eles podem causar. Isso é indispensável em tempos de incerteza e quando existe uma desaceleração da atividade econômica, enquanto que as demandas sociais continuam aumentando”, disse o Secretário-Geral da OEA, Luis Almagro.

A publicação lançada hoje, além de ser de natureza única no mundo, sistematiza as lições aprendidas durante experiências passadas em países latino-americanos com sistemas de alerta antecipada, mostrando princípios orientadores que sirvam para pôr em andamento mecanismos eficazes.

O guia fomenta a busca de sistemas de boa governança, oferecendo orientações necessárias para a análise adequada de conflitos que permitam entender os cenários de potencial de conflito, gerar ações de como proceder e de elaborar estratégias e políticas viáveis para a prevenção e gestão de conflitos sociais.

A Subsecretária-Geral da ONU e Diretora Regional do PNUD para a América Latina e o Caribe, Jessica Faieta, ressaltou que “tratar de forma construtiva os conflitos sociais, prevenir e resolvê-los de um modo pacífico, além de incluir os principais grupos e populações na tomada de decisões, são elementos essenciais para um nova geração de políticas em consonância com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”. “Os sistemas de alerta antecipada devem fazer parte de uma estratégia integral de prevenção junto com outras abordagens como a conciliação, a mediação ou o diálogo; a coordenação interinstitucional de atores responsáveis na intenção e a promulgação de uma cultura de paz em funcionários e cidadãos”.

Cada sistema deve ser desenhado e implementado de acordo com os contextos locais e as suas particularidades. Para isso, é necessário levar em consideração questões de gênero e identidades étnicas, ajudar os cidadãos e funcionários públicos a compilar e analisar informação para advertir os tomadores de decisões no momento oportuno sobre a formulação de propostas de ação, assim como avaliar o impacto do sistema de advertências e a qualidade das respostas. Os sistemas eficazes implicam cooperação entre os diferentes organismos locais, estaduais e nacionais, e devem contar com o respaldo dos níveis mais altos de tomada de decisão, além dos principais atores que demandam uma mudança social.

As redes sociais e os meios on-line em geral desempenham papel fundamental como fontes de informação, ajudando a avaliar as causas dos conflitos e promovendo o diálogo e a sensibilização para encontrar soluções construtivas.

Baixe o Guia em espanhol e inglês.

Para mais informação, entre em contato com:

Carolina Azevedo: carolina.azevedo@undp.org

Vanessa Hidalgo: vanessa.hidalgo@undp.org

Gonzalo Espáriz: gespariz@oas.org

Sandino Martínez: psmartinez@oas.org


Fonte: pnud.org.br

 


1964: A luta política pela democracia - Raimundo Santos

O golpe de 1964 depôs João Goulart e interditou as liberdades democráticas. O seu governo refletia as lutas em favor das "reformas de base" e pela ampliação de direitos. Crescia o movimento de opinião pública em defesa da economia e das riquezas nacionais, inclusive com repercussão nas Forças Armadas. Fortaleciam-se o sindicalismo urbano, os sindicatos rurais, as ligas camponesas e o associativismo de diversas categorias. Intelectuais, áreas do mundo da cultura e estudantes dinamizavam o campo progressista dessa época.

Goulart enfrentou dura oposição da União Democrática Nacional (UDN) e de setores reacionários. Áreas da sua base de apoio, nucleada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e pelo Partido Social Democrático (PSD), oscilavam diante das dificuldades, sobretudo econômicas. As esquerdas se dividiram, parte dela se radicalizou, passando a combater o que chamava de “conciliação” do governo com os conservadores. Goulart chegou ao final de março de 1964 politicamente isolado.

Diferentemente dessa experiência da frente nacional e democrática (expressão daqueles anos), o campo da resistência ao regime de 1964 iria ter como norte as liberdades democráticas (cf. Resolução política do PCB, maio de 1965) e iria se firmar a valorização da democracia política como caminho para alargar direitos e realizar reformas estruturais.

A ditadura logo se deparou com oposição. Em 1965, foi derrotada nos estados da Guanabara e Minas Gerais nas eleições para governador. Entre 1966 e 1968 se formou um campo oposicionista ativado pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), pelas ações de intelectuais e de áreas da vida cultural e artística e pelos estudantes. Os sindicatos recuperavam suas entidades sob intervenção. Essa animação teve o seu ponto alto na passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro.

A ditadura impôs o Ato Institucional n. 5 (AI-5) em 13/12/68, fechou o Congresso, cassou mandatos e direitos políticos e extremou a repressão. Nos anos de chumbo (1969-1975), a tortura teve uso sistemático, numerosos opositores desapareceram e os exílios aumentaram.

Ao contrário das correntes que não viam saída que não fosse o confronto direto, na frente democrática se acreditava, principalmente no Partido Comunista Brasileiro (PCB), que o endurecimento do AI-5 poderia ser barrado por meio da política. O MDB amplia sua atividade nas eleições controladas e até na eleição indireta para Presidente da República de 1973, quando Ulisses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho se lançaram anticandatos. A oposição se fortalece com outras mobilizações (trabalhistas, sobretudo do ABC paulista e do associativismo variado (professores, servidores públicos, comunitário etc.), e com as Diretas Já, até derrotar a ditadura ao eleger em 1985, no Colégio Eleitoral, Tancredo Neves e José Sarney. Em 1988, a nova constituição consolidou a forma democrática de vida dos brasileiros e definiu marcos para as mudanças.

Ir a esse passado ajuda a defender a cultura democrática neste tempo de desvalorização da política e da democracia representativa e suas instituições. E traz até nossos dias um padrão de agir das esquerdas referido ao conjunto da sociedade brasileira, cujos marcos se desenvolveram no contexto da frente democrática de resistência ao regime de 1964.

Raimundo Santos, professor do UFRRJ

Fonte: gilvanmelo.blogspot.com.br


Alberto Aggio: A democracia e a ‘cidade futura’

Apesar das circunstâncias que atormentam a vida da maioria dos brasileiros em razão da crise que assola o País, as eleições municipais de outubro próximo, como sempre foi no passado, não deixarão de demarcar a sua importância. Se as instituições da República suportarem a carga das crises que se avolumam a cada dia, provocada pelo desgoverno de turno, estaremos todos convocados a eleger ou reeleger os dirigentes das nossas cidades, desde as menores até as grandes metrópoles.

Apesar de tudo, os brasileiros, com a sua costumeira “desesperança esperançosa”, ainda creem no poder da sua participação por meio do voto. Pela via da política, estas eleições têm o poder de definir, mesmo que parcialmente, se o futuro imediato será ou não melhor do que os desencantos, as desilusões e as carências do presente.

O Brasil segue a tendência mundial de se afirmar como parte de um planeta cada vez mais urbano. É cada vez mais evidente que as cidades brasileiras devem ser pensadas de acordo com um tempo de mudanças aceleradas, mas de crise profunda e extensiva. Por isso elas necessitam de uma política que, além de enfrentar seus problemas setoriais com a eficiência requerida – como saúde, educação, segurança, mobilidade urbana, habitação e infraestrutura de saneamento básico -, se estruture a partir de uma orientação consonante com o tempo de grandes transformações que vivemos, especialmente na esfera da comunicação entre pessoas, corporações e instituições públicas e privadas.

Mas há alguns obstáculos que se antepõem a essa estratégia. O primeiro deles, e que faz parte do senso comum do brasileiro, é a visão de que as pessoas vivem nos municípios, e não nos Estados ou na Federação. Trata-se de uma meia-verdade. Os problemas das cidades brasileiras não se restringem apenas ao que ocorre cotidianamente nelas. É preciso entender que os municípios são entes federativos.

O vice-presidente Michel Temer, em artigo recente neste espaço, afirmou acertadamente que a nossa Federação é composta de Estados e municípios. As cidades brasileiras vivem sob o influxo de determinações políticas e financeiras dos três entes federativos (municipal, estadual e federal) que compõem o Estado brasileiro. E, como se sabe, uma das principais repercussões da crise hodierna do Estado brasileiro se manifesta pela crescente concentração de recursos no plano federal. Hoje, as finanças públicas dos municípios estão esgarçadas, provocando um desequilíbrio crescente que ameaça sua capacidade administrativa. É urgente repensar, portanto, um novo federalismo, que estabeleça uma nova divisão dos recursos públicos amealhado dos brasileiros.

As cidades brasileiras engendram historicamente exclusões e desigualdades, bolsões de segregação social e graves problemas ambientais. Essa realidade é conhecida dos especialistas e governantes, mas deve-se registrar que não há monopólio de nenhuma corrente intelectual ou força política a respeito das possíveis soluções para esses graves problemas. Por essa razão, é justo e imprescindível que se faça uma avaliação crítica do chamado “orçamento participativo”, uma política que, além de lidar com um porcentual irrisório de recursos do município, provocou ilusões e muitas distorções. Ela não foi efetivamente uma política democrática de participação e acabou cedendo espaço ao paternalismo, ao clientelismo e ao assistencialismo, impulsionando mais ainda elementos extremamente negativos na prática da política municipal.

A gestão democrática da cidade mostrou-se como uma questão de muito maior complexidade do que pensavam os arautos do “orçamento participativo”. Em artigo recente, a socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho nos chama a atenção para o fato de que, no processo de modernização do Brasil das últimas décadas, passou-se da “cidade da ditadura”, com seus desastres habitacionais, de mobilidade e ecológicos, para a “cidade financista”, que elevou o mercado como a referência para o redesenho das necessidades urbanas e sociais básicas. O que nos leva a concluir que, no Brasil, a “cidade da democracia”, uma “polis contemporânea verdadeira”, não se tornou entre nós uma construção efetiva nestes últimos anos.

Recentemente, diversas mobilizações, tais como a Occupy Wall Street, os “indignados” ou as jornadas de junho de 2013 no Brasil, alimentaram a expectativa de que essa conquista emergiria das “cidades rebeldes”, numa difusa antevisão da “cidade futura”. No mundo intelectual, há tempos se fala em “cidades tecnológicas”, “inteligentes” ou “sustentáveis”, mas em todas as formulações a perspectiva de uma “cidade democrática” permanece distante e frágil como nexo fundante da acalentada “cidade futura”.

Alguns urbanistas qualificam as cidades brasileiras como “cidades cindidas, desiguais e insustentáveis”. Mas isso não é um destino. E a melhor maneira de enfrentar essa realidade talvez seja conectar democracia representativa e ativismo cidadão. O urbanista espanhol Josep Pascual chama essa estratégia de “governança democrática”, um modo de governar a “crescente complexidade e diversidade das sociedades contemporâneas, que se caracterizam pela interação de uma pluralidade de atores, pelas relações horizontais, pela participação da sociedade no governo e sua responsabilidade de fazer frente aos desafios socialmente colocados”.

Trata-se de uma proposta que pressupõe uma cidadania ativa, envolvida com a solução dos desafios sociais e que compartilha valores cívicos e públicos, a revalorização da política democrática e do governo representativo, além do fortalecimento do interesse geral, entendido como “construção coletiva”. O entendimento é que a “cidade futura” é sempre um arranjo inconcluso no qual não deve haver nem ganhadores nem perdedores definitivos. (O Estado de S. Paulo – 05/02/2016)

ALBERTO AGGIO É HISTORIADOR, PROFESSOR TITULAR DA UNESP E PRESIDENTE DA FAP (FUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRA)

Fonte: PPS