democracia

Evandro Milet: Educação é a maior das obras de infraestrutura, só que invisível

Uma mãe com um filho doente vai correr para um posto de saúde ou para um hospital. Esse desespero se reflete na pressão nos políticos e nas pesquisas eleitorais que apontam a saúde como o maior problema nas cidades. Se as mães tivessem a real consciência da importância da educação para o futuro do filho correriam para a porta das escolas quando percebessem notas baixas, filhos matando aulas, escolas depredadas ou professores sem preparo. Da mesma forma, pressionariam os políticos e fariam questão de marcar presença em reuniões de pais nas escolas. Muitos, infelizmente, entendem a escola apenas pela merenda oferecida, ou para tirar a criança da rua, o que não é desprezível na situação brasileira, mas é muito, muito pouco.

O resultado da educação não tem a visibilidade de uma bela obra de infraestrutura como uma rodovia, uma ferrovia, uma hidrelétrica ou mesmo um viaduto. Fica mais invisível que uma obra de saneamento ou um problema ambiental. E nem se percebe como uma demanda imediata de um sistema de transporte, rede de iluminação ou de wifi.

Por essa invisibilidade e consequente falta de pressão, aparece pouco nos programas dos candidatos, porém, se infraestrutura significa o conjunto de elementos que estimula o desenvolvimento socioeconômico de uma região, educação é a mais importante delas. E a escuridão na educação do Brasil é maior que um apagão de energia.

Mesmo aqueles que percebem a importância da educação para o futuro dos filhos aceitam como satisfatório, por desconhecimento, um padrão, quando muito, apenas razoável quando comparado com padrões internacionais. A referência no Brasil ainda é Sobral no Ceará - o que é um avanço  extraordinário - mas não é Singapura ou Finlândia, a ponta da educação no mundo.

A má qualidade da educação implica na evasão alarmante, no baixíssimo nível de aprendizado e consequentemente em baixos salários, baixa produtividade e mesmo criminalidade e outras mazelas sociais. E os problemas não são esquerdização, ideologia de gênero, Paulo Freire, plantação de maconha, balbúrdia, banheiro unisex ou mamadeira de piroca. O problema é que as crianças não aprendem o que deveriam aprender na idade certa. Por quê? Municípios pequenos não conseguem administrar sua educação, diretores ainda são escolhidos por indicação política, salário baixo de professores não atrai muitos dos melhores para a carreira e faz com que tenham que atender várias escolas para completar salário, falta de formação dos professores, falta de escolas de tempo integral, falta de creches, escolas depredadas e falta de materiais didáticos padronizados para o professor e para o aluno.

As escolas particulares, frequentadas pela classe de renda mais alta, mantém uma qualidade muitas vezes de razoável padrão internacional. Mas também as escolas federais, públicas, como as escolas técnicas, tiveram resultado comparável com os melhores países na avaliação PISA, que mede o conhecimento em leitura, matemática e ciências em jovens de 15 anos. Mostra que é possível uma escola pública de qualidade. Por que não para todos? O que as escolas técnicas federais têm de diferente? Seria o fato de serem federalizadas? Um dos motivos é que mantém professores de dedicação exclusiva.

Uma grande campanha de conscientização da população, no estilo do "Agro é pop" na TV, "Educação importa", por exemplo, poderia ser o início de uma mobilização, que informasse e motivasse a população a desencadear uma pressão política para colocar a educação no lugar devido de prioridade nacional para se conseguir dar uma grande salto. Educação tem que estar no centro de um projeto de desenvolvimento.


Marcus Pestana: A reinvenção da democracia e o poder local

Amanhã elegeremos os novos prefeitos e vereadores dos municípios brasileiros. Muito papel e tinta têm sido gasto para discutir a crise da democracia representativa no mundo contemporâneo. No Brasil, além das características universais tivemos um processo específico e radical que foi a crise, entre 2014 e 2018, envolvendo simultaneamente recessão, desemprego, impeachment, Lava Jato e a desmoralização do sistema partidário tradicional. O resultado foi uma eleição em 2018 completamente disruptiva, com a eleição de outsiders para a Presidência da República e diversos governos estaduais nas asas da “nova política”.

Pouco a pouco, e as dificuldades dos governadores do Rio de Janeiro, Santa Catarina e Amazonas não nos deixam mentir, fica claro que a “nova política” já nasceu velha. A própria oscilação do governo federal entre o presidencialismo de confrontação e o de coalizão, ao procurar apoio parlamentar do chamado “Centrão”, embaralham os conceitos de novo e velho, ainda mais a partir do esvaziamento da pauta anticorrupção, com a saída de Moro, e da perspectiva econômica modernizante, com a fragilização clara e crescente do antigo Posto Ipiranga, o Ministro Paulo Guedes.

As eleições municipais nunca tiveram carga ideológica elevada. A população é pragmática e quer saber quem é o líder local que pode melhor potencializar as energias presentes na sociedade municipal e ser o melhor gerente para a garantia de serviços públicos de qualidade para todos. Tanto que a polarização entre bolsonarismo versus petismo é totalmente periférica nesta eleição segundo a projeção das pesquisas.

Cada vez mais as pessoas desconfiam de salvadores da Pátria, heróis onipotentes, demagogos irresponsáveis. A democracia é um processo permanente de experiências, decepções, êxitos e aprendizado. Depois da explosão catártica das eleições de 2018, creio que características essenciais como história pessoal, realizações, experiência, competência, capacidade de liderança, aptidão para o diálogo e a negociação, estão sendo revalorizadas. Não se vê a absolutização do novo pelo novo, nem a condenação do “velho” por ser velho, embora algum grau de renovação seja sempre importante.

Tenho convicção enorme que se há algum plano que pode revitalizar a democracia brasileira é o poder local. A grande proximidade entre líderes e gestores e o cotidiano da população é fundamental para a construção de novos modelos de governança pública. Neste nível de governo são possíveis experiências profundas e verdadeiras de participação, transparência e controle social, difíceis de se concretizarem nos planos estadual e federal. É importante fortalecer o orçamento dos municípios. Embora na votação dos royalties do petróleo e do minério tenha estudado profundamente e verificado que não obrigatoriamente as cidades mais ricas têm os melhores indicadores de educação e saúde. Às vezes pequenos municípios pobres têm resultados muito melhores graças à qualidade da gestão local.

Amanhã o destino das cidades brasileiras estará nas mãos da população. Um bom prefeito e bons vereadores são os que podem assegurar a verdadeira construção de uma rede boa e integral de atenção à saúde ou uma escola ativa, vibrante e de qualidade ou uma competente governança do espaço urbano e dos serviços municipais. Portanto, voto é escolha, mãos a obra.

*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)


RPD || Entrevista Especial: Herança da ditadura, polícias militares são refratárias à democracia, diz Luiz Eduardo Soares

O antropólogo e filósofo Luiz Eduardo Soares, defensor da desmilitarização das polícias militares, avalia que somente uma coalizão pode dar ao país as condições políticas para que se faça uma reforma estrutural nessas corporações policiais

Por Caetano Araujo e Arlindo Fernandes Oliveira

Um dos 579 alvos de um dossiê elaborado pelo Ministério da Justiça do governo do presidente Jair Bolsonaro, a partir do monitoramento secreto de um grupo descrito como “militantes antifascistas”, o escritor, dramaturgo, antropólogo, cientista político e pós-doutor em Filosofia Política Luiz Eduardo Soares é o entrevistado especial desta 25ª edição da revista Política Democrática Online.

Luiz Eduardo Soares, que já foi Secretário Nacional de Segurança Pública, vem propondo debates sobre segurança pública, polícias e justiça criminal no Brasil há mais de 30 anos. Para ele, a transição para a democracia no Brasil não foi completa porque as polícias militares mantiveram-se no tempo da ditadura e são agentes na desigualdade e no racismo estrutural que ainda assola o país, diariamente.

"Nós precisaríamos de uma grande coalizão e entender a necessidade de enfrentar a questão da governança das polícias e do que eu chamei um enclave institucional, alterando posturas do Ministério Público, da Justiça etc…", avalia Soares. "E não me referi à desmilitarização, ao ciclo completo, à carreira única, a todas essas propostas relativas à reforma das próprias instituições policiais. Elas se dariam no contexto de uma grande coalizão reformadora", completa.

Soares tem vinte livros publicados, como “Elite da Tropa” (com André Batista e Rodrigo Pimentel), editado em 2006 pela Objetiva, “Elite da Tropa II” (com os mesmos coautores e Claudio Ferraz), publicado pela Nova Fronteira, em 2010, “Espírito Santo” (com Rodney Miranda e Carlos Eduardo Ribeiro Lemos), editado pela Objetiva, em 2008, além de “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte”, publicado em 2015 pela Cia. das Letras, e os romances “Experimento de Avelar”, premiado pela Associação de Críticos Brasileiros em 1996, e “Meu Casaco de General”, este, finalista do Prêmio Jabuti em 2000. Foi professor da Unicamp e do IUPERJ, além de visiting scholar em Harvard, University of Virginia, University of Pittsburgh e Columbia University.

"NÓS TEMOS UM ENCLAVE QUE SE REPRODUZ, QUE É REFRATÁRIO À DEMOCRACIA E AO PODER REPUBLICANO. SE COMPREENDERMOS QUE ISSO ESTÁ NO CENTRO DAS QUESTÕES DEMOCRÁTICAS BRASILEIRAS, NÓS ENTÃO NOS CREDENCIAREMOS A ENFRENTAR"

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu à Revista Política Democrática Online.

Revista Política Democrática Online (RPD): Sua longa trajetória de estudo e atuação na área da segurança pública assegura-lhe autoridade indiscutível para avaliar como estamos hoje no Brasil. Em uma palavra: temos saída?

Luiz Eduardo Soares (LES): Essa é uma pergunta que exigiria muito mais do que o espaço de uma única entrevista. Em síntese, diria que uma possível saída envolve uma expectativa favorável relativamente à história brasileira e à história da democracia no Brasil. Isto é, se não houver saída para essas questões atinentes à segurança pública e à justiça criminal, não haverá saída para a democracia no Brasil. São duas faces da mesma moeda, mais do que isso, são dimensões interconectadas organicamente, e a incompreensão sobre esses laços, esses nexos, essa articulação profunda entre as problemáticas está no centro das nossas dificuldades, está no centro dos motivos pelos quais nós não fomos capazes como nação, até agora, de produzir uma alternativa.

E por que eu então digo isso? Porque temos um quadro que é, de fato, dantesco. Os qualificativos, os adjetivos não são puramente retóricos. Posso ser mais objetivo: no Rio de Janeiro, no ano passado, registraram-se 1.814 mortes provocadas por ações policiais. Isso corresponde a 40% dos homicídios dolosos perpetrados na cidade do Rio e a 30% daqueles cometidos no Estado. Temos ao longo dos anos um verdadeiro banho de sangue, em que as vítimas são sempre, com raríssimas exceções, negros, jovens habitantes dos territórios vulneráveis etc. E o que ocorre é que a polícia mais numerosa, que está presente em todo o país, 24 horas por dia, com algumas exceções, é a polícia militar. Ela é pressionada por todos os interlocutores, atores sociais – mídia, opinião pública, políticos etc. – a produzir resultados que, em geral, se confundem com prisão. Ocorre que ela é proibida constitucionalmente de investigar; resta-lhe prender em flagrante delito. Quais são os crimes passíveis de prisão em flagrante? Não são os mais importantes, mas serão eles o foco dos investimentos policiais. Portanto, aos vieses de classe, cor e território, acrescenta-se mais este crivo seletivo. Na prática, o alvo será o varejo das substâncias ilícitas.

Vejam, em vez de prevenir e investigar homicídios, os crimes mais graves, nós estamos lotando o sistema penitenciário com jovens não violentos e não ligados de fato a facções, não envolvidos com práticas criminosas profissionalizadas, com as consequências nefastas em todos os níveis e de todas as ordens, por conta de um casamento perverso entre uma lei de drogas absolutamente irracional e um modelo policial que foi determinado pelo artigo 144. E aí chegamos ao coração da matéria, o porquê dessa vinculação com a questão democrática. Sabemos muito bem que a promulgação da nossa Carta em 19988 foi o fruto histórico e extraordinariamente importante que correspondeu a uma conquista da sociedade brasileira, uma conquista democrática, singular em nossa trajetória; entretanto, ela se deu a partir de negociações, como aliás é típico da história brasileira. As negociações que nos deram o privilégio da liberdade e de um novo horizonte democrático também encontraram limitações oriundas da sua própria natureza.

"RESSALVADAS AS VARIAÇÕES INTERNAS, AS TENSÕES, AS DIFERENÇAS, AS POLÍCIAS DE MODO GERAL E A CULTURA POLICIAL MILITAR E CIVIL ERAM BOLSONARISTAS AVANT LA LETTRE, ANTES DE BOLSONARO, INDEPENDENTEMENTE DE BOLSONARO"

Uma das limitações – absolutamente estratégica e crucial – foi a imposição, por parte de representantes do antigo regime, de uma reserva estratégica, que se manteria impermeável ao processo de mudança desatado pela dinâmica de democratização. Que reserva é essa? Que área institucional é essa? É a segurança pública. Esse foi o legado à democracia de estruturas organizacionais forjadas na ditadura. A ditadura não inventou a violência policial, as práticas conhecidas e nem as instituições como as conhecemos, mas as reordenou, reorganizou e qualificou. Qualificar aqui tem sentido negativo e problemático. Essas instituições reformadas, reorganizadas e retemperadas pela ditadura, instituições muito problemáticas que têm passado obscurantista, autoritário, que dialoga com o pior da nossa tradição escravagista etc., essas instituições foram legadas pela ditadura acriticamente, por assim dizer.

Ou seja, nós, na democracia, herdamos as estruturas organizacionais. Ora, as estruturas organizacionais não vêm como organogramas vazios, elas vêm carregadas de seres humanos, homens e mulheres, com suas práticas, suas modalidades próprias de composição de identidade, lealdade, seus valores, suas visões de mundo e práticas. O fato é que os valores tradicionais, as visões de mundo cultuadas no período ditatorial permaneceram, foram reiterados e fortalecidos no convívio diário entre gerações, porque é na rua que essa cultura se reproduz, que a socialização se dá.

RPD: Qual seria a estratégia possível para alterar essa situação, ou seja, como é possível falar em desmilitarizar a polícia e descriminalizar o varejo da droga? Quais seriam os passos institucionais? O que o movimento cívico deveria pleitear para caminhar nessa direção?

LES: Algo importante e fundamental. Aprofundo os argumentos anteriores para derivar do diagnóstico mais complexo, digamos, essa resposta que é absolutamente decisiva. Voltamos à velha e sempre indispensável questão: o que fazer? As polícias que constituímos são um universo heterogêneo e dividido internamente por segmentos, perspectivas diferentes. Não dá para falar de uma unidade monolítica com cerca de 800 mil pessoas. Seria uma simplificação grosseira. Mas é necessário reconhecer que segmentos dominantes e perspectivas que predominam nesse enclave são fortemente, sempre foram, refratários à cultura democrática e à Constituição. E mais, à autoridade civil, pública, republicana, política – no sentido amplo da palavra. Nenhum governador do período democrático governou as polícias.

"A DITADURA NÃO INVENTOU A VIOLÊNCIA POLICIAL, AS PRÁTICAS CONHECIDAS E NEM AS INSTITUIÇÕES TAIS QUAIS COMO AS CONHECEMOS, MAS AS REORDENOU, REORGANIZOU E QUALIFICOU MUITAS DAS SUAS PRÁTICAS"

Houve variações, alterações aqui e ali, essa dificuldade evidentemente apresentou oscilações de acordo com contextos, conjunturas, circunstâncias, capacidade de mobilização das lideranças intermediárias etc., mas a governança democrática republicana não se realizou. E isso por conta de um arranjo muito peculiar em que o Ministério Público, que é responsável constitucionalmente pelo controle externo da atividade policial, não cumpriu sua missão constitucional, atitude abençoada pela Justiça por várias razões, o que contribuiu para a rotinização da tragédia. Vivemos uma ameaça para a democracia. Vamos concretizar tudo isso.

As polícias de modo geral e a cultura policial militar e civil – ressalvadas as variações internas, as tensões, as diferenças – eram bolsonaristas avant la lettre, antes de Bolsonaro, independentemente de Bolsonaro. Bolsonaro ocupa o lugar de messias nesse sebastianismo rústico, que deriva dos valores cultivados lá na ponta, na prática, valores que justificam execuções extrajudiciais e que se regem por princípios. Cito aqui palavras que estão sempre presentes nas redes sociais policiais com suas fotos que exaltam a violência, tais como: só há justiça com caos e destruição. Nosso papel é entrar nas favelas e destruir, nosso compromisso é fazer essa guerra. Como disse um coronel comandante da PM fluminense há não muitos anos, as polícias são inseticidas sociais.

Ou seja, a visão é essa: seu papel não é cumprir a lei, a violência policial não decorre do rigor excessivo no cumprimento da legalidade; as polícias não têm compromisso com a legalidade. Nós, os defensores dos direitos humanos é que somos legalistas, nós e aqueles policiais que resistem em nome do Estado Democrático de Direito a esse furor, a esse ímpeto, a esses valores que se apresentam como uma espécie de tsunami, atropelando todas as resistências internas legalistas.

E como isso é possível? Há várias mediações aí; de outra forma, não seria possível. E duas merecem destaque.

A primeira, que está na gênese da corrupção policial e das milícias, é a autorização para matar; não para usar a legítima defesa, evidentemente, mas para matar porque, quando se concede autorização para matar, se concede também ao policial na ponta a liberdade para não matar e vender a vida, negociar a sobrevivência do suspeito. E aí se cria uma moeda que degrada a instituição, suscita articulações entre crime e polícia, diluindo fronteiras. Não raro, policiais, por essa via, vão se associar ao velho esquema dos esquadrões da morte, da pistolagem a soldo ou vão provocar insegurança para vender segurança e daí por diante. Portanto, engana-se quem acredita que liberando as polícias para matar elas serão mais efetivas contra o crime. É justamente o contrário. Tolerar práticas policiais ilegais abre as portas para a degradação institucional e o fortalecimento do crime.

"SÓ UMA COALIZÃO PODE PROTEGER OS GOVERNOS QUE SE DISPONHAM A AGIR E NÃO ADIANTA PENSAR NAS FORÇAS ARMADAS COMO UMA SOLUÇÃO MÁGICA, PORQUE SE NÃO O RIO JÁ TERIA RESOLVIDO, POR EXEMPLO, O PROBLEMA COM AS MILÍCIAS"

A segunda mediação que deve ser entendida é a segurança privada informal e ilegal, um verdadeiro processo metastático absolutamente impune. Os governos lavam as mãos: o segundo emprego suplementa os salários insuficientes, às vezes baixíssimos, pagos à massa policial, e permite que o orçamento seja mantido nos termos pré-definidos sem grandes pressões, vale dizer, sem suscitar movimentos grevistas. É o que eu chamaria de “gato orçamentário”, usando a expressão popular que rotula uma conexão entre o legal e o ilegal. Daí porque os governos, não só do Rio, mas também de outros Estados, acabam tolerando a prática da segurança privada ilegal informal por parte de seus policiais. No fundo, lançam um manto de proteção sobre um conjunto vasto de atividades, as quais incluem desde esforços honestos – embora ilegais – de tantos que apenas buscam oferecer melhores condições às suas famílias, até as milícias. É essencial compreender este ponto: as milícias crescem à sombra dessa negligência sistemática, que atravessa as décadas inalterada.

As polícias são um enclave que se reproduz e que é refratário à democracia e ao poder republicano. Temos de reconhecer esse fenômeno, que está no centro das questões democráticas brasileiras, o que leva a reconhecer também sua magnitude, sua complexidade e, claro, a dificuldade de enfrentá-lo. Não seremos capazes de fazer frente a esse desafio sem a participação da sociedade, do Ministério Público, da Justiça. Em uma palavra: sem uma discussão e uma compreensão aprofundada por parte da sociedade, de maneira que tudo isso se torne não um programa de partido, mas uma questão de Estado. E, para tanto, impõe-se ampla coalizão, para, inclusive, proteger os governos que se disponham a agir. Sabemos que o preço a pagar seria muito caro e sabemos também que não adianta pensar nas Forças Armadas como uma solução mágica. Fosse assim, o Rio já teria resolvido seu problema com as polícias e as milícias. Tivemos a intervenção federal em 2018, nada mudou. Até hoje, os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes não conhecem solução.

RPD: No governo Temer, por iniciativa do ministro Raul Jungmann e de outros, foi aprovado no Congresso o chamado Sistema Nacional de Segurança Pública (SUSP), que teria esse propósito de promover uma articulação. Qual é sua avaliação do modelo proposto e de sua execução?

LES: O SUSP foi apresentado por mim, quando Secretário Nacional, no primeiro mandato de Lula, em 2003. Além de amigo pessoal de Raul Jungmann, velho companheiro, a despeito das enormes divergências que nós tivemos em função do que considero um golpe contra a presidente Dilma e da ilegitimidade do governo Temer, reconheço que ele fez um trabalho respeitabilíssimo, extremamente sério e muito superior ao que nós costumamos ter, e ao que temos hoje. Raul demonstrou quão importante pode ser uma contribuição federal. E tomou a iniciativa de retomar o fio da meada, que estava parado no Congresso Nacional, desfiado e reduzido.

O SUSP foi, por fim, aprovado. Qual é o problema do SUSP? Ele é fundamental como modelo de orientação, mas não pode ser convertido, como foi, em peça legal, infraconstitucional. Por quê? Porque, a qualquer momento, qualquer instituição envolvida pode denunciar inconstitucionalidade por sentir-se coagida a colaborar com outras, uma vez que a autonomia está dada constitucionalmente. Trata-se, portanto, de uma legislação que colide com a institucionalidade, uma espécie de puxadinho, improvisos que nós vamos fazendo porque não temos vontade política ou capacidade de operar mudanças estruturantes e estruturais. Esse puxadinho não pode dar certo.

Mencionei a necessidade de uma grande coalizão para se enfrentar a questão da governança das polícias, do que chamei um enclave institucional, alterando posturas do Ministério Público, da Justiça etc., mas faltou adicionar o tema da desmilitarização e das demais reformas necessárias, relativas à criação de ciclo completo e de carreira única nas instituições policiais. Elas se dariam no contexto de uma grande coalizão reformadora. Insisto nessa conexão entre o macro e o micro, por assim dizer, para mostrar que essas são questões interligadas. Defendo a proposta, que ajudei a elaborar, apresentada pelo então senador Lindbergh Faria, em 2013, a PEC 51, que é também bandeira do movimento policiais antifascismo.

"EXPERIÊNCIAS INTERNACIONAIS MOSTRAM QUE AS POLÍCIAS MAIS BEM SUCEDIDAS SÃO AQUELAS QUE OPERAM COM ALGUMA AUTONOMIA NA PONTA, DESCENTRALIZADAS, COM FLEXIBILIDADE ORGANIZACIONAL QUE LHE PERMITAM ADAPTAÇÕES ÀS ESPECIFICIDADES LOCAIS"

Desmilitarização é um conceito que tende a assustar, quando se simplificam seu sentido e seu alcance. Tive sempre muito sucesso na persuasão de oficiais da polícia militar com espírito patriótico e senso de responsabilidade. Para além de ideologias e retóricas, eles reconhecem a imprescindibilidade de cortar o laço que prende a instituição policial ao Exército até hoje. E esse laço se traduz não só em uma dependência em termos de autoridade, propriamente, mas também na necessidade legal de copiar o modelo de organização.

Transpor a organização do Exército para uma polícia só seria razoável se as funções fossem análogas, mas a função da polícia ostensiva, constitucionalmente, não é defender a soberania nacional por meios bélicos, mas impedir, prevenindo e reprimindo, violações a direitos; é garantir direitos, é prestar um serviço público à cidadania. E as experiências internacionais mostram que as polícias mais bem sucedidas são aquelas que operam com alguma autonomia na ponta, de forma descentralizada, dialogando com as comunidades, com flexibilidade organizacional que lhes permita adaptações plásticas às especificidades locais etc. É todo o avesso do que nós temos. O modelo verticalizado e rígido, que faz sentido no Exército, não faz na polícia porque, entre outras razões, subtrai subjetividade, poder decisório dos policiais na ponta. Eles não podem ser definidos como soldados a cumprir ordens que vêm do Estado-Maior, distante das realidades locais. É impossível funcionar dessa maneira.

RPD: Durante a gestão do Presidente Geisel, o Presidente Jimmy Carter teve enorme influência na área dos direitos humanos, no Brasil e no mundo. Diante da vitória de Biden, poderiam os Estados Unidos voltar a exercer influência importante na área dos direitos humanos no Brasil, influência que, decerto, se poderia estender à área do meio ambiente?

LES: Eu diria que sim, sem dúvida, esses contextos produzem impacto. É claro que isso depende de construção política. Fóruns internacionais não têm incidência direta no Brasil, mas, com um jogo geopolítico distinto e algum amparo para o discurso universal dos direitos humanos, talvez se crie algum constrangimento para o governo brasileiro. Como sabemos, a palavra do Presidente, o gesto, as iniciativas do Presidente, mesmo quando não são aprovadas no Congresso, têm efeitos. Os exemplos são graves: a supressão de culpa no caso de mortes provenientes de ações policiais, o excludente de licitude; a flexibilização do acesso às armas e munições; a redução dos controles de rastreamento. Essas posturas incitam a violência, sobretudo a violência policial e tendem a promover as milícias, estimulando sua participação crescente no universo político. A esperança é, portanto, que uma mudança no cenário internacional, no cenário geopolítico, possa facilitar negociações internacionais com fóruns que gerem algum tipo de comoção, como no caso ambiental, por exemplo, e termine influindo nas políticas defendidas pelo governo. Talvez seja um wishful thinking, mas enfim…


Evandro Milet: 1984 - o manifesto do ódio

George Orwell escreveu 1984 em 1948 como uma descrição das forças que ameaçam a liberdade e da necessidade de resistir a elas. Não há como deixar de associar as situações extremas relatadas com as ameaças à democracia que aconteceram e acontecem em muitos países, à direita e à esquerda, em maior ou menor grau, assim como ele teve como inspiração o regime stalinista.

Orwell cria uma linguagem, a novilíngua(ou novafala em algumas traduções) com expressões que refletem o ambiente de repressão relatado. Em novilíngua, duplipensamento significa a capacidade precavida de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e acreditar em ambas, por exemplo, acreditar que a democracia era impossível e que o Partido era o guardião da democracia. Nada estranho para quem se diz democrata e pede fechamento do Congresso, intervenção militar ou exalta ditaduras - aqui ou em Cuba. Ou governos que lançam programas pela manhã e os classificam como insanidade à tarde. Ou simpatizantes de autocracias com aparência democrática, os chamados iliberais.

Na história, o ato essencial do Partido no poder consiste em “usar o engodo consciente sem perder a firmeza de propósito que corresponde à total honestidade”, lembra as fakenews propagadas quase oficialmente; e milicianos e rachadinhas versus supostas estatísticas de honestidade seletiva. Ou governantes que se auto declaram " o mais honesto" depois de comandar o maior assalto aos cofres públicos.

No evento "Dois minutos de Ódio" que acontecem regularmente na história como preparativos para a "Semana do Ódio"( na história não aparece um gabinete dedicado a isso), todos são induzidos ao paroxismo de gritar slogans e atirar objetos nas teletelas que mostram os inimigos, teletelas que estão em todos os lugares vigiando todos. Em seguida gritam exaltações histéricas “G-I!…,G-I!…,G-I!…” quando aparece a figura do Grande Irmão, um grande mito. Nunca deixe de berrar junto com a multidão, só assim você estará em segurança, é a recomendação.

Os adeptos mais fanáticos do Partido eram os devoradores de slogans, os espiões amadores e os farejadores de ortodoxia que parecem figuras que circulam nas redes sociais e grupos de WhatsApp. A mulher de Winston, o personagem principal, era incapaz de formular um só pensamento que não fosse um slogan, assim como não havia uma imbecilidade que ela não engolisse se o partido assim o quisesse.

Em novilíngua, criminterrupção significa “a capacidade de parar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso ou pensamento-crime. O conceito inclui a capacidade de não entender analogias, de deixar de perceber erros lógicos, de compreender mal os argumentos mais simples, caso sejam antagônicos ao Partido, e de sentir-se entediado ou incomodado por toda sequência de raciocínio capaz de enveredar por um rumo errático”. Lembra debates no Facebook e a vigilância da cultura do cancelamento, que procura constranger quem manifesta opinião divergente. A heresia das heresias era o bom senso. 

Um conceito fundamental é a mutabilidade do passado. No Ministério da Verdade, o trabalho consiste em apagar sistematicamente as informações do passado que contrariam o presente, como metas não cumpridas, pedaladas ou vaporizando(cancelando, aniquilando) pessoas que passam a inimigas, talvez como dissidentes do Partido ou ex-ministros. Esses passam a ser despessoas, muitas torturadas no Ministério do Amor. Afinal, “quem controla o passado controla o futuro, quem controla o presente controla o passado” é lema do Partido.

A polícia das ideias mantém as teletelas em todos os lugares, capazes de perceber até um rostocrime(em novilíngua), que significa ostentar uma expressão inadequada em alguma situação como, talvez, duvidar de alguma proposta do governo e virar inimigo. Hoje uma postagem no Twitter ou Facebook pode causar o mesmo efeito.

Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano - para sempre, conclui O’Brien, o torturador de Winston, preso por pensamento-crime, depois de explicar a ideologia que move o Partido. 

Mesmo longe dessas situações extremas, é sempre bom estar antenado com assustadoras distopias na literatura. 

O mundo precisa resgatar as virtudes da tolerância e da empatia. O resultado das eleições americanas pode ser um ponto de inflexão na polarização nefasta que se espalhou também no Brasil.


Reinaldo Azevedo: A democracia e as mulheres sob ataque

Ascensão da extrema direita populista, ancorada nas redes sociais, traz desafio

O único regime, já escrevi aqui, em que tudo pode é a tirania. Assim é para o próprio tirano e para os seus amigos. A democracia tem interdições. E aí está o busílis. A ascensão da extrema direita populista, ancorada nas redes sociais, traz um desafio.

Não raro, sólidas reputações liberais, inclusive neste jornal, confundem, por exemplo, a prática de crimes com a liberdade de expressão, pedra angular da civilidade. E tal confusão é um caminho muito curto para que se tome a liberdade de expressão por um crime.

Assim tem sido nos Estados Unidos, no Brasil e em toda a parte em que a democracia ainda resiste. O momento é delicado. O sistema tem sido refém de uma leitura liberticida de suas próprias premissas. Há uma pergunta, que não é recente, mas que está ainda a pedir resposta adequada: a democracia deve tolerar a ação daqueles que se aproveitam de suas garantias para solapá-la caso cheguem ao poder?

Vejam o que se passa nos EUA. Os celebrados "founding fathers" criaram um modelo em que o federalismo se opõe à democracia genuína, de modo que um homem não vale um voto. Os sinais de esclerose são evidentes. Além do samba e do ditongo nasal "ão", podemos ensinar aos gringos como se organiza uma votação eficiente.

É fato: a forma que assumiu o federalismo americano, somada ao subdesenvolvimento da tecnologia do voto, joga o mundo num impasse. Que tomem emprestadas as nossas urnas eletrônicas! Nada impede que se digite lá o número de um estúpido. Mas o resultado, ao menos, sai com mais rapidez. Assim, o modelo em vigor potencializa a ação de um vândalo da democracia como Donald Trump.

Pergunta com resposta que a mim soa evidente, embora pouco haja a fazer por lá —e já vou chegar ao nosso quintal. É moralmente aceitável que um chefe de Estado coloque em dúvida o arcabouço legal que lhe assegurou a vitória quando este está prestes a certificar a sua derrota? E que fique claro: esse "pôr em dúvida" não se limita a um arroubo retórico.

O chefe da nação convoca abertamente suas milícias digitais a entrar em ação, o que, segundo os padrões americanos, pode implicar comparecer ao local da apuração dos votos com um rifle nos ombros para parar a contagem, como pede o bandoleiro. Deve a democracia garantir ao chefe de Estado a "liberdade de expressão" para incitar a luta armada contra as regras do jogo? É preciso, nesse caso, que o moralmente inaceitável seja também um crime punível.

Olhemos para nossos próprios desatinos. A democracia brasileira deve tolerar que Jair Bolsonaro diga asneiras contra as vacinas enquanto faz, com a força da representação, a apologia de drogas comprovadamente ineficazes contra a doença, usando para tanto a visibilidade que lhe confere o aparelho de Estado?

As democracias estavam preparadas para enfrentar aqueles que, à margem do sistema, buscavam se organizar para destruí-la. Seus aparelhos de repressão, diga-se, atuam muitas vezes para esmagar até o protesto justo de oprimidos que só reivindicam direitos, o que é lamentável e tem de ser coibido.

O regime, no entanto, tem se mostrado inerme para punir a ação daqueles que o sabotam a partir dos aparelhos de Estado, buscando minar por dentro as suas virtudes. E isso, hoje, é uma ameaça concreta às nossas liberdades.

Uma nota sobre o caso Mariana Ferrer, que também atine à democracia: "estupro culposo" é uma senha para um estado de coisas. O tipo penal não existe. Mas é preciso que os tribunais não atuem como se existisse. Nem preciso entrar no mérito da sentença ou do cometimento ou não do crime para apontar o que está estupidamente errado no que se viu —e eu me refiro à íntegra do vídeo.

Um tribunal julga o réu —culpado ou inocente—, não a vítima. Ou estaremos de volta aos tempos da heroicização de Doca Street e da demonização de Ângela Diniz. Escrevi e sustento: mais grave do que o "estupro culposo" é o "estupro por merecimento", já que "ela" tira fotos sensuais ou tem um estilo de vida que intimida a macharia que se sente acuada pela história. Há os que não suportam democracia e mulheres. Para estes, não são coisas de macho.


Merval Pereira: Paradoxos da democracia

Esta eleição presidencial dos Estados Unidos está sendo paradoxal, com cerca de 157 milhões de americanos comparecendo às urnas sem serem obrigados a isso, a maior participação popular nos últimos cem anos, ao mesmo tempo que o presidente Trump, que tenta a reeleição, coloca em dúvida a lisura da apuração em estados como Wisconsin e Michigan, mas joga suas fichas numa vitória em alguns outros estados que ainda apuram para impedir que Biden seja declarado presidente.

Ou seja, Trump quer parar a apuração em estados em que está perdendo, e acelerar a apuração nos que acredita poder vencer. Mas ele tenta parar também a apuração em estados em que vence, como a Pensilvânia, mas teme perder ao final, pois considera suspeita a recuperação de Biden com os votos vindos pelo correio.

A diferença entre Biden e Trump em vários estados é muito pequena, e o presidente Trump já começa a pedir recontagem. Mas ele venceu Hilary em 2016 por uma margem muito apertada também em vários estados, e não houve apelação dos democratas. Os republicanos na era Trump passaram a fazer jogadas políticas muito mais desleais do que historicamente acontecia. Trump dominou o partido republicano e suas práticas. Como nomear uma ministra da Suprema Corte em processo rapidíssimo, poucos meses antes da eleição, quando impediram que o então presidente Obama nomeasse o substituto de Antonin Scalia quase um ano antes da eleição.

Não creio que tenham resultado positivo esses recursos, porque é tão obvia a falta de razão, tão claro que está com medo dos votos pelo correio, que qualquer ação sem provas cabais não será aceita. Depois do caso de 2000, em que Bush acabou vencendo Al Gore por excesso de recursos, que esgotaram o prazo legal para a recontagem, há mais cautela na Justiça americana.

Tudo demonstra que Trump está preparado para fazer o que puder para não perder a Casa Branca. Há possibilidade, cada vez menor, de que ganhe, mas se perder, vai tentar barrar a vitória de Biden na Justiça, o que só prejudica a democracia americana. O fato é que Trump mostrou enorme capacidade de convencer as pessoas, de ganhar votos, e a maneira de ele ver o mundo predomina em praticamente metade do eleitorado americano. O recurso da campanha de Trump à Suprema Corte para que seja derrubada uma decisão que permitiu à Pensilvânia receber até sexta-feira cédulas de votação enviadas pelo correio é sua terceira tentativa.

Os juízes já rejeitaram dois recursos semelhantes, mas haveria uma possibilidade de anular esses votos caso fossem decisivos para a definição da eleição. O problema para Trump é que tendo Biden vencido em Michigan, Wisconsin e Arizona, os democratas não precisam dos votos da Pensilvânia para vencer. Faltariam apenas seis delegados para alcançar os 270 votos necessários no Colégio Eleitoral, o que pode acontecer com a retomada da apuração em Nevada, onde Biden vence por uma estreita margem.

Os 157 milhões de eleitores que votaram para eleger o novo presidente representam 65,7% dos cidadãos com direito a voto, acima dos 60,1% registados nas eleições presidenciais de 2016, vencidas por Trump. O candidato democrata Joe Biden recebeu mais de 70 milhões de votos pessoais, a maior votação individual de um candidato na história dos Estados Unidos. Todos esses recordes demonstram que a democracia americana está em plena potência, apesar da polarização política que foi reafirmada nessa eleição.

A atuação de Trump, lançando acusações sem provas contra a apuração dos votos vindos pelo correio, e judicializando a eleição como estratégia política, mina a democracia, e coloca um país dividido diante de uma possibilidade de confrontações de grupos políticos. O candidato Joe Biden teve uma atuação de estadista quando foi a público fazer uma exigência mínima: vamos contar os votos até o final. Cada voto vale, e o que a apuração mostrar será a verdade das urnas, a verdade do eleitor americano. Não cantou vitória antes do tempo.


Bruno Boghossian: Quatro anos de Trump levaram política marginal para o centro da democracia

Ciclo deu ares de normalidade a atitudes anômalas; efeitos devem ser duradouros

Os quatro anos desde a eleição de Donald Trump nos EUA consolidaram um método marginal na política. O show comandado pelo magnata a partir de 2016 deu ares de normalidade a recursos como a desinformação e o estímulo à violência. O efeito negativo desse ciclo para a democracia deve ser duradouro.

O americano abriu essa caixa de ferramentas para construir a imagem de um político disposto a desmantelar o centro corrupto do poder. A mentira, o discurso preconceituoso e a demonização de adversários eram marcas que pareciam conferir autenticidade a um personagem que ignorava as regras do jogo.

Aqueles que vestem esse figurino geralmente não têm vontade ou habilidade para desmantelar coisa nenhuma. Eles reclamam e dizem que o sistema poderoso impediu a missão. O único produto que são capazes de entregar é o retrocesso de governos e do exercício da política.

Trump e seus seguidores mundo afora levaram anomalias para o centro da arena pública. O americano adotou uma postura aberta de incentivo à violência quando se recusou a condenar grupos extremistas que atuam a seu favor. Ele explorou a desinformação como um lance aceitável e recorreu à negação da ciência na pandemia, sem se importar com seu impacto na saúde pública.

A fabricação mais nociva é a tentativa corriqueira de apontar fraudes em larga escala em eleições, sem apresentar provas. A artimanha passou a ser empregada com naturalidade para enraivecer militantes e abrir caminho para contestações que reduzem a crença no sistema político. Um presidente que usa essa carta só para manter o poder ativa uma corrosão grave da democracia.

Quando o uso desses instrumentos se torna comum na arena política, eles também servem como um diversionismo eficaz. Se um político mente ou inventa uma conspiração qualquer, o foco do debate público muda. A distração pode ser suficiente para que ele não seja punido politicamente por seus fracassos ou sua crueldade como governante.


Míriam Leitão: Estado geral da democracia

Não precisa fazer interpretações para concluir que a democracia brasileira vai mal. Basta juntar os fatos. Não são feitos mais os ataques verbais às instituições nem as passeatas pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso, mas isso não significa que o presidente Bolsonaro mudou. Ele é o mesmo que sempre desprezou valores democráticos. A paz com o centrão não é governabilidade, está mais para conluio. Partidos, políticos e o presidente têm o mesmo objetivo: manter o poder e suspender o combate à corrupção.

O episódio do senador Chico Rodrigues traz uma série de lições. Alguém pode concluir que tudo funcionou bem, afinal a Polícia o encontrou, o Supremo o afastou inicialmente, ele próprio pediu afastamento. É uma visão benigna, mas não realista. O fato é que o vice-líder do governo se sente tão à vontade que leva maços de dinheiro para casa. A PF que o encontrou continua trabalhando, mas ela está sendo esvaziada. Até quando terá essa autonomia? Até que ponto poderá chegar? O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, deixou no ar um silêncio eloquente sobre o escândalo. O ministro do Supremo que afastou Chico Rodrigues foi criticado por senadores. Eles não queriam julgá-lo no Conselho de Ética. Os colegas o aconselharam a dar um “jeitinho”: sair por 121 dias, entregar o mandato ao filho suplente e deixar tudo em casa. O presidente da República fingiu que não tinha com ele a anunciada “quase união estável”.

Há outros sinais preocupantes para onde se olhe. O governo inteiro vem sendo militarizado. Ontem, o Senado aprovou sem reclamar os nomes da diretoria da nova Autoridade Nacional de Proteção de dados. Ela será presidida por um militar, e eles serão três dos cinco diretores. O órgão precisa de autonomia em relação ao governo. Ele vai fiscalizar e editar normas da Lei Geral de Proteção de dados de todos nós. Os militares não têm em relação às informações a preocupação de proteger a privacidade. Por treino profissional, e pela ideologia do atual governo, eles tendem a ver isso dentro da doutrina que definem como “de segurança nacional”.

O governo mandou espiões para a última Conferência do Clima, em Madri, como informou o repórter Felipe Frazão do “Estado de S.Paulo”, e deu a eles status de negociadores. Desta forma estava mentindo para a ONU e constrangendo negociadores brasileiros. O general Heleno disse que isso foi feito para vigiar “maus brasileiros”. Essa é uma visão tipicamente autoritária. Quem outorgou ao general o direito de definir quem são os maus brasileiros? São os que desmatam ilegalmente a Amazônia ou os que denunciam que isso está sendo feito?

O Rio, como mostrou o relatório de diversas ONGs, tem 57% do seu território sob o controle da milícia. Isso é uma ameaça nacional. O presidente Bolsonaro e seus filhos têm todo um mar de ambiguidade em relação à milícia, que vai da ligação direta, como a mantida com o o ex-policial militar e líder de bando miliciano Adriano Nóbrega, morto na Bahia, até as frequentes declarações de apoio ao bando.

“Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se depender de mim terão todo o meu apoio”, disse Bolsonaro em 2003. Em 2018, reafirmou: “Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga não tem violência”. O então candidato estava aprovando a extorsão a que estão submetidos os moradores das áreas controladas pelos milicianos. Quando um grupo criminoso tem o apoio implícito ou explícito de quem governa o país, isso é um imenso perigo.

O truque atual é capturar as instituições, esvaziá-las da sua autonomia, mas deixá-las em pé. Assim, alguém pode dizer: mas estão lá as instituições funcionando. A suposta “pacificação” de Bolsonaro não é respeito à autonomia e à independência dos poderes. Ele quer proteção para ele, seus filhos, sua família. Os parlamentares querem que a investigação de corrupção pare de importuná-los, porque já não sabem mais onde enfiar dinheiro quando a Polícia Federal chega. Diante de todos os sinais — e há muitos outros — só o desatento dorme tranquilo com a democracia brasileira.


Luiz Sérgio Henriques: O duplo ataque à democracia

A grande aposta é que as sociedades nunca se deixam aprisionar por muito tempo

Reza a sabedoria dos políticos de Minas que no tempo das cédulas de papel, dos cabos eleitorais e fiscais de urna, com a contagem de votos seguindo lenta e sinuosamente por dias a fio, era necessário vencer não só a eleição propriamente dita, como também a apuração, não sendo impossível ter êxito na primeira e fracassar na segunda dessas empreitadas. Pois é de tal ordem o ataque desferido contra as democracias, incluída a aparentemente mais sólida delas, que aquela sabedoria saiu dos limites do folclore local e passou a rondar a vida de muitas nações. Não podemos dar por certo e decidido que daqui a duas semanas, nos Estados Unidos, se faça rotineiramente a contagem eleitoral, se proclame o vencedor e se providenciem as formalidades de praxe, especialmente em caso de vitória de Joe Biden, o desafiante.

A globalização da economia, que não é propriamente o resultado de ação consciente, sem dúvida desorganizou arranjos produtivos nacionais e deixou livre o cenário para a ofensiva contra os pilares da ordem democrática e os compromissos que ela implica. Um ataque em pinça, diríamos, tomando de empréstimo uma expressão do léxico militar, a que tantas vezes se recorre para entender a política. Sociedade civil e sociedade política constituíram, respectivamente, os alvos da dupla ação destrutiva, levada a cabo com regularidade e constância nestes últimos tempos. Portanto, há método nesta ação aparentemente anárquica, mas claramente voltada para o estabelecimento de padrões autocráticos de mando.

Tomemos a sociedade civil, o lugar por excelência de encontro e confronto entre opiniões e valores, visões e concepções de mundo próximas ou concorrentes entre si. O lugar da hegemonia, em suma, entendida como capacidade de persuasão, não de imposição ou força. Há muito essa esfera decisiva da vida social vem sendo atingida por uma escalada crescente de descrença, barbárie, irracionalismo. Não há nostalgia romântica quando se observa a contínua degradação da linguagem pública, de suas imagens e seus signos. É possível, por exemplo, que ainda não nos tenhamos dado conta plenamente da violência simbólica explicitada nas mãos que imitavam armas e simulavam rajadas de tiros, “desferidos” em meio ao deboche. Pois foram essas mãos a marca principal das eleições de 2018 – comparativamente, a vetusta vassoura de Jânio Quadros, outro político irresponsável da direita nacional, vem à memória como sinal inocente e até bem-humorado de uma época com índices relativamente menores de desfaçatez.

Políticos assim tornam-se críticos de costume, fazendo as vezes de pregadores e até “filósofos”. Do alto de seus púlpitos, os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro, entre outros, promovem incessantes “guerras de cultura”. O alvo preferido é o “politicamente correto”, que, exageros à parte, presentes sobretudo na versão puritana dos norte-americanos, contribuiu para diminuir o grau de sadismo nas relações sociais, para recorrer a uma avaliação de Richard Rorty (em geral, um crítico da correção política).

Aqueles presidentes nem desconfiam, mas o intérprete de libras que os acompanha nos discursos é expressão da necessidade de não discriminar parcela significativa da população. Nada mais “politicamente correto” do que isso, ainda que o façam por cálculo e na mais cândida insciência.

Não há na ação de “abrutalhamento” da sociedade civil uma estratégia diversiva para desviar a atenção de coisas mais importantes que estariam acontecendo em outra parte. O culto às armas, a agressão às minorias, o negacionismo científico, arrogantemente exposto em crises como a sanitária e a ambiental, caminham coerentemente ao lado do ataque frontal à sociedade política, o segundo alvo do aludido movimento em pinça. Bem verdade que o estridente “nós contra eles” antecede o governo Bolsonaro; como toda retórica populista, de direita ou de esquerda, tal lema ignora o cuidado extremo que se deve ter com as regras do jogo e com a busca permanente de um terreno comum entre todos os que dele participam.

A polarização sectária, praticada abusivamente por anos a fio, conduziu-nos a coisa muito pior. Desde a vitória do presidente Bolsonaro uma espécie de subversivismo elementar (de parte) das classes dominantes encontrou o consenso passivo de amplos setores da população, tornando viável a violação – ao menos retórica – de um dos requisitos mínimos da democracia. É que, segundo essa concepção, “eles”, todos os que se opõem, só podem ser “antipatriotas”, “vermelhos” e “comunistas”, explicitando-se assim a intenção de abolir a normal alternância e promover, quem sabe, novo e indefinido período autocrático.

Nos Estados Unidos, ora em condição análoga, Joe Biden vem encarnando a melhor estratégia: reativar a cidadania, reagrupar os democratas e, ainda, abrir-se para os republicanos que recusam os maus modos de Trump. A grande aposta é que a sociedade civil e a sociedade política, no estilo ocidental, nunca se deixam aprisionar por muito tempo e logo voltam a se impor aos demagogos.

Lá como aqui.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Celso Rocha de Barros: O que acontecerá se a democracia brasileira for salva por seus defeitos?

Todas as iniciativas de combate à corrupção saem perdendo, e centrão está mais forte que nunca

Há uma percepção generalizada de que Bolsonaro tornou-se mais conciliador porque não conseguiu abafar o caso Queiroz. Dois colunistas da Folha notaram isso no último sábado (10): Hélio Schwartsman escreveu que Bolsonaro foi moderado pelo medo das investigações contra ele.

Fernando Haddad foi mais direto (e sarcástico): a corrupção de Bolsonaro pode ter salvado a democracia brasileira. Mais sutil, a revista Veja dessa semana elogiou Bolsonaro pela postura mais moderada, "goste-se ou não de suas motivações".

Na verdade, houve época em que os problemas legais de Bolsonaro até aceleraram seu golpismo. Mas, de fato, foram as investigações que o levaram às negociações com Toffoli, às conversas com Gilmar e com o centrão.

Ali começou o processo que culminaria na indicação de Kassio Nunes Marques para o Supremo Tribunal Federal. Kassio tem certas crises de identidade na hora de citar autores, mas é muito melhor do que o que se esperava de uma indicação bolsonarista.

O medo em 2018 era que Bolsonaro desse um golpe surfando o lavajatismo, aproveitando a desmoralização das instituições para confrontá-las. No fim das contas, o golpismo era 100% real, mas o moralismo era cascata. A posição atual do governo é que o que cura corrupção não é Lava Jato, é cloroquina.

Restam algumas perguntas, que já discutimos aqui na coluna: o acordão de Bolsonaro é estável? O desmantelamento da Lava Jato é uma pacificação ideologicamente neutra ou um aparelhamento do combate à corrupção, como o que se viu no caso Witzel? Bolsonaro continuará cauteloso se os protestos de rua voltarem? Se for reeleito? Se o caso Queiroz for definitivamente encerrado? E o que faremos, se, da próxima vez, o fascista for honesto?

Vamos supor que haja boas repostas para tudo isso, e que o risco autoritário tenha sido reduzido.

Mesmo neste caso, você já parou para pensar no que significa a democracia brasileira ter sido salva por seus defeitos?
Não só a Lava Jato, mas todas as outras iniciativas de combate à corrupção saem perdendo, seja pelo aparelhamento bolsonarista, seja pela ressaca de anos de turbulência que acabaram dando no Jair.

Mas isso pode ser o de menos: vai haver uma reorganização partidária nos próximos anos. E agora ela vai acontecer com o centrão mais forte do que nunca.

Em 2017, o Congresso Nacional aprovou mudanças eleitorais que devem reduzir o número de partidos. A principal delas é a proibição de coligações nas eleições proporcionais (para vereadores, deputados estaduais e federais).

Nossa esperança sempre foi que o centro fisiológico da política brasileira fosse, aos poucos, sendo espremido entre uma centro-esquerda e uma centro-direita fortes a partir de PT e PSDB. Torcíamos pelo fim do que o filósofo Marcos Nobre chamou de "peemedebismo".

Aconteceu o contrário. Às vésperas de uma mudança de regra que deve reforçar quem já é grande, os partidos de identidade mais clara e maior enraizamento social vão mal, e o peemedebismo está dando volta olímpica por ter salvado a democracia.

Mesmo no cenário otimista em que Jair Bolsonaro foi só uma curva errada no caminho de nossa democracia, mesmo se tivermos conseguido moderá-lo, tanto seu autoritarismo quanto a forma de sua moderação podem ter consequências que durem muito mais tempo do que seu mandato.

*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).


Raul Jungmann: A morte da política

O surgimento dos neopopulismos nos anos 2000 levou a emergência de uma linha editorial focada nos riscos e enfraquecimento da democracia. Em linhas gerais, todos os autores destacam, dentre as razões do sucesso dos regimes iliberais, o papel das redes sociais e da internet.

Estas, utilizadas para manipular eleitorados com base na utilização dos dados das grandes plataformas da internet – Facebook, Twitter, Google, Instagram -, tendo por ferramentas a Inteligência Artificial e o Big Data, colocam em risco a expressão da vontade popular em pleitos democráticos, a formação da vontade das maiorias e a própria verdade, isto é, os conceitos, valores e princípios partilhados por uma dada sociedade.

Da Empoli, no seu livro “Os Engenheiros do Caos”, radicaliza os riscos, ao concluir que a política mesma, tal qual a conhecemos, está com os dias contados. Segundo ele, não mais os políticos usam as ferramentas da tecnologia e os algoritmos para alcançar suas vitórias. São os algoritmos que, tendo por base a poderosa máquina das redes sociais, escolhem os políticos que melhor se adequam às possibilidades de obtenção de likes e engajamento – o fim último das plataformas da internet.

A exemplo do movimento Cinco Estrelas, hoje o maior da Itália, que escolheu o comediante Beppe Grillo para ser a face humana a popularizar o partido-algoritmo e vociferar contra o parlamento e as instituições democráticas. O conteúdo, a ideologia, o programa, ser de direita ou de esquerda, libertário ou fascista, racista ou antissemita, verdade ou fake news, nada importa.

E, como o ódio, a denúncia, o escândalo e o absurdo geram muito mais likes e engajamentos que a verdade, são eles que os algoritmos irão promover, destruindo todo e qualquer propósito ou razão política à sua frente. Isso leva Dominic Cummings, estrategista-chefe do Brexit, a afirmar que “quem quiser ter sucesso na política deve procurar físicos (de dados) e não marqueteiros”.

Certamente, essa “pós-política” ainda não tomou o lugar da política tradicional, mas é uma questão de tempo para que isso ocorra, pois os algoritmos podem chegar a cada um, através de mensagens via redes sociais, baseadas em dados sobre nossas personalidades, escolhas e gostos, de modo invisível ao público e com uma verdade, fake ou não, que alimente a raiva, rancor e ódio da política e dos políticos.

*Raul Jungmann - ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.


Celso Lafer: Democracia, veracidade e 'fake news'

Na era digital, é preciso conter a miserabilidade que vitima a verdade factual e a democracia

Uma das dualidades do significado da palavra política é a da interconexão de política-realidade com política-conhecimento. O desafio resulta de que a percepção da realidade integra a realidade política. A percepção das realidades políticas leva a avaliações, mais elaboradas ou mais toscas, que vão guiar a ação e a sensibilidade das pessoas.

A democracia parte do pressuposto do exercício em público do poder comum, pois o que é do interesse de todos deve ser do conhecimento de todos. Daí o tema da transparência do poder, que enseja a avaliação pela cidadania da atuação dos governantes. Por isso informações exatas e honestas são fundamentais na democracia, para a apropriada percepção da realidade.

Nessa linha, afirma Rui Barbosa: “O poder não é um antro, é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol”. Por isso, “o maior, o mais inviolável dos deveres do homem público é o dever da verdade: verdade nos conselhos, verdade nos debates, verdade no governo”. Daí sua crítica à mentira nas instituições e às falsificações públicas e o papel da imprensa como a “vista da Nação”. Por ela, esclarece, é que “a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que se lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam”.

É inegável que, nas circunstâncias atuais, com a plena liberdade de expressão, a imprensa de qualidade em nosso país tem cumprido a função de “vista da Nação”, preconizada por Rui.

Nas sociedades urbanas industriais do século 20 nunca foi simples para a imprensa ser a “vista da Nação” e assegurar a difusão da informação exata e honesta. Ela sempre operou no tempo do incessante metabolismo de dar notícias e informar com regularidade, tendo como foco aquilo que capta a atenção de seus múltiplos destinatários. Os meios de comunicação de qualidade, no entanto, sempre se preocuparam nas suas atividades com a sua reputação e confiabilidade.

As sociedades contemporâneas do século 21 operam numa nova realidade trazida pelo advento da era digital, que ampliou de maneira inédita e positiva o acesso à informação. No entanto, o fragmentário de sua difusão e circulação sem as tradicionais pautas de responsabilidade confiável tem o seu impacto na vida da democracia.

A democracia requer, como diz Bobbio, confiança. A confiança recíproca entre os cidadãos e a confiança da cidadania nas instituições. Esta confiança, por sua vez, requer a transparência, que pressupõe no espaço público a boa qualidade da informação necessária para a adequada percepção da realidade política.

Essa confiança está em falta. Esse desafio confere nova dimensão ao tema da veracidade na esfera pública vitimada pelo esconder e pelo destruir, propiciado pela técnica. É o que coloca em novos termos a clássica reflexão sobre a mentira na política e os modos de operar da razão de Estado, seja como atualmente se oculta a informação para impedir a transparência do poder, seja como se falsifica a informação que circula no palácio e na praça para atingir finalidades de política interna e externa.

A verdade da política é a verdade factual, a dos fatos e eventos a partir dos quais se avalia a realidade e se formam as opiniões. O oposto da verdade factual não é o erro, a ilusão ou mesmo a opinião, mas, sim, a falsidade e a mentira, como ensina Hannah Arendt.

A verdade factual é uma verdade frágil, porque pode ser vítima da manipulação dos fatos para denegar a aceitação da realidade. Pôr em questão a estabilidade da realidade factual pelo negacionismo tira das pessoas o chão da tessitura do real, a partir do qual se constrói na democracia o terreno comum, inerente à pluralidade da condição humana. Compromete a confiança que requer a boa-fé, seja na acepção subjetiva de uma disposição de espírito de lealdade e honestidade ou na acepção objetiva da conduta norteada por essa disposição.

A fragilidade da verdade factual aumentou exponencialmente na era digital. É o que acontece com o impacto falsificador das fake news, que se tornaram a má moeda do livre curso na vida política, que amplia, pelas redes sociais, a intransitividade da Torre de Babel, impedindo a comunicação de boa-fé.

É o que também acontece com a ampla circulação das máquinas de ódio e os linchamentos virtuais, que ensejam as “bolhas” autorreferidas que impedem a interconexão da cidadania no espaço público, favorecendo a “ascensão aos extremos” clausevitzianos da guerra.

Neste contexto cabe preconizar, sem censura, um direito à verdade da informação exata e honesta. Entre os caminhos que têm sido aventados está o da autorregulação regulada das plataformas digitais, que têm caráter eminentemente público, apesar da dimensão privada de sua propriedade e de seus usuários.

Diz um provérbio judaico que a verdade nunca morre, mas leva uma vida miserável. É preciso, na era digital, conter a miserabilidade que vitima a verdade factual e compromete a democracia.

*Professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)