democracia
Alberto Aggio: O nó tático de Bolsonaro
Nos dias que correm, não há razão alguma para otimismo. Como um técnico de futebol que faz uma aposta em meio a um jogo que se mostrava complicado, Bolsonaro deu um nó tático nas oposições. Seus últimos lances são de vitorioso, antes do término da contenda. Sua “guerra de posições” começa a dar resultados práticos e, por isso, ele pode voltar a vociferar como dantes, “sem medo de ser feliz”, com a galera em coro vociferando: “mito, mito, mito”.
Fato é que Bolsonaro invadiu o espaço parlamentar e conquistou apoio para sua blindagem e sua família. Conquistou posições onde antes não punha os pés: na cúpula do poder Legislativo. Quem fez isso para ele? O general Luiz Eduardo Ramos, que comanda a Secretaria Geral de Governo, e os líderes do Centrão. Tá tudo dominado. A vitória na presidência das duas Casas, como já se disse, é a antessala da eleição de 2022 e vai implicar em imensos desafios para as forças democráticas.
Este movimento conseguiu quebrar a espinha dorsal de quem se opunha a Bolsonaro no Parlamento: Rodrigo Maia. O DEM rachou e Maia viu sua liderança esfumaçar, combatido pela direita e pela esquerda. O movimento articulado por Maia alguns meses atrás, que buscava articular o MDB e o PSDB, não conseguiu sustentação entre os partidos e os parlamentares, mostrando como são frágeis suas convicções democráticas bem como suas perspectivas de futuro, superando o bolsonarismo. No mais, o de sempre: PSDB indefinido, PT oportunista, Psol confuso e o resto como barata tonta. E os partidos do Centrão negociando freneticamente tudo com os representantes do Planalto. Desta maneira, a sociedade não tem uma liderança em quem mirar e o Parlamento será capturado integralmente por Bolsonaro.
Como corolário do pior dos mundos, as forças democráticas mostram-se inteiramente desarticuladas, não confiam umas nas outras, e só pensam na manutenção dos seus currais eleitorais por Estado em futuro breve, e quando muito, vislumbram candidaturas presidenciais para imantar suas permanências na vida político-partidária.Por outro lado, a lógica das fake news, ao contrário do que muita gente imagina, não arrefeceu.
Comandada pela confusão midiática que Bolsonaro mantêm viva contra a vacina e a vacinação, conseguiu-se emparedar a principal liderança de oposição que demonstrou capacidade de enfrenta-lo na questão da pandemia e da vacina, duas questões centrais da hora presente na sociedade brasileira: o governador de São Paulo, João Doria Jr. Depois de breves vitórias, Doria foi e está sendo bombardeado dia após dia, pela direita e pela esquerda, pelas fake news e até pela mídia tradicional.
A lógica da velha política se sobrepôs a tudo, sem que a sociedade pudesse reconhecer isso. Esse foi o nó tático de Bolsonaro: ele confiou na ação desarticuladora da frágil cultura política democrática entre nós. Na sociedade, instalou-se uma luta de todos contra todos, demonstrada na questão da vacina; no Parlamento, retomou-se o toma-lá-dá-cá, com a liberação de verbas e cargos. É a política como negócio pessoal que volta à tona uma vez que se entende que a sociedade é assim e que não reagirá diante desse descalabro.
Hoje, Bolsonaro xinga e ofende a imprensa, desdenha dos políticos (porque a sociedade
não quer mesmo saber deles), descuida das pessoas e pede a elas que vivam radicalmente seus interesses individuais, dispensando qualquer proteção do Estado. Mas este está garantido para os seus negócios privados que lhe garantirão a manutenção no poder. A democracia existe por inércia, vai sendo conspurcada, dilacerada, dilapidada em seus valores. O Brasil vai perdendo o pouco que tinha de noção coletiva e de República, de bem-comum.
O impeachment voltou a fazer parte das vocalizações da conjuntura, mas todos sabem, com maior ou menor consciência, que ele não é mais do que uma bandeira agitativa sem possibilidade real de imposição; faz parte de um discurso da indignação (justa, mas impotente). Por isso, não há motivo algum para otimismo, embora também não haja razão para se cair no desespero; a política demanda realismo e acima de tudo reconhecimento do terreno e das circunstâncias. Muito provavelmente, viveremos derrota atrás de derrota até conseguirmos encontrar um novo rumo. E isso pode demorar anos.
*Alberto Aggio, Historiador, professor titular da Unesp
Ricardo Noblat: Acendeu a luz vermelha para a reeleição de Bolsonaro
Se tiver impeachment ainda vai demorar
Uma notícia boa para o presidente Jair Bolsonaro: a Câmara dos Deputados não deveria abrir um processo de impeachment contra ele. É o que pensam 53% das 2.030 pessoas em todo o Brasil entrevistadas por telefone pelo Datafolha nos últimos dias 20 e 21. O percentual era de 50% no início de dezembro. Os que defendiam o impeachment caíram de 46% para 42%. Parabéns, presidente!
Quanto ao mais descoberto pelo Datafolha, só tem notícia ruim – com efeito, em linha com pesquisas divulgadas nesta semana pelos institutos Paraná, Ipespe e IDEIA. Subiu de 32% para 40% os que avaliam o desempenho de Bolsonaro como ruim ou péssimo. Os que avaliam como ótimo e bom diminuíram de 37% para 31%. É a maior queda desde o começo do seu governo há dois anos.
Metade dos brasileiros considera que ele não tem capacidade para governar e não merece confiança. Nunca confiam em sua palavra 41% (eram 37% em dezembro) dos entrevistados, enquanto 38% o fazem às vezes (eram 39%) e 19%, sempre (eram 21%). Também pudera. Bolsonaro, hoje, diz uma coisa e amanhã o seu oposto. Fala mal das vacinas, depois as compra e fala mal outra vez.
As pessoas que têm medo de pegar o novo coronavírus estão entre as que mais rejeitam o presidente. A rejeição a ele entre os que têm muito medo de ser infectados pelo vírus saltou de 41% em dezembro para 51%. A aprovação caiu de 27% para 20%. Entre quem tem um pouco de medo de infectar-se, a rejeição subiu de 30% para 37%. A parceria com o vírus fez mal a ele.
O presidente é mais rejeitado entre os que ganham mais de 10 salários mínimos (52%), com curso superior (50%), mulheres e jovens de 16 a 24 anos (46%). Os mais ricos e instruídos são os que menos confiam nele, bem como os jovens. Os empresários – sabe como é… – seguem sendo o grupo profissional mais fiel a Bolsonaro. 58% acreditam na sua capacidade de governar.
O que explica a quantidade de más notícias para o presidente? O recrudescimento da pandemia com o aumento de casos e de mortes em todo o país, a crise da falta de oxigênio em Manaus, a performance desastrosa do governo neste início da vacinação em massa e o fim do pagamento do auxílio de emergência em 31 de dezembro aos brasileiros mais pobres.
No Nordeste, por exemplo, a rejeição a Bolsonaro passou de 34% para 43%, e tende a aumentar. Em junho do ano passado foi de 52%. O maior tombo ocorreu no Norte, onde fica Manaus, e no Centro-Oeste, região que sempre foi um reduto dos bolsonaristas. Bolsonaro amarga 44% de rejeição no Sudeste, a região mais populosa do Brasil, 10 pontos percentuais a mais do que no Sul.
Sempre poderia ser pior, e é nisso que se agarram os ministros de Bolsonaro e os políticos do Centrão gulosos por mais cargos no governo. Quanto mais crescerem as dificuldades para o presidente renovar seu mandato, mais o Centrão se oferecerá para ajudá-lo. Caso se convença mais adiante que Bolsonaro será derrotado, o Centrão negociará com quem possa se eleger.
Quem dispensa máscara e se aglomera é burro
Desabafo de prefeitos aflitos
Nas últimas 48 horas, dois prefeitos de grandes cidades perderam a paciência e chamaram de burros os que dispensam o uso de máscara, engrossam aglomerações e não querem se vacinar..
Um foi Alexandre Kalil (PSD), prefeito reeleito de Belo Horizonte no primeiro turno com a maior votação do país – 63,36% dos votos válidos. Foi curto e grosso, bem ao seu estilo:
“Eu confio 200% na vacina, eu confio na ciência. Nós temos uma tradição de vacinas no Brasil. Todo mundo tem de se vacinar, quem não quer é negacionista, idiota e burro.”
O outro, Eduardo Paes (DEM), prefeito do Rio, eleito no segundo turno com 64,7% dos votos válidos, quase o dobro de Marcelo Crivella (Republicanos), seu adversário. Disse Paes:
“Para vocês que sabem que não vão pisar nas baladas, nas festas, deixem de ser burros. Vocês estão matando as pessoas”.
No Rio, todas as 33 Regiões Administrativas da cidade têm, agora, risco alto de contágio. Eram 25 na semana passada. Em São Paulo, só os serviços essenciais poderão abrir nos fins de semana.
Enquanto isso… No dia em que o governo federal celebrou a chegada de 2 milhões de doses de vacinas da Índia, o presidente Jair Bolsonaro voltou a falar mal das vacinas. Faz sentido?
Antes, Bolsonaro falava mal apenas da Coronavac, a vacina chinesa bancada pelo governador João Doria (PSDB), de São Paulo, e produzida pelo Instituto Butantan. Agora, não faz distinção.
Esta semana, à falta do que fazer ou de querer fazer alguma coisa, Bolsonaro passou um largo pedaço de tarde assistindo ao treino do Flamengo que enfrentaria o Palmeiras em Brasília. Foi vaiado.
Se a Índia não se dispuser a vender mais vacinas da Astra/Zêneca, as que chegaram ontem aqui darão para imunizar apenas 1 milhão de pessoas. São duas doses por pessoa.
A China prometeu doar 1.700 cilindros de oxigênio para que Manaus volte a respirar relativamente em paz. Sobre a remessa de insumos para a fabricação da Coronavc, nada por ora.
Nesse ritmo, o Brasil entrará em 2022 vacinando e com mais mortos e doentes. Culpa do governo federal – e também dos milhões de burros que pastam por aí.
Míriam Leitão: Erro econômico na crise sanitária
O Ministério da Economia ficou ausente de questões decisivas para a economia no combate à pandemia. Na vacinação, os economistas poderiam ter induzido a estratégia de comprar mais vacinas e não menos, exatamente para não concentrar o risco. Em tempos de incerteza e de escassez, o certo a fazer é diversificar riscos e ampliar potenciais fornecedores. Em relação ao auxílio emergencial, era fundamental ter um plano para este momento em que as transferências vão secar.
Em conversa esta semana com o economista José Alexandre Scheinkman, ele me chamou a atenção para esse ponto:
— O Ministério da Economia deveria ter alertado o governo que precisava formar um portfólio diversificado. Nós economistas entendemos esse problema de risco e diversificação. O pessoal da saúde pode não pensar nessa estratégia de portfólio. O Canadá encomendou quatro vacinas para cada cidadão, de tipos diferentes. No programa americano também há várias vacinas encomendadas.Esta semana o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta explicou, numa entrevista na Globonews, como o governo errou nas negociações da Organização Pan-Americana de Saúde. Em vez de usar o fato de ser um país grande para aumentar sua capacidade de negociação, o Brasil se apequenou. Primeiro, disse que não entraria no consórcio, depois, que só compraria 10% da sua necessidade. Neste momento está havendo um choque na capacidade de oferta. Mas a equipe econômica se deixou convencer pela ideia de Bolsonaro, de que, por sermos grandes, somos um mercado desejado. Em momento de escassez de oferta e muita demanda, é o oposto.
O Ministério da Economia errou por se manter distante desta crise. E, desde o início, este é também um problema econômico. O equívoco veio de avaliações erradas. As primeiras análises feitas até o começo de março eram que a pandemia não se espalharia no país porque o Brasil seria “um país fechado”. Depois subestimaram a extensão do contágio, os estragos e o custo. Veio daí a já famosa frase do ministro Paulo Guedes de que com R$ 5 bilhões ele venceria o vírus. O custo ultrapassou R$ 600 bilhões. O governo gastou muito e mal.
No fim do ano o cenário com o qual o Ministério da Economia trabalhava era o de que a pandemia estava reduzindo sua intensidade e por isso não seriam necessárias novas medidas de socorro à economia. O indicador que os orientava era o de isolamento social. Como ele caía, concluíam que a economia iria recuperar o nível de atividade, principalmente o setor de serviços. A queda do distanciamento levou a um aumento da infecção. Sucessivas vezes durante esta pandemia a realidade contrariou o cenário no qual apostou o Ministério da Economia. Ele ficou, como se diz no jargão do mercado, todo o tempo behind the curve, ou seja, correndo atrás dos fatos.
Se avaliasse a evolução provável dos eventos com as ferramentas que os economistas têm, o Ministério teria concluído que o governo estava tomando riscos excessivos ao sustentar aquela visão de Bolsonaro de que o STF o impedia de tomar decisões federais de coordenação do combate à pandemia. Esse erro elevou os danos colaterais da crise sanitária.
Nos Estados Unidos, o presidente Biden tomou decisões que mostram como é largo o espaço para a coordenação da União, mesmo numa federação que sempre reconheceu a grande autonomia dos estados e das cidades. Biden convocou a Fema, a agência federal de administração de emergências, para fortalecer a vacinação. A Fema vai montar centros de imunização. Biden determinou que sejam feitas campanhas nacionais, algumas dedicadas exclusivamente às comunidades céticas. Vai fazer campanha pelo uso de máscaras, além de ter obrigado o uso nos prédios federais. O governo federal se ofereceu aos estados e cidades para “desenvolver, equipar, prover gerenciamento de informação, oferecer pessoal e locais” para vacinação. Enfim, a cada ato sensato de Biden, é inevitável ver a inação de Bolsonaro no Brasil e o espantoso custo disso em vidas humanas e perdas econômicas.
A falta de gestão da crise a aprofunda e prolonga. Isso eleva a necessidade de socorro financeiro às famílias e pequenas empresas. As quedas na saúde estão totalmente ligadas às quedas na economia. Por não preparar em tempo um substituto ao auxílio emergencial, o Ministério da Economia está se deixando empurrar para alguma solução que será de novo improvisada.
Ascânio Seleme: De costas para o Brasil
Ao que parece, mais uma vez o Congresso vai dar as costas aos brasileiros. Os números apurados pelo GLOBO e pela Folha de S. Paulo indicam que o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco devem ser eleitos presidentes da Câmara e do Senado. Os dois, como se sabe, são os candidatos apoiados por Jair Bolsonaro. Pacheco em duas entrevistas disse que até agora não viu crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente e que “erros do governo na pandemia são escusáveis”. Lira não precisa dizer nada, todo mundo sabe o que ele pensa e como ele age.
O que se desenha com a eleição destes dois senhores é que os evidentes crimes praticados por Bolsonaro, contabilizados já na casa das duas dezenas, serão ignorados pelo Congresso. E obviamente também não tramitará qualquer outra denúncia por novos crimes que certamente o presidente perpetrará. Até o momento, 61 pedidos de impeachment de Bolsonaro foram encaminhados ao Congresso por partidos políticos e entidades civis. O presidente deveria ser julgado por apoiar o golpe de 1964, apoiar motim da PM, tentar interferir na PF, apoiar manifestações antidemocráticas, se calar diante de declarações antidemocráticas de ministros, ameaçar o STF, ameaçar procuradores, atentar contra a vida na pandemia, entre outros crimes.
Como se vê, o presidente do Brasil é um criminoso contumaz. E a maioria dos 594 deputados e senadores que vão eleger os novos chefes das duas casas do Congresso tende a se alinhar àqueles que já disseram publicamente que os erros de Bolsonaro são desculpáveis ou que ele não cometeu crime. Não precisa ser muito esperto para entender o que a constatação explica. E a sua compreensão depõe ainda mais contra o Congresso brasileiro. Deputados e senadores estão trocando votos por cargos, vantagens e benesses do poder executivo, como sempre. Em alguns casos, compreende-se. Em outros, não.
Não surpreende, por exemplo, que mesmo alguns parlamentares do DEM de Rodrigo Maia, que apoia Baleia Rossi para dirigir a Câmara, votem em Arthur Lira. O Democratas é um partido de aglomeração. Reúnem-se nele políticos de centro, de centro-direita ou de direita. O partido não vota monoliticamente como orientação política, mas sempre apoia medidas de caráter liberal. Sucessor da Arena e do PDS, que dominaram o Congresso durante a ditadura, virou coadjuvante em todos os governos civis desde José Sarney. O DEM é conhecido pelo seu gosto de apoiar governos, não importa qual.
Os senadores do PT, por outro lado, anunciaram que vão votar em Rodrigo Pacheco. E não é por falta de opção. Significa que o maior partido de esquerda do país, teoricamente o principal opositor do governo de extrema direita de Bolsonaro, se alia a este e como consequência o auxilia a encobrir seus crimes de responsabilidade. Um petista que circula pelos altos escalões do partido diz que no Senado “o bicho é outro”, que as razões internas superam as questões partidárias. Como? Pois é. O partido que em 1985 expulsou os deputados Airton Soares, Bete Mendes e José Eudes, que votaram em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, vai permitir agora que seus senadores votem com Bolsonaro.
No meio do caos que o governo promoveu no país, especialmente durante a pandemia que já matou mais de 210 mil brasileiros, é incrível que Bolsonaro ainda tenha prestígio no Congresso a ponto de conseguir eleger os presidentes de Câmara e Senado. Sob qualquer ângulo que se olhe, nenhum presidente desde Deodoro da Fonseca, que derrubou um império e instaurou uma república, tumultuou tanto o país quanto Bolsonaro. O Congresso é cego? Não, claro que não. Ele se faz de cego porque as votações para presidentes das duas casas serão secretas. E no escuro tudo fica mesmo muito embaçado.
Antes de a vaca ir de vez para o brejo, dá tempo para o presidente Rodrigo Maia cumprir seu papel histórico antes do fim do seu mandato, aceitando um dos 61 pedidos de impeachment de Bolsonaro que repousam em sua mesa. Não vale dizer que o processo daria em nada. Porque não é verdade. Impeachments são votados a plenos pulmões, a viva voz e com o rosto descoberto dos parlamentares, que usariam no máximo uma máscara profilática, pelo menos os não negacionistas. Aí a coisa muda, não é mesmo? Apoiar publicamente um presidente com popularidade de míseros 26% (Pesquisa Exame/Idéia) é diferente de votar num parlamentar bolsonarista, ainda mais protegido pela escuridão.
CONTANDO COM O OVO
A turma do deputado Arthur Lira, candidato de Bolsonaro à presidente da Câmara, garante que vai ganhar a eleição em fevereiro, quando os deputados voltarem do recesso parlamentar. Diz que vai fazer barba, cabelo e bigode.
Um dos mais fiéis deputados da base governista afirma que Lira fará maioria de votos até mesmo no DEM de Rodrigo Maia, o que seria um vexame para o filho de Cesar. O fato é que Lira está contando com o ovo mesmo sem antes ter combinado com a galinha.
A MELHOR ESCOLHA
Bolsonaro pode ter se frustrado com seus escolhidos para os ministérios da Justiça e da Saúde. Afinal, Sergio Moro e Luiz Mandetta não o obedeceram cegamente quando as primeiras demandas absurdas foram apresentadas. Moro não entregou o controle da PF ao presidente e Mandetta não endossou bestamente a cloroquina. Mas de onde menos se esperava é que veio o melhor cúmplice, quero dizer, o melhor aliado ou a melhor escolha de Bolsonaro. Trata-se do procurador-geral da República, Augusto Aras. Logo ele, quem tem mandato e prerrogativas.
BOBALHÃO
O chanceler Ernesto Araújo disse ao Congresso que não há nenhuma crise diplomática entre o Brasil e a China. As negociações entre os dois países seguem sem sobressalto, garantiu o ministro que apenas a ala fascista (que muitos chamam de ideológica) do governo apoia. Quem acha que a China é pragmática demais para retaliar, veja o que ela fez na quinta com líderes do governo Trump. Até Mike Pompeo, ex-secretário de Estado dos EUA, não pode mais entrar no país. Se alguma empresa americana o empregar, terá eventuais contratos com o gigante asiático suspensos. Outros 26 apoiadores ou membros da equipe de Trump receberam as mesmas sanções. Quem sabe Ernesto Araújo não toma emprestado o hipnotizador do general Pazuello para negociar com os chineses.
Vai ser bobo assim lá na China.
CARTA DO BOZO
Quem escreveu a carta que Jair Bolsonaro mandou para o recém empossado presidente dos Estados Unidos? Não importa, desde que seja imediatamente nomeado ministro das Relações Estrangeiras. Ou, não. Pode ser mais uma falsidade emanada daqueles porões escuros do Planalto.
SE FOSSE SERRA
Foi em 2001, na gestão do ex-ministro das Saúde José Serra, que o Departamento de Comércio dos Estados Unidos e os laboratórios globais produtores de medicamentos contra a Aids se dobraram ao Brasil e passaram a negociar preços. Depois de muita pressão de Serra no Congresso, tinha sido aprovada lei autorizando a quebra de patentes dos remédios que compunham o coquetel anti HIV. As negociações, que só ocorreram para evitar a quebra daquelas patentes, foram uma vitória brasileira e os preços despencaram. A lógica de Serra vale ainda hoje: o mercado nacional é muito grande para ser tratado com descaso e o Estado brasileiro é um dos maiores compradores globais de remédios. Depois da pandemia, o mundo continuará consumindo medicamentos para todas as outras doenças.
FALTAM LEITOS
Os dados são do IBGE. Enquanto a população brasileira cresceu 8,4% entre 2012 e 2019, o número de leitos do SUS, por mil habitantes, caiu 12,8%. No Rio, no mesmo período, a população cresceu 6,4% e os leitos do SUS diminuíram inacreditáveis 28,4%. Pode?
VACINA PRIVADA
Faz sentido impedir que clínicas e empresas privadas comprem diretamente lotes de vacinas para vender aos seus clientes ou para aplicar em seus empregados. Afinal, estamos falando de uma pandemia que alcança a todos indistintamente, mesmo os desempregados e aqueles que não teriam dinheiro para comprar uma dose privada. Mas há quem defenda a liberação, que poderia reduzir a pressão sobre a rede pública. Pode ser. Mas, talvez mais adiante.
AGORA VAI
Rebuliço no Palácio da Paz Celestial. Chegou a carta do deputado Fausto Pinato (presidente da Comissão Parlamentar Brasil/China) para o líder Xi Jinping pedindo prioridade para o Brasil na liberação das vacinas e dos insumos necessários para a sua produção. Não se fala de outra coisa em Pequim.
PAPO ADIADO
Algumas horas antes do início previsto, foi cancelado o bate papo organizado pela Lide Talks de Santa Catarina entre o governador Gean Loureiro e o deputado estadual Júlio Garcia, presidente da Assembleia Legislativa do estado. É que no amanhecer do dia do “talk”, Garcia foi preso pela PF numa operação contra uma organização criminosa especializada em fraudes, desvios de verbas públicas e lavagem de dinheiro. Fica para a próxima.
Marco Aurélio Nogueira: O presidente caricato
Democratas precisam evitar que Bolsonaro passe a controlar o Poder Legislativo
Surpreende que o mundo político, em sentido estrito – Congresso, parlamentares, partidos –, somente agora comece a cogitar de um possível impeachment presidencial por crimes de responsabilidade.
Quando o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ativo militante do moderantismo, veio a público declarar (15/1) que o afastamento de Bolsonaro do cargo de presidente da República “será debatido de forma inevitável no futuro”, ele deu o tom de uma inflexão que se poderá consolidar nos próximos meses. Aproveitou para chamar às falas o Congresso, que inexplicavelmente se mantém em recesso enquanto o País pega fogo.
Bolsonaro não havia sido, até agora, atingido por uma ameaça desse tipo. A primeira etapa de seu mandato foi um período de desgoverno e tragédia, em que ele pintou e bordou, agindo com uma mistura patética de tiranete, chefe de gangue e godfather tropical. O escárnio diante do vírus, do povo, da vacina e dos cientistas foi constante, mastigado com indiferença e como prova de “autenticidade” por uma população em grande parte anestesiada. Com a pandemia, sua personalidade desequilibrada e narcisista ganhou plena manifestação. Os meses foram se passando e os estragos, aumentando. Seu prontuário engordou.
O presidente fez política contra a política, empenhado em criar confusão para camuflar sua incompetência e atiçar seus seguidores. Em nenhum momento, porém, pôde proclamar-se vitorioso.
O padrão oposicionista seguiu roteiro conciliador, que travou os planos maléficos do presidente. Fez o rei ficar nu. Meio que em silêncio, com muito jogo de bastidores, possibilitou que houvesse alguma governação no Brasil, paralisando a Presidência da República.
Bolsonaro foi reduzido a uma caricatura de presidente, que fala compulsivamente, de modo agressivo, com cálculo de malandro, boca cheia de impropérios e grosserias, mas é inepto e pouco faz de positivo. Age como um animal encurralado, que ameaça sem morder. Continua a atacar as instituições, a instigar as Forças Armadas, a ameaçar retrocessos. Com os venenos que produz na cozinha do Palácio constrói um imaginário negativo, polarizador, que confunde e corrói. Suas orientações esvaziam e destroem setores estratégicos das políticas sociais, dos direitos humanos, da economia, da proteção ambiental. Sua indigência diplomática comprometeu até mesmo a produção das vacinas e a campanha de vacinação.
A oposição teve sucesso nessa que a mente afiada do cientista político baiano Paulo Fábio Dantas Neto chamou de “estratégia maricas”: o bolsonarismo foi forçado a negociar.
Os humores mudaram, porém. Quanto mais a pandemia se agravou, quanto mais os ministros de Bolsonaro mostraram sua desqualificação, quanto mais o País se foi marginalizando no sistema internacional e fracassando no comércio bilateral, mais aumentou a pressão para o encontro de uma solução.
Abriu-se assim uma nova etapa da luta política. Ainda que a “estratégia maricas” consiga continuar arrancando a fórceps decisões do governo federal, ela precisa ser complementada por uma estratégia mais contundente, que aperte o cerco, mas saiba evitar tentações polarizadoras, escolhos e armadilhas.
A nova fase transcorrerá em algumas frentes principais.
A primeira é a afirmação de um campo oposicionista democrático consistente, que consiga soldar os diferentes partidos e forças políticas numa unidade programática mínima, forjada sem vetos ideológicos, firulas acadêmicas e cálculos políticos sofisticados.
A segunda é a organização do clamor popular, com a invenção de formas de protesto que aumentem o som das panelas e contornem a dificuldade de se ter gente nas ruas.
A terceira é o processamento político das denúncias de crime de responsabilidade contra Bolsonaro. Disso dependerá a abertura ou não do impedimento constitucional do presidente. Por mais que esse seja um passo delicado, sobretudo quando se considera que o presidente tem apoio popular e parlamentar, há no Congresso lideranças com inteligência política e dignidade cívica para impedir que as labaredas da crise institucional incendeiem o País.
No curto prazo, uma quarta frente passa pelo desfecho da disputa pelas presidências da Câmara e do Senado. Muitos parlamentares estão em flutuação, marcando posição, sem compreender a importância de um evento que poderá definir muito do ritmo político daqui para a frente. Mas é o que se tem. Os operadores democráticos precisarão trabalhar dobrado, sensibilizar setores do Centrão e da esquerda para evitar que Bolsonaro passe a controlar o Poder Legislativo.
O recurso ao impeachment poderá catalisar o mal-estar que hoje, impregnado de horror, medo e repulsa, se espalha pela sociedade. Como está não pode ficar. A perspectiva conciliadora, vitoriosa em nossa História recente, só tem a ganhar se adquirir corpo e poder de direcionamento, contrapondo ao negativismo radical do presidente o ar renovado da política positiva. Sem o qual, aliás, nenhum vírus será derrotado.
*Professor titular de teoria política da Unesp
RPD || Editorial: A batalha que se avizinha
Após alguns meses de incerteza, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a regra fundamental para nortear a disputa pela presidência das duas Casas do Congresso Nacional: os atuais ocupantes estão impedidos de disputar mais uma vez a eleição. Essa decisão abriu o caminho para a apresentação dos candidatos e sua movimentação em busca do apoio de partidos e parlamentares.
No Senado Federal, as candidaturas ainda se encontram em processo de acomodação, restando pendente, até o momento, a definição do candidato da bancada do MDB. Na Câmara dos Deputados, contudo, a presteza do governo em anunciar seu candidato precipitou os movimentos da oposição. Está claro e reconhecido que essa disputa é tida como fundamental pelos estrategistas do governo, para o bom andamento de seu projeto político. Consequentemente, intensificou-se nos meios oposicionistas e na opinião pública a percepção de sua relevância simétrica para os objetivos maiores dos opositores: sustar, interromper, talvez até mesmo iniciar a reversão dos avanços do governo nas pautas que lhe são caras.
Os objetivos do governo são bem conhecidos e repetidos dia a dia por seus expoentes. Na segurança pública, ampliar a autonomia para a ação das polícias, até chegar à garantia prévia de impunidade nos casos de vítimas fatais decorrentes dessa ação. No meio ambiente, o desmantelamento do corpo de leis de proteção ambiental, ou seja, a passagem da boiada. O avanço da onda conservadora nos costumes, para reverter os avanços recentes dos movimentos em prol dos direitos das mulheres e dos homossexuais. A negação do racismo, com seu corolário de perpetuação das práticas racistas que prosperam no país, em particular o genocídio da juventude negra.
Contra o sucesso dessa agenda, a oposição deve trabalhar pela unidade em torno da candidatura da continuidade para a presidência da Câmara. A mesma frente que se formou, no esforço conjunto de legisladores e governadores, em momentos cruciais do passado recente, em torno do FUNDEB, do auxílio emergencial, de todas as medidas de combate à pandemia, da autonomia do Poder Legislativo, da defesa do Poder Judiciário, deve tornar a operar hoje, na véspera do momento em que o comando das duas Casas do Congresso será decidido.
Hoje como ontem, uma frente com essa amplitude tem por objetivos a defesa da vida e da democracia. Trata-se de preservar, de um lado, a vida dos brasileiros das consequências devastadoras da doença e da crise econômica a ela vinculada; de outro, sua liberdade, em risco permanente por força das ameaças sucessivas ao estado de direito democrático vocalizadas pelos representantes do governo.
RPD || Especial: Bolsonaro quer destruir política nacional de saúde mental para favorecer evangélicos
Em São Paulo, João Doria e Bruno Covas seguem na mesma linha do governo federal, mostra a reportagem especial da Revista Política Democrática Online de janeiro
Cleomar Almeida
Uma multidão de dependentes químicos ocupa parte da Alameda Dino Bueno, no Centro de São Paulo, na região conhecida pelo intenso consumo e tráfico de crack. Alguns improvisam tendas para se protegerem de sol e chuva e não interromperem a fumaça que exala do cachimbo, mesmo com a cracolândia cercada por tropas da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana e um número ínfimo de profissionais de saúde e assistência social.
A cena, que já é comum para quem vive na região, pode se espalhar para outras capitais diante do risco de retrocesso no socorro a dependentes químicos no país. O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) planeja desmontar a Política Nacional de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde (SUS), que ainda garante o mínimo desse tipo de atendimento a dependentes químicos e outras pessoas em diferentes situações de vulnerabilidade social, agravada pela pandemia do coronavírus.
Sem se identificar, a equipe de reportagem da revista Política Democrática Online transitou pela cracolândia de São Paulo e constatou a ausência do Estado para garantir atendimento adequado e resposta efetiva ao problema. Por um lado, essa omissão faz aumentar a reclamação de moradores contrários à aglomeração de dependentes químicos na região, que, por outro lado, ficam ainda mais suscetíveis ao tráfico e imersos na onda de desassistência à saúde.
A última pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre a cracolândia mostrou que 50,3% dos frequentadores da região tinham algum nível de quadro psicótico, 48,4% já haviam praticado automutilação e 38,2%, tentado suicídio. Além disso, 63% da população local já havia contraído sífilis, a doença que mais se manifesta entre essas pessoas.
Compilados no Levantamento de Cenas de Uso de Capitais (Lecuca), os dados da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Unifesp foram extraídos de entrevistas com 240 pessoas que afirmaram consumir crack na cracolândia. Divulgada no ano passado, a pesquisa sobre a região é a mais recente realizada por uma universidade e exemplifica a necessidade de fortalecimento do atendimento em saúde mental do SUS.
Em São Paulo, apesar de se apresentarem como oposição ao bolsonarismo, o governador João Dória e o prefeito Bruno Covas, ambos do PSDB, estão totalmente alinhados com Bolsonaro no plano de desmonte da política de saúde pública mental. Defensores da internação, eles agem para favorecer comunidades terapêuticas, alvo de denúncias em todo o país e mantidas em sua maioria por igrejas, como forma de devolver favores dos evangélicos em apoio às suas eleições.
Na capital paulista, desde 2017, quando Dória assumiu a prefeitura, intensificou-se um processo de enfraquecimento do atendimento a dependentes químicos. Ele substituiu o programa Braços Abertos, da administração de Fernando Haddad (PT), que oferecia trabalho, moradia e outras formas de acolhimento como estímulo para que cada dependente químico pudesse reduzir o uso de drogas. No lugar, instituiu o Redenção, focado na internação e ligado a clínicas religiosas, além de instalar laboratórios de militarização na região, para aumentar as operações policiais. Covas mantém essa linha.
“O que se vê é o esvaziamento de qualquer política na cracolândia. A principal política atual da gestão Dória e Covas é bater nas pessoas que estão ali”, afirma Daniel Mello, ativista da Craco Resiste, movimento que existe desde o final de 2016, logo após Dória ser eleito para a prefeitura com a promessa de que iria acabar com a cracolândia. “As pessoas usam drogas para suprir outras necessidades. Quando tinha oferta de abrigo e emprego, a grande maioria mantinha o uso, mas sob controle”, diz.
No mês passado, o Ministério da Saúde apresentou a proposta de revogar cerca de 100 portarias editadas entre 1991 e 2014. Exposta em reunião com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e as Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), a medida pode atingir estratégias de cuidado das pessoas com problema psíquico baseadas nos direitos humanos e conquistadas com a reforma psiquiátrica, instituída pela Lei Federal 10.2016 de 2001. O cuidado em rede pode ser desmontado para favorecer a internação em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.
Na prática, a proposta tem o objetivo de rever a atual política de saúde mental, desarticulando a Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que é baseada na humanização do tratamento e formada por estratégias e equipamentos. Entre eles estão os centros de atenção psicossocial (Caps) nos tipos I, II, álcool e outras drogas, álcool e outras drogas 24h (III) e infantil; leitos de atenção Integral em saúde mental em hospital geral; unidade de acolhimento transitório; serviço residencial terapêutico; consultório na rua e iniciativas de geração de renda.
O plano do governo federal é cortar mais verba do SUS, que em 2019 teve perda de R$20 bilhões, pois pretende revogar portarias que instituem procedimentos ambulatoriais e a revisão do financiamento dos Caps. Os centros de atenção psicossocial fortalecem vínculos dos usuários da saúde mental nos seus territórios, como alternativa à internação em hospitais psiquiátricos, os chamados manicômios.
No entanto, a proposta do Ministério da Saúde quer criar ambulatórios gerais de psiquiatria e unidades especializadas em emergências psiquiátricas. Pela atual Política de Saúde Mental do SUS, somente pessoas em situações mais graves são encaminhadas para internação, que deve ocorrer em hospitais gerais.
O risco de desmonte dessa política do SUS fez mais de 100 entidades e movimentos sociais de todo o Brasil criarem, no mês passado, a Frente Ampla em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial. “Tal mudança projeta mais dor em um contexto já trágico de pandemia por covid19: por que querem causar mais sofrimento mental às pessoas? Como fechar serviços de saúde em plena pandemia?”, questiona um trecho do manifesto.
Na avaliação das pesquisadoras Elizabeth Sousa Hernandes, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Política Social (Neppos), e Waleska Batista Fernandes, tutora da residência multiprofissional em saúde mental do adulto da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (Fepecs), o risco é iminente. Segundo elas, “o Brasil não pode permitir um retrocesso em termos de política de saúde mental”.
“É fundamental que a comunidade acadêmica, os movimentos sociais e todo indivíduo ou instituição que se importe com direitos humanos levantem a voz para mudar o rumo dessa história. Com isso, ganhará quem deve ganhar: a sociedade, que é afetada pelo sofrimento mental de qualquer dos seus indivíduos e por todas as situações de destituição de direitos”, escrevem elas, em análise sobre o risco de desmonte.
Artista visual, ativista de movimentos sociais e morador da região da cracolândia, Paulo Fluxos disse que a situação dos dependentes químicos e outras pessoas em situação de vulnerabilidade no local piorou ainda mais durante a crise sanitária global provocada pelo coronavírus. “Já passei aqui oito meses, escutando, acompanhando como essa população de rua enfrentou a pandemia. Completamente abandonada”, diz ele. “Única coisa que a Prefeitura e o Estado de São Paulo ofereceram foi a polícia”, acrescenta.
A Defensoria Pública da União (DPU) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) já solicitaram ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, uma série de informações sobre as medidas adotadas pela pasta, com o objetivo de alterar políticas públicas destinadas ao tratamento em saúde mental e de dependentes químicos no país. Ele ainda não respondeu.
Procurados pela reportagem, o Ministério da Saúde, o governo de São Paulo e a prefeitura da cidade não se pronunciaram. A Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas também não retornou ao pedido de resposta.
Governo desconsidera alertas sobre violação de direitos em comunidades terapêuticas
Para favorecer comunidades terapêuticas, o governo brasileiro tem agido na contramão de alertas feitos por instituições nacionais, como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e o Ministério Público Federal (MPF). Relatório de fiscalização chama atenção da sociedade para o risco de o país reviver o “holocausto brasileiro”.
Uma série de violação de direitos humanos em comunidades terapêuticas no país foi constatada em fiscalização dessas instituições e registradas no mais recente Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, divulgado em 2018. Entre os principais problemas identificados estão privação de liberdade, castigos, punições, indícios de tortura, trabalhos forçados e sem remuneração – conhecidos como laborterapia –, e violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual.
Mesmo com os diversos alertas, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou, em julho de 2019, a lei das comunidades terapêuticas, retirando recursos da saúde para colocá-los na assistência social, área em que elas estão classificadas. No entanto, prometem tratamento e, muitas vezes, “cura” para dependentes químicos, sem receber qualquer fiscalização da vigilância em saúde.
O médico psiquiatra e artista Flávio Falcone, conhecido como o palhaço da cracolândia, critica a política proibicionista e punitivista em relação ao consumo de drogas, que, segundo ele, reforça a estratégia manicomial contra dependentes químicos. “As comunidades terapêuticas são os novos manicômios”, afirma.
Falcone, que já atuou em programas de atendimento e acolhimento a dependentes químicos em São Paulo, ressalta que, por lei, as comunidades terapêuticas são de assistência, mas, na prática, fazem tratamento. “É comum uma pessoa ter passado por 20 ou 25 internações em comunidades, mas continuam na cracolândia”, afirma.
Na avaliação do psiquiatra, o modelo de internação não tem êxito porque reforça o foco proibicionista e punitivista. “A oferta de tratamento é sempre na visão de abstinência e quem não a consegue é punido pela segurança pública, com repressão policial e violação de direitos humanos. Vejo isso acontecer cotidianamente na região”, lamenta.
De acordo com Falcone, a estratégia proibicionista e punitivista e o foco na abstinência também se sustentam na perversão do conceito de redução de danos, dizendo que é caminho para a abstinência, sendo que é um dos recursos disponíveis para tratamento das pessoas.
“A redução de danos é um conceito, não tem uma fórmula nem protocolo que vai dar certo para todas as pessoas. Precisa de projeto terapêutico singular entendendo que cada pessoa tem um processo”, explica o psiquiatra, ressaltando que esse conceito é uma das bases do tratamento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que está em risco.
Michel Temer iniciou processo de desmonte contrário à luta antimanicomial
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ameaça emplacar um desmonte da Política Nacional de Saúde Mental, em um esforço para cortar mais verbas da saúde e que começou antes de seu mandato, no governo Michel Temer (MDB). Pesquisadores analisaram os efeitos das primeiras mudanças que pretendiam vencer a luta antimanicomial no Brasil.
No trabalho intitulado Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019, os pesquisadores Nelson Cruz, Renata Gonçalves e Pedro Delgado constataram que o governo Temer iniciou o processo de desmonte.
Eles analisaram 14 documentos – portarias, resoluções, nota técnica e decreto – publicados entre outubro de 2016 e abril de 2019, que, afirmam, indicam “os primeiros efeitos das mudanças na rede de atenção psicossocial, como o incentivo à internação psiquiátrica e ao financiamento de comunidades terapêuticas”. Essas ações, ressaltam, são fundamentadas em abordagem proibicionista de questões sobre o uso de álcool e outras drogas e, ainda, confirmam “tendência de estagnação do ritmo de implantação de serviços de base comunitária”.
De 2003 a 2016, houve a implementação da Política Nacional de Saúde Mental, que rendeu ao país o reconhecimento da comunidade internacional. Nesse período, houve destinação de recursos para serviços de natureza extra-hospitalar, fechamento e descredenciamento significativo de leitos e hospitais psiquiátricos e publicação de portarias que visaram à expansão dos serviços e ações.
Na última década, também houve significativos avanços na construção da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), além da reestruturação da assistência psiquiátrica e atenção ao usuário de álcool e outras drogas.
Especialistas internacionais chegaram a reconhecer resultados práticos da política de saúde mental. Ela ficou conhecida, principalmente, por extinguir “depósitos de loucos e indesejáveis” e propor a inclusão das pessoas com doença mental na comunidade. Elas recebiam os cuidados adequados nos três níveis de atenção do SUS (básica, média e alta complexidade), por meio de equipes interdisciplinares que retiravam o foco da doença e do médico, priorizando a pessoa com doença mental e seu tratamento, sem a obrigatoriedade de exclusão da comunidade.
RPD || Entrevista Especial - Marcos Nobre: 'Se Bolsonaro se reeleger, acabou a democracia no país'
Jair Bolsonaro “tenta destruir as instituições por dentro”, avalia o cientista social Marcos Nobre. Para ele, é preciso que as forças democráticas de direita, de centro e de esquerda se unam em torno da queda do presidente
Por Caetano Araujo e Vinícius Müller
O projeto autoritário do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) para o Brasil é de longo prazo e se a oposição insistir na estratégia de fidelizar parcelas separadas do eleitorado, sem pensar numa grande coalizão de forças, será impossível derrotar o atual presidente em 2022, avalia o professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Marcos Nobre, entrevistado especial desta 27a edição da Revista Política Democrática Online (RPD).
Para Marcos Nobre, Bolsonaro governa para um terço do eleitorado, no qual se apoia para não sofrer impeachment e chegar ao segundo turno das próximas eleições. E faz um alerta: "Nós temos que conversar com esse eleitorado e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário votar em uma candidatura do campo democrático", acredita.
Marcos Nobre, entre outros, publicou, pela Companhia das Letras, Imobilismo em movimento. Da redemocratização ao governo Dilma (2013) e, pela Todavia, Como nasce o novo. Experiência e diagnóstico de tempo na Fenomenologia do espírito de Hegel (2018) e Ponto-final. A guerra de Bolsonaro contra a democracia (2020). A seguir, os principais trechos da entrevista.
Revista Política Democrática Online (RPD) - Como interpretar a mudança de comportamento do governo após a reação do Supremo Tribunal Federal às ameaças de manifestantes governistas radicais?
Marcos Nobre (MN): Acho importante ressaltar, em primeiro lugar, que Bolsonaro fez apenas um recuo tático, o projeto autoritário, vale dizer, o confronto dele com as instituições, continua em curso. O que aconteceu foi que uma parte do sistema político decidiu apoiar um projeto de extrema direita. O que se chama de Centrão são muitos, como ficou claro nas eleições municipais e, agora, no processo conducente à eleição das mesas da Câmara e do Senado. Ainda não conhecemos o resultado dessa disputa, mas sabemos que o sistema político se dividiu em três: um bloco de apoio ao governo, ou seja, um bloco que decidiu apoiar um presidente de extrema direita; um outro bloco que está à direita, que chamaria de direita tradicional, que também se organizou de maneira independente do governo Bolsonaro; e existe a esquerda. Qual é o elemento fundamental da situação atual? É que nós temos um presidente abertamente golpista, com um projeto autoritário. Aí diz-se: "Não, mas as instituições estão segurando". Peço para se fazer uma única comparação, entre o Brasil de 2020 ou de 2021 com a Hungria de 2012 e 2013. Ou seja, naquele momento de primeiro mandato de Orbán, quantas pessoas achavam que a democracia estivesse de fato em risco na Hungria? Temos de ter clareza quanto à gravidade do momento.
RPD - Na conjuntura presente, quais são as tarefas imediatas das forças democráticas de oposição?
MN: Quando se tem uma situação como a nossa, o que se pode fazer é uma frente ampla em defesa da democracia, não existe outra saída. A não ser que se continue a subestimar, tanto o projeto autoritário do Bolsonaro, como a capacidade dele de se reeleger em 2022. Se todo mundo achar que as instituições estão funcionando, que a democracia não está em risco e que se o Bolsonaro se reeleger o Brasil vai continuar democrático, aí realmente não precisa fazer nada. O que tem que ser feito é um acordo para isolar Bolsonaro, ou seja, as forças democráticas precisam sentar e fazer um acordo em torno de coisas muito básicas. Não vai poder mais acontecer o que aconteceu no Brasil desde a eleição de 2014, ou seja, não se pode dizer que a eleição foi fraudulenta, não se pode dar golpe, não se pode dar rasteira no adversário e tentar jogar o adversário para fora do campo político, de fora do sistema político. Isso tem reflexo eleitoral? Tem. Por quê? Terá de ser um acordo de reconstrução institucional, um pacto de convivência democrática entre as forças políticas. Qualquer que seja a candidatura que passar para o segundo, terá de contar com o apoio da integralidade do campo democrático, não importando se é da esquerda ou da direita.
É um projeto difícil, mas a alternativa é perder a democracia. Basta olhar para a eleição americana. O Trump tentou – e continuou tentando – dar golpe, ao insistir em manipular os resultados do pleito. Agora, vamos transferir isso para o Brasil. O Bolsonaro vai querer sair do poder tranquilamente? Ele sabe que o risco dele, da família e dele próprio irem para a cadeia é muito alto. Então ele não tem nada a perder. Se ele se reeleger, acabou a democracia no país. O primeiro mandato é de destruição de instituições, e o segundo será de implantação do autoritarismo, como o fez Viktor Orban, na Hungria. Esse é que é o script autoritário do populismo da década de 2010.
RPD: Quais os principais obstáculos à cooperação entre as diversas forças e oposição e como superá-los?
MN: Primeira coisa: o exemplo dos Estados Unidos não nos serve. Ou seja, nós não teremos uma candidatura única do campo democrático em 2022. Então não nos serve esse exemplo.
Mas há elementos que permitem pensar uma saída. Um sinal disso é o que se está insinuando na organização de forças para a escolha do novo presidente da Câmara dos Deputados. Uma direita tradicional se descolou da extrema direita e propôs à esquerda um acordo em torno da presidência, isso é muito importante. Não é pouco importante. Então talvez se possa pensar no seguinte. A pergunta central tem de ser formulada com clareza e a resposta dada com consciência: É grave risco para a democracia a reeleição de Bolsonaro? È preciso com que o campo democrático repactue entre si a democracia brasileira? Vejam bem; não é uma discussão a ser enfrentado no nível dos partidos, do sistema político, mas conduzida desde baixo. Caso contrário, a pretendida repactuação ocorrerá simplesmente no topo do sistema político, nas cúpulas.
Na democracia, só existem adversários, mas Bolsonaro é um inimigo, porque ele é um inimigo da democracia. Então como fazer para que essas forças aceitem se sentar para negociar? Primeira coisa, muita política, precisam conversar. Diante da atual correlação de forças, a julgar pelos resultados recentes das eleições municipais, o projeto de esquerda – se é que a esquerda tem um projeto – consegue se impor? Não é provável, a correlação de forças lhe foi claramente desfavorável, tendo alcançado algo como 25% dos votos.
Mas lembremos que um projeto de esquerda precisa da democracia, é um oxigênio sem o qual não dá para construir seu projeto político. A conversa à que me referi como caminho obrigatório para a repactuação tanto almejada terá, portanto, de consolidar a visão de que a democracia é também objetivo maior para a direita tradicional. Somente assim será possível construir algo como uma frente ampla comprometendo os campos da direita democrática e da esquerda democrática.
A direita democrática não pode atrapalhar a reconstrução da esquerda, assim como a esquerda não pode atrapalhar a reconstrução da direita, dessa direita democrática, não da extrema direita, que evidentemente, está fora da mesa de negociação. Esse é que é o ponto: não só fazer política, mas também discutir política, porque isso é que desapareceu. Não se pode mais ficar nesse joguinho de lacrar em rede, "Você me deu um golpe, não converso com você", "Você votou no Bolsonaro, não converso com você", pois isso é o levará exatamente à reeleição do Bolsonaro. É importante empurrar os partidos na direção de discutir política como gente grande, sem o quê não há saída.
Volto a mencionar o que estamos presenciando na disputa em torno do novo presidente da Câmara, para mim sinais alentadores de que, de alguma forma, já se vem insinuado uma frente ampla democrática no Congresso. Se não, como explicar a convergência de esforços que viabilizou a aprovação do FUNDEB e do auxílio emergencial? Isso é a frente democrática na prática. Para mim, pouco importa se a direita tradicional resolve fazer suas declarações de amor à democracia, por pragmatismo, ao não ter conseguido dirigir e ocupar o governo Bolsonaro, como achava que pudesse. Isso para mim pouco importa. O que importa é que demonstrou que está realmente preocupada com o que pode acontecer com uma reeleição do Bolsonaro, isso para mim está claro, e abandonou o barco do governismo.
A esquerda, por outro lado, considera necessário o impeachment, na avaliação de que não é possível deixar Bolsonaro chegar até 22, no exercício do mandato, porque concorreria com mais poder. Se a direita democrática vai topar um impeachment ou não, vai depender da esquerda convencer a sociedade. Esta, sim, é uma tarefa da esquerda - convencer a sociedade da necessidade do impeachment. Por quê? Porque as condições para o impeachment são muito exigentes. Será preciso subtrair apoio social do Bolsonaro, muito. E sabemos que a aprovação do governo Bolsonaro é altíssima, 37%, algo enorme, sobretudo depois de tudo o que aconteceu. Se formos capazes de convencer a sociedade dessa necessidade, se conseguirmos retirar apoio ao governo Bolsonaro, se conseguirmos fazer pressão sobre o Congresso, se conseguirmos convencer a direita democrática das vantagens do impeachment, teremos feito a coisa mais importante para a democracia brasileira, a mais importante de todas.
RPD: Estas dificuldades em mantermos um ambiente democrático não revelam, na verdade, um problema estrutural da sociedade brasileira? A ascensão de Bolsonaro não é fruto de uma combinação entre uma conjuntura - que vem sendo alimentada desde os anos 90 e que foi potencializada a partir de 2013 - , e traços estruturais e mais enraizados da sociedade brasileira?
MN: Para mim, o marco temporal é 2013, porque, em 2013, ficou claro que a democracia brasileira, tal como estava funcionando até ali, não estava mais funcionando para a população brasileira. Qual foi a resposta do sistema político a junho de 2013? Blindar-se. A resposta do sistema político foi lamentável, porque foi uma resposta de se blindar, de se fechar em si mesmo, colocando-se em um modo de autodefesa, de sobrevivência, e, com isso, permitindo que essa energia social, já dispersa, solta na rua, não fosse canalizada para o sistema político. E, não sendo canalizada para o sistema político, para onde foi, então? Foi, de um lado, para a Marielle Franco, para um monte de mandatos coletivos, para novas intervenções. Mas foi também, de outro lado, para a Lava Jato, para maneiras de vampirizar essa energia social difusa que vendiam a ilusão de que poderiam fazer a reforma que o sistema político se recusou a fazer. Foi uma vertente que favoreceu também Bolsonaro, que aproveitou para proclamar: ‘Esse sistema nunca vai se autorreformar, então você tem que votar em alguém que é contra o sistema, e o único que é contra o sistema sou eu’. Esse populismo antiestablishment é característico da extrema direita dos anos 2010.
RPD: Por que Bolsonaro, com seus ataques à democracia e às instituições e mesmo com uma conjuntura desfavorável - pandemia e crise econômica - mantém sua popularidade?
MN: Vamos fazer uma diferenciação no caso do Bolsonaro. É difícil estimar qual que é o núcleo duro de apoio ao Bolsonaro, é difícil. Mas é alguma coisa entre 12 e 15% do eleitorado. Estamos falando de uma coisa enorme, cerca de 20 milhões de votantes no núcleo duro do Bolsonaro. Agora, para chegar a 37%, faltam ainda 22%. Esses 22% não pertencem a esse núcleo autoritário do Bolsonaro, embora também comprem a história do antissistema. O Bolsonaro continua sendo, como presidente, contra o sistema, ele continua se colocando como outsider, e nós continuamos tratando o Bolsonaro como se ele fosse de fato um outsider. E isso é extraordinário, é a hegemonia total, a vitória total do Bolsonaro no campo cultural, se a gente quiser usar a expressão antiga. É isso, ele destrói as instituições porque as instituições devem ser destruídas porque elas são injustas. E ele tem apoio por isso.
Então o que a gente, como democratas, temos que fazer? Temos que conversar com esse eleitorado, esses 22%, que apoiam o Bolsonaro, mas que não pertencem ao núcleo duro, e convencê-los de que é necessário levar Bolsonaro ao impeachment. Se não for possível o impeachment, em convencê-los de que é necessário, em 2022, votar em uma candidatura do campo democrático. Essa é a nossa tarefa política. Porque se a gente considerar que 37% são autoritários, então esquece, não tem mais saída. A tática do Bolsonaro sempre foi de governar para um terço, que é esse um terço do eleitorado que é claramente antissistema. Que vota em quem for antiestablishment, e como eles não têm alternativa, eles ficam com o Bolsonaro, porque não apareceu nenhuma alternativa. Então o Bolsonaro decidiu: "Eu vou governar para esse um terço, eu não vou governar para a maioria". Isso é uma tática, e por que é um terço? Porque com um terço você continua não dando maioria e, portanto, você convence todo mundo de que você é antissistema mesmo, porque você não consegue ter o apoio da maioria, então você só pode ser antissistema, certo? Segundo, você consegue com isso uma vaga no segundo turno em 2022 com um terço, e você tem um seguro anti-impeachment. Você tem as três coisas. Isso é muito relevante para entender como o Bolsonaro funciona. Sem entender bem como o Bolsonaro funciona, o campo democrático não vai saber onde tem que bater, porque precisa ter tática, precisa ter estratégia muito clara, porque se não nós vamos perder. E vamos perder feio.
RPD || Sérgio C. Buarque: Quando a tormenta passar
Manutenção do Teto dos Gastos e equilíbrio fiscal em 2021 serão fundamentais para o país em 2021. Vacinação da população é condição fundamental para a reanimação da economia, avalia Sérgio C. Buarque
A tempestade sanitária e econômica que sacudiu o mundo e o Brasil em 2020 ainda não passou. Nos últimos dias do ano, coincidindo com nova onda da Covid-19, vários países, incluindo alguns da América Latina, começaram a vacinação em massa da população, o que deverá superar o principal determinante da forte retração da economia mundial. Depois de uma queda de 4,4% do PIB mundial no ano que se encerra (estimativa do FMI), tudo indica que, em 2021, haverá recuperação moderada da economia mundial e do comércio global (o FMI projeta crescimento de 5,2%, arrastado pela China). Se confirmado o êxito das vacinas, a tormenta da pandemia deixará de travar a economia mundial ainda no primeiro semestre. E o mundo tem mais uma razão para respirar aliviado em 2021: a estupidez sairá da Casa Branca com a posse do democrata Joe Biden que promete retomar a cooperação internacional e liderar iniciativas de redução da emissão de gases de efeito estufa.
Com um cenário internacional favorável, o Brasil está muito atrasado na vacinação da população, condicionante fundamental da reanimação da economia. No meio de uma possível outra onda de propagação do vírus, impondo novas medidas de isolamento social, os brasileiros observam perplexos a disputa política contaminada pela ideologia obscurantista do presidente da República, deixando o Brasil despreparado para uma rápida e abrangente campanha de vacinação. No primeiro semestre de 2021, a vacina contra o Covid-19 deve alcançar apenas parcela reduzida da população, profissionais de saúde, idosos e pessoal de alguns serviços públicos essenciais. O vírus vai continuar circulando e matando brasileiros forçando algum isolamento social, enquanto a vacinação não avançar em larga escala.
A persistência da crise sanitária no primeiro semestre deve demandar ainda ações emergenciais na economia e na proteção da população vulnerável. Mas o pesado fardo econômico e fiscal herdado de 2020 (desmantelo das finanças públicas e alto endividamento) não deixa folga para ampliação de gastos. O ano começa com uma dívida pública perto de 100% do PIB, concentrada em títulos de curto prazo (43% com vencimento em 12 meses e 65,5% em até três anos) elevando os juros da rolagem para cerca de 7% ao ano (3,5 vezes a Selic). Por enquanto, o endividamento tem sido compensado pela da taxa básica de juros reais (Selic) negativa, à qual está indexada cerca de 36% dos títulos da dívida.
A se confirmar a lentidão no processo de vacinação, o desempenho da economia brasileira em 2021 dependerá da forma como o governo lidar com as restrições fiscais e sua capacidade de aprovação da PEC Emergencial e da Reforma Administrativa, que ajudariam a conter a inércia de crescimento das despesas primárias. A eventual suspensão do auxílio emergencial em 2021 funciona como trava na retomada do crescimento econômico depois de uma profunda recessão e acentua a crise social, especialmente no primeiro semestre convivendo ainda com a pandemia. Mas sua manutenção (ou a criação da Renda Cidadã) ameaça estourar o Teto de Gastos, provocando novo salto no endividamento público e o desequilíbrio completo das contas públicas, acendendo o alerta de alto risco de insolvência.
A orientação de Bolsonaro nesta encruzilhada política continua incerta. A intuição populista do presidente não aceita a queda de sua aprovação com o fim do “dinheiro na veia da população” (segundo sua expressão), o que é reforçado pela pressão do Centrão, sua base política no Congresso, sempre ávido pela abertura da torneira do Tesouro Nacional. A expansão dos gastos poderia estimular o crescimento no primeiro semestre (apesar da pandemia) ao custo de forte desajuste macroeconômico que comprometeria a expansão no segundo semestre, quando se aceleraria a vacinação. Em todo caso, a proposta orçamentária para 2021, que estima déficit primário de R$ 247 bilhões, não contempla o auxílio emergencial nem o lançamento do programa Renda Cidadã.
Para escapar da escolha entre um perigoso expansionismo e um ajuste fiscal contracionista, será necessário aprovar as reformas, que embora não gerem resultados imediatos, sinalizam para a manutenção do Teto dos Gastos e uma trajetória de equilíbrio fiscal. A recuperação da economia mundial em 2021 cria oportunidades para o Brasil. Mas dificilmente o país alcançará o ritmo das nações emergentes por conta do atraso na vacinação e da profundidade da crise fiscal, combinação perversa que modera o potencial de crescimento da economia, mesmo saindo de uma profunda recessão.
*Economista, com mestrado em sociologia, professor aposentado da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local.
RPD || Paulo Baía: O Brasil não conhece o Brasil
Brasil vive à beira do precipício como quem tenta fazer uma travessia em cima de uma corda bamba, à espera de um milagre, independente de uma política governamental, critica Paulo Baía
Não, o Brasil não quebrou. Milhões de pessoas todos os dias acordam sem nada para comer. Sem um tostão no bolso, vão para as ruas de nossas cidades com o intuito de "se virar". A novidade dos últimos tempos é a ideia de que cada cidadão deve vir-a-ser um empreendedor com garantia de sucesso e estabilidade num padrão de sucesso dentro da lógica do mercado. O qual existe e funciona para o 1% da população brasileira que permanece no mesmo patamar em qualquer crise. Então, na atualidade, existem espalhados por todos os cantos do país os "empreendedores" de si mesmo. O que existe na realidade são biscateiros, camelôs, vendedores de doces em semáforos, procurando ganhar algo para o sustento e que lhes traga alguma condição de subsistência. Outros, mais aquinhoados na discrepância de nossa profunda desigualdade de renda e social, são trabalhadores aviltados pelas plataformas digitais com seus empregos ainda mais precarizados, dentro de uma lógica de deformidades trabalhistas aprovadas e que se tornaram recorrentes nos últimos quatro anos.
O Brasil está à beira do precipício como quem tenta fazer uma travessia em cima de uma corda bamba, em que cada um que se vire por si próprio, independente de uma política governamental. Vivemos ao Deus dará, sem imaginar acreditar em falsos profetas à espera de um milagre, a não ser os que acreditam no mito, que não saberemos até quando durará após o fim do auxílio emergencial. Afinal, para o Presidente da República, a pandemia sequer existiu, foi fabricada por mentes doentias que tinham a missão única de conspirar para derrubá-lo e impedir que seu governo fosse bem-sucedido.
As redes de proteção social do Estado brasileiro foram detonadas por um Parlamento que roda, roda, e a cada eleição permanece preso a seus próprios negócios e interesses. E, no caso atual, em conluio com um Poder Executivo subserviente ao 1% mais rico da população, que não pode perder em nenhuma situação, nem mesmo diante de uma peste mundial.
Não somos um país quebrado. Temos uma produtividade espantosa da maioria dos 220 milhões de habitantes. Levantem suas cabeças e prestem atenção às ruas, principalmente olhem para as nossas periferias. A produção de redes de proteção, de assistência, de criatividade, tem feito com que a roda gire e os faça existir numa afirmação permanente da vida. De forma independente dos 'nãos' em excesso, vindos tanto do poder legislativo como do executivo, com suas políticas que atuam para retirar e criar barreiras em que a população nunca sai do mesmo lugar em que deve permanecer – à margem. Contudo, debaixo da terra existe vida pulsando e criando novas possibilidades existenciais, que marcam novas formas de existir, para além de uma ideia de resistência. Pois a atuação dos líderes comunitários, das redes de artistas e de pensadores dentro das comunidades busca soluções concretas, com o desejo de reafirmar a vida e não lutar contra uma correnteza que deseja única e exclusivamente afogá-los.
Enquanto o 1% da população brasileira permanece sem dividir o eterno bolo, que só cresce em suas barrigas narcísicas, as favelas criaram grupos de apoio em que, através de uma rede de solidariedade, conseguem se reinventar e criar condições para atravessar as dificuldades. Existem diversas ações em andamento, mas gostaria de ressaltar a ação humanitária Mães da Favela. De acordo com pesquisa realizada pelo Data Favela e pelo Instituto Locomotiva, existem 5,2 no país milhões de mães faveladas. Deste número, em torno de 72% delas afirmam que, com a ausência de renda decorrente do isolamento, terão problemas na alimentação e, obviamente, não possuem poupança. E oito a cada 10 dizem que a renda já caiu, e as despesas aumentaram, com os filhos em casa sem ir às escolas. Com isso, criaram o vale-mãe - em que elas recebem 120 reais com pagamentos sendo feitos pelo celular através de uma empresa. Atualmente, a ação tem uma página na rede que se chama “mães da favela on”, denominada Fundo Solidário Covid-19 para as Mães da Favela, que já arrecadou R$ 169.120.680,00. Existem 65 mil pessoas mobilizadas para a entrega das cestas com 5 mil favelas atendidas, sendo cerca de 1.379.794 famílias atendidas e 5.519.056 pessoas impactadas, perfazendo uma média de 4 pessoas por família, num total de 18.227,552 toneladas de alimentos, média de 13,5 kg por cesta. De fato, a música está certa – O Brasil não conhece o Brasil.
*Sociólogo e cientista político.