democracia

Extrema direita mundial estreita laços com Governo Bolsonaro

Após troca de comando nos EUA, Brasil ganha centralidade entre nações que pregam contra o que chamam de comunismo e defendem pautas ultraconservadoras. País emula modelo húngaro de controle

A deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF) exibiu orgulhosa uma foto com a deputada alemã Beatriz von Storch, do partido de extrema direita AfD. “Hj recebi a deputada Beatrix von Storch, do Partido Alternativa para Alemanha [AfS], o maior partido conservador daquele país. Conservadores do mundo se unindo p/ defender valores cristãos e a família”, escreveu a deputada em sua rede social. A foto causou choque, especialmente pelo fato de Storch ser neta de Lutz Graf von Krosigk, ministro de Finanças do Governo nazista de Adolph Hitler. Nascido em 2013, o partido AfD é alvo de investigação do serviço secreto alemão por conexões com atos extremistas no país.

Não foi a primeira demonstração de proximidade da base de Bolsonaro com grupos extremistas. No final do ano passado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) promoveu uma live com o líder do Vox, Santiago Abascal. Um ano antes, o deputado esteve na Hungria com o premiê Viktor Orbán, do partido Fidesz. Em comum entre a AfD, o Vox e o Fidesz, a busca por pautas conservadoras radicais, a xenofobia, a hostilização à esquerda e à imprensa.


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O Brasil virou terreno fértil para expandir suas ideias sob o governo Bolsonaro, que ainda traz um elemento extra: após o fim do Governo de Donald Trump nos Estados Unidos, a ofensiva ultraconservadora colocou no Brasil de Jair Bolsonaro todas as suas fichas, considerado o país com maior influência de consolidar a agenda ultraconservadora. O papel do Governo brasileiro ficou claro em janeiro de 2021, quando funcionários de alto escalão de Trump enviaram mensagens a outros países informando que projetos que tinham sido conduzidos pela Casa Branca seriam assumido a partir daquele momento por Bolsonaro. Seria do presidente brasileiro a função de liderar a aliança internacional ultraconservadora criada para influenciar as decisões da ONU, OMS e outros organismos. A informação faz parte de um e-mail enviado a colaboradores por Valerie Huber, a pessoa escolhida pela Casa Branca no governo Trump para tratar de temas de saúde da mulher. Numa mensagem de 20 de janeiro de 2021 obtida pelo EL PAÍS, Huber anuncia que o Brasil, gentilmente, ofereceu-se para coordenar essa “coalizão histórica”.

A coalizão de cerca de 30 países ganhou o nome de Declaração de Genebra e se transformou numa referência das alas mais radicais em movimentos religiosos. “Países que desejam se unir à Declaração podem fazer isso contatando a embaixada do Brasil nos EUA, por mais detalhes”, explicou. Huber foi a pessoa que arquitetou a coalizão e, ao longo dos últimos meses, costurou uma aproximação importante com a pasta de Damares Alves.

O Governo Bolsonaro não é o único neste movimento de manter viva a agenda de extrema direita no mundo. Mas, tornou-se chave para o fortalecimento desse grupo. De fato, a ausência de Trump não desfez a coordenação internacional. Nos últimos meses e em plena pandemia, membros do Governo brasileiro foram convidados de destaque em encontros fechados com representantes de ONGs cristãs americanas, com grupos de lobby anti-LGBTe antiaborto, além de reuniões com partidos como o Vox e outros grupos de extrema-direita.

Para diplomatas estrangeiros, o que se vê na atuação do Brasil não é nada mais que um roteiro já desenhado e implementado em países menores, mas que tiveram já anos de governos ultraconservadores. Agora, a meta é sua internacionalização. “Há um script e ele é assustador”, afirmou um negociador da UE, na condição de anonimato. O script é a transformação dos governos da Hungria e da Polônia que, ao longo de uma década, conseguiram desmontar uma democracia liberal e instaurar uma nova base ultraconservadora.

A costura dessa aliança começou a ganhar forma já nos primeiros dias do governo Bolsonaro. De forma inédita, o Brasil enviou ao menos seis missões em menos de um ano em 2019, com agendas que incluíam a promessa de uma coordenação na luta contra a perseguição sofrida por cristãos, a defesa da família e a necessidade de proteger a “soberania”. Não faltou ainda um encontro entre o então secretário da Cultura de Bolsonaro, Roberto Alvim, com equipes do ministério da Cultura da Hungria. Alvim acabou caindo diante de um polêmico vídeo no qual ele usou referências nazistas.

Longe dos encontros ministeriais, reuniões informais, conferências fechadas e um intercâmbio intenso também foram estabelecidos entre membros do segundo escalão do governo brasileiro e húngaro. Não faltou nem mesmo uma visita de Eduardo Bolsonaro ao primeiro-ministro em Budapeste. A frequência dos encontros se contrasta ainda mais diante da constatação de que, em toda a era republicana, o Brasil jamais havia enviado uma missão com um chanceler para Budapeste.

O primeiro-ministro Húngaro Viktor Orbán, em abril de 2018.
O primeiro-ministro Húngaro Viktor Orbán, em abril de 2018. DARKO VOJINOVIC / AP

Modelo Orbán
As coincidências entre a agenda internacional de Bolsonaro e suas ações no Brasil chamam a atenção por sua semelhança em relação aos projetos que, ao longo de anos, foram implementados por Viktor Orbán. O húngaro assumiu o poder em 2010. Mas, durante uma década, o que ocorreu foi o esvaziamento da democracia e um abalo nos pilares da liberdade. Hoje, Orbán controla a Corte Constitucional, o Ministério Público e dois terços do Parlamento, além da imprensa, clubes de futebol, as artes, os espaços públicos e universidades.

Com eleições se aproximando em 2022 e com a oposição tentando criar pela primeira vez uma frente única para derrotá-lo, o primeiro-ministro ampliou sua radicalização e o uso da guerra cultural como forma de reagir à pressão. No Parlamento, leis foram aprovadas nas últimas semanas tornando a adoção de crianças por casais homossexuais um ato praticamente impossível. Ele ainda modificou normas que acabaram impedindo que menores de 18 anos tenham acesso a qualquer tipo de material que possa fazer alusão ao movimento LGBT. Livros com tais conteúdos são obrigados a trazer um alerta em suas capas e a publicidade de qualquer empresa terá de seguir regras sobre a divulgação de conteúdo.

Em seu projeto de destruição da democracia num caminho similar ao que adota Bolsonaro hoje, Orbán foi em busca da construção de uma Justiça que fosse leal a ele e sua ideologia. Se uma primeira tentativa de reforma do Judiciário esbarrou em protestos da UE, ele agora modifica de forma mais sutil, transformando o sistema de pontos pelos quais os candidatos são julgados para ganhar vagas de juizes. Quem passou por funções no governo, segundo a nova lei, ganha pontos extras. Resultado: o fim de qualquer investigação sobre corrupção no governo e entre seus aliados e o respaldo legal às mudanças de leis sobre o conceito de família, religião, imigração e do próprio sistema democrático.

Outro foco dos ataques de Orbán tem sido as ONGs, ativistas ou qualquer movimento que questione de forma dura o governo, outra bandeira também adotada pelo governo Bolsonaro. Uma das formas de intimidação em Budapeste sobre os movimentos sociais foi a proliferação de controles de auditoria e de impostos, principalmente entre 2014 e 2016. Além disso, todas as entidades que recebem algum tipo de recursos do exterior passaram a ser registadas por “agentes externos”. Apesar de o país ter cerca de 60.000 ONGs, elas passaram a ser excluídas do processo de elaboração de políticas públicas.

Assim como Bolsonaro argumenta que o único termômetro da representatividade da democracia é a eleição, o governo Orbán usa exatamente esse argumento para justificar que organizações da sociedade civil não têm mandato para atuar na formulação de políticas públicas. As coincidências na forma de agir entre os dois governos também ocorrem no tratamento da imprensa. Tanto em Brasília como em Budapeste, os meios de comunicação são considerados como uma força a ser neutralizada.

Por anos, aliados do governo passaram a comprar jornais locais, rádios e outros canais. Quando praticamente toda a imprensa estava nas mãos desses empresários, eles decidiram doar seus impérios para uma obscura fundação, em 2018. No total, 400 meios de comunicação estariam sob uma só direção. Uma semana depois, Orbán assinou um decreto isentando essa fusão de qualquer controle externo, numa centralização sem precedentes. A coordenação entre jornais regionais, revistas, rádios e TVs passou a ser completa, com títulos parecidos para suas manchetes, mesmas imagens e argumentos.

Enquanto financia quem o apoia, o governo “leva à fome” os meios independentes. Empresas que fazem publicidade em jornais contrários ao governo temem perder contratos públicos e o governo passou a não mais responder aos emails e pedidos de informação por parte desses jornais. Enquanto isso, jornalistas são assediados e a oposição passou a ser praticamente vetada de todos os debates nas televisões.

O mesmo movimento de controle também passou pela academia de ciência, dirigidas por leais seguidores do partido de Orbán. Tais estruturas passaram a concentrar grande parte do dinheiro do Estado, com professores com salários mais elevados, esvaziamento dos cursos de Ciências Humanas, o controle das universidades e, na prática, o fim de suas autonomias.

A guerra cultural ainda teve como objetivo reescrever a história do país e estabelecer o comando de teatros e museus para que a ideologia de extrema direita prevalecesse nas peças escolhidas, nas mostras e até mesmo na programação da Opera Nacional. Com uma diferença de dez anos em relação ao governo Bolsonaro, a Hungria serve de modelo de uma guinada iliberal. E que agora é assumida em parte pelo Brasil para influenciar na agenda internacional.


Vera Magalhães: São todos cúmplices

Não resta espaço para dúvida de que o ministro da Defesa, general Braga Netto, mandou o recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ameaçando caso o voto impresso não fosse aprovado.

Lira trucou a ameaça e, como o governo Jair Bolsonaro tem DNA golpista, mas é eminentemente composto de pessoas despreparadas e algo covardes, o presidente e seu general recolheram as ameaças, ao menos por ora, e o resultado foi que o PP e o Centrão avançaram algumas casas para tomar conta de tudo — se apossando de novo até de espaços dos militares.

Foi o Centrão que tirou o general Eduardo Pazuello da Saúde. Mantendo Roberto Dias, o assessor que o general e seu sub, o coronel Elcio Franco, não conseguiram demitir.

Agora é de novo um alto expoente do PP, seu presidente, Ciro Nogueira, que faz outro general pegar o quepe. Luiz Ramos, assim como Pazuello, verga a espinha e aceita ir para um ministério de menor importância.

O mesmo faz Paulo Guedes, ao bater continência para o capitão e para a ala política que já comanda a maior parte do Orçamento e aceitar perder um naco de seu “superministério” para acomodar outro demitido de luxo.

Para onde esses arranjos por baixo da mesa levam o Brasil? Para a esculhambação institucional e política a cada dia mais absoluta e para a constatação óbvia de que não temos um governo, mas uma bodega tocada à base de muita fisiologia, nenhum trabalho, zero planejamento e uma única ideia fixa: a reeleição cada vez mais difícil de alguém que nunca poderia presidir qualquer país.

Quem ameaçou, Braga Netto, e o aliado de quem foi ameaçado, Ciro Nogueira, dividirão a mesa às reuniões ministeriais como se nada tivesse acontecido. O resto das autoridades, aquelas a quem sempre cobro neste espaço, seguirão fingindo acreditar nos desmentidos frouxos, sem se dar conta de que, de bravata em bravata, vai-se corroendo a democracia a partir de dentro.

Está claro que Braga Netto não fala em nome do conjunto das Forças Armadas. Mas também resta evidente que a quantidade de golpistas que ousam dizer suas ideias em voz alta é maior hoje no meio militar que em 2018. Isso já é altamente nocivo para o ambiente político e institucional brasileiro. E nos cobrará um preço enorme.

Também é evidente que Lira, Nogueira e os demais “progressistas” — ah, as ironias das siglas partidárias — não vão com Bolsonaro para uma tentativa canhestra de invasão do Congresso, à Trump. Mas também é cristalino quanto ganharam poder e dinheiro do Orçamento, em múltiplas frentes, só para blindar o presidente e tentar ajudá-lo a se livrar da CPI da Covid e a emplacar seus nomes no Senado.

Além dos bilhões das emendas do relator, nome oficial do orçamento secreto cujo tesoureiro é Lira, agora há o fundão multiplicado. Será que Bolsonaro, agora que o PP deixou vazar a ameaça de Braga Netto e que Ciro Nogueira está de mudança para o Planalto, vai mesmo vetar a farra? Ainda mais diante da possibilidade de fusão de PSL, PP e DEM, partido que pode ser seu próprio destino numa cara campanha eleitoral no ano que vem? Difícil de acreditar nisso, hein?

Não espanta que Bolsonaro, diante desse cenário, declare seu amor filial ao Centrão. Nem mesmo surpreende que os militares, tirados por ele da caserna, comecem a demonstrar nostalgia da ditadura.

Mas chama muito a atenção o silêncio covarde dos que se diziam democratas, iam às ruas pedir o fim da corrupção — e agora se calam diante da escalada diária de mortes, ruína social e econômica e autoritarismo.

São industriais, integrantes do mercado, profissionais liberais e outros que apertaram 17 e agora não têm a coragem de admitir que elegeram o pior presidente do Brasil. São tão cúmplices quanto os fardados e o Centrão.


Jamil Chade: Brasil vive momento mais perigoso de sua democracia

O palco está montado para uma guerra suja. Irresponsável e nefasto, Bolsonaro deixou de flertar com o autoritarismo. Hoje, ele é o golpe

Teremos eleições em 2022? A mera existência de uma pergunta como essa em pleno século 21 é um dos sintomas mais dramáticos da ameaça que a democracia brasileira atravessa.

Ao longo dos últimos meses, governo, milícia digital e cúmplices de um movimento autoritário disseminaram dúvidas sobre a legitimidade das urnas no país, contradizendo auditorias nacionais e internacionais. O objetivo nunca foi o de construir um sistema mais sólido.

Mas, assim como toda a estratégia do bolsonarismo, a meta é a de minar a credibilidade e desmontar a confiança popular sobre as instituições.


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O projeto não é novo. A extrema-direita no Brasil iniciou os ataques contra a democracia ao colocar opositores, imprensa e sociedade civil como alvos de uma operação de destruição de reputações, além de borrar as fronteiras entre a Justiça e o Executivo.

Para esse grupo no poder, jamais houve um limite sobre o que era possível fazer para justificar a morte — inclusive no cadastro do SUS — de qualquer um que representasse um questionamento.

Ao disseminar mentiras como política pública, as autoridades buscaram retirar qualquer legitimidade dessas vozes.

Não faltaram ainda ofensivas para rever a história do Brasil, transformando o Golpe de 1964 em um ato a ser comemorado.

Enquanto isso ocorria, um avanço claro era feito para fechar qualquer tipo de canal para permitir a influência da sociedade civil na condução das direções do país. Operações para esvaziar a imprensa também passaram a ser recorrentes, com ataques verbais do presidente Jair Bolsonaro, a opacidade sobre decisões de estado, a lentidão de seus serviços de imprensa em dar respostas aos jornalistas e campanhas declaradas apelando à população para considerar a imprensa como inimigos.

Ao longo de dois anos e meio, o resultado foi a redução do espaço cívico, as dúvidas sobre informações apuradas de maneira profissional e a construção deliberada de um cenário de incertezas.

Agora, o palco está montado para uma guerra suja. Irresponsável e nefasto, Bolsonaro deixou de flertar com o autoritarismo. Hoje, ele é o golpe.

Não podemos esperar pelos tanques para agir. Eles talvez nunca virão. Mas a destruição da democracia, por um sistema sofisticado, está em curso.

Em 2022, viveremos a eleição mais importante de nossa jovem democracia. O que estará em jogo não é o destino de um candidato. Mas de uma nação. E, por isso, a luta diária por sua realização se confunde com a própria sobrevivência da liberdade. Não há mais tempo a perder.

Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.


Luiz Carlos Azedo: O general linha-dura

Braga Netto assumiu a Defesa para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições. O que consegue, porém, é desgastar as Forças Armadas

Desde que assumiu o Ministério da Defesa, o general Braga Netto tem atuado para alinhar as Forças Armadas aos objetivos políticos do presidente Jair Bolsonaro. Extrapola, porém, as atribuições do cargo, ao se pronunciar sobre temas políticos que não dizem respeito nem demandam o posicionamento do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Como na desequilibrada nota contra a CPI da Covid, que foi emitida em nome dos comandantes militares, sem que saio menos um deles, com certeza, tenha sido consultado. Mesmo quando nega ter pressionado o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a aprovar a proposta de voto impresso, sob risco de as eleições não serem realizadas, Braga Netto se manifesta sobre o assunto de forma inapropriada, pois é prerrogativa do Congresso decidir a questão sem se submeter a chantagens. Na prática, a nota reverbera de forma ambígua as suspeitas e ameaças do presidente Jair Bolsonaro ao pleito.

Pode ser que Braga Netto esteja confundindo os papéis de antigo ministro da Casa Civil, no qual desempenhava importantes missões políticas, e de ministro da Defesa, que não deve se imiscuir nas relações entre os Poderes. Em vez de se espelhar no figurino dos ex-ministros da Defesa Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar a ocupar um cargo criado para ser exercido por civis, e de seu antecessor Fernando Azevedo e Silva, que se recusou a desempenhar esse papel, Braga Netto vestiu a fantasia dos generais linha-dura que pontificaram durante o regime militar — até o presidente Ernesto Geisel demitir o general Sílvio Frota, seu ministro do Exército.

Apesar dos desmentidos à matéria publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, de autoria das jornalistas Vera Rosa e Andreza Matais, houve a conversa do interlocutor de Braga Netto com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não desmentiu a informação, tergiversou. Nos bastidores do Congresso, comenta-se que o portador do recado fora ninguém menos do que o senador Ciro Nogueira (PP-PI), que assumirá a Casa Civil no lugar do general Luiz Ramos. Mente-se muito na política, embora a mentira acabe quase sempre desnudada. Mente-se muito mais nos jogos de guerra. Os militares chamam isso de contrainformação, cujo objetivo é impedir ou dificultar o acesso à informação verdadeira, mediante, principalmente, a divulgação de informações diversionistas. O Palácio do Planalto trabalha nessa linha, não preza a transparência nem a informação de interesse público.

Por exemplo, o YouTube acaba de retirar do ar 15 lives do presidente Jair Bolsonaro sobre a pandemia da covid-19, por conterem informações falsas. O general Braga Netto, como chefe da Casa Civil e coordenador do governo no combate à pandemia, foi um dos construtores da narrativa negacionista e das desastradas ações do Executivo que defendiam o uso maciço da cloroquina e outros medicamentos ineficazes no combate ao coronavírus. Essa narrativa, até hoje, está presente nas redes sociais e somente fracassou porque o Brasil já registra 546 mil mortes pela doença. Mais cedo ou mais tarde, Braga Netto será chamado a depor na CPI do Senado, que investiga a atuação do Ministério da Saúde na pandemia, por sua atuação na Casa Civil.

Melar as eleições
A polêmica sobre o voto impresso é um case de contrainformação. A narrativa de Bolsonaro falseia a realidade com objetivo de melar as eleições de 2022, caso seja derrotado, como tentou o ex- presidente dos Estados Unidos Donald Trump, em quem se espelhou, ano ser derrotado pelo presidente Joe Biden. Quanto maior o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas de opinião e a desaprovação do governo, mais recrudescem os ataques de Bolsonaro à urna eletrônica, em que pese nunca ter apresentado provas de fraude na apuração das eleições de 2018, que afirma, fantasiosamente, ter ganhado no primeiro turno.

Braga Netto substituiu o general Fernando Azevedo para pressionar os demais Poderes e resgatar a tutela militar sobre as instituições republicanas. O que vem conseguindo, porém, é desgastar as Forças Armadas, como no episódio da não-punição do exministro da Saúde Eduardo Pazuello por ter participado e se manifestando no desfile de motociclistas bolsonaristas no Rio de Janeiro, mesmo estando na ativa. A politização das Forças Armadas e seu envolvimento na política em si é uma ameaça à democracia. O presidente Bolsonaro tenta cooptar militares da ativa para seu projeto autoritário ao requisitá-los para exercer funções civis no governo; de igual maneira, ao estimular pronunciamentos como o do ministro da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista.

Entretanto, não existe um ambiente favorável a um golpe de Estado no país, muito pelo contrário, cresce a campanha pelo impeachment. Por isso, a retórica do presidente da República contra a segurança da urna eletrônica e as pressões de Braga Netto para aprovação do voto impresso soam como uma espécie de déjà-vu político. Esse morde-assopra é uma tática conhecida de contrainformação, que os militares utilizam em tempos de guerra, para testar suas cadeias de comando e a capacidade de resistência do inimigo. Por essa razão, tanto o Judiciário quanto Congresso precisam exercer com firmeza suas prerrogativas constitucionais, entre as quais, decidir sobre o sistema de votação e limitar a presença de militares da ativa em cargos civis.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-general-linha-dura/

DW Brasil: Esquerda e independentes dominam Constituinte do Chile

Direita, que governa o país e concorreu com chapa única, sai como a grande perdedora da eleição para representantes que redigirão a nova Constituição e deve ter pouca influência no processo

A esquerda e chapas independentes, formadas por cidadãos que não são ligados a partidos políticos, devem garantir a maioria dos 155 assentos na Assembleia Constituinte, que irá redigir uma nova Carta Magna para substituir a atual, em vigor desde a ditadura de Augusto Pinochet.

Com mais de 96,2% dos votos apurados até a madrugada desta segunda-feira (17/05), os atuais resultados mostram que as duas listas que aglutinam os candidatos da esquerda devem ficar com 52 assentos, seguida pelos candidatos independentes, que alcançaram, juntos, 48 cadeiras. Já a lista unificada da direita obteve 38. Há ainda 17 assentos reservados a representantes de povos indígenas.

Analistas disseram que os partidos políticos tradicionais foram os grandes derrotados da eleição. Ao contrário do que as pesquisas previam e com um sistema de contagem proporcional que privilegia as grandes siglas políticas, os independentes alcançaram um resultado inédito.

Os independentes são sobretudo pessoas ligadas a diversas áreas sociais, como educação, justiça social, meio ambiente e feminismo. São figuras de fora da política que buscam canalizar as exigências dos cidadãos na crise social de 2019, e seu surgimento é visto por muitos especialistas como o início de um novo modelo de política cidadã e a certidão de óbito dos desacreditados partidos tradicionais. Muitos deles deverão se unir à esquerda para aprovar as leis da nova Constituição.

Essa foi a primeira vez que candidatos independentes puderam concorrer em eleições no Chile ao lado de partidos tradicionais. A votação da Constituinte também foi alvo inédito no país: em 200 anos de independência, o Chile teve três Cartas Magnas (1833, 1925 e 1980), mas nenhuma foi redigida por uma convenção de pessoas eleitas pelo voto popular.

“O desempenho das chapas independentes em termos de votos e cadeiras é uma grande surpresa, embora a maior surpresa seja o colapso absoluto da direita que, apesar de passar por uma chapa única, não chegaria nem a um terço das cadeiras”

Julieta Suárez-Cao, cientista política da Pontifícia Universidade Católica do Chile

Derrota da direita

A direita, que se apresentava na chapa única “Chile Vamos” formada pelos partidos governistas, foi a grande perdedora nesta eleição ao conquistar menos de um terço das cadeiras, percentual necessário para influenciar o conteúdo da nova Carta Magna e vetar artigos.

“Nestas eleições, os cidadãos enviaram uma mensagem clara e forte ao governo e também a todas as forças políticas tradicionais: não estamos sintonizados adequadamente com as demandas e desejos dos cidadãos e estamos sendo desafiados por novas expressões e lideranças”, afirmou o presidente do Chile, Sebastián Piñera, na reta final da contagem dos votos.

Apesar de possivelmente ditarem o tom da nova Carta Magna, os independentes precisarão fazer acordos para passar suas propostas, que necessitam de dois terços dos votos para serem aprovadas. Como a maioria delas está alinhada a posições progressistas, especialistas acreditam que haverá uma união entre o bloco e a esquerda, o que poderá promover mudanças profundas no país.

A assembleia constituinte será ainda composta por igual número de homens e mulheres. Isso é algo inédito no mundo e, em poucos meses, fará do Chile o primeiro país a ter um texto fundamental escrito com paridade de gênero.

A participação eleitoral no pleito que decidiu a composição da constituinte, no entanto, ficou bem abaixo dos quase 80% alcançados no plesbicito em outubro de 2020, que decidiu a substituição da atual Constituição. Apenas cerca de 37% dos 14,9 milhões de eleitores chilenos foram às urnas no final de semana.

A nova Constituição

A constituinte foi convocada pelo Congresso chileno para esfriar os protestos que tomaram as ruas do Chile por quase um ano no final de 2019.

A assembleia constituinte, a primeira paritária do mundo e composta exclusivamente por membros eleitos, terá nove meses para redigir a nova Carta Magna, a primeira a nascer de um processo plenamente democrático e participativo em toda a história do país.

O prazo para a conclusão da nova Constituição é prorrogável apenas uma vez por mais três meses, e em 2022 deve ser aprovada ou rejeitada em referendo com voto obrigatório.

A Constituinte será o processo político mais importante em 31 anos da democracia chilena e abre um novo capítulo na história do país, que terá a oportunidade de estabelecer também as bases de um novo modelo socioeconômico.

O processo de elaboração da nova Constituição será concluído com um plebiscito para aprovar o texto que substituirá a atual Constituição, herdada do regime Pinochet (1973-1990) e criticada por parte da sociedade chilena por sua origem ditatorial e por privatizar alguns serviços básicos como água e aposentadorias.

Fonte:

DW Brasil

https://www.dw.com/pt-br/esquerda-e-independentes-dominam-constituinte-do-chile/a-57553680

Movimento


Cristina Serra: Bolsonaro e o trator da corrupção

Não é de hoje que as emendas parlamentares se prestam ao toma lá, dá cá. Mas a coisa ganha outra dimensão quando se sabe quem pediu o quê, para quem e quanto, como mostrou o repórter Breno Pires, de O Estado de S. Paulo. A reportagem revela a existência de um orçamento secreto e o intrigante pendor dos congressistas por máquinas agrícolas, especialmente tratores. A malandragem já vem batizada: é o tratoraço de Bolsonaro.

A reportagem é o roteiro de uma investigação. Nomes, valores e destinação das máquinas estão ali. Tudo cheira mal na rapinagem de R$ 3.000.000.000,00 do orçamento público. Teoricamente, as máquinas vão ser usadas em obras de prefeituras. Algumas estão localizadas a milhares de quilômetros da base eleitoral dos parlamentares, e foi detectado superfaturamento de até 259% nas compras. Ora, mas Bolsonaro não havia acabado com a corrupção?

O tratoraço de Bolsonaro explica a eleição folgada de Arthur Lira para a presidência da Câmara, o engavetamento dos pedidos de impeachment (além dos que foram herdados de Rodrigo Maia) e a dificuldade de criação da CPI da Covid-19 no Senado, arrancada a fórceps por decisão do STF. A pilhagem tem que ser investigada no contexto da pandemia. O mesmo Bolsonaro que usa dinheiro público para aliciar parlamentares é o que está no comando do genocídio brasileiro.

O que sobra para encomendar tratores e, claro, produzir cloroquina falta para comprar oxigênio, abrir leitos de UTI e para as tão esperadas vacinas. Por falta delas, capitais suspenderam a imunização. Sem a matéria-prima da China, o Butantan interrompeu a produção de doses. Sem vacina para todos, a morte, a fome e o desemprego seguirão nos ameaçando por tempo indefinido.

Penso no Brasil de Bolsonaro como a metáfora de uma casa abandonada, onde os ratos se sentem à vontade para disputar os despojos. Para não chegarmos a isso, é preciso CPI, impeachment, processo, condenação e prisão.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/05/bolsonaro-e-o-trator-da-corrupcao.shtml


Cora Rónai: Somos todos idiotas

Sendo uma das idiotas que não saem de casa, na gentil descrição do senhor Presidente da República, tenho tido muito tempo para pensar na vida; o que me leva, invariavelmente, a concluir que, num mundo de idiotas, o melhor a fazer é não pensar.

Todos nós, idiotas, estamos cansados. Do isolamento e das restrições da pandemia, da solidão e da monotonia, mas, sobretudo, das notícias que nos chegam a respeito dos outros idiotas, aqueles que se rebelam contra as máscaras, não respeitam distanciamento social e acham que vírus se combate no grito.

Eles não aprenderam que, além dos cientistas que desenvolvem vacinas, ninguém pode fazer nada de concreto contra uma pandemia.

Nós idiotas que ficamos em casa fazemos o possível para evitar que o vírus circule. É pouco, de fato, mas é o que podemos fazer. Ficar em casa quando se pode ficar em casa não é desdouro nem falta de coragem, é consciência social: quanto menos gente houver nas ruas menos o vírus estará em circulação e menos pessoas serão contaminadas.

Não parece difícil de explicar, mas, pelo visto, é impossível de entender. Há alguma mutação genética ou ausência de atividade cerebral que impede que os idiotas, aqueles, compreendam essa verdade basilar. Um dia eles ainda vão ser estudados pela Ciência.

A nossa idiotice de isolados é um sentimento tingido pela melancolia, intenso mas inofensivo. Passamos os dias trabalhando, lendo, cozinhando, lavando louça, participando de lives, cuidando de plantas e de bichos, refletindo e torcendo para que haja vacina logo para todo mundo.

Enquanto isso o idiota lá desdenha das máscaras, aglomera, voa de helicóptero, faz churrasco, anda de moto, cavalga pela Esplanada dos Ministérios e oferece ao mundo o espetáculo da sua estupidez relinchante e orgulhosa de si mesma.

Genocida.

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Desde os tempos em que trabalhei em Brasília, numa outra encarnação, eu já sabia que educação, caráter e hombridade não são requisitos básicos para assumir cargos importantes na administração pública. Mas eu ainda guardava uma ilusão solitária, e imaginava que era preciso ter um mínimo de inteligência e de sofisticação intelectual para ser Ministro das Relações Exteriores.

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A Mauritânia fica na costa africana, ao Norte, logo abaixo do Marrocos e colada à Argélia, em pleno Saara: sua capital Nouakchott, com cerca de um milhão de habitantes, é a maior cidade do deserto.

Eu não sabia disso, e não foi por falta de interesse na região, porque antes da chegada do Exército Islâmico ao Mali cheguei a fazer planos de viajar para o país, ali ao lado. Eu também não sabia que a Mauritânia só aboliu a escravidão oficialmente em 1981 e que conserva o antigo hábito berbere de engordar as mulheres: meninas com 8 ou 9 anos são obrigadas a beber leite de camelo aos litros e, aos 12, já são obesas de 30 anos.

Como idiota que sou, tenho fugido da vida real mergulhando em documentários, e foi no canal Tracks, no YouTube, que encontrei uma série holandesa sobre os países do Saara. Ela é apresentada por Bram Vermeulen, e está em inglês; há opção de legendas automáticas. O Tracks é um aglutinador de conteúdo que reúne documentários sobre o mundo todo realizados por emissoras de diversos países, e tem uma coleção extraordinária de vídeos.

Fonte:

O Globo

https://oglobo.globo.com/cultura/somos-todos-idiotas-25025013


Benito Salomão: Democracia e política fiscal

A resposta anunciada pelo presidente americano à crise da covid-19 repercutiu no Brasil. Ao todo, serão desembolsados pelo Tesouro dos Estados Unidos (EUA) alguns trilhões de dólares para fomentar setores emergentes intensivos em tecnologia de fronteira, ambientalmente sustentáveis e de alta produtividade. Para financiar o ambicioso programa, o presidente Biden pretende elevar impostos corporativos e a progressividade da carga tributária americana, isto é, setores econômicos de baixa produtividade e famílias com maior capacidade de pagamento devem contribuir mais com o plano econômico do democrata e financiar indiretamente a emergência da nova economia. Ainda assim, medalhões da academia norte-americana, como Lawrence Summers, criticam o programa, cuja escala é inédita e apresenta riscos de sobreaquecimento da economia do país, cujo efeito colateral mais visível a curto prazo é a inflação.

Voltemos nossos olhos ao Brasil. Aqui, o Bid Economics, como é chamado o plano, é celebrado por setores mais simpáticos ao dirigismo estatal e crentes na expansão do gasto público como um vetor do desenvolvimento. O Plano Biden tem muitos elementos que podem ser aproveitados, sim, pela economia brasileira. A noção de incentivar uma economia de baixo carbono, o desenvolvimento científico de fronteira e a recuperação da infraestrutura são gargalos históricos deste lado dos trópicos. Da mesma forma, o Brasil é uma espécie de paraíso de milionários, que são subtributados quando comparados relativamente com as classes médias e as camadas mais humildes da população.

O Plano Biden ainda terá chances de mostrar a que veio. Ficaremos atentos, sempre há uma certa defasagem entre o lançamento de um plano promissor e suas consequências na prática. O prêmio Nobel de economia James Buchanan, em livro publicado com Richard Wagner, em 1977, apontou as consequências de longo prazo de deficits públicos sobre a economia americana. A primeira consequência é a expansão do tamanho do governo como proporção da renda nacional. Para os autores, o acúmulo consecutivo de deficits fiscais levaria, no longo prazo, a um crescimento do setor público acima do setor privado. Mas essa é a menor das consequências, deficits públicos precisam ser considerados à luz de suas fontes de financiamento que são basicamente três:

Tributos — no modelo macroeconômico tradicional —, o gasto público atua estimulando a demanda agregada e o crescimento econômico, os impostos, por outro lado, atuam desestimulando. Em ensaio publicado em 2019, este autor chamou a atenção para a utilização de instrumentos tributários e de gastos públicos adequados para que os efeitos multiplicadores de uma expansão das despesas se sobrepusessem aos efeitos dos tributos. Em outras palavras, é pouco produtivo para a economia criar deficits que serão financiados por impostos distorcivos e recessivos para financiar despesas de custeio com baixo efeito multiplicador sobre a atividade.

Dívida — até muito recentemente —, se acreditava que a absorção de deficits públicos via dívida pública não apresentava maiores custos macroeconômicos. Em 2010, no entanto, ensaios dos prestigiados economistas Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff estimaram que dívidas soberanas superiores a 90% do PIB exercem efeitos prejudiciais sobre o crescimento econômico. Ademais, Robert Barro, em 1974, apresentou o conceito de equivalência Ricardiana, em linhas gerais, o autor argumentava que a contração de deficits fiscais no presente levaria a uma elevação a posteriori da carga tributária. Ou seja, gasta-se hoje para tributar amanhã.

Finalmente, inflação, que é a consequência macroeconômica mais severa de desequilíbrios macroeconômicos causados por deficits públicos. Phillip Cagan chegou a comparar os efeitos da inflação semelhantes aos efeitos de um imposto indireto, que reduz a renda disponível dos consumidores.

Mas, voltando a Buchanan e Wagner, a principal disfunção causada por um deficit público é o desequilíbrio causado nas democracias, em que eleitores preferem mais bens e serviços públicos e menos impostos, políticos têm o incentivo de atender tais demandas visando à permanência no poder. Dado que os deficits apresentam benefícios no presente e custos no futuro, é viável para políticos ampliarem as despesas, deixando o ônus do ajuste para o sucessor, o que causa um viés nas democracias e é um incentivo ao populismo. No Brasil, regras fiscais foram pensadas para precaver tais atitudes; devemos preservá-las.

BENITO SALOMÃO — Economista do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Fonte:

Correio Braziliense

https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/05/4925185-artigo-democracia-e-politica-fiscal.html


O Globo: Governo Bolsonaro prepara decreto que proíbe redes sociais de apagarem publicações

Dimitrius Dantas, O Globo

BRASÍLIA — O governo Bolsonaro prepara um decreto para limitar a atuação de redes sociais no Brasil e proibir que sites e redes sociais apaguem publicações ou suspendam usuários de suas plataformas. O texto foi elaborado nas últimas semanas pela Secretaria de Cultura e recebeu parecer favorável da Advocacia-Geral da União. O decreto é uma resposta do governo à atuação das principais plataformas e, caso seja editado, pode permitir que  a propagação de informações falsas e o discurso de ódio cresça ainda mais. Nos últimos meses, publicações e vídeos do presidente Bolsonaro foram retirados do ar pelo Facebook e pelo Google sob a alegação de que propagavam informações falsas ou sem comprovação e receberam críticas do presidente. Influenciadores bolsonaristas e o presidente Donald Trump também já tiveram suas contas suspensas pelas plataformas.

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Segundo o decreto, os provedores de serviço só poderão agir por determinação da Justiça ou para suspender perfis falsos, automatizados ou inadimplentes. O bloqueio de conteúdos sem decisão judicial também só poderá ocorrer em casos específicos, como nudez, apologia ao crime, apoio a organizações criminosas ou terroristas, violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente e incitação de atos de ameaça ou violência. O decreto foi encaminhado ao Palácio do Planalto e a outros ministérios na última semana.

O controle sobre as plataformas é uma das bandeiras defendidas pela ala mais radical do governo, que vê na política atual das redes sociais uma forma de censura. Recentemente, expoentes do bolsonarismo tiveram suas contas bloqueadas ou limitadas. Além disso, publicações propagando o uso de tratamentos contra a Covid-19 sem comprovação científica foram tirados do ar. Na CPI da Covid no Senado, um dos temas investigados pelos parlamentares é exatamente a forma como o presidente, seus auxiliares e até mesmo órgãos do governo usaram as redes sociais para divulgar o uso de medicamentos contra a covid-19, como a cloroquina.

De acordo com a minuta do decreto, a Secretaria Nacional de Direitos Autorais ficaria responsável por fiscalizar e apurar casos em que sites e redes sociais retirassem publicações do ar.

O órgão atualmente é comandado pelo advogado Felipe Carmona Cantera, ex-assessor parlamentar do deputado estadual de São Paulo Gil Diniz, conhecido como “Carteiro Reaça”. Diniz foi acusado na Assembleia Legislativa de São Paulo de criar e propagar fake news contra adversários. Além disso, foi citado no inquérito do Supremo Tribunal Federal que apura atos contrários à democracia.

Pelo documento, a Secretaria Nacional de Direitos Autorais poderia até mesmo proibir o uso de determinadas plataformas que cometessem as infrações previstas no decreto. A medida afeta não apenas grandes sites, mas também os de menor porte, como páginas de vaquinha virtual, por exemplo.

Especialista: ‘Mudança radical’

O projeto quer regulamentar um ponto do Marco Civil da Internet que trata da responsabilização por conteúdos publicados nas internet. Segundo a lei, provedores de serviço na internet não podem ser responsabilizados pelo conteúdo publicado nas redes. De acordo com Francisco Brito Cruz, advogado e diretor do InternetLab, centro de pesquisa especializado em direito e tecnologia, entretanto, o teor do projeto vai contra o que determina a legislação.

— O projeto subverte o Marco Civil. Se o decreto fosse publicado, mudaria radicalmente como as redes sociais funcionam no Brasil. Além disso, instituiria um órgão público que vai dizer como as plataformas vão aplicar medidas de moderação na internet — afirma Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab.

Para o especialista em Direito Digital, Omar Kaminski, o decreto entende que a remoção de conteúdos pelas redes sociais por infração aos termos de uso interno do site pode ser considerado “censura privada”.

— Mas, ao que parece, em diversos casos a intenção extrapola este objetivo e peca pelo excesso, pedindo, por sua amplitude e subjetividade, não mais um simples decreto presidencial mas a propositura de um projeto de lei a ser debatido por parlamentares na Câmara e Senado — disse.

No documento, a Secretaria Nacional de Direitos Autorais justifica que o decreto é necessário para regulamentar o Marco Civil em relação aos direitos e garantias dos usuários. O governo argumenta que, como não podem ser responsabilizados, também não poderiam retirar qualquer conteúdo por suposta infração às suas regras.

CPI da Covid: Documentos contradizem Pazuello sobre data de alerta de falta de oxigênio no Amazonas

Para Brito Cruz, entretanto, a justificativa apresentada pelo governo é contrária ao próprio Marco Civil. O artigo 18 da lei indica que o provedor não será responsabilizado por conteúdos gerados pelos usuários. Entretanto, o artigo 19 indica que “com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”, a responsabilização ao provedor ocorrerá se não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo.

— O que está na lei é que os provedores de aplicação, como o Google ou Facebook  não podem ser responsabilizados pelo conteúdo gerado por terceiros em um caso específico: se não receberem uma ordem judicial para retirar. O que o projeto diz é que qualquer retirada de conteúdo que não seja por ordem judicial é proibida, exceto em alguns casos. Isso não é o que a lei diz — afirma Brito Cruz.

A discussão sobre o poder concedido às redes sociais ocorre em todo o mundo e ganhou importância após as maiores empresas do setor suspenderem o ex-presidente Donald Trump definitivamente de suas plataformas no início do ano. Em julho do ano passado, por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do STF, as contas de influenciadores simpáticos ao presidente Bolsonaro investigados no inquérito das Fake News também foram bloqueadas.

Em abril deste ano, o Facebook classificou uma publicação do presidente Jair Bolsonaro como “informação falsa”. No mesmo mês, o YouTube removeu um vídeo de Bolsonaro em que o presidente defendia tratamento sem eficácia contra a Covid-19.

Omar Kaminski lembra que o debate sobre a moderação na internet é antigo e vem desde as primeiras salas de bate-papo. A própria estrutura da internet foi construída para dificultar restrições que inviabilizassem sua utilização ou tornasse os ambientes excessivamente cerceados e limitados. Atualmente, algoritmos já realizam boa parte do “trabalho sujo”, destaca o especialista.

— Em resumo, a minuta pretende defender a subjetividade das fake news, proteger os meios de pagamento financiadores e possibilitar a remoção de violações autorais. No campo do ciberativismo, e em tempos de LGPD, de um lado o decreto parece defender a liberdade de expressão, mas de outro torna os caminhos do seu exercício na Internet ainda mais tortuosos — afirma.

Atualmente, o Congresso Nacional já discute a questão da moderação das redes sociais. Uma das propostas exigiria que as empresas apresentassem relatórios de transparência indicando que tipo de conteúdo retiraram do ar.

Embora temas polêmicos, como a defesa do uso da cloroquina ou a propagação de notícias falsas ganhem destaque, a moderação de conteúdo por parte dessas plataformas é um dos pilares da internet atualmente. As redes sociais, por exemplo, possuem sistemas automáticos que tentam evitar a propagação de conteúdo criminoso, como fraudes ou golpes.

— A minuta produzida no governo passa longe da discussão mais sofisticada de moderação de conteúdo. Os conteúdos da internet não precisam de algum tipo de moderação. Inclusive a sociedade pede isso, mostrando que tem muito discurso de ódio, tem muito bullying, tem desinformação. Claro que a gente não tem que pedir que elas ajam sem prestação de contas e transparência. A questão foi mal colocada no projeto — afirma Brito Cruz.

Fonte:

O Globo

https://oglobo.globo.com/brasil/apos-bolsonaro-ter-videos-retirados-do-ar-governo-prepara-decreto-que-proibe-redes-sociais-de-apagarem-publicacoes-25025710


Marcus Oliveira: A política do moderno, de Marx a Gramsci

Em razão da alteração das experiências temporais, a modernidade possibilitou novas percepções em torno da política e da história. Como afirmou o historiador alemão Reinhart Koselleck, essa nova configuração temporal é estruturada em torno da expectativa de um afastamento radical entre o passado e o futuro. Fruto da modernidade, o pensamento de Marx elege a revolução como esse corte entre passado e futuro capaz de anunciar o horizonte de uma sociedade sem classes marcada pela emancipação do homem.

Iconografia – Marx e Engels na escritura do Manifesto Comunista de 1848

Apesar de ser um autor pouco sistemático e com uma obra bastante diversa, é possível observar que a revolução e a emancipação humana aparecem como preocupações constantes ao longo do trabalho de Marx. Em seus escritos, a discussão em torno da emancipação humana aponta para a incompletude dos processos revolucionários burgueses. A revolução francesa, ao encerrar o Antigo Regime, permitiu a construção dos direitos do homem, que, limitados pelo individualismo burguês, não perseguem a emancipação humana.

Para conduzir o processo revolucionário rumo a emancipação humana, Marx busca um sujeito universal capaz de superar os limites do individualismo burguês. O proletariado, na leitura de Marx, emerge como esse sujeito universal na medida em que, submetido a uma exploração total, é também o responsável pela recuperação total da humanidade.

Por meio das ações desse sujeito universal, a concepção de política elaborada por Marx aparece vinculada à possibilidade de recuperar a humanidade perdida ao longo da história. Nesses termos, a política aparece no horizonte de expectativa marxiano como um dos caminhos para o reencontro da humanidade consigo mesma. Todavia, essa perspectiva, aliada a essa dimensão histórica universal do proletariado, termina por enfraquecer essa concepção de política.

Embora fundamental para consecução de seu projeto emancipatório, a política é limitada pela leitura em torno da estrutura de classes do capitalismo. A garantia da ordem burguesa por meio da ação violenta do Estado impossibilita, em parte dos escritos marxianos, um desfecho político para a revolução. Nessa perspectiva, o avanço do proletariado acirra os conflitos de classe e se desdobra em um conflito violento, de modo que a política se encerra em uma guerra de classes.

Como apontou Carlos Nelson Coutinho, há alguns acenos de Marx em relação a uma perspectiva democrática e reformista para a obtenção de direitos e melhorias na vida dos operários. Todavia, tal perspectiva não foi inteiramente desenvolvida e, em boa medida, aparece submetida ao horizonte revolucionário.

Lenin discursa em São Petersburgo

Na transição para o século XX, as propostas reformistas, marcadas por uma visão teleológica e mecânica do marxismo, ganham espaço no movimento operário, nos partidos socialdemocratas e na II Internacional. No contexto da Revolução Bolchevique, Lenin, mais que criticar o que considerava os desvios reformistas do marxismo, reacende o horizonte revolucionário.

Contudo, a concepção política de Lenin incorre em problemas semelhantes aos de Marx. Ao retomar a concepção do Estado como aparato responsável para garantir violentamente a ordem burguesa, o voluntarismo de Lenin aposta na revolução como tomada do Estado e utilização desse mesmo aparato violento para a realização da ditadura do proletariado e da sociedade sem classes. Nesses termos, a necessidade da violência revolucionária anunciada por Marx é radicalizada por Lenin.

Após a revolução, em razão dos dilemas enfrentados na transição para o socialismo, Lenin produz algumas alterações em sua concepção política anterior, marcando a necessidade de um trabalho político no interior da ordem burguesa e também de uma crítica ao radicalismo esquerdista. Nessas reflexões, também não inteiramente desenvolvidas em virtude da sua morte, a possibilidade reformista aparece, ainda que subordinada a revolução.

No interior da tradição marxista, ao desenvolver leituras radicalmente inovadoras acerca da história e da política, Gramsci será capaz de solucionar essas tensões presentes em Marx e Lenin. Partindo do diagnóstico histórico de uma transformação morfológica no contexto histórico-político europeu, Gramsci afirma o cancelamento das revoluções. Esse cancelamento ocorre porque, na modernidade europeia, o fortalecimento da sociedade civil desloca a centralidade do poder estatal.

Antonio Gramsci na capa da edição brasileira dos “Cadernos do Cárcere”

Canceladas as expectativas revolucionárias de assalto frontal ao poder do Estado, Gramsci busca a teoria da hegemonia como forma de compreensão e ação política na modernidade ocidental. Para tornar-se hegemônico qualquer grupo social precisa trabalhar politicamente para a construção de um consenso na sociedade civil, antes mesmo de alcançar o aparato estatal. Na leitura gramsciana, desenvolvida ao longo dos Cadernos do Cárcere, a construção dessa hegemonia ocorre a partir das disputas políticas entre os diversos grupos sociais. Realizar a hegemonia e exercer o poder na sociedade, mais que um exercício de força, implica uma ação política virtuosa no sentido atribuído por Maquiavel.

Com a elaboração da teoria da hegemonia, Gramsci resolve, concomitantemente, as tensões entre reforma e revolução presentes em Marx e Lenin, propondo uma concepção de política para além da revolução e da violência. Nesse sentido, a expectativa basilar do marxismo acerca da necessidade de emancipação humana é mantida em Gramsci. Todavia, liberada de um horizonte revolucionário, a realização dessa expectativa ocorre por meio da disputa política da hegemonia, dentro de uma moldura democrática. Para Gramsci, diferentemente de Marx e Lenin, é possível produzir grandes transformações históricas, mesmo que em durações mais ou menos longas, a partir de uma política democrática. Portanto, em razão dessa concepção forte de política, as contribuições de Gramsci para a contemporaneidade ultrapassam aquelas oferecidas por Marx e Lenin e permitem a formulação de projetos políticos para a contemporaneidade.

 

Fonte:

Blog Horizontes Democráticos

https://horizontesdemocraticos.com.br/a-politica-do-moderno-de-marx-a-gramsci/

 


William Waack: Ordens e internet

É notório que Jair Bolsonaro governa para e pela internet. Com resultado que está ficando muito nítido pelos trabalhos da CPI da Covid: a existência de uma espécie de dualidade de mando com prejuízos diretos no combate às diversas crises. O pecado original foi o papel importantíssimo das redes sociais na vitória dele em 2018. São ferramentas indispensáveis para ganhar eleições, mas instrumentos precários para governar – e é pensando nelas que Bolsonaro baseia suas ações.

“Postagens na internet não são ordens”, disse seu ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, ao depor na CPI da Covid num esforço bem orientado por advogados para desmentir o óbvio. Sim, no caso do governo Bolsonaro, são ordens (mas em juridiquês não são). O próprio Pazuello postou um célebre vídeo – na internet – ao lado de Bolsonaro, dando conta de que um manda (o presidente) e o outro (o general intendente) obedece.

 

“Mas era coisa de internet”, desculpou-se Pazuello. O efeito é o mesmo: Bolsonaro consagrou essa dualidade de mando dentro do próprio governo. Dedicado como sempre à atividade de animador de redes digitais, suas “ordens” que não são “ordens” servem no mínimo (com muita boa vontade) para criar confusão interna. No caso da pandemia, a CPI foi razoavelmente bem-sucedida também em demonstrar a existência de uma estrutura paralela de assessoramento governamental que, no fundo, é a avaliação de quais conteúdos obtêm melhor resposta nas redes digitais que Bolsonaro pretende atingir.

Ocorre que dualidade de mando paralisa qualquer administração complexa, como é o caso do governo brasileiro. Na prática, Pazuello e seus antecessores se viram divididos entre o que eram as posturas recomendadas pelas áreas técnicas (na questão de uso de medicamentos, por exemplo) e o que o presidente pregava nas suas redes – além da exigência aos ministros de um tipo de lealdade já fartamente comparado ao “Führerprinzip”, a ideia de que o líder tudo sabe e nunca falha.

O que aconteceu no combate à pandemia já era repetição do que afetara anteriormente setores como economia ou política externa (mas não só). Na economia, por exemplo, Bolsonaro promoveu grande alarido, com enormes prejuízos para a Petrobrás, ao dizer que ia interferir na formação de preços de combustíveis. Repetiu a “fórmula” com o Banco do Brasil, deixando os agentes econômicos nos mais diversos níveis preocupados sobre qual seria, afinal, o limite da intervenção estatal. Era o que vinha dizendo o ministro da Economia ou o que o presidente falava para sua turma na internet?

Na política externa essa “dualidade de mando” criou uma situação esquizofrênica para o principal parceiro comercial brasileiro, a China. Valem os ataques que Bolsonaro reitera nas redes ao regime chinês ou as súplicas dirigidas a Pequim por parte de ministros (como a da Agricultura) e governadores (como o de São Paulo) pela manutenção de laços para garantir exportações e suprimento de insumos para vacinas?

Bons observadores que são da cena brasileira (Pequim sabe cuidar de seus interesses), talvez os chineses se orientem pelo comportamento de duas instâncias políticas hábeis até aqui em lidar com Bolsonaro. Uma é o STF, que lhe impôs limites severos e pensa sempre uma jogada política adiante do presidente e que não mais responde às provocações feitas por ele através das redes digitais.

Outra instância política é a do Centrão, que congrega notórios especialistas em sobrevivência política e defesa dos próprios interesses. Os articuladores da base de sustentação de Bolsonaro no Legislativo chegaram ao acordo tácito de deixá-lo falando sozinho. Com eles não existe mais dualidade de mando, pelo menos no que se refere à distribuição de verbas entre parlamentares: tomaram conta disso, e deixaram o que tem de batata quente para ser decidido entre os ministros do Desenvolvimento Regional e o da Economia, por exemplo.

O resto é Bolsonaro falando para a internet.

Fonte:

O Estado de S. Paulo

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ordens-e-internet,70003720588


Malu Gaspar: Para escapar da CPI, Pazuello inventa a ‘coisa de internet’

Depois de muito tentar se esquivar da CPI da Covid, o ex-ministro da Saúde e general Eduardo Pazuello conseguiu no Supremo Tribunal Federal um habeas corpus para ficar em silêncio e evitar se incriminar. Mas a ordem do ministro Ricardo Lewandowski foi expressa: Pazuello podia, sim, ficar quieto sobre as coisas em que se envolveu, mas não podia mentir quanto aos atos de outras pessoas.

Criou-se então um dilema para o general. Ficando em silêncio, ele estaria dando à CPI o roteiro de seus crimes. E, não podendo mentir para proteger terceiros, seria obrigado a apontar as responsabilidades de Jair Bolsonaro no fracasso do combate à pandemia. Pazuello tinha ainda a opção de ficar quieto o tempo todo. Não teria sido o primeiro a fazê-lo numa CPI. Mas investiu-se de brios de militar e decidiu que não passaria para a história como um covarde. E, assim, produziu uma inovação simbólica dos tempos que vivemos: a “coisa de internet”.

Cada vez que alguém o questionava a respeito de uma ordem de Bolsonaro contra a vacina ou pela adoção da cloroquina como instrumento de política pública, lá vinha Pazuello dizendo que aquilo era “coisa de internet”, “postura de internet” ou algo do gênero.

Foi como ele explicou a resposta de Bolsonaro a um seguidor no Facebook. Pazuello acabara de anunciar a compra de 46 milhões de doses de CoronaVac numa reunião com governadores, mas o bolsonarista apelou na rede social para que o presidente não comprasse a vacina chinesa. “O povo brasileiro não será cobaia de ninguém”, escreveu Bolsonaro. “Qualquer coisa publicada, sem qualquer comprovação, vira TRAIÇÃO”, arrematou.

Para Pazuello, não foi nada demais: “Aquilo foi apenas uma posição do agente político na internet”. O próprio general teria cometido apenas uma coisa de internet ao declarar o inesquecível “um manda, o outro obedece”, no vídeo em que aparece prestando vassalagem ao capitão, logo depois de ter sido desautorizado via Facebook.

Segundo o que se depreende do discurso do ex-ministro-general, o que o presidente diz nas redes sociais ou em suas lives não tem caráter de ordem e não precisa nem ser verdade. São balelas que nem ele mesmo, Pazuello, levava a sério.

Teria sido melhor para o Brasil que fosse mesmo assim. Bolsonaro faria sua bravata virtual, os minions se agitariam e aplaudiriam, e no dia seguinte tudo voltaria ao normal.

Acontece que não é.

Se o que presidente da República fala nas redes ou aos microfones fosse apenas “coisa de internet”, o Butantan não teria feito três ofertas de vacinas ao Ministério da Saúde e ficado sem resposta. Pazuello não teria levado cinco meses para finalmente assinar o contrato com o Butantan e nem ignorado as ofertas da Pfizer por sete meses. O Exército brasileiro não teria iniciado a produção de 3 milhões de doses de cloroquina, mesmo sem demanda nem comprovação de eficácia em pacientes de Covid.

Se, no governo Bolsonaro, “coisa de internet” não fosse para valer, Paulo Guedes não teria sido obrigado a demitir um secretário da Receita que defendeu a volta da CPMF, o imposto do cheque. Tampouco teria recuado da tentativa de trocar o nome do Bolsa Família para Renda Brasil. E os fiscais do Ibama que, numa ação legal, inutilizaram o maquinário de comerciantes de madeira clandestina extraída da Amazônia, em 2019, não teriam enfrentado um procedimento administrativo por parte da chefia.

São apenas alguns exemplos entre muitos. Diga Pazuello o que quiser, nada mudará o fato de que Jair Messias Bolsonaro foi eleito fazendo “coisa de internet” e governa à base de “coisa de internet”. O compromisso do presidente com as “coisas de internet” é tão sério que suas lives de quinta-feira nunca falham, esteja ele onde estiver. É na internet que ele dá ordens, grita, desautoriza e constrange. É pela internet que ele convoca manifestações contra as mais diversas ameaças a seu sempre perseguido governo patriótico. E claro, é também via internet que se constata quais de suas “coisas de internet” são mesmo só bravatas que não devemos levar a sério.

Infelizmente para os brasileiros, as atitudes de Bolsonaro na condução da pandemia não estão entre as “coisas de internet” que devemos ignorar. Pazuello, pelo menos, não o fez. Preferiu dar uma desculpa esfarrapada a deixar transparecer, mesmo que de forma oblíqua, em que momentos o capitão mandou, e ele obedeceu, e em que outras ocasiões — se é que houve — ele foi apenas mais uma vítima do negacionismo presidencial. Com isso, o general afrontou a inteligência do distinto público, mas não decepcionou seu capitão. Provou na prática que, até hoje, o presidente manda e ele obedece. E isso, definitivamente, não é coisa de internet.

Fonte:

O Globo

https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/para-escapar-da-cpi-pazuello-inventa-coisa-de-internet.html