democracia
Livro de Segatto tem compromisso com defesa da democracia, diz professor
João Vitor*, da equipe FAP
O professor Ricardo Marinho afirma que o livro Cultura política e democracia, do historiador José Antônio Segatto, tem compromisso com a defesa da cultura política democrática e republicana. “Desta forma, não é um livro a passeio. Apesar de sua linguagem acessível, exige do seu leitor a disposição de adentrar nesses terrenos movediços e de soluções nada fáceis”. A avaliação dele foi publicada em artigo na revista Política Democrática online de dezembro (38ª edição).
A revista é editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. A instituição disponibiliza, gratuitamente, em seu portal, todo o conteúdo da publicação mensal na versão flip. Marinho, do Instituto Devecchi e da Unyleya Educacional, diz que Segatto é um historiador de formação crítica sólida.
Para Segatto, conforme analisa o autor do artigo, o belo, a estética e, consequentemente, a cultura política, de sentido republicano e democrático, deram lugar a uma cultura com significado antropológico puramente descritivo, empurrando-a para a “desrepublicanização” progressiva da cultura, da política e da sociedade.
De acordo com o artigo, Segatto observa que a revolução científico-tecnológica dos séculos XX e XXI mudou as formas e os ritmos dos dias tais como acontecia anteriormente na humanidade.
Segundo Marinho, a leitura de Cultura política e democracia leva à reflexão sobre o fato de a obra ser fruto do acompanhamento da crise da cultura política e da democracia manifesta em 2013 e, por isso, mobiliza sua experiência de mais de 25 anos na busca de saídas.
Veja arquivos em PDF de todas as edições da revista Política Democrática online!
A obra, de acordo com o professor, tem 26 artigos publicados no jornal O Estado de São Paulo, escritos nas palavras de Segatto “para tentar compreender e sugerir alternativas a problemas postos pela conjuntura”.
A íntegra do artigo de Ricardo José de Azevedo Marinho pode ser conferida na versão flip da revista, disponível no portal da FAP, gratuitamente.
A nova edição da revista da FAP também tem reportagem especial sobre a variante Ômicron da covid-19, entrevista especial com Hussein Kalout, além de artigos sobre política, economia e cultura.
Veja lista de autores da revista Política Democrática online de dezembro!
Compõem o conselho editorial da revista o diretor-geral da FAP, sociólogo e consultor do Senado, Caetano Araújo, o jornalista e escritor Francisco Almeida e o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques. A Política Democrática online é dirigida pelo embaixador aposentado André Amado.
*Integrante do programa de estágios da FAP, sob supervisão do jornalista e editor de conteúdo Cleomar Almeida
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Estados Unidos dizem confiar plenamente na democracia brasileira
DW Brasil
O governo dos Estados Unidos afirmou nesta quinta-feira (02/12) ter plena confiança de que as eleições de 2022 no Brasil serão "livres e justas". A declaração foi feita por Juan González, encarregado de assuntos da América Latina do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca.
Ele respondia a uma pergunta sobre o risco de o Brasil ter no ano que vem o seu próprio "6 de janeiro", em referência à invasão do Congresso americano por apoiadores do ex-presidente Donald Trump, que tentavam evitar a certificação da vitória de Joe Biden.
O presidente Jair Bolsonaro, apelidado por alguns analistas como "Trump dos trópicos", afirmou diversas vezes, sem apresentar provas, que o sistema eletrônico de votação no Brasil sofre fraudes e disse que não admitiria uma derrota eleitoral. "Só Deus me tira daqui", disse ele em maio, após defender a adoção do voto impresso.
González fez em abril sua primeira viagem oficial à América Latina, que incluiu Colômbia, Argentina e Uruguai. O Brasil ficou de fora.
Cúpula pela Democracia
Na próxima semana, o governo Joe Biden realizará aCúpula pela Democracia, para a qual o Brasil foi convidado e terá Bolsonaro como participante.
A cúpula virtual reunirá líderes de governos, de organizações da sociedade civil e de empresas, e será realizada na próxima quinta e sexta.
Questionado sobre a pertinência de ter Bolsonaro na cúpula, tendo em vista seus constantes ataques ao sistema democrático, González disse que o Brasil "definitivamente precisava ter um assento na mesa". "Se olharmos a trajetória da democracia brasileira, creio que as instituições brasileiras têm muito a ensinar ao mundo sobre a democracia."
O assessor do governo Biden ressaltou que a cúpula não terá somente a participação de governantes. "Acho importante que os líderes escutem os jornalistas e a sociedade civil e os ajudem a assumir seus próprios compromissos sobre como os governos podem realmente responder a algumas das demandas que recebem da população", disse.
Bolsonaro também aceita convite de Putin
A Cúpula pela Democracia organizada por Biden convidou chefes de governo e de Estado de cerca de 110 nações, e deixou de fora a Rússia, China, Turquia, Hungria, Venezuela e Bolívia, entre outros países.
Uma das nações que ficou irritada com a iniciativa americana foi a Rússia. Em novembro, o Kremlin acusou os Estados Unidos de tentarem criar divisão entre os países com a cúpula.
"Certamente temos uma atitude negativa em relação a esse evento. Não é nada mais do que uma tentativa de traçar novas linhas divisórias", disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov. Ele acusou os Estados Unidos de tentarem "privatizar a palavra 'democracia'", acrescentando que, para Washington, democracia é apenas o que se encaixa em seu entendimento.
Nesta quinta-feira, Bolsonaro informou que aceitou um convite do presidente russo, Vladimir Putin, para viajar ao seu país em 2022. Segundo a agência de notícias estatal russa, Putin disse que o Brasil era um dos "mais importantes parceiros estratégicos" da Rússia.
Bolsonaro disse que havia aceitado o convite e está "feliz" e "honrado", pois a inciativa "abre uma janela de oportunidade" para o Brasil. "É um grande mercado consumidor. Vamos aprofundar esse relacionamento com a Rússia. (...) Vamos nos preparar para fazer dessa visita uma oportunidade de alavancarmos a nossa economia", afirmou.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/eua-dizem-confiar-plenamente-na-democracia-brasileira/a-60010425
Eugênio Bucci: Inteligência, baratas e poder
Eugênio Bucci / O Estado de S. Paulo
“Quem quer que já tenha tentado matar uma barata sabe que ela é inteligente.” Assim falou a professora Lucia Santaella. Titular da Cátedra Oscar Sala, no Instituto de Estudos Avançados da USP, a pensadora sabe o que diz. Baratas podem, sim, ser consideradas inteligentes. A seu modo, elas raciocinam, arquitetam táticas de fuga e, no mais das vezes, conseguem escapulir.
Em seu elogio ao tirocínio do esperto inseto que, além de tudo, “avoa”, Lucia Santaella não nos lança uma reles anedota com fins didáticos. Apoiada na semiótica do filósofo americano Charles Sanders Peirce (1839-1914), ela nos traz mais do que uma boutade. Peirce escreveu que “o pensamento não está necessariamente conectado a um cérebro”. Para ele, haveria “pensamento”, igualmente, no “trabalho das abelhas e nos cristais”, isso para ficarmos apenas em poucos exemplos.
No texto de Peirce, o termo “pensamento” deve ser entendido como a capacidade de um organismo ou um sistema dar respostas calculadas, baseadas em alguma forma de memória e aprendizado, aos estímulos que recebe do mundo externo.
Atualmente, usamos para isso a palavra “inteligência” – e esta não precisa mesmo de um cérebro. Contam os pesquisadores que, se você arrancar a cabeça de uma barata, ela vai continuar andando normalmente, com perfeita coordenação corporal, e isso por um bom tempo.
Quem assiste a um documentário disponível na Netflix chamado Professor Polvo (Oscar de melhor documentário em 2021) acaba se convencendo de que os polvos também “pensam”, embora não tenham propriamente um cérebro no meio da cabeça. No caso deles, os neurônios, distribuídos pelos tentáculos, conseguem se comunicar uns com os outros, sem depender de comandos vindos de uma massa encefálica central.
Até as plantas têm uma forma de inteligência. O botânico italiano Stefano Mancuso vem dizendo exatamente isso há duas ou três décadas. “Um ser inteligente não é só aquele que possui cérebro”, garante o cientista. “É um organismo capaz de resolver problemas e aprender com as situações – e nisso as plantas têm sido craques.” Os estudos do botânico brasileiro Marcos Buckeridge comprovam a tese. “Não é nada exorbitante dizer que as plantas têm memória interna”, disse ele na palestra Cognição e inteligência em plantas, disponível no Youtube. Buckeridge, que é diretor do Instituto de Biociências da USP, sustenta que os vegetais aprendem e ordenam seu crescimento com inteligência. Entre outras coisas, isso significa que não é exato dizer que uma pessoa em coma esteja em “estado vegetativo”. Vegetais, senhoras e senhores, “pensam” ativamente.
Diante disso, não surpreende que existam sinais de alguma inteligência nos movimentos políticos do presidente da República. Agora mesmo, nesta semana, a cerimônia de sua filiação a um partido político revela a existência de algum tipo de cálculo nas entranhas do bolsonarismo. É impressionante. Mais do que o discernimento direcional das lesmas e das estalagmites, o tema vem intrigando observadores da cena política nacional.
O instinto adestrado de sobrevivência do governo que aí está – e está até hoje – assombra o ceticismo científico mais rigoroso. Em metamorfoses estratégicas mirabolantes, o organismo bolsonárico logrou se transformar no oposto do que era, sem jamais se descuidar de seu objetivo: conservar-se no poder. O chefe de Estado, que há poucos meses insultava os próceres do Centrão, encontrou meios de se entronizar como o líder máximo de todos eles. Nesse deslocamento, que envolveu operações de alta complexidade, o mitômano personagem escapou da ameaça de impeachment, reverteu ações penais que espreitavam seu círculo familiar (deixou-as todas processualmente rachadinhas) e, agora, se viabiliza para tentar a reeleição. Um prodígio, certamente.
Mas como pode? Haveria por lá algum estrategista de gênio? As hordas fanáticas (que las hay, las hay) acreditam fervorosamente que sim – ainda que nessa crença repouse, latente, uma ofensa gratuita às baratas. Outros dizem que não há inteligência nenhuma naquelas hostes, mas isso pouco importa. O fato é que o índice de sucesso do (des)governante desconcerta, humilha e oprime todo o seu entorno, próximo ou distante.
Nesta hora de desconforto moral, não podemos esquecer que a razão humana não se resume à faculdade da inteligência. Ao menos desde Aristóteles, a razão supõe, além do raciocínio, além da lógica instrumental, a dimensão ética e a dimensão estética, entre outras. Sujeitos com transtornos de personalidade também articulam atos e palavras, mas emperram no plano ético e não dispõem de recursos para a estesia e a empatia. A aptidão para conjugar pensamento crítico, sensibilidade estética e princípios éticos talvez sintetize a substância do espírito (Ralph Waldo Emerson dizia que o caráter está acima da inteligência).
Por tudo isso, a inteligência instalada no outro lado tem um aspecto bruto, demente, feio, selvagem e desumano. O fato de ela ter prosperado tanto, com tamanha desfaçatez, comprova que, do lado de cá, ainda grassa a estupidez.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,inteligencia-baratas-e-poder,70003913772
Cláudio de Oliveira: Política de alto nível na Alemanha. E no Brasil?
Na foto estampada nos jornais de hoje, Angela Merkel, atual primeira-ministra da Alemanha, recebe flores de Olof Scholz, que possivelmente a sucederá no cargo. Detalhe: Scholz é do partido adversário ao de Merkel.
Ela é da União Democrata-Cristã, a CDU, um partido liberal-democrático, de centro-direita, que desde o pós-guerra rivaliza com o SPD, o Partido Social-democrata Alemão, partido de Scholz, de centro-esquerda, agremiação que Karl Marx ajudou a fundar ainda no século XIX.
O SPD nunca abraçou totalmente as ideias revolucionárias de Marx. A maioria dos seus dirigentes sempre preferiu o reformismo de seus fundadores, como Ferdinand Lassale. Mas essa é outra história.
O importante a destacar é que apesar de rivais, CDU e SPD governaram juntos a Alemanha em diversas ocasiões na chamada “Grosse Koalition” (Grande Coalizão), quando os dois maiores partidos do país se juntam por não conseguirem separadamente a maioria. Caso dos dois últimos governos de Merkel, nos quais Scholz foi escolhido ministro da economia.
Mesmo quando a CDU estava no governo e o SPD na oposição, ou vice-versa, ambos os partidos foram capazes de dialogar para chegar a acordos que beneficiaram a Alemanha.
Esse diálogo certamente foi favorecido pela maturidade dos partidos democráticos da Alemanha, que aprenderam com seus erros das décadas de 1920 e 1930, quando não foram capazes de se unir para impedir a ascensão do Partido Nazista de Adolf Hitler.
Diálogo também propiciado pelo sistema político-partidário e eleitoral alemão, baseado no parlamentarismo, que obriga ao entendimento entre os partidos para obtenção da maioria necessária à formação de um governo.
O social-democrata Scholz venceu a eleição parlamentar, pois o seu SPD obteve o maior número de deputados. E vai liderar um governo com os Verdes e o Partido dos Democratas Livres, de centro. Assim, o partido de Scholz desalojará do governo o partido de Merkel.
Mas, esse fato não impede a convivência civilizada desses dois grandes partidos democráticos da Alemanha. As flores de Scholz para Merkel é um gesto de quem valoriza a democracia e o pluripartidarismo.
No Brasil, tivemos uma rara transmissão civilizada de governo em 2002, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso organizou legalmente um gabinete de transição com membros de sua equipe e de assessores do então presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva.
Infelizmente, essa oportunidade de diálogo foi desperdiçada. O PSDB foi para a oposição e o PT preferiu formar seu governo com o PMDB de José Sarney e partidos do Centrão.
A visão curta dos grandes partidos brasileiros e o personalismo, fortalecido no regime presidencialista, levaram a disputa entre os dois dos principais partidos responsáveis pela democratização do Brasil, processo que culminou com a Constituição de 1988. Na disputa, PSDB e PT aliaram-se a forças políticas conservadores e do atraso.
O que estamos vivendo no Brasil de hoje é o resultado amargo dessa disputa. Que o bom exemplo dos partidos democráticos da Alemanha ilumine o caminho do Brasil.
*jornalista e cartunista e autor dos livros Era uma vez em Praga – Um brasileiro na Revolução de Veludo e Lênin, Martov. A Revolução Russa e o Brasil, entre outros.
Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/11/claudio-de-oliveira-politica-de-alto.html
Fernando Gabeira: O declínio da democracia brasileira
Melhor funcionamento do sistema político pode bloquear o caminho para aventuras redentoras
Fernando Gabeira / O Estado de S. Paulo
Relatório divulgado em Estocolmo esta semana indica a democracia brasileira como uma das que mais decaíram nos últimos cinco anos.
O relatório é assinado pelo Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (Idea) e considera que a democracia foi afetada negativamente pela gestão da pandemia, por escândalos de corrupção, protestos antidemocráticos e ameaças ao Estado de Direito.
Para quem acompanha o cotidiano nacional, isso não é uma grande surpresa. A democracia está em acentuado declínio desde a eleição de Bolsonaro, em 2018, e o presidente eleito é o ator mais importante no retrocesso.
Os Estados Unidos, pela primeira vez, apesar do vigor de sua democracia, aparecem em ligeiro declínio, graças, sobretudo, à passagem de Donald Trump pelo poder.
Um dos fatores que atingiu a democracia americana acabou se expandindo para o Brasil: o questionamento do sistema eleitoral. Trump recusouse a aceitar a derrota, alegando fraudes, enquanto Bolsonaro, no Brasil, atacava o voto eletrônico.
Não sei se o relatório chegou até lá, mas a escalada autoritária no Brasil sofreu um abalo depois do Sete de Setembro. Naquele dia, Bolsonaro reuniu multidões para atacar o Supremo Tribunal Federal (STF) e havia dezenas de cartazes pedindo intervenção militar.
Não há dúvida de que a maior ameaça à democracia no Brasil nasce com Bolsonaro e seus aliados. O relatório aponta o processo de declínio como iniciando em 2016, com o impeachment de Dilma. No entanto, a crise que corroeu o sistema político antes de 2018 e que permitiu a ascensão de Bolsonaro já expressava um declínio no processo de redemocratização. Esse declínio pode ser traduzido no desencanto dos eleitores com o sistema político e sua abertura para aventuras que varressem todos os seus vestígios.
Nesse sentido, Bolsonaro é o principal ator do declínio democrático, mas não o inventou, apenas tirou partido da crise, para aprofundá-la ainda mais.
A compreensão de que a crise democrática não se resume apenas no seu ator principal é algo que talvez possa afinar um pouco nossos instrumentos de análise.
Esta semana foi marcada pelo fiasco tecnológico nas eleições prévias do PSDB. O partido teve a boa ideia de importar o sistema de eleições primárias americanas, mas, ao adaptá-lo às suas circunstâncias, acabou revelando seu próprio fracasso.
O PSDB, um dos grandes partidos brasileiros do processo de redemocratização, já estava em decadência. A crise de confiança causada pelas denúncias de corrupção o atingiu em cheio.
Nas eleições de 2018, alguns principais nomes não só abandonaram o candidato do partido, como embarcaram na campanha de Bolsonaro.
Na falta de uma visão nacional e na incapacidade de perder de cabeça erguida, o PSDB acabou precipitando sua perda de identidade. Isso repercutiu na própria bancada no Parlamento, seduzida por votar com o governo em troca das vantagens que isso proporciona. De certa maneira, é possível dizer que o partido foi colhido por um processo de decadência anterior a Bolsonaro e agravado por ele.
Um dos argumentos da escalada autoritária era a luta contra um sistema corrompido. Sem voltar atrás nas suas pretensões antidemocráticas, Bolsonaro recuperou algumas das práticas que alimentaram sua aventura. O jogo de toma lá dá cá no Parlamento, do qual o chamado orçamento secreto é a principal expressão, mostra que Bolsonaro usa de duas armas simultâneas para atacar o processo democrático. Usa a decadência para defender suas pretensões autoritárias e, ao mesmo tempo, aprofunda o fisiologismo para se manter no governo.
As pesquisas indicam que a decadência da democracia é um fator mais amplo do que se pensa e acredita-se que apenas a minoria da população mundial viva sob um Estado Democrático de Direito.
Os processos que minaram nossa democracia em grande parte foram inspirados no governo Trump (questionamento das eleições, máquinas de fake news), mas uma compreensão maior, certamente, virá do fato de que quando Bolsonaro surgiu em cena já estávamos em condição de grande vulnerabilidade.
No ano que vem faremos eleições presidenciais e para o Congresso. Foram as eleições do período democrático que acabaram enfraquecendo o prestígio do sistema político. Eram fabulosamente caras e acabaram distanciando os partidos dos eleitores comuns.
Um roteiro para reagir ao ritmo declinante pode estar nas próprias eleições, pelo menos em dois aspectos: na apresentação de programas que possam superar a crise econômica e social, mas também em ideias que possam vislumbrar uma nova relação entre governo e Parlamento, sem idealismos, mas tentando corrigir os grandes erros, os que resultam em processos como o mensalão ou o orçamento secreto.
Com o melhor funcionamento do sistema político no conjunto, será possível atenuar o descontentamento e, consequentemente, bloquear o caminho para aventuras redentoras. A democracia nunca esteve tão perto de sucumbir desde o movimento das Diretas Já. O susto vale um esforço de análise e uma vontade de mudança.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-declinio-da-democracia-brasileira,70003908692
Biden convida Brasil para Cúpula pela Democracia, para isolar China e Rússia
Lista de convidados é razão de controvérsia por incluir outros países com governos acusados de minar Estado de direito, como a Polônia
O Globo e agências internacionais
WASHINGTON — O presidente americano, Joe Biden, convidou 110 países, entre eles o Brasil, para a Cúpula sobre a Democracia que será realizada de maneira virtual nos dias 9 e 10 de dezembro. A lista, que provocou controvérsia desde a convocação da cúpula, inclui aliados americanos como Iraque, Índia e Paquistão, mas deixa de fora outros como Arábia Saudita, Turquia e Hungria.
A cúpula foi prometida por Biden desde a campanha eleitoral de 2020, com o objetivo de ressaltar o que ele chama de volta da liderança internacional dos EUA depois dos anos de Donald Trump, marcados pelo rompimento com organismos e tratados multilaterais e pelas disputas com aliados tradicionais de Washington, como Alemanha e França.
Um dos principais objetivos do encontro é fazer um contraponto à China, classificada por Biden como a grande rival estratégica dos EUA, e à Rússia. Nesse sentido, nem o governo de Xi Jinping nem o de Vladimir Putin foram convidados, mas sim o governo de Taiwan, o que enfureceu Pequim, que considera a ilha uma "província rebelde".
Na América Latina, nem Venezuela nem Cuba estão na lista de convidados, mas ela inclui Argentina, México, Peru, Colômbia e Chile. O Brasil de Jair Bolsonaro é citado em estudo divulgado nesta semana sobre o "o estado global das democracias" como o país que registrou o maior retrocesso democrático em 2020, por causa dos ataques do presidente à Justiça e ao sistema eleitoral.
No estudo, da organização International Idea (Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral), que desde 2016 analisa 150 países, os EUA apareceram pela primeira vez na lista das "democracias em retrocesso", por causa, entre outros fatores, do questionamento de Trump ao resultado da eleição de 2020 e de leis aprovadas em estados governador por republicanos que cerceiam o direito de voto, em especial de minorias.
Do Oriente Médio, apenas Israel e Iraque foram convidados para este encontro virtual, que será realizado em 9 e 10 de dezembro. Aliados árabes tradicionais dos EUA como Egito, Arábia Saudita, Jordânia, Qatar ou Emirados Árabes não foram chamados.
A Polônia também estará representada, apesar de tensões recorrentes com Bruxelas sobre o respeito ao Estado de direito. A Hungria, liderada pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, não esteja na lista do Departamento de Estado. A Turquia, que assim como os EUA, é país-membro da Otan, também está ausente da lista de países participantes.
Já na África, estão entre os convidados a República Democrática do Congo, Quênia, África do Sul, Nigéria e Níger.
Oposição
Nesta quarta-feira, o governo de Pequim reagiu rapidamente ao convite feito a Taiwan por Biden:
— A China mostra sua firme oposição ao convite americano feito às autoridades de Taiwan — declarou o porta-voz do ministério das Relações Exteriores, Zhao Lijian.
Ele insistiu que Taiwan é "uma parte inalienável do território chinês.”
Taiwan é foco de tensões entre EUA e China. O governo local agradeceu a Biden pelo convite: "Com esta reunião de cúpula, Taiwan pode compartilhar sua história democrática de sucesso", afirmou o porta-voz da presidência, Xavier Chang, em um comunicado.
Na Rússia, o porta-voz do Kremlin Dmitri Peskov declarou nesta quarta-feira, durante uma conversa com a imprensa, que a iniciativa de Biden pretende dividir os países:
— Os EUA preferem criar novas linhas de divisão, dividir os países em bons, segundo sua opinião, e maus, segundo sua opinião — disse Peskov.
Segundo Laleh Ispahani, da Fundação Open Society, a diversidade da lista é importante:
— Para uma primeira cúpula (...) há boas razões para ter uma ampla gama de atores presentes: isso permite uma melhor troca de ideias — disse à AFP.
Segundo Ispahani, em vez de realizar uma reunião anti-China, que seria uma "oportunidade perdida", Biden deve aproveitar a reunião para "atacar a crise que representa o sério declínio da democracia em todo o mundo, mesmo para modelos relativamente robustos como os Estados Unidos."
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/mundo/biden-convida-brasil-para-cupula-pela-democracia-que-visa-isolar-china-russia-25289702
Brasil é a democracia com mais aspectos em declínio do mundo
País teve piora em oito indicadores como liberdades civis e liberdade de expressão, segundo relatório do IDEA
DW Brasil
O Brasil é a democracia que registrou piora no maior número de fatores que medem a qualidade do regime democrático nos último cinco anos. Foram retrocessos em oito aspectos, entre eles liberdades civis, independência do Judiciário, integridade da imprensa e liberdade de expressão.
Os dados estão em relatório divulgado ontem (22/11) pelo Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA, na sigla em inglês), sediado em Copenhague. O IDEA é uma organização intergovernamental apoiada por 34 países e dedicada ao estudo e à avaliação da democracia. O relatório se baseia no acompanhamento de 16 fatores relacionados ao funcionamento adequado de regimes democráticos.
Segundo os pesquisadores do IDEA, o Brasil teve melhoria consistente de seus indicadores nas décadas de 1990 e "sobretudo" na de 2000, tendência que começou a apresentar sinais de desgaste em 2013, quando houve as Jornadas de Junho, e entrou em queda em 2016, ano do impeachment de Dilma Rousseff. O relatório afirma que a piora dos indicadores foi "exacerbada" com a posse de Jair Bolsonaro, em 2019.
O documento dá destaque a iniciativas e declarações de Bolsonaro que questionaram o sistema eletrônico de votação e a atuação do Supremo Tribunal Federal. O relatório diz que o presidente "testou explicitamente as instituições democráticas brasileiras, acusando ministros do Tribunal Superior Eleitoral de se prepararem para conduzir atividades fraudulentas relacionadas às eleições de 2022 e atacando a mídia".
Queda começou em 2016 e se exacerbou com Bolsonaro, mas instituições mostraram resiliência, diz instituto.
O IDEA registra ainda que o presidente "alegou que as eleições poderiam ser canceladas a menos que ele fosse alterado" e "declarou que não iria obedecer determinações do Supremo Tribunal Federal, que conduz um inquérito contra ele por espalhar notícias falsas sobre o sistema eleitoral no país."
Ao lado de Polônia, Benin e Iêmen
O relatório informa que o Brasil foi um dos quatro países monitorados que teve declínio na qualidade do controle do seu governo, um dos quesitos importantes para o bom funcionamento de democracias, que reúne os fatores "efetividade do Parlamento", "independência do Judiciário" e "integridade da imprensa". Além do Brasil, tiveram piora nesse quesito a Polônia, o Benin e o Iêmen.
O texto ressalta que diversos fatores democráticos do Brasil ainda estão em nível superior ao da média da América Latina, devido aos esforços do país para consolidar sua democracia nas décadas passadas. "Seu bom desempenho anterior torna possível que a qualidade democrática do país se reduza sem que ele perca seu status de democracia. Isso demonstra, por um lado, que a democracia brasileira, apesar de ter sofrido anos de retrocesso democrático e queda acentuada em seus indicadores, é resiliente em muitos aspectos, o que é essencial para a reversão do processo atual", afirma o texto.
O relatório também aponta melhoria em alguns aspectos, especialmente em termos de inovações democráticas no Brasil, e cita como exemplo a criação de observatórios para monitorar as compras e ações do governo relacionadas ao enfrentamento da pandemia de covid-19.
Tendência mundial de retrocesso
O processo de erosão democrática enfrentada pelo Brasil é compartilhado por diversas outras nações, em meio ao aumento da desigualdade, da crise de representação partidária e da difusão de notícias falsas em redes sociais.
Desde 1975, quando o IDEA começou a monitorar esses fatores, a década passada foi a que teve o maior de número de países sofrendo deterioração democrática, e a lista de países inclui potências geopolíticas e econômicas como os Estados Unidos e a Índia.
Em 2020, pela segunda vez em vinte anos, o número de países que registrou declínio da qualidade de sua democracia foi maior do que os que registraram melhora.
Um dos aspectos do declínio democrático é o questionamento cada vez maior da lisura de processos eleitorais. As acusações infundadas do então presidente dos Estados Unidos Donald Trump de que as eleições americanas de 2020 teriam sido fraudadas influenciou comportamentos semelhantes em líderes do Brasil, México, Mianmar e Peru, entre outros países, segundo o relatório.
Na União Europeia (UE), três países-membros registraram declínio na qualidade da sua democracia em 2020: a Hungria, comandada pelo primeiro-ministro ultranacionalista Viktor Orbán, a Polônia, governada pelo partido populista Lei e Justiça, que está contestando princípios básicos da UE, e a Eslovênia, cujo primeiro-ministro Janez Janša tem tendências crescentemente autocráticas.
Desde 2015, cinco países perderam o status de democracia, segundo o IDEA: Benin, Costa do Marfim, Honduras, Sérvia e Turquia.
A entidade afirma que "os últimos dois anos desde nosso último relatório não foram bons para a democracia" e que as conquistas alcançadas quando a democracia tornou-se o regime de governança predominante no mundo "agora estão em uma situação precária como nunca antes". "Esta é a hora para as democracias serem ousadas, inovarem e se revitalizarem", disse o secretário-geral do IDEA, Kevin Casas-Zamora, em um comunicado.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/brasil-%C3%A9-a-democracia-com-mais-aspectos-em-decl%C3%ADnio-do-mundo/a-59903888
O que alcançaram os movimentos anti-Bolsonaro?
Lideranças consideram que movimentos antigoverno que floresceram em 2020 contribuíram para desgaste de Bolsonaro
Malu Delgado / DW Brasil
George Floyd acabara de ser assassinado nos Estados Unidos, e a primeira onda da pandemia atingia seu pico no Brasil, entre devaneios antidemocráticos do presidente Jair Bolsonaro e a falta de compromisso federal com o combate à covid-19. Ao final do primeiro semestre de 2020 floresceram no país os primeiros movimentos sociais mais organizados contra Bolsonaro.
Mais de um ano depois, alguns deles se desintegraram e não sobreviveram às dificuldades de manter uma coesão durante a pandemia. Ainda assim, lideranças que ajudaram a formar frentes de resistência a Bolsonaro consideram que importantes vozes da sociedade ecoaram mais claramente e se fortaleceram, conseguindo ao menos deter absurdos extremos do atual governo e contribuindo para o desgaste e aumento da rejeição ao presidente.
"Não tenha dúvida de que o índice de rejeição que Bolsonaro tem hoje diz respeito fundamentalmente à ação dos movimentos. Se não fosse toda essa mobilização geral, prevaleceriam só as fake news de Bolsonaro, para quem todas as desgraças brasileiras são responsabilidade de outros", disse à DW Brasil Douglas Belchior, liderança da UNEafro Brasil e membro da Coalizão Negra Por Direitos, criada ao final de 2019. Para Belchior, os movimentos sociais resistiram, cada um a seu modo, e agiram dentro de seus limites.
Ações, unificadas, segundo ele, ajudaram a combater a tese antivacina que prosperava no governo Bolsonaro, intensificando a pressão internacional. Foram também essas vozes da sociedade civil, em especial a da Coalizão Negra, que forçaram a manutenção do auxílio emergencial em 2021, evitando que a miséria e a fome se alastrassem ainda mais pelo país.
"Esses movimentos sociais atuaram e pressionaram a opinião pública e as mídias. Não haveria o desgaste nacional e internacional de Bolsonaro sem isso", sentencia Belchior.
"Com racismo, não haverá democracia"
Estamos Juntos, Somos 70% e Basta! são exemplos de movimentos que surgiram com uma bandeira comum, a luta em favor da democracia numa reação contra atos do atual governo que esses segmentos consideraram atentados contra contra direitos, civilidade e tolerância. No entanto, para Belchior, a morte de George Floyd acendeu também o alerta no país contra o racismo.
O manifesto da Coalizão Negra Por Direitos, escrito em 2020 em paralelo a esses outros movimentos que se expandiam, adotou a seguinte frase como lema: "Enquanto houver racismo, não haverá democracia".
"Uma das primeiras ações do governo Bolsonaro foi tentar derrubar a lei de cotas raciais. O movimento negro fez uma atuação em conjunto", lembra Belchior.
"Para o maior segmento da sociedade brasileira [a população negra], o risco à democracia não é novo. Onde é que tem democracia com a polícia estourando as quebradas e as favelas como sempre fez? Onde é que tem democracia com 800 mil pessoas presas, 40% delas sem julgamento?", questiona Belchior.
Ele considera que a Coalizão Negra talvez seja o único movimento social hoje no Brasil com atividade orgânica – ou seja, organizado na ponta, pela população diretamente atingida –, algo que talvez só se assemelhe ao Movimento dos Sem Terra (MST) da década de 90.
"A gente surge [após a eleição de Bolsonaro] para fazer uma dinâmica política que os brancos sempre fizeram em nosso nome. Onde o movimento negro era a ausência? Nos espaços de poder, no parlamento e em fóruns internacionais. Eram sempre os brancos falando em nosso nome. Mas a história dá uma pirueta e nos obriga a usar essa força de rede também na ponta."
Fim da espiral do silêncio da maioria
Ex-banqueiro e empresário, Eduardo Moreira é um dos nomes mais conhecidos do movimento Somos 70%. Ele enfatiza, no entanto, que nunca alimentou o próprio ego, evitando se colocar como dono do movimento ou utilizá-lo como instrumento de poder. "Sou apenas um dos 70%", pontua.
O empresário considera que o movimento foi extremamente bem-sucedido e ainda tem ecos. O objetivo do Somos 70% era extremamente simples, e muitas vezes não foi compreendido, diz.
"Vivemos no Brasil a espiral do silêncio durante um tempo. As pessoas ouviam 30% [da população que apoia Bolsonaro] falando e se intimidavam. Não só por serem a única voz que aparecia, mas por ser também uma voz muito ameaçadora, que difamava. A ideia dos Somos 70% foi só lembrar as pessoas de que podem falar, e lembrar que elas eram a maioria. Tentavam me botar numa saia justa e perguntavam: mas o [Sergio] Moro faz parte dos 70%? Se ele não é favorável a Bolsonaro, faz. Isso é simplesmente uma estatística. Não é abaixo-assinado. Ninguém pode escolher ser contra Bolsonaro e não estar nos 70%", afirma.
Para Moreira, as atuais pesquisas de intenção de votos confirmam o desgaste de Bolsonaro e são resultado da expressão da maioria. Influente nas redes sociais, o empresário postou recentemente fotos ao lado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de Ciro Gomes, que é pré-candidato à Presidência pelo PDT.
"O Somos 70% tinha esse poder de não estar vinculado a nenhum partido político e não ter um compromisso de uma aliança. Normalmente, quando uma pessoa acaba se envolvendo em um movimento específico, se ela conversa com o Lula não pode falar com o Ciro, porque escolheu um lado. Eu sempre defendi a arena do debate. Luto pelo direito de debater. Luto pelo direito de discutir."
A voz minoritária e agressiva que calou a maioria sucumbiu, e agora a percepção geral no país é outra, diz Eduardo Moreira. O movimento, diz ele, "tomou vida própria" e o conceito de Somos 70% foi incorporado pela sociedade. Algumas estatísticas revelam isso, aponta, como o fato de 70% dos brasileiros rejeitarem a flexibilização do porte de armas; 67% acreditarem que a corrupção vai aumentar, e os mesmos 67% rejeitarem a aproximação de Bolsonaro ao Centrão. Além disso, 75% dos brasileiros acham que a democracia é o regime mais indicado, e 78% afirmam que o regime militar foi uma ditadura – todos esses dados de pesquisas recentes feitas pelo Instituto Datafolha.
O ex-banqueiro acredita que o cenário econômico caótico desmascarou a incompetência do ministro da Economia, Paulo Guedes. No entanto, Moreira não crê que haverá impeachment de Bolsonaro, por falta de interesse de grupos políticos à esquerda e à direita. A despeito da acomodação da classe política, ele vê o "antibolsonarismo consolidado".
Resposta da classe artística, Estamos Juntos perdeu fôlego
"No mesmo dia eu recebi um telefonema do Douglas Belchior, da UNEafro, e outro do Luciano Huck. Se os dois enxergaram naquele movimento um ponto de encontro, era sinal de que muita gente cabia ali", relata o escritor e roteirista Antonio Prata, um dos que ajudaram a organizar o movimento Estamos Juntos.
A principal ação do movimento em 2020 foi publicar um enorme
manifesto nas páginas dos principais veículos de imprensa do país, fortalecendo princípios democráticos. O Juntos reuniu assinaturas de intelectuais e políticos de diferentes espectros ideológicos em favor da democracia.
Antonio Prata considera que naquele momento, maio do ano passado, reunir assinaturas de economistas à direita e à esquerda num mesmo manifesto foi um feito relevante. Segundo ele, no auge da pandemia era impossível colocar as pessoas nas ruas, mas havia um forte sentimento, sobretudo entre setores culturais, de que era necessário formular uma ação rápida e contundente contra o atual governo, que flertava com a ideia de golpe institucional.
O movimento Estamos Juntos ganhou adesão significativa da classe artística e se espalhou como rastro de pólvora. Foram criados milhares de grupos de WhatsApp por todo o país. No entanto, hoje, os criadores do Juntos já nem fazem mais parte desses grupos, e a discussão se perdeu. Ainda assim, o escritor considera que o movimento teve um significado relevante na conjuntura de 2020.
Prata pondera que há dificuldades quase intransponíveis quando se reúnem pessoas com pensamentos muito divergentes num único movimento, como foi o caso do Juntos. Além disso, a pandemia dificultou uma organização mais efetiva, acrescenta.
"Mas pra mim deu muito mais a ideia de que é possível fazer coisas do que é impossível", sintetiza. "Não tentaria reavivar aquilo. É muita gente diferente, cabeças diferentes. Não é a turma de ninguém. Não tem um grupo com pensamento e origem parecidas. Há outros caminhos [de resistência ao governo], mas foi ótimo, abriu muitas portas, contatos", acrescenta o escritor.
"Movimentos sofrem síndrome da paixão", diz filho de Herzog
Filho do jornalista Vladimir Herzog, morto na ditadura militar, o engenheiro Ivo Herzog também aderiu à onda de protestos contra Bolsonaro, mas tem uma visão bastante crítica, e amarga um pessimismo diante da apatia da sociedade brasileira.
"Eu realmente me engajei no Estamos Juntos, em meados de maio. Acho que esses movimentos sofrem da síndrome de paixão. É muito fácil se apaixonar, só que paixão tem data de validade. Não perdura. O que perdura é o amor. A paixão a gente mergulha, para de fazer tudo o que está fazendo, mas passa. Isso explica muitoesses movimentos, de maneira geral", diz.
Segundo ele, esses movimentos ganharam fôlego a partir de uma sequência de eventos negativos para o governo no ano passado, como a saída de Sergio Moro do governo, as trocas sucessivas no Ministério da Saúde, a falta de respostas na pandemia e a "flagrante intenção de Bolsonaro de atentar contra a democracia".
Para ele, o movimento Estamos Juntos cresceu muito rapidamente, o que desestrutura qualquer iniciativa. Além disso, pontua, por envolver muitas "celebridades", houve uma guerra de egos nos bastidores do movimento que prejudicou as articulações. "É isso. Perdeu o foco, se perdeu nas discussões, se queimaram pontes. Foi uma paixão avassaladora. Normalmente paixão dura dois anos. Aquela durou dois meses."
Herzog afirma que os pressupostos do movimento eram interessantes e que ele sempre insistiu na necessidade de manter uma ação suprapartidária. Defender nomes e partidos, sustenta, gera distanciamento, e não aproximação. "Nossa luta é contra esse obscurantismo, todo esse processo em que começamos a andar para trás, desde o governo Temer, na verdade", completa.
Empobrecimento democrático
Para Herzog, é pouco provável que a sociedade civil consiga se articular de forma efetiva em 2022 contra Bolsonaro.
"Estou muito descrente. O que vai acontecer é que vamos entrar em 2022 gastando 10% do nosso tempo brigando com Bolsonaro e 90% brigando entre a gente, para ver quem vai ser o cara [candidato à Presidência]. E não vai se discutir conteúdo."
Ainda assim, Ivo Herzog acha que Bolsonaro não se reelegerá, mas o Brasil perderá a chance de debater coletivamente uma proposta de país.
"Não existe uma casa no Brasil para se debater as ideias. Os partidos políticos não são mais isso. Estão atrás de pessoas que tragam votos. Não interessa se o cara usa suástica ou a estrela de Davi. É uma loucura, e o eleitor com um mínimo de consciência se afasta deste processo", lamenta.
Para ele, o fato de o ex-presidente Lula ser "a mesma solução política há 30 anos" é sinal do empobrecimento democrático do Brasil.
"Claro que o Lula de 1989 não é o Lula de hoje, mas é uma loucura você pensar que é o mesmo cara. É desanimador. E olha as alternativas postas... Não dá para pensar no PSDB que faz Bolsodoria. O braço direito do [Geraldo] Alckmin em São Paulo era o [ex-ministro do Meio Ambiente] Ricardo Salles", critica.
Há décadas, conclui Herzog, "o Brasil normaliza o absurdo". "Não vejo ninguém fazendo uma reflexão bem estruturada para esse país."
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/o-que-alcan%C3%A7aram-os-movimentos-anti-bolsonaro/a-59837165
Baixa aprovação de Bolsonaro põe em risco projeto de reeleição
Série de pesquisas indica que Bolsonaro está aquém de índices que presidentes e governadores tinham 12 meses antes do pleito
Bernardo Mello / O Globo
RIO — Restando cerca de um ano para a eleição de 2022, e com a avaliação positiva num patamar de 20%, segundo a pesquisa Datafolha mais recente, o presidente Jair Bolsonaro disputará novo mandato diante de um histórico desfavorável para governantes com taxas de aprovação semelhantes. Levantamento da consultoria Ideia Big Data para o GLOBO mostra que, desde 1998, quando a reeleição passou a ser permitida, presidentes e governadores que foram reconduzidos costumavam ter taxas de ao menos 40% de aprovação numa janela que compreende os 12 meses antes da votação.
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Em 2018, ano em que pela primeira vez o presidente, Michel Temer (MDB), declinou de tentar outro mandato mesmo podendo concorrer, Bolsonaro chegou ao segundo turno e elegeu-se numa campanha com condições adversas. Além de pouca estrutura partidária com o então nanico PSL, Bolsonaro era o candidato com maior taxa de rejeição, sempre próxima a 40%, durante todo o primeiro turno. Para 2022, em que pesem as avaliações negativas de sua gestão, o presidente aposta no lançamento do Auxílio Brasil, programa que ocupará o lugar do Bolsa Família, para melhorar seu patamar de aprovação.
Metodologia
O levantamento da Ideia Big Data considerou as medianas — isto é, o valor intermediário, dentro de um conjunto de pesquisas — das taxas de aprovação de governantes que tentaram a reeleição. No caso de governadores, considerando pesquisas realizadas entre 12 e 9 meses antes da eleição, a mediana de avaliação positiva dos reeleitos foi de 41%. Já os não reeleitos eram aprovados por 27% a 30% do eleitorado.
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Nas três reeleições presidenciais desde 1998, a aprovação dos ocupantes dos cargos ficou acima de 30% no período de um ano que antecedeu os pleitos — a de Bolsonaro, hoje, é de 23%. A exceção, de acordo com o levantamento, foi a reeleição em 2006 do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), aprovado por 29% no fim de 2005. Às vésperas da eleição, porém, o petista chegou a 44%.
O diretor-executivo da Ideia Big Data, Mauricio Moura, vê pontos em comum entre o salto de Lula e o efeito buscado por Bolsonaro com o Auxílio Brasil. Com a imagem do governo desgastada à época pelo mensalão, Lula experimentou uma guinada positiva em paralelo à expansão do Bolsa Família, implementado por seu governo em janeiro de 2004. O programa, que beneficiava 8 milhões de famílias ao fim de 2005, ampliou gradativamente seu alcance até chegar a 11,2 milhões de famílias em julho de 2006, sem mexer no valor do benefício.
Bolsonaro, por sua vez, aposta no aumento do benefício para R$ 400 por família até o fim de 2022, mas sem planos de expandir a base atendida, que será menor do que no auxílio emergencial. Hoje, o Bolsa Família atende 14,6 milhões de famílias. A expectativa é que o Auxílio Brasil chegue a 17 milhões; a diferença corresponde à fila já existente para cadastro no programa. O auxílio emergencial, que também inclui desempregados e trabalhadores informais, tem hoje 39,4 milhões de beneficiários.
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— Além de uma aprovação muito menor que seus antecessores, Bolsonaro tem um saldo muito negativo entre aprovação e rejeição. Se ele apenas voltar a um patamar de 30% de aprovação, como já esteve antes, não é o suficiente. Precisaria ampliar um pouco também a faixa de eleitores que o consideram regular — avalia Moura.
Em setembro, o Datafolha mostrou que a avaliação negativa do governo era de 53%, mais de 30 pontos percentuais acima do índice de aprovação (22%).
Outras variantes
Especialistas têm avaliado que apenas o incremento do novo Auxílio Brasil, em um cenário de alta de preços, pode não ser suficiente para aumentar a popularidade de Bolsonaro. Segundo o IBGE, a inflação acumulada de 12 meses chegou a 10,6% em outubro, que registrou sua maior variação mensal desde 2002.
O cientista político Jairo Pimentel Jr. lembra que, em 2020, Bolsonaro já teve queda na popularidade após a redução pela metade do auxílio emergencial, originalmente de R$ 600, e da queda de quase 30 milhões no número de pessoas atendidas.
— Ainda que o auxílio emergencial tenha trazido um pico de popularidade a Bolsonaro em 2020, hoje ele tem cinco pontos a menos de avaliação positiva em relação ao período que antecedeu os pagamentos — afirma.
A socióloga Esther Solano aponta ainda uma percepção de “insegurança” das famílias por conta da migração de programas sociais. Em meio à tentativa de aprovar a PEC dos Precatórios — agora no Senado —, que abrirá espaço fiscal para o programa, o governo adiou o reajuste de R$ 400 do Auxílio Brasil para dezembro.
'Efeito Bolsonaro' aumenta apoio à militarização das polícias, diz pesquisa
Trabalho foi feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com profissionais da categoria de todo o País
Marcelo Godoy / O Estado de S.Paulo
Cresceu o apoio à militarização das polícias entre os profissionais de segurança pública, em mais um efeito da influência do bolsonarismo nas polícias. É o que mostra a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgada nesta quinta-feira, dia 11.
“Isso ocorre como efeito combinado da dispersão de pautas corporativistas, da divisão de interesses das várias carreiras da área e da radicalização política das polícias. O presidente Jair Bolsonaro procura cooptar as polícias sem enfrentar temas que podem dividem as polícias”, afirmou o sociólogo Renato Sérgio de Lima, presidente do fórum.
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Em três temas pesquisados pelo fórum entre os profissionais da segurança ficou claro na pesquisa o aumento do apoio à militarização da área, quando comparados os dados de 2021 aos da mesma pesquisa em 2014. O primeiro tema é a queda no suporte dado à ideia de se acabar com a Justiça Militar para os policiais militares. Ele era de 63% em 2014; agora, é de 45%. O mesmo aconteceu com a ideia de que as polícias militares e os corpos de bombeiros deixaram de ser forças auxiliares do Exército, cujo apoio caiu de 73% para 54%, bem como em relação à defesa da extinção dos inquéritos policiais militares, que recebia a concordância de 58% dos policiais e, agora, conta com o apoio de 42%.
Os dados da pesquisa Escuta dos Profissionais de Segurança Pública no Brasil mostram ainda queda do apoio à ideia de uma polícia unificada e com o chamado ciclo completo, ou seja, que atue tanto no policiamento preventivo quanto na investigação de delitos. Em 2014, essa ideia tinha a concordância de 56% dos profissionais de segurança, ante 46% agora. Isso, no entanto, não significa o apoio irrestrito ao modelo atual. Nesse caso, o suporte ao sistema permanece quase inalterado: era de 14%; hoje, é de 16%.
Apesar do crescimento do apoio à militarização do setor, os dados do fórum indicam que os policiais reconhecem, em sua maioria (76%), a necessidade de “reorientar o foco da PM para a proteção de direitos de cidadania”.
A pesquisa ouviu por meio de questionários 9.067 profissionais da segurança pública de todas as unidades da Federação e corporações policiais. Os dados foram reunidos entre abril e maio deste ano.
“Há muita convergência hoje entre os profissionais das forças de segurança”, afirmou o presidente da Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol), André Gutierrez.
Entre os entrevistados, 81% dos policiais apoiam a organização das polícias em uma carreira única, com apena uma porta de entrada, como ocorre, por exemplo, na Polícia Rodoviária Federal. Esse apoio é menor entre os policiais federais. “Não acreditamos que a carreira única seja a melhor solução para a PF”, afirmou o presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva.
Atualmente, 71% dos entrevistados apoiam a ideia de investir no policiamento comunitário em vez de se priorizar as prisões. “Precisamos servir nosso patrão, que é o cidadão, e ele não vem sendo servido”, disse Gutierrez, da Cobrapol. Paiva concorda. Para ele, faltam planos plurianuais de investimento. “A polícia judiciária perde recursos com as outras polícias. Se ela tivesse plano de investimentos, isso faria a segurança pública crescer.”
A pesquisa registrou ainda que 4% dos policiais foram baleados em serviço e que existe uma visão negativa em relação à Justiça e ao Ministério Público. Para 22% dos entrevistados, a Justiça se opõe ao trabalho policial, tornando-o mais difícil. Outros 46% disseram acreditar que a magistratura seria insensível ou indiferente às dificuldades do trabalho policial. O mesmo valeria para o Ministério Público, segundo 48% dos policiais.
“O sistema de Justiça criminal não é só de responsabilidade da segurança pública, cada um dos seus componentes precisa fazer autocrítica”, afirmou Paiva.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,efeito-bolsonaro-aumenta-apoio-a-militarizacao-das-policias-diz-pesquisa,70003896380
Edson Barbosa comenta a importância da comunicação política para 2022
Jornalista e publicitário foi o sexto palestrante de curso para pré-candidatos e suas equipes
João Rodrigues, da equipe da FAP
Na Aula 06 do curso Jornada Cidadã 2022, ministrada na noite desta segunda-feira (08), foi abordado o tema “Marketing e comunicação política”. O jornalista e publicitário Edson Barbosa, referência internacional em campanhas eleitorais, falou sobre a necessidade de o candidato ter seus princípios, metas e valores bem definidos. O curso, destinado a pré-candidatos para as eleições do próximo ano e suas equipes, segue com inscrições abertas por meio da plataforma Somos Cidadania. A aula completa está disponível no link: https://youtu.be/A0UTjV8TJqI
Luiz Werneck Vianna: Até quando suportaremos?
Quem são os nossos algozes e de onde extraem o poder com que nos assolam?
Luiz Werneck Vianna / Blog Horizontes Democráticos
Até quando vamos tolerar o saque de uma gangue instalada no coração da política brasileira que se apropria do que é ganho pelos brasileiros que mourejam para ter o pão de cada dia? Até quando vamos permanecer passivos diante dos crimes continuados que perpetram mesmo diante de uma sociedade vítima de uma cruel pandemia que ceifou a vida de 600 mil de cidadãos, parte dos quais poderia ter sobrevivido não fossem as ações criminosas da quadrilha que pretendeu tirar proveito da calamidade sanitária que ainda nos aflige em negócios escusos? Até quando será permitida a eles comprometer nosso futuro com a depredação da nossa natureza e dos recursos nossos humanos privando as novas gerações de uma formação que lhes permita o acesso a uma vida ativa e produtiva? Quem são os nossos algozes e de onde extraem o poder com que nos assolam?
Não fomos objeto de uma conquista militar por parte de um país inimigo que nos imponha pela força a vassalagem como a antiga Roma reinava em seu vasto império. Ao contrário, estamos submetidos a naturais da terra com nomes e sobrenomes conhecidos, não poucos de longa data, herdeiros da nossa história comum de contubérnio entre o latifúndio e a escravidão. Essa marca de registro do nosso DNA, tantas vezes diagnosticada e não poucas combatidas pelos que tentam extirpa-la sem êxito, persiste como mácula em nossa formação, resistente ao que foi a obra da Abolição, que deixou ao desamparo a população liberta com sua opção preferencial pela emigração massiva dos pobres europeus, e na forma de república sem povo que se criou aqui com o protagonismo dos militares e dos proprietários de terras paulistas.
Tal herança maldita, longe de perder influência com os sucessivos surtos da modernização do país, foi preservada em suas linhas principais, exemplar o processo de industrialização conduzido por uma política de Estado que sintomaticamente se aliou às elites agrárias. No caso, nada de melhor expressa essa aliança do que a legislação trabalhista do governo Vargas nos anos1930 do que a exclusão dos trabalhadores da terra dos direitos concedidos aos urbanos. Classicamente, configuraríamos o tipo de modernização conservadora, confirmado nas décadas seguintes, com os resultados nefastos que hoje se estampam aos olhos de todos como na abissal desigualdade social reinante entre nós, raiz dos processos pelos quais as elites proprietárias se apropriam do poder político e fazem uso dele para preservar seus privilégios.
Raimundo Faoro, em ensaio magistral sobre a modernização nacional procura demonstrar seus elos de ligação com as reformas modernizadoras introduzidas pelo marquês de Pombal em Portugal de fins do século XVIII, que se aproveitou de recursos do despotismo político para introduzi-las ao tempo em que conservavam os setores privilegiados como a nobreza e o clero. Sem bases novas de sustentação, suas mudanças não resistiram à duração de um reinado e tiveram frustrados seus objetivos. Tal modelagem pombalina, conclui Faoro, nunca abalada ter-se-ia conformado na plataforma de todas as modernizações brasileiras, cujas mudanças sempre impuseram o resultado de ainda mais reforçar o domínio das forças conservadoras.
Quase ironicamente, o argumento de Faoro sugere que, por volta dos anos 1870, a tal revoada das ideias novas de que fala a bibliografia no seu culto à ciência importado pelo positivismo mal ocultaria o retorno do espírito pombalino de cientificismo. O lugar de assentamento dessas novas ideias seria a das academias militares, o da Escola Politécnica e das faculdades de medicina. O positivista Comte teria recuperado Pombal. A emergência das novas elites intelectuais forjadas nessas instituições teria dado origem ao pathos de um desenvolvimento e de uma industrialização induzida pelas luzes da ciência mediante ações orquestradas por elas.
Nesse novo cenário, sob a república, os militares são investidos de papel de protagonismo e com advento do Estado Novo, em 1937, se tornam hegemônicos na condução da política brasileira e, a partir daí, atores privilegiados na condução da industrialização acelerada do país, presentes na construção de Volta Redonda, na Petrobras, assim como na imensa malha das empresas estatais. O script, longamente ensaiado cumpriria seu enredo: a modernização brasileira teria um andamento conservador sob a tutela militar.
O desafio a esse andamento, no começo dos anos 1960, centrado em um programa de reformas sociais, entre as quais a agrária, proposto pelo governo João Goulart, com ampla base popular, encontrará seu desenlace no golpe de 1964, quando os militares se auto-investirão dos papeis de condutores da modernização pelo alto, com atenção especial à questão agrária, tal como se evidenciou na implantação do agronegócio.
Essa história de frustações e de desencantos das modernizações autoritárias podem, até elas, conhecer o sortilégio da astúcia na história, pois os processos que desatam contêm em si a possibilidade de trazer o moderno como antídoto a elas, tal como ocorreu nos idos dos anos 1980 quando foram derrotadas por uma coalizão ampla de forças democráticas escorada por massivas manifestações populares. Lá como agora onde se generaliza a percepção de que o país está sem rumo e dirigido por caminhos equívocos que somente trazem o aprofundamento da miséria social reinante, por toda parte, inclusive em setores das elites, soam os sinais de que isso que aí está deve ser interrompido como solução de salvação nacional.
A derrota da fascitização da sociedade, a essa altura consumada, culminou, como último recurso para esse governo de militares nostálgicos da ditadura do AI-5 se manterem no poder, na cínica aliança aos políticos avulsos do Centrão sempre aplicados em suas pretensões de roer até os ossos o patrimônio comum. Tal mudança de rota se afasta radicalmente das tradições modernizadoras brasileiras, inclusive daquelas que se originaram nos meandros das corporações militares. O lixo do atraso está pronto para ser varrido.
Fonte: Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/ate-quando-suportaremos/