democracia representativa

Gaudêncio Torquato: Rejeição à política tradicional

A crise da democracia representativa, decorrente de certos fenômenos como o declínio das ideologias, o desânimo dos eleitores, a pasteurização dos partidos, a perda de prestígio dos mandatários e o enfraquecimento das oposições, tem propiciado a rejeição à política tradicional e o florescimento de novos polos de poder.

A rejeição social aos velhos costumes políticos assume proporções tão significativas que chegam a abalar, até, os alicerces das instituições do Estado, a partir dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), que passam a receber sérios questionamentos por parte da sociedade.

Dessa constatação, emerge importante questão: protagonistas rejeitados e mal avaliados, principalmente quem detém mandato popular, poderão recuperar seus vetores de força a ponto de repor a confiança das massas eleitorais? Vejamos.

Convém inicialmente lembrar ser impossível apagar da noite para o dia uma taxa de rejeição, principalmente quando ela é alta.

O que vem a ser esse repúdio e qual a origem dessa indignação?

Trata-se de uma predisposição negativa que os cidadãos desenvolvem e mantêm acesa em relação a determinadas figuras públicas. Para compreendê-la melhor, há de se veri¬ficar a intensidade da rejeição dentro da fisiologia de consciência do eleitorado.

O processo de conscientização leva em consideração um estado de vigília do córtex cerebral, comandado pelo centro regulador da base do cérebro e, ainda, a presença de um conjunto de lembranças (engramas) ligadas à sensibilidade e integradas à imagem do nosso corpo (imagem do EU), e, ainda, lembranças perpetuamente evocadas por sensações atuais. Portanto, a equação aceitação/rejeição se fundamenta na reação emotiva de interesse/desinteresse, simpatia/antipatia.

Extensões da maldade
Pavlov se referia a isso como reflexo de orientação. A rejeição tem uma intensidade que varia de pessoa para pessoa.

Figurantes que são ou foram objeto de tiroteio por parte da mídia, principalmente a televisiva, são os mais prejudicados. Eles integram o manual da maldade, tornam-se extensões do território da ilegalidade e, nessa condição, passam a ser demonizados.

Há casos clássicos de políticos que vestiram o figurino da bandidagem. Com o passar do tempo, alguns conseguiram limpar a camada de sujeira que cobria seus perfis.

Ademar de Barros (1901-1969), ex-prefeito e ex-governador de São Paulo, ex-candidato à presidência da República, em 1955 e 1960, exerceu grande influência no Estado-líder da Federação. Colou nele a marca “rouba, mas faz”.

Orestes Quércia, ex-governador de São Paulo, deixou uma imagem não muito asséptica.

Paulo Maluf, que sempre teve altos índices de rejeição, passou a administrar o fenômeno com muito esforço. Mudou comportamentos. Tornou-se menos arrogante, o nariz levemente arrebitado desceu para uma posição de humildade e começou a conversar humildemente com todos. Hoje, perambula pelo universo político e se dá bem com os jornalistas. É um caso de sobrevida na política. Foco de Procuradores que o acusam de ter feito fortuna com recursos obtidos ilegalmente, ele se resguarda sob o mantra: “não tenho dinheiro no exterior; quem achar conta minha no exterior pode ficar com o dinheiro”.

Erros e rejeições de adversários também contribuíram para ate¬nuar a predisposição negativa contra ele. Purgou-se pelos pecados mortais dos outros. “Ruim por ruim, vou votar nele porque ele fez coisas”, pensam seus contingentes eleitorais.

Pesquisar as causas
Em regiões administradas pela velha política, a rejeição a determinados candidatos se soma à antipatia, ao familismo e ao grupismo.

O fato é que diante de uma paisagem assolada por escândalos e denúncias, as massas passam a se manifestar de forma aguda, mantendo a disposição de se libertar de candidaturas impostas e nomes envolvidos em negociatas de propinas.

Mas não se pense que o caciquismo se restringe a grupos familiares. Certos perfis, mesmo não integrantes de feudos políticos, expressam a imagem de antipatia, ora pelo ar de arrogância, ora por um estilo ortodoxo de fazer política ou, ainda, por se vestirem com o manto do oportunismo.

Na atualidade, em quase todas as regiões, há perfis com altos índices de rejeição, comprovando que os eleitores, cada vez mais racionais e críticos, intencionam passar um arado para derrubar a cerca de currais eleitorais.

Isso explica a eleição de candidatos que expressam o sentido do novo, como se viu, por exemplo, no Maranhão, onde Flávio Dino venceu a família Sarney.

A rejeição pode ser atenuada quando o protagonista penetra fundo na origem dos problemas que consomem sua imagem. Para tanto, é oportuno usar as ferramentas adequadas, como pesquisas qualitativas, que poderão mostrar como e porque os grupos sociais o rejeitam.

Nesse momento, deve-se enfrentar com coragem o uso do espelho, onde ele, o ator político, vai descobrir as manchas que sujam sua feição: atitudes pessoais, jeito de encarar as massas, oportunismo, mandonismo, autoritarismo, orgulho, vaidade, arrogância, desleixo, desprezo pelas demandas sociais, cooptação à moda antiga, abuso do poder econômico, história política negativa, envolvimento em escândalos, ausência de boas propostas, descompromisso com as regiões etc.

Para enfrentar essa trilha de obstáculos, os figurantes hão de gastar muita sola de sapato. Não se apaga índice de rejeição com meia dúzia de providências. Trata-se de uma mudança de estilo de fazer política.

Trabalhar com a verdade – esse é o ponto-chave para se começar a administrar a taxa de rejeição. O eleitor distingue factóides de fatos políticos, de boas e más intenções, propostas sérias de coisas enganosas.

O candidato há de montar no cavalo de sua própria identidade, melhorando as habilidades e procurando atenuar os pontos negativos.

É erro querer mudar de imagem por completo, passar uma borracha no passado e usar cosmética em demasia.

Urge mudar sem riscos, sem mudanças constantes e bruscas, de acordo com a sabedoria da velha lição: não ganha força a planta frequentemente transplantada.

* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação.

 


Marco Aurélio Nogueira: A crise nossa de cada dia

Nada autoriza a que se projete um atalho que engavete a democracia representativa

A vida é feita de crises. Conflitos e disputas alimentam as interações humanas como o ar que se respira. A própria dinâmica social, contraditória e movida a antagonismos, faz os sistemas inventados para prover a sociedade de recursos de sobrevivência entrarem em desajuste e perderem eficácia. É uma constante.

Devemos desdramatizar a ideia de “crise” para que sejamos capazes de assimilá-la e compreendê-la. Não há por que temer o que é parte da vida.

Crise não é sinônimo de fim ou morte. Não implica que uma situação “crítica” se reproduza de forma catastrófica. Uma crise de governo não anuncia o fim do governo, mas sim que algumas de suas condutas e opções já não bastam para sustentá-lo. Uma crise econômica tem indicadores claros – recessão, desemprego, redução do consumo, inflação, fuga de investimentos –, mas não se traduz necessariamente em colapso, podendo, porém, significar que um padrão de acumulação ou uma orientação macroeconômica atingiram o esgotamento.

Nossa época está assentada num sistema produtivo altamente dinâmico, competitivo e predatório, que não respeita limites nem fronteiras, que se faz exigindo o máximo de todos os agentes, em especial os do mundo do trabalho. O capitalismo consolidou-se como sistema mundial e ganha fôlego com a incorporação de tecnologias que repercutem nos diferentes níveis de vida, abalando as estruturas sociais, as ideias, as práticas, as formas de organização e o Estado como um todo. Somos protagonistas de uma era de crises.

Crises são como terremotos, que recebem pontuações que indicam a potência destrutiva que carregam. Há crises e crises. Algumas não passam de abalos ligeiros, que nem sequer sentimos. Mesmo que provoquem paralisia e desorganização, seus efeitos são positivos: ajudam-nos a compreender o que não funciona e facilitam a eliminação de células mortas. Outras se estendem no tempo e corroem os corpos em que se instalam. Todas indicam a necessidade de uma transformação, mas algumas exigem mudanças profundas, que demandam exercícios intelectuais sofisticados, operações complexas e tratativas difíceis. Neste segundo caso, sobretudo, as crises prolongam-se como um mal-estar que produz efeitos perversos, retira vigor de soluções antes vitoriosas e desorganiza o que está estabelecido, contaminando a vida social. Tais crises exigem que os sistemas saiam em busca de novos pontos de equilíbrio, com os quais possam voltar a funcionar adequadamente.

O mundo atual conhece crises desse segundo tipo. Muitas sociedades, talvez todas, estão mergulhadas nelas. São partidos políticos que desaparecem, tecnologias que se tornam obsoletas, formas de gestão e de organização produtiva que fracassam, buracos que se formam por todos os lados e, ao atingirem a esfera política, levam à emergência de líderes salvacionistas improváveis, fundamentalismos regressistas, desentendimentos e polarizações paralisantes, como que a anunciar a abertura de uma época de cegueira cívica, na qual os cidadãos não sabem bem o que desejam, o que podem conseguir e o que devem fazer para delinear um futuro melhor.

Crises assim são crises políticas: enraízam-se no chão da sociedade, contagiam as pessoas e atingem o Estado, não somente os sistemas políticos em senti- do estrito. Além de cegar os cidadãos, também bloqueiam a deliberação democrática, o processo de tomada de decisões e a formulação de políticas públicas.

O Brasil aparece aí de corpo inteiro. Mas o problema não é somente brasileiro. A crise política globalizou-se, em sintonia com a globalização capitalista. A economia, a cultura e a sociedade mundializaram-se, mas a política permaneceu “nacional”. A ausência de um “Estado mundial” faz com que o sistema internacional fique “fora de ordem”.

No plano das nações – no Brasil, por exemplo – ocorre um efeito parecido: a economia, a sociedade e a cultura transformam-se graças à globalização e à revolução tecnológica, modernizam-se, mas a política não consegue acompanhá-las; ingressa assim numa condição de sofrimento, desestruturan-dose. Os sistemas nacionais giram em falso, impulsionados pelos efeitos da globalização.

A crise política atual é uma crise da política. Diz respeito a regras, sistemas e procedimentos, mas afeta hábitos, condutas e valores éticos com os quais se pratica, se pensa e se acolhe a política. Não se trata de um simples “defeito institucional”. O desarranjo sistêmico – que não é catastrófico – desdobra-se num descompasso entre Estado e sociedade, governantes e governados, representantes e representados. Trata-se de uma crise do Estado em seu conjunto, que envolve a todos num abraço totalizante.

Uma crise dessa magnitude não pode ser vencida somente com reformas institucionais, por mais importantes que elas possam ser. Requer uma abrangente pedagogia democrática, que valorize a dimensão pública da vida e agite os humores sociais em sentido progressista, civilizador.

No que diz respeito particularmente à democracia representativa, pode-se dizer, parafraseando Norberto Bobbio, que ela não conseguiu cumprir algumas de suas maiores promessas. Mas está viva, em transformação. Nas últimas décadas foi capturada pelo mercado e pelas oligarquias (políticas, corporativas, empresariais), perdendo pujança e entrando em tensão com as expectativas cívicas. Um deslocamento se processou: a democracia passou a ser vivida mais nos espaços societais “desregulados” do que no plano do Estado e dos sistemas políticos.

Mas nada autoriza a que se projete um atalho que engavete a democracia representativa e a confronte com alguma modalidade de “democracia direta”. O caminho mais profícuo parece ser o de se repaginar a democracia e o governo representativo, soltar suas amarras, para que se reencontrem com a cidadania ativa e com uma alteridade que não se renda ao fascínio das “diferenças”, dinamizando e qualificando o convívio social.