Democracia Política e novo Reformismo
Luiz Paulo Costa: O populismo autoritário e as eleições municipais
“Quais são as propostas concretas que a oposição tem apresentado?” Esta pergunta feita por vários analistas e operadores políticos convoca a cidadania a cumprir o seu papel fundamental. Em período de populismo autoritário a melhor oposição é a luta e o voto pela democracia. Representativa e consequentemente participativa é a vacina contra o vírus totalitário. E a Constituição Cidadã de 1988 reforçou o exercício da cidadania quando reconheceu em seu Artigo 1º o Município um ente federativo da União como os Estados e o Distrito Federal. Já a Constituição de 1946 da vitória dos Aliados contra o totalitarismo nos legou o entendimento de que ao município cabia tudo que fosse do seu peculiar interesse. Como a democracia representativa.
Mas a Constituição Cidadã de 1988 foi mais conclusiva com a cidadania ao incluir o município como um ente federativo e o seu direito à auto-organização através de suas Cartas Próprias, a Lei Orgânica Municipal. Se a Constituição Federal garante o Estado Democrático de Direito a todos os viventes do País e a Constituição estadual dos federados, a Constituição Municipal leva os seus princípios passíveis de serem exercidos pela cidadania em seu habitat natural: o município. Dizia Franco Montoro que as pessoas vivem no município e é aí que devem exercitar os seus deveres e direitos consagrados pelas Constituições da União e dos Estados.
As eleições municipais de 15 de novembro e o princípio republicano de todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido, oferece-nos uma oportunidade ímpar para trazer a democracia mais próxima do cidadão, o que é tudo o que o populismo autoritário não quer. Aliás, já chamava a atenção no artigo “O segundo inverno do governo Bolsonaro”, Pedro S. Malan, ministro da Fazenda no Governo FHC, no “Estadão” em 14/6/20, “que o Brasil elegerá nada menos que 5.570 prefeitos e cerca de 57.800 vereadores”: “Daí a importância das eleições municipais desse ano. Seus resultados terão forçosamente influência nas eleições de 2020.”
E não apenas pelo exercício do direito fundamental de ser governado numa república democrática por representantes eleitos pelo povo e de respirar-se agora também no município o ar da democracia em todos os seus sentidos. É que, como ente federativo, o município deixou de ser uma circunscrição administrativa e passou a ser um ente político com direito à sua auto-organização através da Lei Orgânica, a sua Constituição Municipal. É bom lembrar que o município precedeu a criação do próprio Estado. A Coroa portuguesa reconheceu a sua importância até na defesa do território colonizado contra as invasões holandesas e francesas recrutando os soldados. E a Declaração da Independência e a Proclamação da República foram também legitimadas pelas Câmaras Municipais.
Assim, a Lei Orgânica do Município é elaborada e promulgada pelas próprias Câmaras Municipais. Embora já existissem nos municípios do Rio Grande do Sul e após no Ceará, foi a Constituição Cidadã de 1988 que, consagrando o direto dos municípios à auto-organização, deu maior abrangência às Leis Orgânicas, como verdadeiras Constituições Municipais.
No Estado de São Paulo, a Câmara Municipal de São José dos Campos saiu à frente apresentando, em 1984, a sua Carta Própria com o apoio de renomados juristas e constitucionalistas como Dalmo de Abreu Dallari, Celso Antônio Bandeira de Melo, Michel Temer, Geraldo Ataliba, José Guedes, Bernardo Gomes de Melo, Luís César Amad Costa, baseada no princípio do peculiar interesse do município. E a Assembleia Legislativa com Proposta de Emenda Constitucional, mobilizando assim a opinião pública para o final reconhecimento do Direito à Auto-Organização Municipal pela Assembleia Nacional Constituinte com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988.
As eleições municipais de 2020 celebram também os 30 anos da elaboração e promulgação das Leis Orgânicas pelas próprias Câmaras Municipais. E como tal, os candidatos a vereador poderão discutir concretamente o seu conteúdo com os eleitores e os eleitos promover a sua revisão atualizando este estatuto constitucional municipal.
As Leis Orgânicas Municipais tratam desde a organização administrativa do município como também da participação popular, saúde, educação, meio ambiente, ciência e tecnologia, planejamento municipal (plano diretor de desenvolvimento integrado), transporte público, desenvolvimento social e rural, cultura, esporte e lazer. Enfim, de tudo o que diz respeito ao seu peculiar interesse, fixando princípios, diretrizes e ações.
Portanto, as políticas públicas no âmbito municipal são de responsabilidade de prefeitos e vereadores dentro de suas competências legislativas e executivas. E promover o exercício pleno da democracia representativa e participativa na Lei Orgânica do Município é um ato concreto de oposição ao populismo autoritário.
*Jornalista, escritor e vereador de 1977 a 1996 em São José dos Campos-SP
Luiz Werneck Vianna: O Rio de Janeiro não pode ser Gotham City
Entregues ao Deus dará vivem no nosso estado Rio de Janeiro quase 16 milhões de pessoas, boa parte delas, talvez a maioria, sem rumo e tateantes em busca de oportunidades de vida, lutando com unhas e dentes por um lugar ao sol, uma boquinha, um negócio da China, uma boa mamata, um falso brilhante, para alguns até uma côdea de pão. Mas o estado do Rio de Janeiro nem sempre foi assim, pois aqui nasceu nosso estado nacional com suas elites dirigentes empenhadas em difundir ideais civilizatórios, e sobretudo, nos anos 1930, tornou-se a sede do projeto de implantação dos alicerces da indústria pesada na cidade de Volta Redonda, que se tornou polo da siderurgia, elemento crucial para a industrialização do país. Mais à frente, outras iniciativas asseguravam essa primazia do estado na conversão do modelo agroexportador até então vigente nas atividades econômicas para o industrial, tais como, entre outras, a Fábrica Nacional de Motores, a companhia Nacional de Álcalis, a Petrobras e a Eletrobrás.
Foi sob o impulso do Estado autoritário, institucionalizado pela Carta de 1937, que tomou forma o processo de modernização autoritária que iria remodelar o Estado e suas relações com a sociedade, conduzido por uma elite forjada ainda nos anos 1920, entre os quais se destacavam nomes como Alberto Torres, Oliveira Vianna, Manoel Bonfim, entre tantos, que, críticos do liberalismo oligárquico e de sua república de fachada, preconizavam em favor de um estado forte que rompesse com o atraso do país e abrisse caminho à sua modernização. Com a criação do DASP, em 1938, dotava-se o Estado da capacidade de selecionar e treinar uma elite burocrática destinada a impor uma administração orientada para esses fins.
A democratização de 1946 não interrompeu essa trajetória que nos vinha da década anterior, apenas expurgou-a da sua ganga manifestamente autoritária, conservando sua modelagem original de primazia do Estado sobre a sociedade, principalmente quanto aos fins da sua economia. Contudo, a natureza desse Estado, manteve-se fiel à sua construção nos anos 1930 e preservou seu caráter bifronte, uma vez que não se reduzia aos elementos coercitivos, conhecendo também instituições e agendas voltadas para a produção de coesão social, muito especialmente abrigadas na fórmula corporativa. Por meio das corporações o Estado se vinculava à sociedade, em particular no mundo do trabalho, e, por meio desses nexos, seus fins e valores encontravam formas diretas de comunicação com os sindicatos e seus filiados. A Justiça do Trabalho cumpriria os fins estratégicos de extrair os conflitos do trabalho, em uma sociedade que se industrializava de modo acelerado, da órbita da sociedade para a do Estado, que os harmonizaria sob a mediação do Direito.
Ao estilo de Durkheim, sociólogo francês então em voga, referência importante na obra de Oliveira Vianna, autor chave na ideologia da modernização autoritária do período, a política do Estado não descuraria do tema da solidariedade social, recusando as concepções atomistas do liberalismo reinante na 1ª República. Nesse tipo de relação corporativa do Estado com os sindicatos, em que o primeiro, por meio da sua burocracia incutia naqueles os valores e interesses nacionais ao tempo em que amparava seus direitos trabalhistas, tecia-se uma certa eticidade no mundo do trabalho, certamente a partir da óbvia assimetria nessa relação.
Nesse cenário de empresas estatais e de organização corporativa, ordenou-se a paisagem social do Estado do Rio de Janeiro, em particular da sua capital. De fora dele restava uma imensa população vivendo de pequenos negócios e de ofícios urbanos praticados, em geral, individualmente. Esse mundo se encontra à margem da política, ocupando posições intersticiais na vida urbano-industrial em expansão. A política, enquanto tal, se fazia no interior do Estado e dos seus aparelhos, os dos maiores partidos, o PSD e o PTB, vinculados a ele. De meados dos anos 1950 a 1964, sob o registro da questão nacional, entendida em chave de desenvolvimento das forças produtivas, tal cenário, com algumas modulações, se mantém.
A principal modulação se faria presente nas classes subalternas que emergiria do afrouxamento dos controles coercitivos a partir do governo JK de índole liberal, bastante reforçado no governo Jango, um antigo ministro do Trabalho no segundo governo de Vargas, quando a questão nacional se encontra, pela via dos sindicatos, expressão popular. A cidade do Rio de Janeiro se torna o principal palco dessa mudança, e nela se constituem, na política e nas atividades culturais, novos atores sociais e políticos que vão exercer influência nacional, inclusive na vida popular, exemplar na crescente institucionalização das Escolas de Samba cujos desfiles extravasam as fronteiras da sua capital para todo o país.
O golpe militar de 1964 atalha essa movimentação virtuosa, e as mudanças que trazem consigo vão repercutir dramaticamente nos destinos do Estado, em particular da sua capital. Expurga-se o que havia de Durkheim na fórmula corporativa nas relações entre sindicatos e Estado que se orientava no sentido de favorecer elementos de solidariedade social, e o que vai restar dela se perverte em instrumento de coerção. De outra parte, o repertório que passa a ter vigência se desloca para os temas do mercado e do favorecimento da acumulação capitalista com o abandono da questão social, que, antes mesmo em plano secundário, se fazia presente em agendas dos dirigentes políticos.
A reação a esse estado de coisas ensejou nas duas décadas seguintes intensa movimentação popular e das forças do liberalismo político sobreviventes da razia operada em seus quadros pelo regime militar, que encontraram sua oportunidade na grave crise econômica que ameaçava o país. Como é sabido, a solução de compromisso encontrada para a saída do impasse que sitiava o regime militar foi o da sua auto extinção com as salvaguardas que conseguiu impor. A Constituição de 1988 nasce com o mandato de renovar a vida democrática do país, embora não venha a contar com sustentação explícita do PT, a esta altura o partido mais influente nas massas trabalhadoras, com óbvias repercussões futuras.
Os dois partidos que dominarão a cena a partir daí, o PSDB e o PT, ambos com identidades enraizadas em São Paulo, vão encontrar dificuldades de implantação na política do Rio onde a era Vargas, por meio de Leonel Brizola e do seu partido, o PDT, deixara fortes raízes. Nenhum desses partidos, entretanto, veio a demonstrar vocação de mobilização da vida popular, especialmente na imensa população das favelas que persistia à deriva da vida política, fora o esforço das Comunidades de Base da igreja católica em organizá-las, experiência virtuosa interrompida pelas elites eclesiásticas que a entenderam como de orientação simpática ao marxismo.
As classes subalternas da cidade, deixadas à sua própria sorte, se tornavam assim expostas, em particular os jovens, a atividades marginais, primeiramente do jogo do bicho e de sua corte de pistoleiros, que se convertiam em personagens tutelares das Escolas de Samba, e, depois, com a difusão milionária do comércio de drogas, das do narcotráfico como seus “soldados”. Na esteira disso, abriu-se passagem para a organização das milícias, a pretexto de proteger a população favelada da ação dos narcotraficantes, como ocorreu com a favela de Rio das Pedras, na região oeste da cidade, arregimentando para sua operação a banda podre de policiais militares e civis, que se tornam senhores dos negócios de transportes, da venda de gás, até da construção civil, praticando extorsões, em nome da proteção que alegavam fazer, da população dos seus “territórios”.
A partir desse lugar de força, controlando boa parte das favelas e regiões próximas a elas, as milícias descortinaram o lugar da política, apresentando, em vários casos com sucesso, seus quadros ou representantes como candidatos às eleições municipais. O Rio corre o risco de se perverter em Gotham City, sem ordem, sem lei e religião, salvo a de pastores que lhe recomendam a panaceia do empreendedorismo e que também já descobriram o caminho do voto.
Trazer a cidade de volta à vida e às suas melhores tradições não é tarefa fácil, cuja significação não se limita ao local, porque afeta a própria sorte da democracia no país. Tem-se à mão, nesta sucessão eleitoral que se avizinha a oportunidade de começar a virar esse jogo maléfico. Os partidos políticos de compromissos democráticos não podem ignorar o caminho das alianças que lhes abram a possibilidade de devolver a cidade aos seus cidadãos depois de tantas experiências grotescas. Sobretudo devem estar atentos aos novos personagens que vieram à tona nesta pandemia, principalmente os que souberam armar a trama da rede solidária que protegeu os mais vulneráveis, os profissionais da saúde que com espírito cívico se empenharam na defesa da vida, sem esquecer aqueles que permaneceram firmes em seus compromissos democráticos.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio
Elimar Nascimento: A política quântica
O livro de Giuliano Da Empoli, Os engenheiros do caos, é um livro pequeno, mas que produz uma enorme inquietude nos espíritos daqueles que não concordam com o novo populismo, seja ele de esquerda ou de direita. Aliás, em alguns casos, como na Itália, o maior partido populista (Movimento 5 Estrelas) ignora esta distinção e ganha eleitores de uma parte e de outra. Na Alemanha, o partido populista Alternativa para a Alemanha (AFD) e, na França, o Front Nacional de Le Pen fazem o mesmo. Ganham eleitores da direita e da esquerda. Redutos de eleitores comunistas, socialistas e sociais democratas deslocam-se no apoio a estes partidos. Hoje, o AFD é a terceira força política na Alemanha e Le Pen a segunda na França.
Ao final da leitura, tentando visualizar a imagem que fica do livro, veio-me a representação da física quântica. Aparentemente, ela define melhor o que é a configuração da política populista no mundo moderno. A física newtoniana descreve um mundo mecânico, em que uma certa causa produz uma certa consequência. A unidade última das coisas é o átomo, dotado de propriedades estáveis. A física quântica explode o átomo e salpica nosso mundo de paradoxos que desafiam a racionalidade científica. Nela, uma realidade objetiva não pode existir, pois um simples “olhar” muda a trajetória de uma partícula, que pode ocupar dois lugares ao mesmo tempo. Assim, duas verdades podem existir sem que uma invalide a outra. Cada observador determina a sua própria realidade. Esta é a nova configuração da política hodierna, uma política quântica. É sobre esta base, movediça, que se erguem os novos populismos.
No livro, publicado pela Editora Vestígio no Brasil, Giuliano Da Empoli estuda a ascensão do populismo no mundo atual, citando várias situações, entre as quais a de Israel (Benjamin Netanyahu), França (Coletes Amarelos) e Brasil (Jair Bolsonaro). Centra-se, contudo, no estudo de quatro exemplos: Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump; Inglaterra, com a votação do Brexit; Hungria, com a permanência no poder de Viktor Orban; e Itália, o “Valle do Silício” do populismo moderno, com a constituição e ascensão ao poder do Movimento 5 estrelas (M5E). Este é o partido-algoritmo que nasce em 2010, sob a direção de um comediante, Giuseppe Pierre Grillo, conhecido como Beppe Grillo. Mas, estes personagens ou movimentos são os visíveis, aqueles que podemos ver nos meios de comunicação. O que o cientista politico ítalo-francês, formado na Science Politique de Paris, nos mostra é mais interessante. Mostra os feitores do sucesso destas novas forças políticas e, sobretudo, as práticas que lhes deram a vitória. Mostra quem são aqueles que trabalham nas assessorias, nas sombras, para produzir estas vitórias “inesperadas”, e como eles trabalham: físicos, matemáticos, engenheiros, tecnólogos e estatísticos. Porque a vitória eleitoral destas novas forças políticas depende mais destes novos profissionais do que de cientistas políticos e comunicadores. Da Empoli desvela essas feições que a maioria de nós não tem nem ideia. São eles, entre muitos outros: Gianroberto Casaleggio (Itália), que aliado ao comediante Beppe Grillo cria o partido-algoritmo M5E; Dominic Cummings (Inglaterra), que conduz o movimento Brexit ao sucesso, quando as expectativas eram inversas; Steve Bannon (EEUU), o grande estrategista de Donald Trump, que revolucionou sua campanha eleitoral, e seu auxiliar, o inglês Milo Yiannopoulos; Andrew Breitbart, o mestre de Bannon; e Arthur Finkelstein, americano nova-iorquino que leva Benjamin Netanyahu a vencer Simon Perez, em Israel, e leva Orban ao poder na Hungria.
São realidades distintas as estudadas pelo autor, e como era de se esperar cada qual com suas diferenças, suas especificidades. Mas, elas têm elementos comuns. São estes, e não o específico de cada local, o que tem de mais relevante no livro. E que tentaremos mostrar aqui, de forma breve, em nove pontos.
As elites como inimigas, a inexperiência como qualidade. À semelhança dos demagogos na Grécia antiga e dos nazistas e fascistas dos anos 1930, os principais adversários do populismo moderno são as elites: financeiras, políticas e intelectuais. Para os seus eleitores, as elites constituem uma casta blindada formada por traidores do povo e da nação, indivíduos corruptos. No slogan dos líderes populistas, o mundo assiste, hoje, à revolta dos povos contra as elites globais, o capital financeiro, a intelectualidade de esquerda e, sobretudo, os políticos e partidos tradicionais, tanto de esquerda, quanto de direita. O comediante Beppe Grillo e os ministros do primeiro governo do M5E, em 2018, são neófitos na política e inexperientes no trato da coisa pública. Para seus eleitores, é sinal de pureza, de distanciamento das elites. Prova de que são “bons políticos”.
A política sem cortesia, a grosseria como valor. Em todos os casos estudados (EEUU, Itália, Hungria e mesmo Israel e Brasil) os líderes populistas são diretos, grosseiros, sem “papas na língua”. Isso, que poderia ser defeito, é lido como qualidade por seus leitores. É sinal de autenticidade. Traços que os distinguem das elites políticas, que seus eleitores odeiam e culpam por todos os males que sofrem: a perda de emprego e renda; as dificuldades no acesso aos serviços de saúde e educação de qualidade; o transporte sofrível e a habitação cara; a violência urbana; a ameaça à família tradicional, com os novos formatos; o desmoronamento dos valores tradicionais, por práticas discursivas dos esquerdistas e as ameaças imaginárias, provindas dos imigrantes, entre outros.
A política populista vive da mentira. Arthur Finkelstein define com clareza este aspecto da política do moderno populismo: “ninguém sabe de nada e o que você percebe como verdade passa a ser verdade”. O bom político é o cara que diz uma série de coisas verdadeiras para, em seguida, dizer uma série de coisas falsas. Uma mentira tem em média 70% mais chances de se propagar do que uma verdade. Como já dizia Mark Twain “uma mentira pode fazer a volta ao mundo no mesmo tempo em que a verdade calça seus sapatos”. No meio dos eleitores do populismo, um líder que agrega Fake News (FN) a sua narrativa é um homem de ação, que constrói sua própria realidade para responder aos anseios de seus seguidores. Pois, para estes, a veracidade dos fatos não conta. O que importa é a versão explicitada pelo líder, pois para os eleitores do populismo “Ele sabe, ele conhece, ele diz o que pensamos e sentimos. Ele diz a verdade”.
A raiva e o medo como motores da ação. A propaganda do populismo moderno é assentada nos sentimentos de raiva, medo e rancor, existentes no âmbito de pequenos grupos extremistas e, de maneira difusa, na grande massa dos seus eleitores. Os primeiros compõem o núcleo duro de seus apoiadores, que se mobilizam, investem, agem. Soldados em combate nas redes sociais, espalhando Fake News para todo lado. A estes, soma-se a grande massa dos eleitores que se sentem ameaçados por inimigos reais ou imaginários que são os imigrantes, a globalização, a União Europeia, a valorização da diversidade cultural, os valores tradicionais ameaçados pelas mudanças dos costumes etc.
É interessante observar como a raiva é o afeto narcisista por excelência, segundo os psicólogos. Afinal, a raiva é uma grande fonte de energia em pleno desenvolvimento no mundo inteiro. Por sua vez, ela é agudizada pelas redes sociais. Os líderes populistas a compreendem e a justificam: “a culpa é dos outros e você pode se tornar um soldado pela justiça, agregue-se a nós”. O mote da vitória do Brexit era: descubra porque as pessoas estão com raiva, identifique o quê, diga que a culpa é da Europa e peça para ela votar contra a Europa.
A xenofobia é outro traço do populismo moderno. Em todos os países que as forças populistas ascenderam, o nacionalismo é um elemento central dos discursos de seus lideres. Como diz Orban: “não queremos nenhuma minoria com patrimônio cultural diferente do nosso”. O sentimento anti-imigração reúne a direita e a esquerda sob o manto do novo populismo. Dessa forma, apenas repetem uma das características do nazi-fascismo dos anos 1930.
A propaganda costumizada e o fim dos programas partidários. As redes cultivam a cólera, exacerbam os conflitos de forma generalizada. Aproveitando deste fato, a publicidade populista rearticula os conflitos e os substitue pelo conflito entre “nós” e “eles”, o povo e as elites. Alimentada, sobretudo, pelas emoções negativas como a raiva e a cólera; aproveitando do escárnio dos excluídos como ferramenta para dissolver as hierarquias e o medo para mobilizar as pessoas em ações pouco racionais, a propaganda populista cria uma mensagem em conformidade com as características de cada eleitor. E tudo isso sem a necessidade de ter coerência no coletivo, pois cada um recebe a mensagem que lhe cabe. Ninguém sabe o que o outro recebe, só o centro da propaganda conhece cada um e os seus sentimentos. Não existe comunicação horizontal, só vertical. Para cada eleitor identificado e caracterizado pelos computadores é produzida uma mensagem particular, pessoal, com variações e modalidades distintas, e em grande quantidade. Trump emitiu 5,6 milhões de mensagens desta natureza; Hillary, sua rival, 66 mil.
As mensagens produzidas nos computadores visam mobilizar seus eleitores e desmobilizar os eleitores do adversário. Permita-me utilizar o exemplo de Trump, que está mais perto de nós brasileiros para explicar este último aspecto. Nas vésperas das eleições, a campanha dele enviou mensagens particulares para eleitores de Hillary, particularmente três grupos. Aos que apoiaram o candidato democrata que perdeu as primárias para Hillary, Bernie Sanders, foram enviadas mensagens das relações de Hillary com o mundo financeiro. Para as jovens mulheres, eleitoras do Partido Democrata, mensagens sobre “desvios” sexuais da família Clinton. Finalmente, para os afro-americanos foram enviados trechos de discursos da adversária, em geral retirados de seu contexto, que se referiam de maneira indelicada ou grosseira aos negros americanos. As mensagens legais, que tinham algum respaldo na imprensa, em relatórios ou livros eram enviadas pela central da campanha de Trump. As mensagens ilegais, Fake News sobre os mesmos temas, eram enviadas por centenas de centros distribuídos no mundo, inclusive São Petersburg, na Rússia.
A política tornou-se uma tarefa de softwares. O método dos assessores dos líderes políticos populistas, em todo o mundo, é o microtargeting: análises demográficas sofisticadas, levantamento de dados nas redes sociais e sondagens eleitorais constantes, correlacionadas por máquinas inteligentes e superpotentes. Identificar os eleitores, seus gostos, dúvidas e raivas é o objetivo primeiro. Com isso, produz-se mensagens customizadas em função dos rancores e dúvidas de cada eleitor. Como diz Dominic Cummingis: “Se você quer fazer progresso em política, contrate físicos ao invés de cientistas políticos e comunicadores”. O físico está habituado a trabalhar com uma infinidade de dados, o que não estão os cientistas políticos. Na física, o comportamento de uma partícula não é previsível, mas o de aglomerados, é. Pela observação do sistema é possível prever o médio, estabelecer padrões. O sistema possui características e regras que o tornam previsível. Os físicos e estatísticos sabem usar métodos de simulações dos sistemas, convergência para solução ótima e correlações entre as variáveis. Há 10 anos atrás, os dados não permitiam trabalhar com os aglomerados humanos, hoje sim. E cada ser humano pode ser tratado como uma variável de um sistema simulado.
Com a internet das coisas e o Big Data, teremos uma profusão de dados ainda maior sobre as pessoas, que permitirão fazer uma política de convencimento e mobilização como jamais vista no mundo. Cada eleitor receberá uma mensagem adequada ao seu perfil, e nenhuma outra pessoa saberá, salvo o centro emissor e controlador dos dados. E essa propaganda escapa a qualquer forma de controle.
O centro político se esvazia, os extremos crescem. Com a propaganda personalizada, o jogo político não consiste mais em reunir as pessoas em torno de um denominador comum, um programa de ideias e proposições, mas inflamar as paixões, estimular os grupelhos nos extremos e depois adicioná-los, mesmo à revelia. Unir os extremos e impedir os eleitores de convergirem para o centro.
Afinal, a política dos populistas é como um carnaval. Não há lugar para observador na política populista, todos são atores. Não há lugar para comportamentos politicamente corretos, tudo é gozação e grosseria. O intelectual progressista é um pedante, e é preciso ridicularizá-lo. Não existe compromisso com a verdade, com os fatos, mas apenas com a brincadeira, a narrativa do líder populista. Antes, havia opiniões e interpretações diferentes em torno dos mesmos fatos. Agora não, os fatos são distintos e existem ou não em função da narrativa de cada um, da verdade de cada pessoa. O carnaval não se afina com o bom senso, nem com a racionalidade habitual, ele tem sua própria lógica. Está concentrado na intensidade da narrativa e não na exatidão ou veracidade dos fatos.
Como dizem os especialistas em organização e mobilização, o absurdo é um fator organizacional mais eficaz do que a verdade. O carnaval da política populista se alimenta de dois elementos: a cólera de alguns meios populares e uma máquina superpotente de dados. Se Lênin dizia que o comunismo nascia do casamento dos sovietes e da energia, os engenheiros do caos afirmam que o populismo nasce do casamento da cólera com os algoritmos.
Para finalizar, duas conclusões de caráter mais geral: a) uma máquina superpoderosa irrompeu na política, transfigurando-a; b) as campanhas eleitorais se transformaram em guerras entre softwares. O jogo eleitoral mudou. Antes, predominava uma força centrípeta, ganhava quem ocupava o centro do corpo eleitoral. Agora, domina a força centrífuga, que estimula os grupelhos extremistas, radicaliza-os e, depois, agrupa-os no dia das eleições. A mensagem agora é individual e pode ser contraditória sem que ninguém perceba. O líder político se torna um homem oco, pois sua vontade é ditada pelo que as máquinas conseguem captar dos sentimentos dos indivíduos. Dessa forma, e de maneira surpreendente, as minorias intolerantes ditam o rumo da história em alguns países. Assim, a vitória dos líderes populistas depende da existência do apoio de uma minoria intolerante e de uma maioria tolerante. Afinal, os extremistas se tornaram o centro do sistema político.
Nem tudo está perdido, porém. Um sistema movido por uma força centrífuga escapa do ponto de equilíbrio e fica cada vez mais instável. E elementos de instabilidade concentram-se em diversas dimensões no mundo. Na economia, observa-se o aumento acentuado das desigualdades; no plano internacional, o crescimento exacerbado do nacionalismo e da xenofobia; na cultura, a intolerância cresce em relação aos que pensam diferente; na política, registra-se o crescimento das forças extremas do leque ideológico; no social, constata-se o incremento dos processos de exclusão social. Finalmente, na dimensão ambiental, a crise ecológica não é corretamente enfrentada com riscos crescentes para as condições da vida dos humanos, senão da sua própria existência. Tudo isso causa uma enorme instabilidade no mundo e não sabemos quando ocorrerá a ruptura. E, sobretudo, para onde ela nos levará.
De toda forma, há sinais interessantes de reação, inclusive no berço do populismo moderno, a Itália, como o movimento conhecido como das Sardinhas. Vale a pena conhecê-lo.
*Sociólogo, com doutorado pela Université de Paris V (René Descartes, 1982), e pós-doutorado na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Professor associado dos Programas de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UNB) e do Programa Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Autor do livro Um mundo de riscos e desafios: conquistar a sustentabilidade, reinventar a democracia e eliminar a nova exclusão social (FAP, 2020).
George Gurgel: Brasil sustentável - Qual a Política Sanitária? Uma perspectiva pós pandemia
Os desafios da Política Sanitária no Brasil é reverter a triste e desoladora realidade de mais da metade da população não ter acesso ao saneamento básico, como um compromisso permanente do Estado, do mercado e de toda a sociedade brasileira.
Como construir esta nova perspectiva pós-pandemia?
A pandemia deu maior visibilidade à nossa tragédia social: são mais de 100 milhões de pessoas sem instalações sanitárias nas suas residências, demonstrando a ineficiência do atual sistema sanitário brasileiro, agravado com o isolamento social e a crise política vivida por todos nós.
Questões mais amplas e estratégicas são partes desta nossa reflexão: a situação das nossas bacias hidrográficas, a qualidade e os usos múltiplos da água para a geração de energia, a produção agrícola, industrial, residencial, o turismo e o lazer, fundamentais para a vida e a sustentabilidade econômica, social e ambiental brasileira e de uma parte significativa da população mundial, dependente das exportações nacionais de papel e celulose, de minérios e de alimentos.
Em relação à Política Sanitária em si, devemos vê-la como parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS). O saneamento básico no SUS é o caminho para uma melhoria efetiva da saúde e da qualidade de vida dos brasileiros. Esta concepção deve ser fundamento de uma nova Política Sanitária a ser construída no País.
O Município como foco da Política Sanitária
Os municípios devem ser o foco da Política e da Gestão Sanitária e das políticas públicas em geral. São nos municípios que as pessoas vivem e realizam suas vidas.
Atualmente, o Brasil possui 5.570 municípios distribuídos pelos 26 estados da Federação (IBGE, 2014). Minas Gerais concentra o maior número deles (853), seguida de São Paulo (645). No outro extremo, os estados localizados na região norte são os que possuem o menor número, apesar da grande extensão territorial: Amazonas (62), Rondônia (52), Acre (22), Amapá (16) e Roraima (15). O mais populoso é São Paulo com mais de 11 milhões de pessoas e o de menor população é Borá, também em território paulista, com apenas 805 habitantes. A maioria dos nossos municípios enfrentam problemas de custeio e contam apenas com as cotas constitucionais.
Assim, a maioria das administrações municipais não conseguem atender às expectativas de suas populações, excluídas dos seus direitos básicos constitucionais, a saber: trabalho, moradia, segurança pública, saúde e educação. Portanto, a questão sanitária é parte integrante desta realidade.
Quais as razões dessa crise permanente dos municípios, incluindo a crise sanitária? Qual o papel dos governos, do mercado e da sociedade civil no enfrentamento desta crise?
A questão sanitária e o novo marco regulatório de saneamento básico devem ser avaliados considerando estas questões.
Devemos dimensionar os desafios de uma política pública sanitária, em cada município brasileiro, relacionando-a com a realidade econômica, social e ambiental regional e nacional.
A pandemia e a crise política vividas pelo Brasil não apontam caminhos para a melhoria da política de saneamento básico. As relações dos governos municipais com os estaduais e com o governo federal ficam muito a desejar.
Assim, há que se discutir a realidade sanitária e o novo marco regulatório de saneamento básico, associados às mudanças necessárias no caminho de um novo pacto político, econômico e social entre o governo federal e os dos estados e municípios.
Quais as questões estruturantes a serem consideradas neste contexto frente a essa realidade sanitária brasileira?
Há que se considerar que a maioria da população brasileira vive nas cidades. A vida social é predominantemente urbana. As cidades dão a tônica das regiões onde estão inseridas. Assim, a qualidade da Política Sanitária a ser construída será definida pelo pacto entre estes diversos atores políticos, econômicos e sociais em questão.
Quais seriam os desafios de uma Política Sanitária nesse contexto?
A Política Sanitária deve construir mecanismos de elaboração, participação e avaliação permanentes da cidadania, através de Planos, Programas e Projetos que venham a atender a demanda sanitária municipal, em sintonia com as outras políticas públicas municipais, no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental.
Portanto, deve-se discutir a questão sanitária como parte integrante da sustentabilidade do município de uma maneira mais ampla, com foco na região onde está inserido e suas respectivas áreas urbanas, concentradoras de populações, violências e desigualdades sociais.
A crise dos municípios e das suas administrações reflete um conjunto de distorções, disfuncionalidades e limites das atuais estruturas político-administrativas que são responsáveis pela formulação e implementação das políticas públicas municipais, tanto na esfera do próprio município, quanto nas áreas estadual e federal. Esta crise pode ser resumida na insuficiência de receita, na falta de visibilidade em relação às decisões sobre despesas e investimentos, na insuficiência de recursos técnico-administrativos e, ainda, na falta de participação da população na política e na gestão municipal.
Neste contexto, urge realizar as reformas política, administrativa e tributária que não mudem apenas os critérios de redistribuição de recursos entre União, Estados e Municípios, melhorando a situação atual da maioria dos municípios, como também garantir aos Estados e à União recursos que viabilizem a implementação de políticas públicas, particularmente nas áreas de educação, saúde e saneamento básico, criando as condições para o enfrentamento da difícil realidade econômica e social da maioria dos municípios brasileiros.
Qual regulação?
Um dos desafios fundamentais de uma nova Política Sanitária é que a agência reguladora setorial funcione com autonomia.
No Brasil, falta às agências reguladoras a devida autonomia frente aos atores políticos, econômicos e sociais. O modelo de regulação, inspirado na experiência das democracias europeias, não funciona de maneira satisfatória frente à realidade brasileira. Aqui, desde quando foram criadas as agências reguladoras na década de 1990, a atuação das agências nas áreas de energia, telecomunicações e saúde, entre outras, fica muito a desejar.
A questão democrática aqui se coloca de maneira contundente. A sociedade civil e a cidadania brasileira estão desafiadas a construir relações de maior autonomia das agências reguladoras frente às relações entre o Estado e o mercado. O funcionamento do Estado e do mercado no Brasil não atendem às demandas históricas e atuais da maioria da população. São os nossos dilemas permanentes a serem superados para a ampliação da democracia brasileira, com a inclusão desta maioria excluída da população, não apenas na falta de saneamento básico, como também de educação, moradia, saúde, segurança, mobilidade e trabalho, condições elementares para a dignidade da vida social.
Em geral, as agências reguladoras, em suas diversas áreas de atuação, sofrem forte pressão de lobbys políticos e econômicos, prejudicando a defesa dos interesses mais amplos da sociedade, impactando, na maioria das vezes, os socialmente excluídos. Caso explícito do saneamento básico no Brasil: os 100 milhões de excluídos não podem pagar o serviço de saneamento e os governantes não criaram as condições políticas e econômicas para enfrentar e superar esta situação.
A autonomia da agência reguladora, em relação ao Estado e ao mercado, é o desafio fundamental da nova política de saneamento do Brasil. A regulação feita, nas últimas décadas, pela Agência Nacional de Saúde (ANVISA), não avançou de maneira efetiva para a melhoria do saneamento básico brasileiro. No novo marco regulatório, a responsabilidade é da Agência Nacional de Águas (ANA), desafiada a enfrentar e apontar caminhos de inclusão da maioria da população brasileira sem água tratada e saneamento básico.
A participação de empresas estatais e privadas, inclusive internacionais, já faz parte do modelo de saneamento brasileiro, desde os anos 1990. A participação privada, inclusive internacional, não trouxe os resultados esperados para a melhoria da política de saneamento neste período.
Portanto, além dos investimentos necessários – que devem ser procurados, independente da natureza do capital –, o que se deve trabalhar frente aos nossos gigantescos desafios sanitários é um Plano Nacional de Saneamento, com metas a serem alcançadas nos próximos anos e devidamente acompanhado pelos governos, pelas agências reguladoras, pela comunidade científica e por organizações empresariais e da sociedade civil, comprometidos com a Política Sanitária Nacional.
Além disso, devem-se criar mecanismos institucionais para acompanhar e avaliar as relações entre a agência reguladora com as próprias empresas a serem reguladas e as relações destas empresas e da própria agência reguladora com os atores políticos, econômicos e sociais nacionais e regionais.
Assim, a eficiência de uma Política Sanitária está relacionada com os seus resultados efetivos, no tempo e no espaço. A saber: seus resultados obtidos através do Plano Nacional de Metas a serem perseguidas, considerando os custos e objetivos econômicos, sociais e ambientais; também a qualificação profissional e a base técnica utilizada para atingir os resultados almejados. A natureza do capital não influi diretamente nos resultados de nenhuma organização empresarial. São inúmeros os exemplos na história do capitalismo de organizações na Europa, EUA, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, estatais, privadas ou mistas, bem sucedidas ou não. Todas elas sempre precisam do Estado, em tempos de crise ou não. O inverso também é verdadeiro: o Estado democrático de Direito precisa de todas as organizações e da sociedade para o funcionamento da economia e das políticas públicas em geral, isto acontece também na área de saneamento básico.
Estes são os dilemas permanentes e os desafios das sociedades democráticas – a necessidade de pactuar entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais. A experiência europeia avançou na inclusão social, com conquistas efetivas para a cidadania, nos momentos em que foi possível uma maior taxação do capital, garantindo políticas públicas inclusivas para a maioria da população.
Assim, uma política de saneamento básico deve ser parte integrante de uma visão mais ampla da realidade econômica, social e ambiental do município e estar comprometida com a reorganização do espaço urbano a favor do público, melhoria das condições de moradia, educação, saúde, segurança, mobilidade urbana e ampliação da renda familiar em função dos que mais necessitam.
Finalmente, é importante destacar os limites impostos pelo atual pacto federativo para a construção de uma Política Sanitária Nacional, em função das crises política, econômica, social e de valores, nestes tempos de pandemia, vivenciados pela sociedade brasileira, particularmente na área federal. Portanto, a Política Sanitária é uma questão nacional, que se realiza em cooperação e conflito entre os interesses do Estado, do mercado e da sociedade civil, com a participação proativa da cidadania.
*Professor da Universidade Federal da Bahia e do Instituto Politécnico da Bahia
Paulo Fábio Dantas Neto: Sobre coragem - esquerda e protestos de rua em hora de pandemia
O mito da coragem como parteira de soluções políticas tem prosperado muito nesses tempos de isolamento social e não apenas no ambiente sombrio da extrema-direita. Entre nós, democratas - em especial quem se auto localiza como democrata à esquerda - muitas pessoas sentem-se “culpadas” por estarem “fazendo nada” numa hora tão dramática. Essa culpa - que não nos deixa perceber, de modo profundo, o isolamento como também um gesto de cooperação social - torna as pessoas mais inclinadas a ver como benigna e superior a atitude de quem expõe sua própria pessoa e as de seus concidadãos, incluindo familiares e amigos, a um vírus de potência letal, em nome de uma causa. O impulso, então, é o de atender a um chamado mobilizador, para fazer, na rua, a sua parte e não se sentir alienado, ainda que seu móvel pessoal não coincida com a causa de quem faz o chamado.
Esse impulso heroico faz democratas sinceros duvidarem da eficácia da prudência política. A justificativa racional para o ato imprudente é de que não resta alternativa diante da ineficácia do método político “convencional” (eu diria democrático), em seu necessário tempo lento. Vamos, então, fazer aquilo que os políticos, que têm o dever de fazer, não fizeram. Aquilo o que? Tirar Bolsonaro. Estamos certos, ou ao menos esperançosos, de que indo à rua agora, faremos isso?
Não, não estamos, ao menos a maioria das pessoas não delira. O que se espera é ficar em paz com a consciência e/ou obter reconhecimento social de que fez alguma coisa que está ao seu alcance, como cidadão ou cidadã. Cada caso é um caso, é óbvio, mas penso ser comum dar-se o oposto do que diz a justificativa do gesto corajoso. O juízo negativo sobre o tempo e o método da política é veraz. Mas ele é resultado, não causa, da força interna, de caráter ético-político, que pode nos levar à rua.
Quero argumentar contra a ida às ruas nesse momento, sem com isso desconhecer a legitimidade desse impulso humano, que é precioso para que a política não se reduza a cálculos utilitários. E quero argumentar contra a ida às ruas propondo a democratas que se sentem tomados por esse impulso que não virem as costas a um juízo sobre sua eficácia. Quando a convicção desconsidera a eficácia, a política se dissolve na ideologia. Age-se só por convicção, sem medir as consequências do ato, para si e os outros. Para se ir à rua em momento de pandemia é preciso ter mais que convicções. A ação precisa ser, além de digna, útil. Numa palavra, é preciso ter, também, objetivos. Eles precisam estar além do desejo de quem os traça para serem traduzidos em público. Compartilháveis e negociáveis para que gerem ação realmente coletiva. Sem isso, consciências individuais podem até ser aplacadas pela coragem. Mas a democracia acabará cedendo espaço a algum tipo de mito.
Antes de ter a ousadia de discutir a eficácia ou ineficácia dos atos programados para esse domingo, faço um convite a que se examine a eficácia ou ineficácia da conduta até aqui seguida pela maioria dos agentes políticos da democracia brasileira. Julgo-a, com simpatia, como uma conduta prudente. Tudo o que até agora foi possível construir, em termos de defesa civil, contra essa calamidade sanitária e contra as investidas autocráticas do Presidente da República, foi obra dessa prudência política de quem está à frente dos demais poderes da República e de estados federados.
Especialmente devemos esses instrumentos de defesa à firme atuação do Congresso Nacional, para a qual tem contribuído a liderança séria e discreta do Presidente da Câmara dos Deputados. Dali surgem, há meses, soluções legislativas para enfrentamento e mitigação das crises sanitária, econômica e social. E dali surgem também recusas seguidas a aceitar o confronto político que deseja o presidente e seu governo, cuja atitude de negação, irresponsabilidade e predação social perante as mesmas crises fornece um contraste gritante com a conduta do Congresso. Negando-se ao confronto nessa hora, o Congresso, como instituição, afirma sua própria pauta, a do país real que, diante das guerras particulares do presidente, sofre e não encontra outra representação política nacional, que não a do Poder Legislativo. Como mais um argumento em favor da sua eficácia, digo que, com essa atitude, o Congresso está atraindo o governo para o campo da política, o mais adverso ao Presidente. Quem não gostar da lentidão e tiver aversão à impureza desse campo, deve pensar duas vezes em trocá-lo pelo campo de batalha frontal que o adversário escolhe nessa hora de pandemia.
Concordo que não basta a atuação das lideranças democráticas presentes na elite política. É preciso também muita mobilização civil. E a vejo crescer, com energia diretamente proporcional à também crescente radicalização do presidente. Discrepâncias há entre democratas, assim como incompreensões e equívocos. Mas nada disso nega ou impede a concretização do rumo principal tomado pelo movimento, que é unir, cada vez mais, consciências cívicas a forças políticas. Já somos 70% e, se continuarmos nesse caminho, seremos mais. Nesse ponto não estou pessimista, porque tudo anda ao seu tempo. A hora da solução pode ainda não ter chegado, mas está, a cada dia, mais próxima. Estamos cada vez mais juntos e menos ocupados que antes com as divergências entre nós. Rodas de conversa, marchas virtuais, lives engajadas de artistas, jornalistas e outros especialistas, youtubers em atuação, tudo vai formando um caldo de cultura e energia democráticas. Os manifestos de conteúdo unitário levam tempo para ganhar cada vez mais assinaturas, mas avançam e não são uma lenta coisa em si mesma. Eles são termômetros e uma antecipação do “é da coisa” que estamos construindo, através desses movimentos todos.
Mas estou preocupado, porque o adversário está vivo e joga no ataque. A sabedoria ofensiva de Garrincha e a elegância sutil de Bobô não nos deixavam esquecer o papel dos beques adversários. As dos nossos atuais zagueiros no Legislativo, no Judiciário, na imprensa e na sociedade é não subestimar o do atacante demolidor. A agitação de rua é o meio privilegiado até aqui usado por Bolsonaro para lançar torpedos contra a democracia. Aí ele consegue, no atual momento, avançar mais que na esgrima que trava com as instituições. É preciso realismo para entender que está sendo assim; confiança na democracia para prever que não ficará assim; paciência e inteligência política para ser tranquilo e infalível como Bruce Lee.
Já estou aqui comparando a eficácia do asfalto com as de outros espaços em que a luta democrática se dá nesse momento. Posso ser interrompido por alguém que, com razão, me dirá que não posso falar da eficácia, ou não, de uma mobilização de rua que ainda não aconteceu, ou melhor, apenas começou no domingo passado. Afinal, o que impede que política convencional, participação cívica virtual e mobilização física de cidadãos combinem-se, em vez de se excluírem?
Evitarei qualquer adivinhação sobre isso e até espero, de coração, que meus meros presságios negativos com a ida às ruas sejam desmentidos pelos fatos. Se isso ocorrer tenham certeza de que comemorarei o meu erro. O que tenho feito em outros textos e farei aqui é prestar atenção em experiências vividas e em traços da experiência atual. Sinais de dois tipos, que merecem comparação cuidadosa.
Em 2013, as manifestações, até um certo momento, foram tão massivas que nenhuma marca se sobrepunha à sua marca geral, que era a da diversidade. Era possível distinguir, entre os manifestantes, por exemplo, quem usava e quem não usava a tática black bloc. Hoje tende a haver confusão visual, uma busca de homogeneidade que complica a distinção, posto que não é possível distinguir os trajes do luto pela perda de vidas negras, dos trajes característicos de black blocs. Talvez essa indistinção corresponda, em alguma medida, ao traço de união civil que a luta contra o racismo no mundo pode propiciar. Então, qual é o problema? Sem entrar aqui em considerações políticas ou éticas sobre o mérito da tática black bloc, não se pode perder de vista que o estigma existente sobre ela é ouro na mão de quem quer construir uma narrativa para confundir as manifestações com guerrilha urbana. Uma narrativa dessas tem chances de prosperar no instante em que algum tipo de violência irrompa e não faltarão agentes interessados em provocá-la.
Em 2013, apareceram também depredadores destituídos de compromisso com qualquer objetivo político. Os black blocs decerto não podem ser confundidos com eles. Os próprios manifestantes entendiam e se entendiam sobre isso e até tinham a cooperação da polícia para identificar e isolar os desordeiros e provocadores. É isso o que Boulos promete fazer domingo, além de distribuir máscaras. Acontece que agora há duas novidades absolutas e explosivas a desafiar essas prevenções relativamente tranquilizadoras: os provocadores da direita abundam e as polícias vêm tendo uma conduta suspeita, parecendo mesmo estarem infiltradas por milícias. A gravidade da situação requer que nos interroguemos se governadores e comandantes de PMs poderão, em abstrato, manter sob controle a cumplicidade clandestina de policiais e milicianos, uns e outros bem concretos.
Por fim, eu que adoro futebol, sou tricolor militante e assíduo frequentador de estádios, vejo o protagonismo de torcidas organizadas como ingrediente a mais de tensão negativa. Sei que quem promove os atos não são os comandos das torcidas, mas, por se colocarem como antifascistas e democratas, não deixam de partilhar o espírito geral que caracteriza esses corpos de torcedores, em geral, exaltados. São terreno poroso também a infiltrações da extrema-direita e a lógicas predatórias e mercenárias. Como diz uma amiga minha, cujo nome não estou autorizado a revelar, são um ambiente culturalmente marcado por um machismo territorialista. Por andar se exibindo com camisas de clubes, querendo se comunicar diretamente com as torcidas, Bolsonaro talvez receba agora, como cogita outro amigo meu, o troco por ter tentado concorrer num terreno de galos, que não domina.
Parece claro que a esquerda está dividida quanto a associar-se a essa convocação. O PSOL embarcou e Guilherme Boulos anuncia que também lá estará a Frente Brasil sem Medo. O PSB emitiu uma nota em que se posiciona, claramente, em sentido oposto. O PT não emite mensagem clara. Sua bancada no Senado assinou uma nota conjunta com toda a oposição, desaconselhando participação nos atos.
Imagino que os governadores do partido e de toda a esquerda também não gostem da ideia, mas a militância está atiçada em direção ao movimento, certamente animada pelas recentes declarações de Lula e de Gleisi Hoffmann, pondo-se na contramão da convergência que cresce entre as forças de oposição. Quanto ao PC do B, salvo engano, ainda não falou. Espero que o faça em linha com Flavio Dino.
Pois bem, uma parte da esquerda embarca ou flerta com a "masculinidade tóxica" de achar que pode fazer o que a política conciliadora não pode ou, supostamente, não quer. E tempera essa atitude com uma gramática de agitação política que a traduz como coragem. Essa é a nitroglicerina que mais temo no domingo. Com o temor próprio de quem pensa nas sequelas equivalentes que a covardia e a temeridade podem deixar na democracia.
Desde ontem estou em corpo a corpo virtual com alunos, tentando que fiquem longe disso e se mobilizem noutra direção, sugerindo também que tentem fazer o mesmo com seus colegas. Apesar de não pessimista no atacado, sinto-me, nesse varejo tenso, como se fosse preciso fazer algo que lembra a lista de Schindler. A analogia é pretensiosa, mas acalma.
- Cientista político e professor da UFBa.
George Gurgel de Oliveira: O Brasil insustentável e os desafios da sustentabilidade
A semana do meio ambiente nos coloca a necessidade de refletir sobre as nossas relações com o planeta e as mudanças necessárias para enfrentarmos os complexos desafios da sociedade atual na perspectiva de construção de relações sustentáveis da própria humanidade entre si e com a natureza.
A pandemia, vivida por toda a humanidade, está evidenciando ainda mais a insustentabilidade do mundo em que vivemos. O que podemos fazer frente a esta realidade, durante e pós pandemia, na busca da sustentabilidade?
Desde a Revolução Industrial, quando as máquinas são incorporadas aos processos produtivos, modifica-se radicalmente a escala de produção e de consumo, colocando-se a necessidade de ampliação dos mercados, além do Estado nacional, criando-se novas relações políticas, econômicas e sociais, na vida urbana e rural.
Desencadeou-se um processo vertiginoso de transformação da vida cotidiana, modificando a maneira de ser e agir da humanidade, impactando, como nunca antes na história, os ecossistemas e a biodiversidade do planeta.
Consolidou-se uma lógica de produção e consumo que, histórica e atualmente, mostrou-se insustentável. Coloca-se a necessidade de construir uma outra perspectiva de sociedade, ampliando as formas e os conteúdos da democracia, a partir de novas relações políticas, econômicas e sociais.
Estas as questões estruturais a serem enfrentadas para a construção de uma sociedade sustentável, necessária para a sobrevivência de toda a humanidade e do próprio planeta.
Vamos fazer esta travessia? Ou queremos nos autodestruir, destruindo os ecossistemas do planeta, com o atual modelo de sociedade, responsável pela destruição da vida, tanto nos períodos de guerras quanto nos de paz, excluindo bilhões de pessoas das conquistas sociais modernas?
Quais são os agentes políticos, econômicos, sociais e ambientais que serão responsáveis por tais mudanças?
Atualmente, as principais economias mundiais, concentradas no G20, particularmente os Estados Unidos, a China e a Rússia, consomem mais da metade dos recursos naturais do planeta. Estes grupos de países têm uma responsabilidade maior na perspectiva de transformação desta nossa realidade. As ações que deveriam ter sido implementadas a partir da Agenda 21(ECO-92), particularmente em relação às mudanças climáticas, continuam sendo adiadas com danos irreversíveis aos ecossistemas planetários, com reflexos econômicos e sociais negativos na vida de milhões de pessoas, em todos os continentes.
Desde então, ficou evidente a necessidade de considerar as variáveis econômicas, sociais e ambientais em qualquer escala territorial, tanto a nível mundial, quanto a nível nacional e regional, em busca da sustentabilidade.
Iniciou-se um processo de tomada de consciência e de discussão das questões ambientais, em função dos graves problemas decorridos do modelo industrial e urbano, da concentração de populações nas cidades e polos industriais, ampliando o nível de poluição das águas, da atmosfera e dos solos, impactando, cada vez mais, os ecossistemas do planeta.
Em 2012, na última Conferência Mundial da ONU, a RIO+20, o cenário era de frustração no tocante ao que foi discutido e consolidado na ECO92, no Rio de Janeiro, principalmente em relação às metas da Agenda 21 e às medidas que deveriam ser tomadas para minimizar os efeitos das mudanças climáticas, que vem causando danos irreversíveis aos ecossistemas planetários, impactando populações em regiões litorâneas com o aumento do nível do mar, em todo o planeta.
Por outro lado, constata-se de maneira positiva, a ampliação da consciência mundial dos movimentos políticos e sociais, como também uma participação, cada vez mais ampla, da comunidade científica e da sociedade civil nessa discussão, buscando tratar, com a urgência devida, as questões relacionadas à degradação dos ecossistemas, das mudanças climáticas e da exclusão social, sinalizando a necessidade de uma nova economia, de baixo consumo de carbono, variáveis a serem consideradas no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental.
Assim, em um contexto de crises econômicas recorrentes do capitalismo, desde a década de 1980, até as mais recentes nos Estados Unidos, em 2008, e na Comunidade Européia, ficam a desejar os avanços no caminho desta almejada sustentabilidade.
Desde então, amplia-se a prevalência do capital financeiro em relação ao capital produtivo, atingindo as conquistas do Estado de Bem Estar Social, na Europa, colocando populações e países em situação de graves retrocessos políticos, econômicos e sociais. A situação é mais grave na Ásia, na África e na América, com realidades políticas, econômicas e sociais, ainda mais vulneráveis.
Em relação à realidade brasileira, os desafios históricos continuam atuais, agregando-se novos desafios para a construção de uma sociedade democrática, com uma outra perspectiva política, para a construção de fundamentos de uma nova economia, social e ambientalmente sustentáveis.
A pandemia explicitou, de maneira contundente, as contradições da nossa sociedade, agravadas com a crise política e de valores, desencadeada pelo governo do presidente Bolsonaro.
O Brasil atual é uma das sociedades com maiores índices de exclusão social e concentração de riquezas do planeta. A população brasileira de 200 milhões de pessoas, concentra, na mão de 200 mil pessoas, a propriedade da metade da riqueza nacional.
Como mudar essa realidade?
Nosso processo de urbanização acelerada, a partir dos anos 70, agravou as questões relacionadas à segurança pública, mobilidade, saneamento básico, moradia, educação e saúde, chamando a atenção para os graves problemas a serem enfrentados pela sociedade brasileira.
Nossa economia continua com uma forte dependência às principais economias mundiais como fornecedora de matérias-primas, água, energia e mão de obra. Continua dependente do valor das commodites, com uma vulnerabilidade muito grande em relação ao mercado mundial. Nos últimos anos, agravou-se esta situação, com a diminuição do setor industrial na participação do PIB brasileiro.
Neste cenário internacional de ameaças e oportunidades, o Brasil, pela sua dimensão territorial, pelas riquezas naturais, pela base técnica e científica que construiu, aliado ao ativismo da sociedade civil e da diplomacia brasileira, tem jogado um papel relevante na discussão de uma perspectiva sustentável desde a RIO+92, apesar do comportamento do atual governo, que nos tem tirado de cena dessas discussões mundiais, em plena pandemia, podendo trazer retrocessos significativos ao trabalho duramente construído pela sociedade brasileira, nas últimas décadas.
Portanto, coloca-se o imperativo de um diálogo permanente entre as forças políticas, econômicas e sociais, nacionais e internacionais, no sentido de uma nova configuração das organizações multilaterais, incorporando, efetivamente, o caráter de urgência dessas mudanças, a serem realizadas pela ONU, FMI, Banco Mundial, OMC, OIT, Comunidade Europeia, BRICs e Mercosul, entre outros, desafiados a desenvolver políticas de cooperação internacional de maneira integrada, que avancem para a sustentabilidade mundial, nacional e regional.
O Brasil deve aproveitar a pandemia.como um importante momento de reflexão coletiva, avançando nas reformas tão necessárias à sociedade, apostando em um novo pacto político, econômico e social que ajude a avançar a democracia brasileira, rumo a este futuro desejado.
Como viabilizar a sustentabilidade econômica, social e ambiental?
Precisamos de diálogo permanente entre os entes federativos e a sociedade, e da construção de consensos entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais para a implementação de políticas públicas sustentáveis.
A falta de uma visão sistêmica e de diálogo permanente entre os entes federativos são fatores limitantes no processo de construção e de implementação das políticas públicas sustentáveis no Brasil.
Via de regra, os grandes programas e projetos nacionais construídos no Brasil não incorporam a questão ambiental como um valor estratégico. Criam maneiras e artifícios para o não cumprimento da legislação, acarretando, muitas vezes, graves acidentes e impactos sociais e ambientais. O mais recente acidente ambiental, acontecido na cidade de Mariana, no estado de Minas Gerais, considerado como o maior acidente ambiental na área de mineração do planeta, é uma demonstração inequívoca deste comportamento.
Neste contexto, coloca-se a necessidade de identificar as contradições e os conflitos econômicos, sociais e ambientais da sociedade brasileira, abrindo novas perspectivas para a construção de uma outra sociedade, através de um pacto político e social a ser realizado entre o Estado, o mercado e a sociedade civil, com a participação ativa da cidadania.
Devemos trabalhar ainda a sustentabilidade no Brasil, em função das suas potencialidades: biodiversidade, território, riquezas minerais, água, energia solar e eólica, em sintonia com os necessários investimentos em educação, ciência e tecnologia. Os limites impostos à economia, baseada em carbono, colocam o Brasil em uma situação de destaque, em relação à questão ambiental, com vantagens comparativas, a caminho da sustentabilidade desejada pela maioria da sociedade .
A superação do atual modelo de desenvolvimento brasileiro, insustentável, desafia a construção de novas relações políticas, econômicas e sociais entre os diversos atores do Estado, do mercado e da sociedade civil. O processo de conscientização e crítica ao modelo de desenvolvimento atual, cria as condições políticas, econômicas e sociais para a construção desta perspectiva sustentável para o Brasil.
Finalmente, há que se compreender e trabalhar os conflitos sociais e ambientais como parte integrante da história da humanidade em suas relações com a natureza, procurando entender as contradições da sociedade atual, buscando soluções, sobretudo identificar as diferenças e os reais interesses entre os diversos atores sociais em questão, criando os fundamentos de novas relações políticas para a construção da sociedade futura, que se almeja sustentável.
*Professor Doutor da UFBA e do Instituto Politécnico da Bahia
Antônio Oliveira: Agentes antidemocráticos no poder de Estado
A legitimidade da democracia representativa foi posta em xeque desde, no mínimo, Jean-Jacques Rousseau e, enquanto esse mestre viver entre nós, ela será sempre duvidosa. Aparentemente, portanto, os detratores da democracia parlamentar estão em boa companhia, e a defesa do exercício direto e imediato da soberania popular parece ser louvável (aqui deixaremos de lado um relevante “esquecimento” dos defensores da democracia direta: a democracia moderna é uma democracia com Estado). Mas essa aparência se desfaz quando alguns defensores da democracia direta definem as ruas como o espaço público privilegiado para a expressão da soberania do povo. Pode-se defender essa ideia, mas forçosamente deve-se abandonar não apenas Rousseau como também as experiências históricas de democracia direta, porque tanto estas como aquele nos ensinam que a soberania popular é uma instituição política que se exerce no interior de outras instituições políticas.
Não se deve esquecer de que o povo é uma instituição da política. Claro, outros fatores como história, língua, costumes, etc. participam da composição de um povo e concedem-lhe o colorido único, mas ele, enquanto autor das decisões coletivas, é instituído pela política, que pode "desinstituí-lo" também. Não deixa de ser irônico que entre os defensores da democracia direta haja quem negligencie as instituições políticas, como se o Povo fosse um dado “natural”. O povo como Soberano não é anterior à democratização da política, e tanto as democracias diretas que existiram concretamente quanto a idealizada por Rousseau foram politicamente instituídas: sabe-se quando se, e quem, instituiu o "demos"; a República de Rousseau nasce de um contrato. E mais, seja nas democracias diretas empíricas, seja na idealizada, o soberano popular encarna apenas e somente apenas na assembleia geral, porque aí e somente aí eram discutidas e depuradas as várias opiniões sobre o interesse comum. Na polis ateniense os cidadãos individuais encontravam-se nas praças para discutir os assuntos públicos, mas o "demos" só se manifestava na Eclésia, outra instituição política.
Nas avenidas das cidades contemporâneas vê-se uma multidão fazendo reivindicações, não uma assembleia onde se discute o interesse geral; as discussões travadas no interior das "sociedades parciais" também não forjam a vontade geral. Nem nas democracias diretas que existiram nem na de Rousseau as manifestações populares proferindo “palavras de ordem" eram tidas e havidas como expressão da soberania popular, mesmo porque as manifestações desse tipo são encontradas também nas aristocracias e monarquias absolutas; a democracia, direta ou representativa, é o regime das instituições; manifestações populares fazem parte dela e até podem enriquecê-la, mas não são idênticas a ela, portanto, não podem substituí-la.
Jogar parcelas da população contra as instituições da democracia parlamentar pode fazer sentido para os movimentos que fazem da luta política um fim em si mesmo, ou seja, que lutam pela luta; nesse caso, as instituições, que regulam e estabilizam as relações dos indivíduos e grupos, tornam-se um estorvo, uma verdade bem conhecida pelo fascismo.
O movimento bolsonarista é adepto da luta pela luta. Nele não se consegue vislumbrar nenhum objetivo utilitarista ou um fim moral, ou uma desejável combinação de ambos. Não se está aqui classificando o bolsonarismo como fascista, todavia não se pode deixar de enxergar nele alguns dos elementos cujo conjunto caracteriza o fascismo: as ações assentadas sobretudo na intuição em vez de se basear principalmente na razão e/ou na experiência; o voluntarismo exagerado (eles não negam os fatos adversos, contudo acham que podem vencer pela Vontade os obstáculos, não importa a que custo humano); o descaso com interesses utilitaristas (existe a preocupação com a economia – incluindo a agricultura, o turismo, a infraestrutura e os temas sob o guarda-chuva do Ministério da Economia –, mas ela é secundária em relação à questão ideológica; esta é defendida ainda que possa trazer prejuízos econômicos, aliás, essa característica evidencia que não passa de pura retórica a propalada preocupação com o bem-estar de “coletivos” nacionais, como a “Nação” brasileira, o “Estado” brasileiro ou o “Povo” brasileiro, pois relevante é a luta contra uma “conspiração universal”, vagamente definida); a paixão pela luta em si mesma (o inimigo escolhido – o "marxismo cultural" - é suficientemente indefinido e fluído para a luta não cessar nunca; a mobilização então pode ser permanente, porque os disfarces do inimigo são muitos); o apreço pela violência (a agressão física, ou ameaça de empregá-la, não é avaliada como recurso último, que pode ser necessário porém nunca é honroso, da política, mas como seu meio principal e honorífico). Evidente, nada disso impede que eles possam desfrutar as benesses a que o poder dá acesso, inclusive o enriquecimento pessoal.
Essas características levam a duvidar de que, não obstante as “palavras de ordem” das "franjas” bolsonaristas, o núcleo duro da facção seja defensor de fato de uma ditadura militar, porque essa poderia representar o fim do movimento bolsonarista, e é o “movimento” em si – no sentido de manter seu público interno em permanente estado de mobilização para acompanhar as metamorfoses do inimigo, sempre sorrateiro – que interessa ao núcleo central. As humilhações impostas aos generais do governo são indícios do desprezo desse núcleo pelo apego da instituição militar à rotinização dos afazeres e à previsibilidade das condutas, esses dois atributos da burocracia provocam urticárias em qualquer “movimentista”.
Diante do material humano e intelectual da facção, deve-se reconhecer que existe a opção de ela achar que o golpe militar manteria Bolsonaro na presidência, contudo, parece, eles não querem o poder de Estado para governar, no sentido de administrar a coisa pública para consecução de algum fim, ainda que sejam fins egoístas; eles querem o poder público para alimentar a luta contra inimigos que podem ser criados e recriados indefinidamente, o que seria obstaculizado pela tutela militar: o “gabinete do ódio” funcionaria como? E o cercadinho do Palácio do Planalto para insuflar as “massas”?
Quem quiser ponderar que tais reflexões são enganadoras por causa do nível intelectual dos bolsonaristas, ou seja, que eles não passam de incompetentes destrambelhados e nada mais, deveria não se esquecer de que foi a escória intelectual e moral que elevou o fascismo na Europa. Hannah Arendt pode servir como mestra nesse assunto.
As instituições democráticas brasileiras reagirão como diante dos ataques abertos e declarados à luz do dia? Nas crises anteriores (Collor, mensalão, Dilma) não nos confrontamos com agentes que estavam dispostos ao "tudo ou nada", ou, pelo menos, eles eram minimamente realistas para saber que não dispunham de recursos de poder para partir para o "tudo ou nada". (Um parênteses talvez animador: Umberto Eco certa vez disse que os protofascistas tendem a ser sempre derrotados porque, como eles menosprezam a realidade, eles sempre subestimam as forças do inimigo). O cenário agora é tomado por um tipo de agente que apresenta o caráter descrito acima. A dúvida não é de que eles devam ser detidos; a dúvida é sobre o comportamento da instituição política que têm em suas mãos o fuzil. A decantada profissionalização das Forças Armadas brasileiras talvez seja mais suposta do que real, pode-se duvidar de que esse processo de profissionalização, que de fato existe, tenha se completado, todavia este artigo não é o lugar para tratar desse assunto.
*Cientista político e professor da UFBa
George Gurgel de Oliveira: A Vida em Pandemia e o Pós Isolamento Social
As transformações ocorridas na sociedade moderna, desde o Iluminismo e a industrialização, modificaram qualitativamente a vida política, econômica, cultural e espiritual de toda a humanidade. Construiu-se uma maneira de viver e conviver responsável pela concentração de populações nas cidades e polos industriais, modificando radicalmente as relações da própria humanidade em si e com a natureza .
Este modelo mundializou-se, transformando, destruindo e incorporando valores das sociedades anteriores, como também criando novos valores, modificando hábitos e costumes seculares, com alto custo social e ambiental, impactando cada vez mais a vida das pessoas.
A base científica e técnica da sociedade atual, principalmente a partir do aparecimento da internet – do funcionamento das redes de comunicação em escala mundial, construiu uma nova dinâmica nessas relações políticas, econômicas, culturais e espirituais, modificando crenças e valores, proporcionando uma troca de informações em tempo real, entre diferentes povos e culturas, mudando radicalmente a nossa percepção da realidade, no tempo e no espaço – território, onde vivemos e construímos as nossas vidas.
A globalização da economia é um processo inexorável. Atende às expectativas das principais economias mundiais, em confronto com os interesses da maioria dos Estados nacionais, periferia deste sistema mundial.
A sociedade e o mercado desafiam o indivíduo na sua vida cotidiana, frente a tudo e a todos, a sua capacidade de realização, de acumular e de ser competitivo. É o imperativo da sociedade contemporânea. O Ter construiu uma hegemonia, colocou-se no lugar do Ser.
Coexistem práticas, nas esferas da sociedade civil, em disputa com as organizações do Estado e do Mercado, buscando novas formas de hegemonias, trazendo para a esfera da política os desafios desta construção.
Assim, a sociedade funciona, vertiginosamente.
O que podemos fazer, nesse momento de incertezas e de dúvidas em relação ao nosso futuro imediato?
Os meios de comunicação martelam diariamente a realidade do mundo atual. Vivemos a cada dia um cenário complexo, de incertezas e preocupações individuais e coletivas. Ainda não temos clareza de como a pandemia vai ser superada. As ciências nos abrem possibilidades, tudo indicando que a vacina de combate ao corona vírus está próxima de ser produzida.
Nas ruas e nas redes somos impactados com a tragédia social, ampliada com a pandemia, atingindo milhões de pessoas excluídas das conquistas sociais elementares (trabalho, alimentação, moradia, saúde e educação).
Quais as mudanças em curso?
Quais os principais desafios pós pandemia?
Vivemos, desde o século XVII, a mudança de paradigmas milenares. Antigas e novas contradições persistem, em pleno século XXI.
Somos ainda, de alguma maneira, herdeiros do século XVII, quando a sociedade era profundamente religiosa. A religião interferia na sociedade e na vida das pessoas. Newton, Leibniz, Pascal e até Descartes tinham formação religiosa. Contribuíram muito para as mudanças de paradigmas do tempo em que viveram. Então, havia uma cumplicidade conflituosa entre a filosofia, a ciência e a religião. Avançamos, nos séculos posteriores – os séculos XVIII e XIX – com uma percepção mais ampla e sistêmica do que acontecia na sociedade e na natureza. Construiu-se, desde então, uma visão materialista da história, com a contribuição dos filósofos iluministas, de Feuerbach, de Marx e de Engels, centrada no anticlericalismo, no antidogmatismo e na crítica às religiões.
Hoje, em pleno século XXI, ainda persistem os conflitos religiosos, sociais e ambientais, alguns mais complexos, agravados com o aumento significativo da população mundial e a afrontosa concentração de riqueza produzida coletivamente e apropriada por poucas famílias e corporações mundiais.
Portanto, o mundo em que vivemos foi construído com essas bases, conflitos e contradições desses períodos históricos recentes. Lutas, derrotas, vitórias, avanços, direitos conquistados a partir da revolução francesa e da revolução russa, parteiras de novas perspectivas sociais, colocando, nos seus contextos históricos, as utopias, as ideias e as lutas de milhões pela liberdade, igualdade e fraternidade. Desafios que continuam atuais.
Desse modo, a sociedade moderna ficou mais complexa. Além das organizações estatais e dos mercados, entram em cena a sociedade civil e a questão ambiental. As organizações políticas, econômicas, culturais e religiosas precisam reinventar-se para o enfrentamento dos novos desafios da vida contemporânea. Os questionamentos e as incertezas fazem parte da vida, das nossas distintas realidades sociais.
Destaque-se ainda o impacto, cada vez maior, da ciência e da tecnologia no cotidiano das pessoas. A globalização em curso e o avanço das comunicações constroem realidades integradas e fragmentadas, impactando a vida da sociedade em geral.
As redes sociais pautam as nossas vidas, o mundo em que vivemos. Criam desejos em cada indivíduo e este, por sua vez, quer ser parte, ter acesso ao que vê nas redes e nas vitrines dos shoppings. Muitas vezes, inatingíveis a cada um de nós.
Assim, nos tempos de pandemia e de isolamento social que estamos vivendo, continuam a martelar as nossas consciências os velhos e novos desafios nestas primeiras décadas do século XXI: a construção de um humanismo que inclua a todos, sem discriminações, na perspectiva de Ser e não de Ter.
A pandemia nos remete a esta reflexão e nos desafia. O confinamento social nos faz refletir sobre a precariedade da sociedade atual e o futuro desejado por cada um de nós.
Os valores vigentes precisam ser transformados, incorporando novas narrativas econômicas, sociais, culturais e espirituais, comprometidos com a diversidade, a pluralidade e a tolerância, respeitando as diferenças dos povos e a natureza.
O trabalho em home office sinaliza para novas relações políticas, econômicas e culturais. Mudanças estão acontecendo. O despertar para a cooperação e a solidariedade está fazendo parte das nossas vidas. Estamos nos transformando? O que é provisório e o que é permanente?
Uma outra sociedade é possível, incorporando e ampliando as conquistas que nos trouxeram até aqui como humanidade, colocando a centralidade da questão democrática, com uma participação efetiva da cidadania nas decisões para transformar o mundo que temos em direção à sociedade que queremos construir.
São dilemas para a nossa vida individual e coletiva, buscando novos significados à nossa existência.
Seremos capazes?
O que cada um de nós está fazendo nessa direção?
*Professor da Universidade Federal da Bahia e da Oficina da Cátedra da Unesco em Sustentabilidade
George Gurgel: Tempos difíceis. O imperativo da democracia e do diálogo
Estamos vivendo uma situação mundial e nacional de crises. A pandemia colocou em evidência a insustentabilidade da sociedade contemporânea. Coloca-se o imperativo de defesa e ampliação da democracia como caminho para a construção de novas relações centradas na vida e na preservação da natureza.
A pactuação desta construção, através do dialogo e da cooperação permanente, é o desafio colocado às dificuldades que estamos vivendo no Brasil e em toda humanidade. A pandemia desnuda as fragilidades do sistema político, econômico e social em que vivemos.
O confinamento social está nos proporcionando uma necessária reflexão individual e coletiva. Como estamos pensando e agindo na perspectiva de superação desta complexa realidade?
A pandemia está nos transformando. Sob qual perspectiva nos colocamos?
As mudanças estão acontecendo no mundo do trabalho e da cultura. A vida em home office já está proporcionando mudanças significativas no nosso cotidiano. Muitas vieram para ficar.
Estamos nos vendo melhor e, portanto, vendo melhor o outro. O isolamento social está nos aproximando e nos fazendo pensar e agir de outra maneira, entendendo melhor as nossas limitações e fragilidades individuais e coletivas. Estamos e podemos ser melhores. Há uma preocupação maior para o que nos faz humanidade: a cooperação, a solidariedade, a luta pela igualdade, liberdade e fraternidade.
A realidade grita a favor dos excluídos, nos agride com a chegada da pandemia. Coloca nas ruas e nas redes a tragédia social de milhões de pessoas, excluídas das conquistas sociais elementares (trabalho, alimentação, moradia e saúde-saneamento básico). Será o despertar da sociedade para a importância de cada ser humano, independente em que lugar esteja no Planeta?
No Brasil, a polarização da cena política, delineada de uma maneira contundente nas últimas eleições presidenciais, levou Jair Bolsonaro à Presidência, em 2019.
É a vitória das forças conservadoras, do discurso liberal na economia, de uma efetiva participação dos militares na política e a derrota daquelas forças políticas fiadoras da transição democrática e que estiveram de maneira alternada, no centro do poder no Brasil, nos últimos 30 anos. É a derrota principalmente do PT, da maneira como agiu e construiu o exercício do poder durante os quatro mandatos na Presidência da República.
Assim, as forças conservadoras chegam ao poder pelo voto, com apoio dos militares, através de uma liderança que foi menosprezada até as eleições, pelos partidos hegemônicos da política brasileira.
Desde os primeiros dias de mandato de Jair Bolsonaro, inaugurou-se uma maneira de governar pautada na agenda do cotidiano presidencial, espetacularizada no dia a dia dos meios de comunicação, inédita na vida nacional.
A crise recente instalada no Governo Bolsonaro, com a saída dos ministros Luiz Henrique Mandetta (da Saúde) e Sérgio Moro (da Justiça), nos desafia como sociedade à construção de alternativas democráticas para o enfrentamento dos nossos problemas cotidianos, de superação da pandemia e o enfrentamento da nossa difícil realidade social, que exclui a maioria da cidadania brasileira das conquistas do bem-estar, aterrorizando em cada esquina a vida dos brasileiros.
O presidente Bolsonaro traz para a cena política um ativismo beligerante do conservadorismo brasileiro. Ameaça e despreza as conquistas do Estado de Direito e da Constituição de 1988. Desautoriza a tudo e a todos. Está recolhido ao seu labirinto familiar, com apoio e a tutoria dos generais e de uma parcela, ainda significativa, da sociedade.
O Governo Bolsonaro movimenta-se para o enfrentamento da atual conjuntura vivida pela sociedade brasileira. Há uma importante inflexão em curso de aproximação do “centrão”, colocando na berlinda o discurso eleitoral e de governo. Atua para a conquista da maioria no Congresso Nacional para barrar impeachment, colocado na sociedade e no Congresso Nacional e, adiante, havendo a continuidade do governo, para aprovação das reformas planejadas, interrompidas com a pandemia.
A política para o presidente Jair Bolsonaro é o confronto. Confronto cotidiano – mesmo quando tenha que recuar no dia seguinte. É o modo Bolsonaro de Ser e de Agir.
A República não é isto. Não pode ser isto. O que pode ser?
O futuro da sociedade e da democracia deve ser, e vai ser, mais generoso para todos os brasileiros e brasileiras. Estamos desafiados à construção de uma alternativa democrática para a nossa sociedade.
A tecelagem de uma alternativa democrática às crises política, econômica, social e sanitária é o desafio de trabalhar a unidade das forças democráticas, dialogando com a cidadania, com o mundo do trabalho e da cultura para a mobilização de uma frente ampla que garanta o Estado de Direito, a defesa da Constituição e a continuidade das reformas, assegurando a melhoria de vida da população.
O momento nos coloca a necessidade de refletir, de sonhar e de agir. A pandemia desafia a tudo e a todos. A própria vida. A ciência, como nunca, é imprescindível. São muitos os questionamentos e as possibilidades de mudanças. Há espaço para o novo, a imprevisibilidade, a construção de novas relações políticas, econômicas e sociais.
Assim, as condições estão dadas, com cenários plausíveis a serem escolhidos, como acontece nos momentos cruciais da história da Humanidade.
As opções entre a democracia e a barbárie continuam postas. A democracia venceu os grandes embates no século XX. É um processo em construção. A questão democrática se impõe como um valor para a sociedade nas suas relações em si e com a própria natureza.
*Professor da Universidade Federal da Bahia e membro da Fundação Astrojildo Pereira
Paulo Fábio Dantas Neto: Sinais de fumaça da política em tempo de pandemia
Viu-se no Brasil, durante o março tormentoso da chegada do Covid-19, um ensaio de reversão do ambiente político maniqueísta e predatório que deprime o país há seis anos. Vimos chegar, em mensagens diariamente dirigidas ao grande público, um pensamento orientador, combinando as ciências e técnicas da saúde e da gestão pública com um discurso de solidariedade social, as duas coisas bem sintonizadas com a delicadeza própria do método prudencial da política. Uma escolha pelo caminho da persuasão, que não excluía clareza na diretriz, nem firmeza na ação. O ministro da Saúde vinha sendo um dos protagonistas, certamente o mais visível, dessa estratégia promissora e promotora da segurança possível, em hora de tempestade.
Essa linha de conduta implicava em todo o poder aos médicos, antessala de uma ditadura sanitária? Provocava paranoia ou histeria? Longe disso, estava produzindo sinergia entre ciência e política, perseguindo e obtendo, gradativamente, a complexa cooperação entre os entes federativos. Esse caminho, além de dar rumo seguro ao combate à epidemia, foi levando a uma consistente legitimação do SUS como patrimônio federal de interesse público. Não é de pouco significado um ministro oriundo da direita passar a usar como uniforme, diante das câmeras, um colete do SUS. Esse simbolismo forte poderia ser encarado com grandeza ou com mesquinhez política, por quem defende o SUS por convicção. A hora cobrava de uma elite política soluções não triviais para uma situação nada trivial, como a sabotagem de um ministro bem situado, pelo próprio presidente que o nomeou. Fosse qual fosse a solução do problema Bolsonaro, ela precisaria ter como premissa, publicamente assumida por todas as lideranças responsáveis, evitar descontinuidade no Ministério da Saúde, ao qual cabia o protagonismo, por missão institucional sustentada por uma visível capacidade técnica e política do seu titular.
O “campo dos governadores”, se adota essa premissa, não lhe tem dado a atenção requerida pela gravidade da hora. Articulou-se mais ou menos em bloco, com protagonismo do governador de São Paulo. Parte relevante da mídia apoiou e instalou-se nova polarização. Agora não mais Bolsonaro x PT e sim Bolsonaro x "governadores". Esse coletivo de mandatários estaduais é uma ficção política e administrativa. Um pretenso colegiado sem lastro institucional, que tende a ser refém de vontades políticas estaduais, a baterem cabeça. Se se impuser uma descentralização forte de decisões e recursos, uma ação coordenada pode ficar inviável. Colocar recursos para livre uso nas mãos dos governadores é mobiliar a antessala de um salve-se quem puder, na hora mais grave da pressão a vir sobre os serviços de saúde. Quando a ficha cair e sentir-se a necessidade do MS, pode já ser tarde. Em jogo confederado, o empurra-empurra das culpas, que há muito começou, tende a se disseminar.
Pode-se contra argumentar, com razão, pelo realismo político, tanto no diagnóstico da situação, quanto na prescrição do remédio. A conduta irresponsável do presidente criou um vácuo que os governadores, pressionados por suas próprias responsabilidades, precisavam preencher. Deve-se louvá-los por isso, não criticar. O que aqui se discute não é a decisão política de fazer contraponto à negligência presidencial. Discutível é se foi levado suficientemente em conta que o protagonismo político do MS no processo precisava ser sustentado por eles, como condição para o próprio sucesso desse contraponto. Um caminho mais seguro do que aquele que foi afinal adotado, ou admitido, pelo qual o ministro foi mantido no cargo até aqui, mas enquadrado pelos militares palacianos numa saia justa que não impede o presidente de prosseguir fomentando o seu desgaste. Poderia ter sido diferente? Talvez não, mas não há indícios de que outro caminho foi tentado.
O clima de polarização (e ficou evidente que não só Bolsonaro aposta nele) asfixia, como sempre, qualquer atitude política moderada, como é a de Mandetta. Abre porta a que a lógica da guerra se torne autônoma em relação à da persuasão. Com o tempo ela tende a se tornar superior, como perigosamente se insinua com os primeiros acenos a imposição vertical de um isolamento horizontal. Uma coisa é adotar essa imposição no Japão da disciplina e na China da ditadura. Outra coisa, em democracias fortemente enraizadas numa cultura de liberdades civis, como na Europa Ocidental e nos EUA. Uma terceira coisa é que se pense e possa fazer isso numa cidade-estado, como Cingapura.
Uma quarta e muito diferente coisa é adotá-la no Brasil, um país imenso, onde uma ampla democracia política federativa vigora em sociedade plural e crescentemente liberal nos valores, em cuja psicologia social a disciplina individual é, no entanto, traço menos marcante que a solidariedade religiosa ou familiar. Sociedade conservadoramente gregária, assentada, ademais, em abissal desigualdade social e numa ainda frágil cultura de direitos, da qual é sintoma explícito a truculência tradicional e ainda relativamente impune de suas várias polícias e milícias, quando entram em contato com cidadãos socialmente mais vulneráveis. E não é de outra coisa que se trata quando se precisa manter em casa a população aglomerada em realidades urbanas onde se expõem as dores dessa modernidade complexa.
A lenta infiltração, nas mentes, da lógica da guerra em lugar da aposta na persuasão, é um fator que trabalha para deslocar o comando prático do processo, do MS em direção a núcleos “duros” do Estado e para desgastar a liderança do ministro. Ele próprio pode ser tentado, aqui e ali, a morder a maçã do atalho vertical, supondo sua eficácia, como ficou patente em sua improvisada afirmação sobre a cooperação de milícias, um escorregão que, ironicamente, adversários conhecedores desse submundo estrangeiro ao ministro não deixarão lhe sair grátis.
Estará enganado quem pensar que dou a essas reflexões um valor de lição ou profecia. São apenas apreensões para com riscos adicionais desnecessários que se está correndo no contexto de uma pandemia, por si só, já tão saturado de perigos. Se não há uma coalizão de veto, há, no mínimo, um relativo dar de ombros a um ministro que se destaca como bom articulador político e como bom gestor de políticas públicas de estado. Isso ocorre de modo, a meu ver, insensato, num momento grave em que precisamos exatamente de gente assim, de ocorrência escassa na cena pública atual. O clima de aclamação sanitária que se criou desde a última semana de março já não se mostra tão consistente hoje. Diatribes insolentes do presidente conseguem causar perda de foco em mais pessoas e, com isso, menos solidariedade e mais leniência social.
Uma desconstrução mais sutil da imagem do ministro vem com a crítica de alguns setores por, supostamente, ele ter se deixado enquadrar. Ou seja, por ter dado a César o que é de César, seja lá quem, nesse momento, represente melhor essa metáfora da autoridade, se o presidente Bolsonaro, se uma “presidência operacional”. Tal como no caso uso do colete do SUS, há dois modos de interpretar esse mandamento da ética cristã que é, ao mesmo tempo, mandamento do realismo político. Um é encará-lo como apego a uma "boquinha". Interpretação mesquinha, que gente com boa fé às vezes segue. Outro modo de interpretar o mandamento é entender que, dando a Cesar o que é de Cesar, está se afirmando que nem tudo é de Cesar. E no caso da epidemia e da luta para vencê-la, o que não é de Cesar é o que conta mais. Aos poucos o povo vai percebendo isso. Havendo tempo, editoriais de empresas de mídia talvez acabem entendendo que até guerra santa tem limites. Quanto a Bolsonaro, se não entender o mandamento nessa interpretação ampla, deixará de ser Cesar, caso ainda o seja.
Tornou-se esporte popular adivinhar intenções do Presidente. Missão impossível para quem trabalha estudando política. O esforço de compreensão possível começa por não ver o affair que ele provocou com seu ministro como episódio isolado, mas como algo relacionado aos efeitos que a crise da pandemia tem exercido sobre a operação diluidora da democracia, posta em prática pelo presidente desde que chegou ao cargo. A quantas ficou a operação Bolsonaro depois da chegada da crise sanitária e do imprevisto fator Mandetta?
Há a hipótese psicanalítica de que o presidente, sentindo que não tem condições pessoais de gerir a crise, esteja criando uma situação para ser afastado. O colunista Reinaldo Azevedo tem oferecido essa interpretação que, por mero instinto, não descarto. Estaria agindo, conscientemente ou não, tendo em conta sua própria inépcia (essa seria a parte realista de sua estratégia, por essa primeira hipótese), mas isso não quer dizer que ele pretenda sair de cena. Depois de fugir ao peso da responsabilidade, poderia vir a parte delirante desse script: ele poderia tomar emprestada uma roupa populista de vítima de golpe para, mais adiante, na hora de se contar o total de mortos da epidemia e das vítimas da depressão econômica, apontar o dedo acusador para quem tenha enfrentado o desafio e tentar convencer que teria feito melhor. Tentaria ser candidato de novo com esse discurso ou, caso impedido, tentaria conflagrar suas milícias (se ainda fossem suas) para sabotar as eleições.
Circula, difusamente, uma segunda hipótese, mais política. Diante da pandemia, o presidente estaria apostando ainda mais num caos social como atalho para governar autoritariamente, sem mais cumprir os atuais procedimentos constitucionais, especialmente na relação com o Legislativo e o Judiciário. Sabotaria a política de combate à epidemia, traçada no MS, defendendo o indefensável para desorientar e instigar o povo ao tumulto, dividir seu próprio governo e se vacinar contra os efeitos da provável crise humanitária e da inevitável crise econômica, pondo a culpa dos dois fracassos em quem não ouviu seus avisos (todas as instituições). Justificaria, assim, uma solução autoritária e também populista, como via de salvação. Nessa segunda hipótese o presidente também delira. O script para o atalho e a volta por cima não seria o de vítima, mas o de redentor. E não exclui eleições em 2022, com ambiente democrático seriamente comprometido.
Por fora dessas hipóteses de que delira, ou além delas, há quem pense que o presidente aja como simples miliciano. Em vez de estar armando um golpe futuro, já estaria concretamente fazendo movimentos golpistas, desde antes da epidemia se instalar. Ou melhor, desde que sentou na cadeira presidencial. Segundo adeptos dessa teoria baseada em supostas intenções, fatos anteriores, configurando inúmeros crimes de responsabilidade, já não deixariam dúvida de que temos, em ato, um presidente subversivo da lei e da ordem. A base seria a disseminação, pelo aparelho de doutrinação bolsonarista, em estratos mais baixos da oficialidade das Forças Armadas, de uma ideologia golpista e salvacionista. Em que grau essa subversão de valores democráticos já avançou recentemente na corporação e se infiltrou em outros organismos do Estado em um ano e cinco meses de governo, é algo que só pode ser sabido por quem detém informações privilegiadas.
É preciso escapar da armadilha intencional para tentar avaliar o estado das artimanhas do ator subversivo. Desde antes da pandemia, a obstinada desconstrução de valores democráticos e a persistente tentativa de desmoralizar instituições e desacreditar agências do próprio Estado já preocupava quem se preocupa com a democracia. Afinal, os crimes de responsabilidade e solapa acumulados não são mera teoria sobre intenções.
A pandemia foi fator imprevisto na escalada de solapa da democracia, porque sugeriu ao país outra lógica política. Além de dar destaque do ministro Mandetta, realçou a importância do Congresso, governadores e prefeitos, permitindo demonstração pública de virtudes políticas como cooperação e entendimento, desvalorizadas desde que se instalou, em 2014, a polarização extrema. Considerando isso, a lógica do presidente pode ser melhor entendida. Se o enfrentamento da pandemia tiver êxito em unir o pais para a redução de danos, murcha a razão polar que permitiu a sua vitória em 2018 e que, caso mantida, poderia e ainda pode levar à sua eventual reeleição.
O enfraquecimento do presidente não é irreversível. Mas sua força está na razão inversa do sucesso da política prudencial que os líderes das principais instituições adotam para enfrentar uma crise sanitária que é mundial e atende pelo nome de Covid 19 e a crise política, que é nacional e se chama, cada vez mais, Jair Bolsonaro. O êxito dessa política passa fortemente pela manutenção do ministro da Saúde. E ela, por sua vez, depende de aval ministerial, da continuidade do engajamento da comunidade cientifica e técnica do setor, do apoio político no Congresso (não só para mantê-lo no cargo, mas para aprovar medidas que levem recursos para a Saúde, a assistência social e a garantia de renda), de cobertura judicial contra atropelos e sabotagens, da cooperação da imprensa e da sociedade em geral e da manutenção da já explicitada confiança popular nas orientações do Ministério da Saúde e na liderança do ministro, que tem feito, com maestria, a ponte entre ciência e política. É muita coisa e talvez seja realista considerar improvável a presença sustentável de tão complexas variáveis.
Uma consideração política abre uma brecha nesse realismo cru. Vale trazê-la à discussão, pois é igualmente realista (ou ao menos razoável) supor que atores políticos levem aspectos políticos em consideração. Se a pandemia se agravar e a situação humanitária sair do controle, estará criado um ambiente inóspito, no qual será mais difícil Bolsonaro continuar a ser isolado, como está sendo, por uma política prudencial. Ele poderá desabar de vez, ou cavalgar no agravamento da crise, restabelecendo a polarização. Até aqui, a política da prudência tem se imposto e é imprudência pô-la em risco, trocando o ocupante da cadeira do MS. Mas se for esse o rumo de acontecimentos em série, cujas implicações uma boa razão nem sempre consegue deter; ou se a entrega da cabeça do ministro não for bastante e o presidente teimar em diatribes por querer continuar isolado, será preciso prestar atenção no seguinte: pela lógica miliciana, isolamento não é problema. É incentivo à ação de confronto. A democracia, nessa hora, não pode hesitar em exercer autoridade para impedir essa ação.
Nove entre dez leitores do noticiário dos últimos dias sabem que a situação do ministro é instável e isso não se deve apenas aos ciúmes de Bolsonaro. Embora a política do MS tenha amplíssimo apoio político, midiático e popular, não é do mesmo tamanho (embora seja grande também) o apoio político e midiático à pessoa do ministro. O fundamentalismo de guerra é pouco simpático a flexibilizações que ele precisa e precisará fazer.
Além disso, para a área política e o próprio governo, se a cabeça do ministro for o preço para Bolsonaro sossegar, haverá quem ache razoável pagar, seja para apaziguar os ânimos, seja para tranquilizar aspirações políticas inquietas consigo. Ou as duas coisas. E não duvidemos da possibilidade de Bolsonaro aceitar. Parece que para ele o problema é Mandetta, mais do que a política do MS. Há precedentes, contudo, para se saber que não sossegará. Por isso, tal acordo será um equívoco. Mas a política tem razões que as outras razões não governam. Mandetta sabe disso e, se sair por acordo que ao menos preserve a política do ministério, não deverá se fazer de vítima, dizendo-se traído. Seu perfil parece ser outro. Por isso está adicionando componentes ativos da química da política para renovar o ar viciado de um ambiente contaminado por paranoias de vários tipos.
Nem tudo será claridade, nessa possivelmente nova atmosfera política. Se vingar, herdará muita nuvem. Passada a pandemia, tudo indica que a sociedade e o sistema político terão que encarar o fator Bolsonaro em toda a sua nebulosidade. O tema do impedimento do presidente, já presente nos espíritos hoje confinados de políticos e cidadãos, tende a se fazer presente nas agendas das instituições e movimentos. Será incontornável resolver, de algum modo, essa questão.
Sinto simpatia pela ideia de afastar o presidente, por mais que um processo de impedimento seja um trauma, reacenda polarizações, alimente apetites golpistas, etc.. É que Jair Bolsonaro rebaixa, desmoraliza as crenças democráticas na sociedade e não há futuro para instituições democráticas se as crenças da sociedade vão na contramão delas. Trata-se, no entanto, de algo bem diferente de uma questão de preferência ou desejo.
Problema é alimentar um argumento como esse, sem confundi-lo com o “Fora Bolsonaro” que uma certa frente para-partidária de esquerda proclama como foco de sua ordem do dia. Há que se demarcar um raciocínio: noves fora o raso oportunismo do gesto, pensar em remover o presidente agora, além de ser uma ideia irrealista (militares e empresários que contam não querem), seria, caso possível, uma imprudência, no meio do furacão da epidemia. Em momento tão tenso e potencialmente explosivo, essa esquerda mais barulhenta, embora tenha pouco poder de fogo real, não pode ser tratada na base da condescendência. Quem quiser falar a sério, sem demagogia, em impeachment, precisa ajudar a isolar Bolsonaro agora. Para isso não ajuda nada a conversa diversionista de formar uma “frente popular contra os lucros". Assim como não ajudam tentativas de desgastar o ministro da Saúde, como se tem feito há semanas, aberta ou veladamente, em redes sociais de esquerda. Se a esquerda contribuir para que saíamos dessa tempestade sanitária de um modo razoável, com a sociedade em pé e capaz de se mobilizar, pode ser que diferentes orientações democráticas, à esquerda, ao centro e à direita, partam juntas, no ano que vem, para uma campanha em favor do impeachment do indivíduo que, pelos atos que praticou na posição que ocupa, tornou-se um perigo concreto para a democracia.
É bom que a ficha caia para a sociedade quanto a esse perigo concreto e quanto a uma necessária mobilização das forças políticas que a representam para enfrenta-lo e conjura-lo. É sombrio, em contraste, um cenário em que ela fique refém de um “bom senso” político-militar para afastar o presidente em caso dele não se submeter ao enquadramento que esse suposto bom senso busca, nos termos dos consensos políticos que ele mesmo construa. É a Constituição quem pode e deve enquadrar os mandatários, em seus próprios termos. Essa é a distinção mais importante entre uma solução pela democracia e uma solução pela guardiania.
O ex-presidente Lula é um ator a ser analisado, assim como o seu PT, o partido da ex-presidente alvo do mais recente processo de impeachment. Uma vez concretizado um pedido de impeachment do presidente Bolsonaro, uma conexão entre os dois processos será obviamente feita e, por isso, PT e Lula merecem reflexão à parte. É provável que o envolvimento do PT traga duas implicações capazes de converter um processo cujo alvo é um recomeço político em algo preso ao retrovisor. De um lado, é de esperar que o bolsonarismo desqualifique moralmente o PT por estar participando de uma operação assim, depois de ter enfaticamente denunciado, aqui e no exterior, como golpe de Estado, o processo que impediu Dilma Roussef, há apenas quatro anos atrás. Do mesmo modo, o PT poderá narrar o impedimento do presidente como uma espécie de reparação do “golpe” de 2016. Poderá justificar o impedimento com o argumento de que o governo Bolsonaro seria “ilegítimo”, por um mal de nascença, mal que também afetaria o governo do seu vice, antecipadamente destinado a receber do PT o mesmo tratamento dispensado a Michel Temer. Pela direita e pela esquerda, o processo contra Bolsonaro poderá resvalar para a reiteração da polarização que atormenta o país desde 2014.
Será esse mais do mesmo de varejo uma fatalidade que recomendaria arquivar a ideia do impeachment? Ou esse acerto de contas entre a democracia e seu agressor tem chance de se constituir em processo de grande política, um julgamento jurídico-político de uma experiência inédita de desconstrução institucional operada por Jair Bolsonaro e a facção que com ele passou a ter acesso ao Estado brasileiro? Nesse caso, em vez de uma polarização entre facções políticas, poderemos ter uma convergência nacional de porte bem mais amplo do que foi o “Fora Collor”. Pela direita, pelo centro e pela esquerda, pelos andares de cima, médios e baixos, a nação, revigorada por uma campanha unitária contra uma ameaça sanitária comum, partiria para recuperar o seu Estado das mãos de uma facção que tentou reduzi-la a coisa sua. Estará o maior partido da esquerda brasileira à altura de um gesto capaz de promover sua integração a esse empreendimento? Será capaz de substituir o ressentimento por um novo sentimento que o reconecte com essa nação? E de pautar sua conduta, não por uma atitude voluntarista de vingança, mas pela atitude prudente da conciliação? A história do PT, conquanto marcada por uma proverbial aversão a alianças e concertos republicanos e conquanto manchada por processos de fundo ético mais recentes, também contempla o sentido democrático e socialmente inclusivo que seu advento, já quarentão, teve na história política do Brasil. Essa marca, decerto valiosa num país tão desigual, confere-lhe, assim penso, apesar de seus pesares, um direito ao benefício da dúvida. Daí porque começo a tentar especular sobre sua atitude política numa eventual campanha cívica pelo impedimento de Bolsonaro, a partir da observação do que tem sido os passos do partido e do seu líder máximo na atual conjuntura de crise.
Em fevereiro último, no auge dos ataques bolsonaristas aos outros dois poderes, Lula disse, na França, que não havia base legal para impeachment e que o PT deveria esperar as eleições de 2022. Ao se colocar lá fora assim, como democrata politicamente correto, parecia tentar também frear o ímpeto inicial de um movimento que, se deflagrado, não teria protagonismo, nem dele, nem do PT. Em primeiro de abril, quando o affair de Bolsonaro com seu ministro Mandetta aproximava-se do auge, Lula ensaiou refazer essa avaliação, admitindo que Bolsonaro havia perdido condições de continuar a governar. Interpreto que, acenando com uma mobilização pelo impeachment, tentava novamente conter um movimento (o da “presidência operacional” do Gal. Braga) que também se fazia com o PT à margem. Dez dias depois, quando as frentes "sem medo" e "popular" roeram a corda, animadas pela segunda fala do seu líder e arriscaram um avanço de sinal, ele freia de novo, mostrando que era só um primeiro de abril. Para não perder o controle sobre os seus radicais e assim poder manter o PT mais ou menos articulado com governadores, com Rodrigo Maia, Alcolumbre e com a corporação da saúde, ele volta a descartar a ideia do impeachment já. Motivações à parte, isso ajuda, é importante.
Mas dessa vez Lula rejeita o impeachment já, com duas diferenças: a primeira é a justificativa do descarte, que não é mais a ausência de um crime de responsabilidade, como ele avaliava em fevereiro. Agora é o combate à pandemia, a prioridade absoluta. A segunda diferença é que agora o adiamento do desejo de tirar Bolsonaro é por prazo mais breve. Se em fevereiro ele acenava esperar as urnas de 2022, agora acena para um movimento fora Bolsonaro, no imediato pós-corona. É bom também, ou ao menos necessário, esse encurtamento de prazo. Creio que Lula está recomeçando a sintonizar a mesma frequência geral de quem não pensa que Bolsonaro é só uma marolinha ou uma gripezinha, que a democracia do PT vai tirar de letra. Ainda que entre o seu "Fora Bolsonaro!" e o que pode ser um movimento nacional pelo impeachment haja diferenças não desprezíveis. Diferenças entre uma visão populista e uma liberal-democrática da democracia.
Como quase sempre, Lula faz política com competência, de acordo com a conjuntura. Não pode dar cartas porque tem a Justiça segurando sua mão. Mas joga bem com os dois pés. Se o chamado "centro" - ou qualquer nome que tenha o time de oposição não petista a Bolsonaro - não marcar esse artilheiro buliçoso que andava meio quieto e ficar pensando só em 2022, sem passar por 2020 e 2021, Lula e o PT podem correr por trás e fazerem, de uma campanha pelo impeachment, um estilingue, já antecipadamente fazendo, de um eventual Mourão, a nova vidraça, como fez com Temer. Se tiver pretensões políticas, o DEM (o partido que mais tem hoje, além do PT, condições de agir como um partido digno desse nome), precisará marcar por zona esse potencial adversário enquanto aceita sua colaboração contra Bolsonaro, o adversário comum. Esse é o papel de Rodrigo Maia, que precisa ficar livre de atritos à sua esquerda para poder sair jogando pelo centro e pela direita e lançar a bola adiante para um candidato que talvez ainda possa ser Mandetta, a depender do desfecho da campanha contra a pandemia. Mas precisará ter zagueiros na esquerda, segurando o jogo sollo de Lula. Por isso, Maia - e ACM Neto, o presidente nacional da sigla - precisam conversar com o inorgânico Ciro Gomes.
Com licença ou não (mas de preferência, com) de João Dória e do PSDB, Rodrigo Maia (o Tancredo da hora) vai precisar cuidar também do pé esquerdo da frente defensora das instituições, durante a campanha contra o Covid-19 e depois, na operação pelo impedimento de Bolsonaro. Alugar a canhotinha de Lula não basta, já que o ex-presidente é craque e sabe jogar também pela direita. Por isso, ao contrário de Ciro, pode ter recursos para formar seu próprio escrete, largar a frente pendurada na brocha e fazer, em 2022, sua própria campanha simbólica e/ou a de um petista que encarne o símbolo. As eleições de 2020, ou 2021, serão base de acumulação para 2022. Ganhar a eleição não parece hoje possível, mas o PT poderá, ao menos, repetir sua façanha de 2018, ocupar um lugar no segundo turno e congelar a política brasileira em ambiente polar, por mais quatro anos.
Em meio a essas evidências e cogitações sobre a política real, o benefício da dúvida pode parar no lixo e a evocação da grande política ser mero delírio idealista. O argumento, porém, é que entre a grande e a pequena política não há abismo quando uma causa política desperta uma nação. Nesses momentos o varejo político não se dissolve (dissolvê-lo, só abolindo inteiramente a democracia) mas se volta para captar o que vem de baixo.
Foi assim nos anos de 1980, quando os militares se retiraram pacificamente do poder porque a sociedade já não mais os reconhecia como poderosos e quando, por outro lado, o exclusivismo fundacionista do PT teve de ser mitigado e Lula repartiu palanque com os líderes do PMDB, porque a sociedade assim queria. A democracia era, naquele momento, uma causa nacional que ocupou o centro político, fazendo com que as pontas do espectro ideológico gravitassem em torno dela. Tal condição não foi obra do acaso nem imposição de uma revolução “de baixo”, contra “as elites”. Foi em boa parte arquitetura de uma elite política democrática que se forjou na luta contra uma ditadura. A democracia não foi obra da sociedade contra os políticos. Foi obra de uma política que persuadiu a sociedade. Apoiar e reforçar uma política prudencial, de conciliação e solidariedade, duas causas políticas cujo conteúdo prático a campanha contra o Covid-19 escancara: essa é a natureza do passo que precisa ser dado agora, na hora agonística dessa epidemia. Quem o der com mais firmeza, tendo clareza de que a política renasce na crise, tenderá a liderar o centro a ser ocupado por essas duas causas. O resto virá por gravidade. E será bem-vindo, pois as causas são generosas e juntam, em vez de separar.
*Cientista político e professor da UFBa.
Constituição deve nortear reformas no Brasil, diz Gilvan Cavalcanti de Melo à Política Democrática online
Em nova edição da revista da FAP, editor de blog indica caminhos fundamentais para se pensar compromisso com o país
Cleomar Almeida, da Ascom/FAP
A Constituição de 1988 é o porto seguro para pensar-se quaisquer reformas econômicas e políticas em nosso país. Esse entendimento é a base para os caminhos do futuro, avalia o editor do blog Democracia Política e Novo Reformismo, Gilvan Cavalcanti de Melo. Em artigo que produziu para a 13ª edição da revista Política Democrática online, ele diz que “O rumo mais real é debruçar-se sobre a conjuntura”. Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília, podem ser acessados de graça no site da instituição.
» Acesse aqui a 13ª edição da revista Política Democrática online
A FAP é vinculada ao Cidadania. De acordo com o autor do artigo publicado na revista Política Democrática online, a missão dos democratas é defender os compromissos constitucionais de distribuição de riqueza, que poderão obter forte apoio social, plural e crítico; atuar para construir uma nova opinião pública e vontade política democrática para transformar a atual realidade; e agregar estas forças democrática, superar as polarizações.
Melo sugere que é importante seguir dois caminhos fundamentais para se pensar o que ele chama de “compromisso com o país”. “Em primeiro lugar, investigar uma relação de forças sociais conectada à estrutura. Isto pode ser avaliada com os métodos das estatísticas”, afirma. Segundo ele, à base do nível de desenvolvimento das forças materiais de produção, organizam-se os agrupamentos sociais, cada um dos quais representando uma função e ocupando uma determinada posição na produção.
Na avaliação do autor, que escreveu a análise exclusiva para a revista Política Democrática online, a organização dos grupos sociais é uma relação real, concreta, independe do observador e factual. “São elementos que permitem avaliar se, em determinadas situações, existem as condições suficientes para as mudanças. Possibilita monitorar o grau de realismo e de visibilidade das diferentes ideias que o processo gerou”, assevera Melo.
Em segundo lugar, conforme escreve o editor do blog, existe a crítica a esta realidade. “O pensar a desigualdade social, seus dramas: milhões de desempregados, subempregados, os pobres e os chamados abaixo da pobreza, os miseráveis. A violência, o tráfico de drogas, as milícias, a exploração de crianças, os moradores de rua”, pondera.
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Gilvan Cavalcanti de Melo: Um pitaco constitucionalista
Tenho plena convicção de que, dando vida ao Cidadania, democrático, realizar-se-á uma mudança de alcance histórico. Com a transformação cria-se um sujeito destinado a marcar o perfil da política brasileira, no século que mal alcançou a maior idade.
Foram derrubados, definitivamente, os muros ideológicos do século XX e se começou a construir pontes, entre culturas políticas e setores da sociedade brasileira, entre os sexos e as gerações. Abriu-se novas estradas para o futuro do País.
O novo sujeito continuará a crítica da realidade de desigualdade social e seus dramas: os milhões de desempregados, subempregados, a violência, o tráfico, as milícias, os moradores de rua, a exploração das crianças, etc.
A crítica dessa realidade impõe o agir para modificá-la. A Constituição cidadã é inspiração e o caminho. Nela está contida uma série de compromissos: a dignidade da pessoa, os valores sociais do trabalho, o pluralismo político, os direitos sociais como saúde, educação, o trabalho, previdência social, a moradia, proteção à maternidade e infância, assistência ao desempregado, etc.
Os direitos acordados na Constituição ancoram o próprio desenho de programa e objetivo ideal de uma sociedade mais justa, no marco das instituições de um estado democrático.
Dentro dessa ‘utopia realista’, um reformismo forte se impõe, uma utopia reformadora, associada aos compromissos constitucionais de distribuição de riqueza, que poderão obter um forte apoio social, plural e crítico.
Agir para construir uma nova opinião pública e vontade política democrática, para transforma a atual realidade e aglutinar os reformistas e democráticos. É um nobre objetivo.
A Democracia Liberal, iniciada por Locke (1632-1704), com suas ideais políticas, exerceu a mais profunda influencia sobre o pensamento ocidental – o Brasil como parte. Suas teses encontram-se na base das democracias liberais. Seus Dos Tratados sobre o Governo Civil justificaram a revolução na Inglaterra. No século XVIII, os iluministas franceses foram buscar em suas obras as principais ideias responsáveis pela Revolução Francesa. Montesquieu (1689-1755) inspirou-se em Locke para formular a teoria da separação dos três poderes. A mesma influencia encontra-se nos pensadores americanos que colaboraram para a declaração Independência Americana, em 1776.
No instante que uma nova onda iliberal tenta abrir espaço, é obrigação, declarar, com firmeza, a defesa dos compromissos firmados na Constituinte de 1987/1988, inspirados nos pensadores, fundadores do liberalismo político: uma democracia liberal e forte, uma democracia intensa, participativa e solidaria. Hoje, alvo de hostilidade, umas vezes veladas, outras vezes abertamente.