Democracia Política e novo Reformismo

Paulo Fábio Dantas Neto: A República na América

“(...) Pois os fatos são renitentes; não desaparecem quando os historiadores ou sociólogos se recusam a tirar algum ensinamento deles, embora isso possa ocorrer quando todos os esquecem(...)”. (Hannah Arendt, “Da Revolução”)

É paradoxal que a traumática experiência dos quatro anos de agressiva passagem de Donald Trump pela Presidência dos Estados Unidos tenha feito com que o destino daquele país passasse a importar mais ao mundo do que já importava antes. Assim como tornou os EUA menos auto centrados e mais permeáveis e sensíveis ao que acontece fora dele. A pretensão isolacionista de Trump produziu efeito oposto. Ele não entregou o muro que prometeu, contra o México e o mundo. Contra o seu muro, construíram-se pontes e pistas que atravessaram continentes para ajudar a república norte-americana a se defender.

Uso de propósito o termo república e não democracia – embora esteja entre os que não conseguem pensar uma instituição sem a outra – porque vejo na instituição republicana, tal como se firmou nos EUA, a fonte principal da empatia que a fórmula norte-americana suscita, mesmo em presença de crise em vários aspectos de sua democracia e de tantos motivos de antipatia historicamente enraizados por ações da política externa de seu Estado.  Hannah Arendt, cujo pensamento serve não só de epígrafe como de inspiração para este breve texto, frisou a originalidade da experiência fundacional norte-americana, a um só tempo revolucionária e criadora de um tipo de governo fiel ao espirito da revolução da qual partiu, isto é, governo limitado pela lei. A proteção de direitos de cidadãos contra a opressão do poder político institucionaliza a liberdade, causa da revolução.

Contraste significativo, mostra Arendt, com rebeliões modernas que libertaram povos de opressões - como a do Antigo Regime da bastilha e a da grande Rússia dos czares (e às quais podemos acrescentar a de títeres cubanos de plutocratas e mafiosos e tantos outros exemplos) – mas após as quais o sentido de revolução foi perdido quando seus processos políticos não construíram a liberdade, seu fundamento. Cair sob o jugo de algum tipo de “Conquistador” seria a sina de rebeliões que não se fazem acompanhar de uma revolução, no sentido político de restauração/recriação da liberdade como experiência e/ou razão.

Em contraste com tais experiências agonísticas esteve sempre a realidade de contra revoluções que, sobre o fogo fátuo das insurreições desacompanhadas de política positiva, viabilizaram governos limitados como opções pacificadoras da violência de revoluções refratadas. Nesses casos, pontua Arendt, constituições levam a governos limitados que não são sinais de vitória moderada de aspirações revolucionárias, mas da sua derrota.   

Como coisa distinta de ambas as situações sumariadas, levanta-se o caso singular da República norte-americana. A forte conexão de sentido, tanto no campo dos argumentos racionais, quanto no da análise histórica, entre o momento-libertação (a guerra da Independência) e o da construção da liberdade (da Declaração da Independência à Constituição, passando pelo amplo debate popular da questão federativa) deixa claro, para nossa autora inspiradora, que os fundadores da República americana não cometeram o equívoco de imaginar que poder e lei poderiam emanar da mesma fonte. O poder popular concilia-se com a liberdade política quando a lei - sua elaboração, aplicação e guardiania – provém de diferentes poderes derivados de uma autoridade política constituída e fundada no princípio representativo. Autoridade cujo mister é proteger o cidadão da opressão do poder, inclusive do poder que emana direto da fonte legitimadora da própria República.   Numa palavra, na República norte-americana não há poder soberano, nem o do povo, pois a premissa é que a liberdade requer governo e governo legítimo é governo limitado.

É sobre esse estuário institucional (governo da lei, não de pessoas), compactado como tradição por uma cultura política associativa, que a democracia americana trafega como presente continuo, entre avanços e recuos, tendo como resultante um processo cumulativo de inclusão política.  A violência, que todos apontam (alguns com desagrado, outros com admiração) como marca de um modus operandi da história daquele país, comparece nos vários momentos dessa construção democrática bissecular, mas encontra no estuário republicano uma força de atenuação, que é civilizatória. Sua eficácia pode ser percebida quando se compara a violência em estado bruto, de guerra, que marcou o fim da escravidão, há um século e meio, com enfrentamentos de uma década de conquista de direitos civis, há meio século, daí com lutas que permitiram a significativa eleição de Barack Obama há uma década e com vitoriosas frentes políticas de agora, pacientemente construídas para enfrentar o trumpismo, impulsionadas por gigantescas manifestações de protesto pelo assassinato de George Floyd.  A visão dessa floresta é a da República como hardware seguro ao qual de acopla a democracia como software em constante atualização.

Foi contra esse edifício monumental, sediado na história e na cultura política de seu país, que Donald Trump jogou seus apoiadores no último dia 6.  O Capitólio é o edifício símbolo do hardware que os norte-americanos construíram para se fazerem representar e serem protegidos de efeitos malévolos de dissensões sempre presentes entre eles. Ao arremessar contra o Capitólio uma parcela radicalizada de pessoas desatentas à dimensão protetiva do edifício, quis induzi-las a destruir/desmoralizar um hardware sem o qual eles próprios seriam inimigos vencidos e destituídos de qualquer direito. E como poderiam, de algum modo, na ausência desse hardware, tentar introduzir seu software extremista? Contra quem e contra o que poderiam mobilizar seu pathos destrutivo? Se por acaso não fossem tão fragorosamente fracassados, como foram, ficariam parados no ar, rebelião seguida de anomia, não de novo poder. Agora que a República prevaleceu, eles continuarão tendo a chance de tentar, desde que respeitem o hardware. Chance condicional, não excluindo que insuflador e insuflados respondam pelo atentado, já que o governo é da lei.

Mas eles quem? Todos os cara-pálida? É outra pergunta pertinente depois desses eventos. Prever o que será e como se comportará o trumpismo findo o governo Trump é, ainda, um exercício para videntes e dele me pouparei porque me falta esse talento. Entretanto, há uma questão correlata que pode ser aqui arranhada por uma evidência que salta aos olhos. Já começou a disputa de narrativas no campo oposto ao de Trump. O desfecho que o isola (ao menos momentaneamente) significa, para certos analistas politicamente engajados, a implosão do Partido Republicano ou o seu enfraquecimento a ponto de perder capacidade de polarizar com os Democratas, que tenderiam a ocupar bases do rival desorientado. Como não há ambiente propicio a partido único e atribui-se a Trump uma atitude anti-sistêmica cada vez mais ostensiva, vislumbra-se, à esquerda, a chance (ou o desejo) de que o Partido Democrata venha a ser a nova força conservadora na política norte-americana, abrindo espaço, a médio prazo, para-o surgimento de uma “nova” esquerda.  Até porque, conforme essa narrativa, a nova polarização política tende a estar impregnada pela questão racial e a noção de pluralismo – caríssima à tradição política do país - passa a assumir, nesse registro, uma conotação mais societal, enfatizando clivagens. A tese parece ser que hoje saem derrotados o trumpismo e o supremacismo radical. Amanhã será a banda moderada com a qual se identifica Biden e que será chamada a defender a herança da “sua” democracia branca. Não se distingue, no discurso, lugar para a “nossa” República. Deve-se assinalar que boa parte do movimento político anti racista parece estar evitando esse consequencialismo identitário e tem apostado firme na via eleitoral, formando frentes amplíssimas. A ver se é uma atitude política sustentável ou mais uma tática defensiva motivada pelo fator Trump. 

Para outros analistas, o isolamento de Trump conduziria a uma retomada, pelo seu partido, agora na oposição, do lugar de direita democrática que lhe cabe. Até porque a tendência da política de Biden, tendo ao lado a vice Kamala Harris, seria reforçar uma inflexão “à esquerda”, justamente para evitar que, nesse quadrante político, algo de relevante se descole do partido e passe a querer polarizar com ele. É jogo futuro, mas essa segunda hipótese guarda maior sintonia com a interpretação de que quem derrotou Trump foi o instinto de República e não o clamor por uma democracia de novo tipo. Em vez de uma “nova democracia”, uma democracia que se renova graças à robustez da República. Quanto mais atores políticos relevantes - no Capitólio, na Casa Branca, em Wall Street e na malha associativa de movimentos sociais em geral e de movimentos políticos anti-racistas  se deixarem persuadir por esse segundo caminho, mais laços haverá com o mundo exterior, para o qual a República que há na América segue sendo referência.   

Desdobramento lógico e prático dessa discussão é perguntar o que tudo isso tem de fato a ver com o mundo externo aos EUA, Brasil incluído. Tema de outra coluna, provavelmente a da próxima semana, se fatos do nosso próprio país não furarem a fila. Como gancho, deixo a sugestão de reflexão sobre se o fim da aventura trumpista inspira mais dúvida ou mais confiança na hipótese de que instituições robustas e atitude política republicana possam domar um populista de extrema-direita no poder e o impeçam de detonar o edifício.

*Cientista político e professor da UFBa.


Paulo Fábio Dantas Neto: Espectros e esfinges - A esquerda na estrada até 2022

Dois dos temas mais carregados de incerteza na política brasileira atual são o rumo da oposição de esquerda até 2022 e sua sorte nas eleições presidenciais do mesmo ano.  Quem quiser ser radical na recusa a especulações, deve ser igualmente radical em não escrever sobre qualquer dos dois temas. Sobre o segundo, a incerteza desestimula até conjecturas. Entre a irrelevância que profetizam os espíritos desejosos de varrê-la do mapa político, a confirmação de uma posição de coadjuvante, desenhada nas eleições municipais de 2020 e a possibilidade de protagonismo polarizador, cavalgando uma crise econômica e social de proporções ainda maiores que a atual, há várias gradações possíveis para a sorte eleitoral da esquerda que é chamada por esse nome.  Seria exaustivo e sempre insuficiente tentar antecipá-las aqui. Já sobre o primeiro tema, como amante da moderação, desisti do excesso de cautela e resolvi me aventurar.

Um dos poucos consensos entre analistas é que, no interior desse campo onde se movimentam PT, PDT, PSB, PCdoB, PSOL, REDE e outros partidos menos cotados – e do qual se exclui uma esquerda que, no subsolo em que se viu colocada pela confrontação ideológica, já opera em interação com o campo liberal-democrático - , está em curso um realinhamento de forças, quiçá uma renovação de estratégias, métodos e programas, que poderá dar cabo da longeva hegemonia do PT sobre ele.

Evidenciada nas eleições municipais, essa possível tendência ainda precisa passar pelo teste de uma eleição nacional. Até lá, têm sido comentadas e interpretadas, nessa direção, as várias alianças eleitorais bem sucedidas que PDT e PSB celebraram - entre si e com partidos do centro e da centro direita - em muitas cidades relevantes, alianças das quais estavam ausentes o PT e o PSOL, com o PCdoB flutuando. Aponta para a mesma tendência (de realinhamento) a maioria dos comentários sobre a campanha de Guilherme Boulos em São Paulo, em cujo desfecho relativamente vistoso, os mais afoitos veem um tendencia do PSOL a substituir o PT como partido-polo de uma frente de esquerda e, os mais realistas, um movimento de Boulos em direção ao legado lulista, partindo da premissa de que o PSOL não é Boulos e Boulos não é o PSOL (assunto futuro para outra coluna).

São realinhamentos com sentido político diverso. Pelo primeiro, puxado pelo PDT e PSB, essa parte da centro-esquerda integraria, em 2022, uma frente ampla cujo epicentro estaria fora do seu campo. No segundo caso, haveria uma atualização da antiga ideia de pura frente de esquerda. Esses dois movimentos podem vir a ser contraditórios, de modo a um prevalecer e anular o outro - ou complementares.

O paralelismo de duas frentes anti bolsonaristas, uma de esquerda, outra ancorada ao centro, mas com participação de setores da centro-esquerda e ambas convergindo, num segundo turno, para se contrapor à reeleição de Bolsonaro, delineia-se como um possível e benigno desdobramento lógico das alianças que se firmaram para as eleições de 2020. Trata-se, entretanto, de conjectura destituída de caráter de predição. Por outro lado, é possível ver três modos pelos quais poderia prevalecer um dos dois tipos de realinhamento, anulando-se o outro.

Modo um seria a eventual frente ampla conseguir atrair o eleitorado de esquerda e anular a competitividade eleitoral de uma frente esquerdista, repetindo-se, no pleito nacional, o que se assiste, no momento, na campanha de Baleia Rossi à sucessão de Rodrigo Maia na Câmara dos Deputados. Como os eleitorados dos dois pleitos são completamente diferentes, a hipótese só não é delirante se a frente tiver um candidato mais à esquerda (Ciro Gomes, por exemplo), reeditando a fórmula de FHC, de um nome de esquerda sem um programa de esquerda, ou até contraposto ao dela, como ao da extrema direita. Ou se o centro construir um nome que dialogue com o andar de baixo do eleitorado nacional (pode ser, por exemplo, Luiz Mandetta] a ponto de fazer a centro-esquerda calcular que vale a pena.

Modo dois seria se Boulos conseguisse fazer do Brasil um imenso São Paulo e, por gravidade, atraísse PSB e PDT para uma frente de esquerda, tirando o chão da candidatura de Ciro Gomes, ou aliando-se com ela, murasse a outra frente, cujo arco se restringiria, assim, ao centro e à centro-direita.  Modo três seria a reinvenção da polarização direita-esquerda com fragmentação do centro político. Fala-se aqui do espectro de 2018 assombrar o processo político, por provocação de algum fator externo oposto à lógica moderadora do sistema político-partidário.

Um desses catalisadores negativos pode ser o recrudescimento da crise sanitária, econômica e social com os elementos explosivos aí embutidos, a saber, a politização do tema da vacinação, o agravamento do desemprego, o fim do auxilio emergencial, bombas-relógio potencializadas pela inércia governamental e pelo estímulo aberto do bolsonarismo à desobediência civil e ao desafio às instituições, como ante sala para uma solução autoritária. É visível que a extrema direita retoma sua ofensiva de maio desse ano, assim como é previsível que parte da esquerda não resista à tentação de aceitar o confronto nesse terreno.

Um segundo possível catalisador do espectro de 2018 é a reintrodução, como pauta central do País, através da mídia e do Sistema de Justiça, do tema da corrupção do sistema político. Essa iniciativa não é politicamente inocente, no sentido de que há, no interior da sociedade política, forças que trabalham contra a lógica moderadora do sistema representativo. Dentre elas a mais conspícua é, por definição, o próprio bolsonarismo. Mas há também atores que vêm perdendo terreno e protagonismo com a dinâmica agregadora que tem prevalecido das eleições municipais para cá, tendo como centro irradiador o Congresso Nacional.  Refiro-me aos setores cujas atitudes e pautas reportam-se ao lavajatismo e à parte da esquerda que vem sendo levada a reboque pelo processo de realinhamento em curso no próprio campo, como acima comentado.  Detenho-me neste ponto porque há uma nuance que não pode passar despercebida. Um eventual retorno de uma cena política polarizada pelo tema da corrupção, com suas implicações policiais e judiciais, não necessariamente terá, como protagonistas, os atores de 2018. 

Outra parece ser a visão da experiente jornalista Eliane Cantanhede, em artigo (“O pino da granada”) publicado em sua coluna em “O Estado de São Paulo”, em 29.12.20. Para ela, “ao abrir os arquivos hackeados da Lava Jato para os advogados do ex-presidente Lula, o ministro Ricardo Lewandowski tirou o pino da granada e vem por aí uma explosão política com epicentro no Supremo Tribunal Federal e estilhaços nas eleições presidenciais de 2022”. E conclui que o efeito político disso “deve ser favorável ao presidente Jair Bolsonaro”, porque pode facilitar a anulação de processos contra Lula, torná-lo elegível e, assim. “eletrizar o País e acirrar a polarização Lula versus Bolsonaro em 2022, o que ainda é favorável ao capitão, como em 2018”.

Devemos admitir que seja sim, uma granada. O risco de reiterar a polarização é real porque a personificação populista da esquerda na figura de Lula, aos olhos de uma larga faixa do eleitorado, e a predisposição de outra ampla faixa, ao populismo lavajatista, seguem sendo entraves ao livre fluxo da democracia e da política de isolamento da extrema direita. Mas quem daria a Bolsonaro o aval para se apresentar ao eleitorado como expoente desse segundo populismo se o perigo petista já não se apresenta como em 2018, a ponto de se apoiar o capitão para evitá-lo? Sem o “perigo do retorno” e sem o fator Lava Jato/Sergio Moro, Bolsonaro e as eleições de 2018 não teriam sido o que foram. Da explosão da granada de Lewandowski, temida por Cantanhede, Moro sairia mais fraco do que já se encontra. O script lavajatista não tenderia a vagar em busca de um novo ator? Não se duvida que Bolsonaro possa disputar esse lugar, mas que o conseguirá não é uma consequência lógica da explosão, pois não faltarão concorrentes a tentar se apropriar da retórica faxineira. Ela é candidata a se diluir como cereja de muitos bolos, de variados sabores ideológicos. Mas dificilmente será o centro do debate num País traumatizado pela pandemia e pela cumplicidade do Governo com ela.

Nesse ponto, podemos voltar à esquerda, nosso foco. Quem prestou atenção à campanha de Boulos em São Paulo viu que não se afastou da sua pauta o tema da corrupção. Muito pelo contrário, tentou fazer dele um foco para desestabilizar o oponente, através do questionamento da figura do seu vice.  Detonada a granada pelo STF, a solidariedade a Lula, no campo da esquerda realinhada, iria até o ponto da desmoralização de Moro para colar no ex-presidente a etiqueta de perseguido. Mas a partir desse ponto, quem na esquerda renunciaria ao tema para apostar em Lula como piloto do novo navio? O realinhamento no âmbito da esquerda (e até no próprio PT) já chegou a um ponto em que esse revival não tem mais espaço. Numa eventual reiteração da polarização estéril de 2018, a fila terá andado dos dois lados. Nem Moro nem Lula podem mais representar o que representaram.

Como político realista que é, Lula sabe disso melhor do que ninguém. Sabe que precisa usar uma eventual reabilitação eleitoral - advinda da sua batalha junto à Justiça para levar a Lava Jato a ocupar o seu lugar no banco de réus - para conquistar um mandato em condições menos incertas, do que se aventurar a uma candidatura presidencial. É mais racional que opte – como se cogita e se planta em sites e colunas - por uma candidatura ao Senado na Bahia. Se vitoriosa, renderia um abrigo institucional para prosseguir nas suas lides judiciais, que voltariam à estaca zero, mas não se extinguiriam. O lugar nacional que tentaria ocupar seria o de apresentador, sob protestos do PSOL, de Guilherme Boulos como príncipe herdeiro de sua majestade pretérita. Já na Bahia, a primeira barba tostada seria a do Governador Rui Costa, cuja estratégia política seria virada de ponta-cabeça por esse eventual movimento de peças em que o Estado se tornaria um bunker da resistência à renovação da esquerda. Mas nunca é demais repetir: isso tudo poderá ocorrer se a política moderadora não prevalecer.

* Cientista político e professor da UFBa.


George Gurgel: Entre os desejos e as realidades, 2021 está chegando

Na chegada de um novo ano, em qualquer Sociedade, são anunciados os melhores desejos para os que estão próximos e aos que não estão tão próximos assim: na verdade, queremos o melhor para toda a humanidade, considerando as nossas distintas realidades e as nossas próprias expectativas em relação ao ano que se aproxima. 

Assim, a Humanidade se desenvolveu e chegou ao ano de 2020. Foi e vai sendo moldada pelos valores culturais, econômicos, sociais hegemônicos, em tempos de guerras e de paz.  Lembrando, que só no século XX, fomos capazes de fazer duas guerras mundiais:  com bombas atômicas jogadas, em tempos distintos, em Hiroshima e Nagazaki. Portanto, o nosso desafio principal continua sendo a construção de uma cultura da Paz, a ser defendida e conquistada, permanentemente.

Esta tem sido a nossa caminhada como Humanidade. Vamos nos transformando e transformando a natureza, da qual somos parte integrante.

A pandemia em curso durante o ano de 2020, e a proximidade de 2021, é mais uma oportunidade de nos admirarmos e nos questionarmos sobre o que estamos fazendo com as nossas vidas, como nos relacionamos e, quais são os nossos valores e a nossa práxis no caminho da construção de um novo humanismo, respeitando a diversidade cultural, espiritual, étnica da Humanidade, colocando o imperativo categórico de uma mudança urgente das nossas relações insustentáveis que estabelecemos entre nós e com a própria natureza.

O que podemos fazer?

O que temos a dizer como Humanidade em relação às questões antes destacadas?

O que estamos herdando de 2020, ano inicial da pandemia da covid-19?

O que queremos e podemos fazer neste ano de 2021 que se aproxima?

No ano de 2020, a pandemia chegou e deu uma maior visibilidade à nossa tragédia política, econômica e social. Acelerou algumas mudanças, desnudou e modificou comportamentos, impactou o nosso cotidiano, a nossa maneira de viver em sociedade.

Os resultados recentes da pesquisa da OCDE em relação à economia mundial, particularmente a situação do G 20 -  grupo de 19 países mais a União Europeia, apontam para o crescimento de 8,1 % da economia brasileira no terceiro trimestre deste ano, após queda sem precedentes do PIB brasileiro na primeira metade de 2020, quando as economias brasileira e mundial foram impactadas pela pandemia. 

O Brasil ficou e continua abaixo da média de recuperação da economia dos países da OCDE, crescendo apenas 7,7%.  O PIB da Índia foi o que mais se recuperou no período, com 21,9%, após uma queda de 25,2% no trimestre anterior, a maior retração já alcançada entre as economias do G20.

Os dados divulgados pela OCDE evidenciam que as nossas relações políticas, econômicas e sociais estabelecidas e reafirmadas durante a pandemia continuam insustentáveis e não atendem às expectativas da maioria da Sociedade.

Portanto, frente a essa realidade, continuamos a ser desafiados, em 2021, a construir e defender valores que nos coloquem no caminho da sustentabilidade política, econômica, social e ambiental.  Devemos persistir e continuar a trabalhar para superar a triste e desoladora realidade social de uma parcela majoritária da população mundial, desrespeitada nos seus direitos básicos, consolidados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a saber: de ir e vir, moradia, educação, saúde, trabalho e renda, além de uma agenda primordial, a ser conquistada.

 Nós, como humanidade, devemos continuar comprometidos com o enfrentamento sistemático dos graves problemas sociais, econômicos e ambientais vividos no cotidiano das nossas vidas, agravados com a pandemia neste ano de 2020.

Ainda, as relações internacionais continuam desafiadas, como nunca, ao exercício do multilateralismo e ao fortalecimento da Cultura da Paz. O conteúdo das mudanças em curso e das que devem ser realizadas, durante a pandemia e o futuro imediato, deve ser pauta permanente da ONU, FMI, OIT, OMS, União Europeia, MERCOSUL, entre outras Organizações Internacionais, nesse processo de tomada de consciência para as mudanças urgentes a serem realizadas nos planos internacional e nacional, voltadas para uma maior inclusão social, construção de uma nova economia de baixo carbono, atenção às mudanças climáticas e à preservação dos ecossistemas do Planeta.

Assim, a Sociedade no ano de 2021, que se aproxima, estaria sendo contemporânea dos desafios atuais e do futuro, na busca da superação dos conflitos e contradições estabelecidos e construídos historicamente e, atualmente, pela Humanidade.

Algumas dessas transformações já estão acontecendo. São processos em curso. Novas relações estão sendo construídas, a partir das mudanças técnicas em andamento e de novas relações políticas e sociais em construção nas redes, nas ruas, no mundo do trabalho e da cultura, impactados pela pandemia.

As Organizações Governamentais, Não Governamentais e a Cidadania devem persistir e trazer para suas pautas as distintas realidades políticas, econômicas e sociais, identificando as contradições e os conflitos da sociedade, de maneira geral, com especificidades e particularidades, em função da realidade política, econômica e social.

Quais as questões estruturantes a serem consideradas neste contexto frente à realidade internacional e brasileira?

No Brasil, a qualidade das políticas públicas atuais e as que devem ser construídas levariam às mudanças políticas, econômicas e sociais, na medida em que sejam construídos novos conteúdos e pactos entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais.

A ampliação da Democracia e a consequente participação da Cidadania são instrumentos fundamentais no caminho desta sustentabilidade econômica, social e ambiental desejadas.

Enfim, a Sociedade em geral está convocada a ter uma efetiva participação na construção e na implementação dessas políticas públicas no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental, respeitando as especificidades nacionais.

A insustentabilidade política, econômica e social, em que vivemos, reflete as disfuncionalidades e limites das atuais estruturas políticas, econômicas e sociais responsáveis pela formulação e implementação dessas políticas nacionais e internacionais. 

A autonomia da Sociedade, em relação ao corporativismo do Estado e do Mercado, é um dos principais desafios da Governança Democrática Nacional e Internacional.

Portanto, a eficiência de uma Governança Democrática está relacionada com os meios, os modos de construção, de implementação das políticas nacionais e regionais, em cooperação com as Organizações Multilaterais Internacionais e Nacionais.

Os avanços da Democracia, com conquistas efetivas de toda a Sociedade, aconteceram naqueles países em que foi possível a construção de pactos políticos, econômicos e sociais que garantiram e continuam garantindo políticas públicas democráticas, inclusivas, para a maioria da Sociedade.    

É importante ainda destacar, nesse contexto, os limites do próprio Estado Nacional, em uma Sociedade cada vez mais mundial, ampliados com as crises política, econômica, social e de valores que estamos enfrentando nesses tempos de pandemia, evidenciando de maneira evidente a interdependência e a complementariedade entre o nacional e o internacional.

Em relação ao Brasil, no ano que se avizinha, o campo democrático continua sendo desafiado a entender a gravidade e a complexidade do momento político em que vivemos.  Há que haver uma maior articulação entre os discursos e as ações dessas forças democráticas no Congresso Nacional e na Sociedade em geral, no caminho de uma alternativa democrática para a superação da crise política, econômica, social e de valores que estamos vivendo. 

Finalmente, continuamos desafiados(as), em 2021, a um maior protagonismo da Sociedade brasileira e mundial, buscando o fortalecimento da Sociedade Civil, com o exercício pleno da Cidadania.

Estes são alguns dilemas de uma Governança Democrática Mundial e Nacional, durante o ano de 2021: a necessidade de ampliação e fortalecimento da Democracia, através da construção de pactos entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais nacionais e internacionais, no caminho de uma Governança Democrática Mundial, considerando as especificidades nacionais.

Que seja bem vindo, ano de 2021!

*George Gurgel, Universidade Federal da Bahia, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade


Paulo Fábio Dantas Neto: Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts

Lemos e ouvimos sempre que eleições municipais têm lógica diferente de eleições para Executivos nacional e estaduais. Fenômenos comuns a 2016 e 2018 arranharam um pouco essa convicção. O sucesso do discurso anti-política, a força da onda lavajatista, o antipetismo como coalizão de veto e por aí vai, tudo isso se desdobrou e radicalizou entre 2016 e 2018.

Agora, um ponto em discussão é em que medida 2020 reverteu 2016. Para avaliar bem isso, deve-se considerar o insucesso eleitoral que tiveram, dessa vez, os discursos de polarização ideológica e o da “nova política” como antipolítica, a menor relevância nas urnas do tema da segurança e o pouco peso do da luta contra a corrupção. Considerar também que o eleitorado valorizou eficácia nas gestões municipais, fator cuja importância foi potencializada pelo contexto da pandemia.

Mas não se pode excluir da análise um importante elemento de continuidade entre 2016 e 2020, que é o fortalecimento eleitoral da chamada centro-direita, em sua diversidade. Aqui cabe distinguir uma centro-direita pragmática que recebe o apelido, muitas vezes impróprio, de “centrão” e aquela que, há tempos, tem o DEM como sua expressão programática, postura que manteve esse partido, por mais de uma década, na oposição aos governos do PT.

Da análise desses fatores depende a resposta à seguinte questão: a reversão que tenha havido, em 2020, do “espírito” de 2016, restabelecerá o antigo grau de autonomia de eleições municipais, deixando supor que 2022, apesar da sinalização contrária de 2020, possa reiterar o quadro inóspito de 2018 ou o padrão de desconexão que vigorou dos anos 90 até 2016-2018 seguirá sendo violado, tornando 2020 capaz de prenunciar 2022 como 2016 prenunciou 2018?

Analiticamente é possível admitir as duas hipóteses. Politicamente é interessante ver como reforçar a segunda. Uso aqui uma chave toquevilleana que abre possibilidades a escolhas políticas, em condições gerais postas por um processo que os atores não controlam. Mas reforçar qual script de 2020? Há mais de um a delinear um realinhamento de forças. Uma bifurcação liga-se a diferenças persistentes de idioma entre a política de São Paulo e do resto do país.

Há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das recentes eleições na capital paulista. A primeira, que a reeleição de Bruno Covas foi uma vitória do governador João Dória, o que estimularia uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Ela estaria em dupla polarização com o bolsonarismo e uma esquerda unida que teria encontrado em Boulos uma nova rota de navegação. A segunda versão é que Covas venceu, apesar de Doria, e que sua vitória pessoal aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional, para superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.

O peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram. Em Fortaleza a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu.

Dessa bifurcação surge uma segunda questão: saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Eles sinalizam a chance de uma frente mais ampla ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda. Isso pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. Do nome, os que trabalham com essa meta ainda estão longe. Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo - Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com “essência” de centro-direita.

Essas cogitações sugerem balizas para um agir baseado no que aí está: governo relativamente enfraquecido e Presidente relativamente popular. Muito pode mudar se presidente e governo desabarem juntos numa crise econômica e social ou se, por oposto, o capitão surpreender e vier a ser também presidente. É incerteza intrínseca ao processo. Convém as oposições terem pés no chão, para lidar com o que há e olhos abertos para o que pode vir.

*Paulo Fábio Dantas Neto, Cientista político e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBa)


Luiz Werneck Vianna: Uma nova oportunidade e seus riscos

Em movimentos lentos, mas contínuos, uma nova era afirma seu caminho em meio a uma resistência de desesperados, como a de Donald Trump, que pretendem barrar o passo aos processos que prefiguram passo a passo a aparição de uma nova ordem nas coisas do mundo. Se esse tempo é de esperança ele também conhece riscos, como testemunha a atual onda de assassinatos de fins políticos e do recrudescimento das possibilidades de uma guerra nuclear. O capitalismo vitoriano a que se concedeu novo alento desde os anos 1970, primeiro com Thatcher, depois com Reagan e, na sua forma mais encorpada com Trump, que lhe difundiu em boa parte do mundo escorado pelos recursos vários de que dispunha, parece preferir o dilúvio a qualquer solução sem ele.

Aqui, na periferia, aguarda-se com fôlego preso a transmissão do governo de Trump a Biden, vitorioso nas eleições com larga margem de votos, quando se deve iniciar de fato a retomada do país da sua identidade e melhores tradições, a começar por sua agenda ambiental, ora posta a serviço dos proprietários de terras e dos interesses da mineração em solo amazônico. A partir daí, ter-se-á o ponto de Arquimedes para a regeneração da inscrição do país no cenário internacional aviltada pela figura anacrônica do chanceler que aí está. Como num jogo de dominó, seguem-se o tema crucial das desigualdades sociais tão bem posta pela candidatura de Guilherme Boulos à prefeitura de São Paulo, e sobretudo um largo debate entre as forças democráticas sobre o rumo a que o país deve perseguir na sucessão presidencial de 2022, se chegarmos até lá.

Não serão tempos fáceis os que temos pela frente, contudo certamente menos amargurados do que acabamos de deixar para trás com a sociedade impondo pela via eleitoral uma indiscutível derrota às forças anti-políticas e ao obscurantismo do governo Bolsonaro.  Em particular, pela crise econômica, patente no desemprego massivo que ameaça as condições de sobrevivência das classes subalternas, já sob os letais riscos da pandemia.

Mas, se as eleições nos trouxeram boas notícias, elas igualmente revelaram as dimensões do nosso primitivismo e atraso políticos. Está aí o Centrão, impando de satisfação, uma nova direita cevada pelo voto, e uma esquerda sem forças próprias e que ainda desconhece o terreno em que pisa, nostálgica do carisma de Lula e imune à autocrítica dos seus graves erros.

Visto do horizonte de hoje, para as forças democráticas que aspiram por reformas sociais o que se tem pela frente não é um cenário estimulante, decerto distante do pesadelo em que vivíamos, percepção contrária da que medra no campo da direita e que descortina o futuro como um campo aberto para a conquista do poder político. Tudo permanecendo constante, como provável, acalenta-se uma solução de centro-direita que marginalize a esquerda. Não é fora de propósito supor que, no caso, se estabeleça um silêncio obsequioso quanto ao descalabro do que tem sido o atual governo, já indicado no telefonema realizado pelo prefeito recém-eleito Eduardo Paes do DEM ao presidente Bolsonaro, cujas ações na presidência seriam estimadas pela limpeza do terreno político da presença da esquerda.

Fora o alívio imediato que as eleições nos trouxeram, evitando a legitimação do atual governo pelo voto, o quadro diante de nós é desalentador quando se pensa em cenários futuros. As forças do mando tradicional demonstraram capacidade de se reproduzirem em cidades abastadas e nos ermos rincões do país, levando de roldão as prefeituras que se vão constituir na plataforma das próximas sucessões, especialmente na presidencial. O travo otimista que nos fica vem principalmente da campanha de Boulos, em São Paulo, de Marta Rocha, de Benedita da Silva e Renata Souza no Rio, com a boa recepção que obtiveram nos redutos periféricos de suas cidades ao denunciarem as alarmantes condições das desigualdades sociais, faltando-lhes compreender a necessidade de uma coalizão entre suas candidaturas.

A sorte futura da esquerda a fim de que seus temas se tornem influentes politicamente no que vem por aí depende de mobilizações dessa natureza. Força própria é a senha para que ela seja ouvida nesse caldeirão de ambições desatadas pelo poder num país que tem a sina de que cada qual que detenha uma nesga de poder queira ser califa no lugar do califa. Por mais que seja verdadeiro o caráter de acidente na eleição de Bolsonaro, ele não pode ocultar o fato do nosso atraso político e da nossa incapacidade de reconhecê-lo, suprindo essa falta com fantasias mesmo que bem intencionadas.

Nessa hora em que se acendem esperanças é preciso cautela com os que procuram nos vender gato por lebre, com candidaturas saídas de suas cartolas sem densidade e tirocínio comprovado. Não há caminhos de ocasião, o que se precisa é pavimentar com segurança a estrada para o futuro na longa caminhada que ora se inicia com espírito de luta que anime a vida popular para a ação e a imaginação aberta para o encontro com os democratas com que marcharemos juntos.

Sem Trump e com Bolsonaro perdido como cego em tiroteio nos dois anos que lhe restam, abre-se uma oportunidade para um esforço bem concertado no sentido de estimular alianças escoradas por baixo pelo apoio popular que traga de volta o que não soubemos conservar.   

Salvo tropeços imprevistos, as coisas do mundo retornam ao leito das instituições e da cultura política forjadas no segundo pós-guerra como a ONU e tantas outras, e não nos faltam nem a tradição e a vocação para desempenharmos no que está por vir um bom papel nesse lugar que ocupamos.

*Luiz Werneck Viannaa, sociólogo, PUC-Rio    


George Gurgel: Friedrich Engels, o marxismo e a sociedade contemporânea

Estamos comemorando o bicentenário de nascimento de Friedrich Engels, um dos maiores pensadores do século XIX, junto com seu amigo e irmão siamês Karl Marx

Engels nasceu em Barmen, na Alemanha, em 28 de novembro de 1820. Teve uma formação cosmopolita. Fez o serviço militar em Berlim, em 1841, quando passou a conhecer as ideias de Hegel, e integrou-se ao grupo dos Jovens Hegelianos, sob a liderança de Bruno Bauer. Após o serviço militar, retornou a Barmen e, por imposição paterna, foi para a Inglaterra, em 1842, para a cidade de Manchester, berço da Revolução Industrial.

A paixão revolucionária tomou conta dele, desde jovem. Quando chegou à Inglaterra, sob a influência de Moses Hess, que conheceu em Berlin, suas ideias já eram socialistas. Em Manchester, foi trabalhar na indústria têxtil, em uma fábrica que o pai tinha em sociedade com ingleses. Sua permanência em território britânico, o contato permanente com trabalhadores industriais, com o próprio movimento Owenista e Cartista e os seus próprios estudos sobre a situação dos operários naquele país, levaram à análise e à publicação, em 1845, do seu primeiro livro: A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, quando tinha 24 anos incompletos. Trata-se de um clássico sobre a situação precária das atividades laborais nas fábricas inglesas, no século XIX, envolvendo também o trabalho infantil, da mulher e das desumanas jornadas laborais.

Foi quando conheceu a operária irlandesa Mary Burns, que se tornou sua companheira e muito lhe ajudou no conhecimento da realidade dos trabalhadores ingleses, irlandeses e do movimento operário na Inglaterra. Assim, além da atividade fabril, viveu plenamente o mundo dos trabalhadores, o que foi fundamental para seu trabalho intelectual e revolucionário.

Então, Engels chegou à conclusão que a classe operária, surgida com a Revolução Industrial, era o ator decisivo para a construção da Sociedade Futura, a Sociedade Comunista.

Depois de Manchester, viveu na Bélgica e na França, onde teve o primeiro efetivo encontro com Karl Marx, no outono de 1944, no Café La Regence, em Paris. Desde então, iniciou uma parceria intelectual e uma amizade que se estenderam por toda a vida, tendo participado ativamente do processo político-revolucionário de construção dos fundamentos, na maioria das vezes em parceria com o próprio Marx, do que, a partir da morte deste e dele próprio, passou a ser conhecido como Marxismo.

A Sagrada Família foi o primeiro livro escrito junto por eles e publicado ainda em 1845. Nesse período, afastaram-se do materialismo de Feuerbach e dos Jovens Hegelianos, construindo uma original concepção materialista, dialética, da história. Na Ideologia Alemã, trabalho realizado no período 1845-1847, eles fazem uma síntese desta concepção. Ainda desse período são os trabalhos de Engels sobre economia política e a relação entre a Revolução Industrial e o desenvolvimento de uma consciência dos trabalhadores como classe na Inglaterra, contribuição que foi muito valorizada por Marx.

Desafiados pela internacionalização do movimento dos trabalhadores, os dois começaram a participar da Liga dos Justos, na seção alemã posteriormente Liga dos Comunistas. No ano em que lançaram O Manifesto Comunista, ocorreu a Revolução de 1848, na França, que se estendeu por uma boa parte da Europa. Eles retornaram à Alemanha, onde participaram do movimento revolucionário até à vitória da contrarrevolução. Trabalharam no jornal Nova Gazeta Renana, período em que Engels começou a se interessar pela questão militar, objeto de pesquisa dele por toda a vida. Suas impressões sobre a revolução e a contra-revolução na Alemanha estão registradas em artigos para o New York Daily Tribune (1851-1852), assinados por Marx.

Depois da derrota da Revolução de 1848, sairam da Alemanha, viveram na Suíça e, posteriormente, foram para a Inglaterra. Engels, em 1850, voltou a viver em Manchester, retornando a trabalhar na fábrica de copropriedade da família, durante 20 anos. Alem do trabalho fabril, deu continuidade ao trabalho intelectual e político, na divulgação das suas ideias, sempre em parceria com Marx. Desta época, registre-se o interesse de Engels em relação às Ciências Naturais. Começou a fazer uma conexão entre a dialética e a concepção materialista da natureza, aprofundando seus estudos sobre as ciências naturais. Este trabalho inacabado, “A Dialética da Natureza”, foi publicado posteriormente em Moscou, em 1925.

Neste período, Marx e Engels já divulgavam seus trabalhos e suas ideias nas organizações e nos movimentos dos trabalhadores, nos jornais e periódicos revolucionários na Europa e nos Estados Unidos. A luta política se intensificava. O Fantasma do Comunismo rondava a Europa, materializado em Marx e Engels, cujas ideias já eram criticadas e proibidas de circular nos grandes jornais da época.

Após 20 anos de trabalho, em Manchester, e acumular um razoável patrimônio, Engels, em 1870, foi finalmente viver em Londres, muito próximo à casa de Marx. Desde então, com a saúde de Marx ficando cada vez mais debilitada, Engels foi assumindo a liderança do movimento revolucionário, passando a ser uma das principais lideranças da Internacional, influenciando o trabalho político e de organização dos trabalhadores na Europa e nos EUA.

Então, fez um enfrentamento político e ideológico contra as correntes positivistas do Partido Social-Democrata da Alemanha. São importantes contribuições desta época o Anti-Dühring, publicado em 1878, considerado a primeira tentativa de uma exposição geral das ideias de Marx, reafirmando os princípios do materialismo histórico dialético frente à luta interna travada contra o positivismo da socialdemocracia alemã, e Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cientifico.

A esta altura, Engels foi se tornando a principal liderança da Internacional junto aos novos movimentos socialistas, surgidos a partir de 1880, inclusive já com a participação dos revolucionários russos exilados. Publicou, em 1884, A Origem da Família, da Propriedade e do Estado e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, em 1886. Após a morte de Marx, em 1883, Engels dedicou-se à organização e à publicação do segundo e terceiro volumes de O Capital, ocorridos nos anos de 1885 e 1894. Foi um trabalho fundamental para o conhecimento e a publicação da obra seminal de Marx. Há um reconhecimento muito grande deste trabalho realizado por Engels, inclusive o volume 3, por muitos reconhecido como uma coautoria.

Participou também ativamente da formação da Segunda Internacional, considerando o melhor caminho dos trabalhadores, de forma a evitar uma guerra entre a Alemanha e a França. Vislumbrara a tragédia que aconteceria com a I Guerra Mundial!

Finalmente, nos últimos anos de sua vida, Engels identificou importantes mudanças no capitalismo do final do século XIX, inclusive o papel que o Parlamento já desempenhava na sociedade europeia. Na Introdução, feita para a publicação do livro de Marx, As Lutas de Classe na França, ele chama a atenção para a possibilidade de outras maneiras dos trabalhadores chegarem ao poder. Considerava que não deveriam mais pensar na vitória da Revolução como uma única batalha e sim, que deveriam progredir, de posição em posição, com uma luta dura e tenaz. Apontava, assim, outras alternativas de chegada dos trabalhadores ao poder, sinalizando novas possíveis formas de hegemonia a serem conquistadas pelo proletariado no caminho de superação da sociedade capitalista.

Trabalhava na edição do volume 4 de O Capital, quando morreu no ano de 1895.

Ideias excepcionais

Foi desta forma que Marx e Engels construíram um método de análise - o do materialismo histórico dialético -, para se compreender as relações políticas, econômicas e sociais da Sociedade, nas relações entre si e com a própria natureza, a segunda natureza, segundo Marx, transformada pela própria Humanidade.

A partir desta perspectiva, construíram uma interpretação materialista e dialética dos fenômenos políticos, econômicos e sociais, particularmente do capitalismo industrial e agrário do século XIX, fazendo uma crítica contundente ao funcionamento deste sistema na sua totalidade, dos seus meios de produção, do seu processo de acumulação, da natureza e da origem do trabalho, do capital e dos conflitos e contradições inerentes à sociedade capitalista.

Uma das características principais do pensamento, tanto de Engels, quanto de Marx, é a indissociabilidade entre a teoria e a prática. Precisavam da Filosofia e das Ciências em geral não apenas para conhecer melhor a realidade e, sim, principalmente, para transformá-la. Na sociedade capitalista, identificaram nos trabalhadores assalariados, particularmente no proletariado industrial e na sua organização, os agentes de realização da revolução mundial, que deveria começar nos países capitalistas da Europa Industrial, no caminho da construção de uma nova sociedade, a Sociedade Comunista.

A Sociedade Futura, a ser construída, teria a hegemonia e a valorização dos que trabalham, o trabalho liberto, em cooperação, sem exploradores e explorados. Desde então, as derivações e as tendências as mais diversas, originadas do pensamento e da atuação revolucionária de Marx e de Engels, construíram, ainda no século XIX, durante suas vidas, uma hegemonia no movimento político e de organização dos trabalhadores a nível mundial. Nos séculos XIX e XX, as ideias dos dois construíram, nas mentes e nos corações de trabalhadores do mundo inteiro, a possibilidade da Revolução Socialista.

A partir da vitória, em 1917, da Revolução de Outubro, liderada por Lênin, legatária das concepções de Marx e de Engels, as ideias e as obras destes dois excepcionais pensadores e ativistas alemães passaram a ter uma ampla divulgação, em todo o planeta. Após a morte de Lênin, como “marxismo-leninismo”, eram ideias e obras apropriadas de acordo com a conveniência oficial, inclusive no próprio movimento comunista internacional, que tinha uma forte subordinação à União Soviética.

A revolução russa abriu o caminho das Revoluções Socialistas vitoriosas. Posteriormente, a China, os países do Leste europeu e Cuba herdaram este mesmo modelo soviético que se esgotou como referência, com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o término da URSS, em 1991.

Ainda no século XX, tais ideias foram apropriadas por muitos movimentos de luta contra o colonialismo e de independência dos povos da África, da Ásia e da América Latina. Fora do “marxismo-leninismo”, nos países da Europa Ocidental e, particularmente na Itália, com a contribuição original de Gramsci, buscou-se um caminho original para a revolução no Ocidente, diferente do modelo soviético.

Assim, as ideias de Marx e Engels foram e continuam sendo discutidas na atualidade, principalmente nos períodos das crises recorrentes do capitalismo. Os mundos da Cultura e do Trabalho continuam desafiados à construção de um humanismo que incorpore os novos desafios e a complexidade da Sociedade atual, funcionando em rede e, sob a pressão permanente das ruas, dos movimentos políticos, econômicos, sociais, ambientais, religiosos, feminista e LGBT+, respeitando a diversidade humana e a natureza, na perspectiva de construção de uma outra formação histórica com a hegemonia dos que trabalham e produzem a riqueza material e cultural da Humanidade.

Por fim, queremos falar do ser humano Engels. Ele tinha, na sua vida cotidiana, a generosidade da proposta revolucionária que vislumbrava para a Humanidade. O humanismo de Engels era categórico. Além da ajuda muito conhecida de apoiar financeiramente a família de Marx, por muitos anos, até e depois da morte do amigo, fez muito mais: deixou no seu testamento a determinação de que os seus bens materiais e financeiros deveriam ser divididos em três partes: a primeira, para as filhas de Marx; a segunda, para os velhos companheiros de luta; e a terceira e última, para o Partido Social-Democrata da Alemanha, do qual foi fundador, junto com Marx. Ainda, com destaque, observava: quando todos recebessem os recursos do testamento tomassem um bom vinho branco, que gostava muito, de preferência um Chateau Margot, safra de 1848.

Assim, Engels viveu plenamente a vida: revolucionário nas mudanças que queria para a construção de um mundo melhor; revolucionário na vida cotidiana, nas relações políticas, econômicas, sociais e afetivas, com um senso refinado de bom humor que tinha e bons vinhos!

Por tudo isso, precisamos lembrar e comemorar os 200 anos de nascimento de Friedrich Engels.

Salve Engels!

Humanista do século XIX, da Sociedade presente e futura.

*George Gurgel de Oliveira, professor da UFBA e da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade


Cláudio de Oliveira: A situação financeira da prefeitura de São Paulo

Diga-se com todas as letras: quem quebrou a Prefeitura de São Paulo foi a direita. Eleito em 1992, Paulo Maluf e o seu secretário de finanças, Celso Pitta, aumentaram significativamente a dívida do município com uma gestão perdulária, populista e irresponsável. Maluf investiu pesadamente em obras viárias, várias delas de prioridade duvidosa e com denúncias de superfaturamento, incentivando o transporte individual.

Para desviar a atenção da falta de investimento em transporte coletivo, a propaganda eleitoral de Pitta, em 1996, apresentou uma animação gráfica de um VLT apelidado de Fura-Fila. O projeto contrariava os argumentos técnicos, uma vez que no trajeto do Fura-Fila havia planejamento para uma linha do metrô. O Fura-Fila causou pesado ônus aos cofres do município.

Maluf não implantou o SUS, determinado pela Constituição de 1988. Transformou a saúde pública no desastroso PAS, o Plano de Assistência à Saúde, gerido por cooperativas médicas, assoladas por toda sorte de denúncias de irregularidades. Podemos debater se houve programas positivos como o Singapura, de verticalização de favelas, e o Leve-Leite. Mas, ao mesmo tempo em que o Leve-Leite foi lançado, foi descuidada a merenda escolar. No final da gestão Pitta, chegou a ser servida nas escolas municipais uma merenda composta apenas de suco e bolacha.

O legado do malufismo foi desastroso: um enorme rombo nas contas da prefeitura, um grande déficit de vagas nas creches municipais, um número enorme das famigeradas escolas de latas, as salas de aulas em containers espalhados pela cidade na administração Pitta. Maluf e Pitta deixaram um sistema de transportes caótico, com explosão do número de vans clandestinas, formado especialmente por veículos importados da China à época do início do Plano Real, quando nossa moeda era equiparada ao dólar.

A situação financeira da cidade só não estava pior porque o governo federal, sob o comando de Fernando Henrique Cardoso, havia federalizado as dívidas de estados e municípios, num acordo em que as prefeituras e governos dos estados se comprometiam em pagá-las em parcelas durante 30 anos.

Coube a Marta Suplicy, eleita em 2000, e ao seu secretário João Sayad, o ônus de sanear o descalabro financeiro deixado por Maluf e Pitta, numa conjuntura econômica extremamente difícil. Como sabemos, o segundo mandato do governo FHC foi marcado pelas crises das moedas dos países emergentes, com consequente baixo crescimento, e pelo apagão em 2001. Marta organizou o sistema de transportes públicos e implantou o bilhete único, ainda que tenha aumentado a tarifa de ônibus acima da inflação e a prefeitura não tenha ampliado subsídios, uma vez que a sua situação fiscal não permitia. Ela aumentou o IPTU e implantou sua progressividade, criou as taxas do lixo e da luz, trazendo-lhe grande desgaste político. Ela deu o início à construção dos CEUS, mas não conseguiu zerar o déficit das creches nem eliminar as escolas de lata.

Com a eleição de Lula, em 2002, Marta tentou renegociar os índices de juros da dívida do município com a União, sem êxito. Prefeitos e governadores pretendiam trocar o Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna (IGP-DI), da Fundação Getúlio Vargas, então vigente no acordo com a União, pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

Devido aos juros elevados para segurar o recrudescimento da inflação e a fuga de dólares, a dívida federal havia aumentado consideravelmente. No final do governo de FHC, o Brasil teve de assinar um acordo para ajuda do FMI, além de conseguir empréstimo com o governo de Bill Clinton, com o objetivo de fechar as contas no azul.

Lula assumiu a presidência da República prometendo honrar o acordo com o FMI, no qual previa um superávit de 4% do PIB, para estabilizar a dívida pública e o compromisso de realizar reformas com o objetivo de fazer um ajuste estrutural das contas públicas. O seu ministro da Fazenda, Antônio Palocci, promoveu o maior corte de gastos públicos desde a redemocratização do país, entregando um superávit primário de 4,25% do PIB, ao mesmo tempo em que fez aprovar a reforma da Previdência do setor público.

Com a administração austera em seu primeiro mandato, Lula conseguiu evitar o que aconteceu com a vizinha Argentina, quando o descontrole da inflação levou o presidente Fernando de La Rua a renunciar ante os gigantescos panelaços. Foram essas medidas de austeridade de Palocci que causaram a oposição da ala radical do PT e o surgimento do PSOL, em 2004, ainda antes do escândalo do mensalão. Evitando uma aguda crise econômica e financeira do país, Lula pôde retomar o crescimento econômico no segundo mandato, com uma média de 4% do PIB nos seus dois governos, favorecido pelos bons ventos internacionais, em especial pelo crescimento da China.

Foi nesse contexto mais favorável das economias nacional e internacional que José Serra, eleito em 2004, e Gilberto Kassab, a parir de 2006 e reeleito em 2008, puderam retomar obras paralisadas, retomar a construção dos CEUs iniciados na gestão de Marta, construir escolas de alvenaria em substituição às escolas de lata, por fim ao terceiro turno nas escolas municipais, retomar a construção dos corredores de ônibus e implantar a integração do bilhete único com o metrô e os trens da CPTM.

Ressalte-se que Kassab foi o único prefeito que contribuiu com o governo do estado para as obras do metrô, apontado pelos especialistas como a solução ótima para o transporte público em São Paulo. Porém, Kassab não conseguiu zerar o déficit crônico de vagas nas creches municipais. Serra e Kassab também tentaram em vão renegociar o índice dos juros da dívida do município.

Fernando Haddad foi eleito em outubro de 2012 com apoio da presidente Dilma Rousseff, que prometera na campanha do petista uma ajuda de R$ 8 bilhões para viabilizar o Arco do Futuro, um ambicioso plano de urbanização e obras viárias do centro de São Paulo, apresentado no horário eleitoral.

Porém, com a crise das hipotecas em 2007/2008 nos Estados Unidos, os ventos viraram. Em 2009, o Brasil só não fechou no vermelho graças à compra antecipada por parte da Petrobras de barris de petróleo da União. A partir de 2011, o Brasil terá declínio do crescimento do PIB.

Em 2012, ano da eleição de Haddad, o governo de Dilma só fechou no azul graças à antecipação dos dividendos das estatais e dos bancos públicos. Os anos seguintes serão de manobras fiscais, apelidadas de "contabilidade criativa" e "pedaladas fiscais", que ensejaram a oposição a fazer o pedido de impeachment da presidente Dilma, em 2016.

Já em 2013 era sentido o baque na economia com a indústria paulista dando férias coletivas ou recorrendo ao Lay Off. Segundo a FGV, a recessão começou no terceiro trimestre de 2014 e levou a uma queda do PIB de 8,2%, só inferior à recessão de 1981-1983, de recuo de 8,4% do PIB e que jogou o Brasil na década perdida de 1980.

A ajuda federal de R$ 8 bilhões não veio e, com a queda na arrecadação, o prefeito Fernando Haddad anunciou, em agosto de 2013, a desistência de realizar as obras do Arco do Futuro. Ele tentou renegociar os juros da dívida da prefeitura com o governo federal sob o comando de Dilma, mas também não conseguiu.

Esses índices foram finalmente alterados quando o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, pôs em votação a "pauta-bomba" no segundo mandato de Dilma. Porém, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, sentou em cima da lei e foi preciso que Fernando Haddad fosse à Justiça para que o governo federal trocasse os índices, o que só aconteceria no ano seguinte, em 2016, ano final de sua gestão.

Depois de desistir do Arco do Futuro e em meio à queda na arrecadação, Haddad tocou a máquina da prefeitura, garantindo os serviços públicos, o que, em se tratando de São Paulo, não é pouca coisa. Ele só conseguiu construir um CEU e não venceu o déficit de vagas nas creches, mas ampliou o número de corredores de ônibus.

À falta de obras viárias vistosas, Haddad ampliou faixas de ônibus e construiu ciclovias e especialmente ciclofaixas. Promoveu corte de gastos em diversos programas, inclusive no Leve-Leite. Para colocar os gastos nos níveis exigidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, sob pena de incorrer em crime de responsabilidade, a prefeitura, entre outras medidas, suspendeu contratos com empresas de segurança nos últimos seis meses da administração, ficando alguns parques municipais sem segurança no período.

Como parte do esforço fiscal de ajustar as contas do município à difícil realidade econômica, Haddad apresentou uma proposta de reforma da deficitária Previdência dos servidores municipais. Diante da reação dos sindicatos dos funcionários públicos e de partidos de esquerda, entre eles o PSOL, a reforma foi suspensa, e seria retomada com mudanças na gestão do seus sucessor João Doria e aprovada na gestão Bruno Covas.

Porém, diante das resistências, a reforma da Previdência municipal foi desidratada: aumentou o desconto de 11% a 14%, criou um fundo complementar para aposentadorias acima do teto do INSS, mas não estabeleceu idade mínima, ficando, segundo muitos economistas, aquém das reformas previdenciárias em vários estados da federação, inclusive dos estados governados pelo PSB, como Pernambuco, e PT, como Bahia, Ceará e Rio Grande do Norte.

Haddad agiu com responsabilidade fiscal, teve capacidade política, manteve um bom diálogo com o governo do estado sob o comando de Geraldo Alckmin. Contra sua gestão não há casos comprovados de corrupção sob sua responsabilidade pessoal direta. Porém, Haddad foi derrotado em todas as 58 zonas eleitorais de São Paulo em sua tentativa de reeleição em 2016, prejudicado por uma conjuntura econômica adversa, somada ao desgaste do seu partido decorrente dos escândalos revelados pela Lava Jato.

As gestões de Doria e Covas promoveram novos ajustes, uma vez que não houve uma recuperação econômica significativa e constante do país, frustradas tanto no final do governo do presidente Michel Temer quanto no primeiro ano de Jair Bolsonaro. Mesmo assim, obras como de CEUs, corredores de ônibus, unidades de saúde e hospitais foram retomadas e continuadas.

Mas, com a pandemia do coronavírus, o município teve de enfrentar uma nova realidade, com gastos com o fortalecimento do SUS e a construção de diversos hospitais de campanha. A situação para estados e municípios só não ficou dramática graças aos programas de auxílio-emergencial e de ajuda econômica do governo federal, inclusive a prefeituras e governos dos estados, aprovados principalmente por iniciativa e pressão do Congresso.

A futura gestão da cidade dependerá de uma equação cujo um dos elementos é a capacidade do governo federal em resolver a crise econômica do país. Com um déficit primário de cerca de R$ 660 bilhões e a incapacidade política do presidente Bolsonaro em liderar o Brasil – ele mais atrapalha do que ajuda –, talvez seja prudente não alimentar grandes expectativas qualquer que seja o eleito no próximo dia 29 de novembro.

*Cláudio de Oliveira, jornalista e cartunista, autor do livro Pittadas de Maluf, ganhador do troféu do melhor livro de charges de 1998


George Gurgel de Oliveira: As eleições municipais, as novas representações políticas e os desafios da democracia

As eleições municipais colocaram em disputa as concepções de governar e de se relacionar de cada um de nós e da Sociedade em geral, desafiando a maneira tradicional de fazer política, antes e durante a pandemia, e a nossa maneira de ser e estar em Sociedade.

Os resultados do primeiro turno das eleições municipais foram construídos nas Redes Sociais, nos Meios de Comunicação, nos Movimentos Sociais e Suprapartidários da Sociedade Civil, resultando na eleição de novas lideranças mais comprometidas com as agendas sociais, culturais, econômicas , ambientais e comportamentais da Cidadania.

Segundo os resultados da pesquisa do Instituto IDEIA, em parceria com a Revista Exame, realizada recentemente, no período de 16 a 19 de novembro, 27% dos brasileiros ficaram indiferentes aos resultados das eleições municipais realizadas no último 15 de novembro. Esta indiferença está próxima ao nível de abstenção recorde de 23% registrado pelo Tribunal Superior Eleitoral, refletindo no nível de satisfação do eleitorado: os satisfeitos com a eleição somam apenas 41% e o nível de insatisfação registrado é de 31%.

Quais são as causas e as consequências desta indiferença e não participação da Cidadania no processo político-eleitoral em curso, sendo o voto obrigatório?

Esta análise deve ser feita, para melhor conhecimento da nossa realidade política e social. São questões a serem consideradas no caminho de construção de uma alternativa política democrática para enfrentar os desafios eleitorais de 2022.

Ao mesmo tempo, nesta eleição municipal houve um maior protagonismo dos movimentos sociais em defesa de uma efetiva participação política das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos LGBT+, nas questões sociais e ambientais em geral, traduzido em uma renovação das Câmaras Legislativas e Prefeituras dos médios e grandes municípios, trazendo a voz rouca dos excluídos da Sociedade para o exercício do poder municipal. Ainda, neste cenário, há que considerar a eleição de lideranças religiosas, na maioria evangélicas, o que já vem ocorrendo no Brasil, há muitos anos.

Portanto, a Sociedade colocou para os seus representantes a urgência de superação dos reais problemas do dia a dia da população. Os(as) prefeitos(as) e vereadores(as) eleitos(as) vão enfrentar, desde o primeiro dia dos seus mandatos, a difícil realidade de uma parcela majoritária da população dos municípios brasileiros, que vive em condições precárias de moradia, segurança, educação, saúde, saneamento e mobilidade urbana.

Assim, estes(as) vereadores(as) e prefeitos(as) eleitos(as) devem estar comprometidos(as) com o enfrentamento sistemático desses graves problemas sociais, econômicos e ambientais, agravados com a pandemia que deverá se estender pelo ano de 2021.

A maneira de governar e de se relacionar com a Sociedade coloca-se, cada vez mais, como a centralidade nas relações entre os governantes e os governados. Devendo se refletir no processo de construção de novos conteúdos de uma governança que se quer democrática para a realização das mudanças necessárias durante e pós-pandemia, em cada município brasileiro.

Os resultados eleitorais, no primeiro turno, apontam para o fortalecimento do centro político. A alta popularidade do presidente Bolsonaro não lhe trouxe os resultados eleitorais almejados. As populações dos municípios sinalizaram que a polarização da Sociedade não resolve as dificuldades cotidianas da Cidadania, muitas vezes, agrava, quando trazemos para a realidade municipal as polarizações políticas nacionais, que não ajudam a enfrentar os reais problemas da Sociedade.

Naturalmente, os resultados das eleições municipais não interferem diretamente nas eleições de 2022. No entanto, o surgimento de novas lideranças municipais e regionais podem mudar a composição atual das bancadas estaduais e federais, objeto de uma maior preocupação da maioria dos partidos, frente à nova legislação eleitoral: a eleição de uma numerosa bancada federal em 2022 vai ser determinante na existência de cada partido que queira continuar a ter um protagonismo na política nacional .

Assim, a população falou nas urnas. Quer mudar, com a urgência devida, a nossa trágica realidade social, desnudada com a pandemia.

O Brasil bipolar, dos extremos, não conseguiu e nem consegue enfrentar e construir soluções para os complexos desafios da realidade brasileira, nem a nível municipal, muito menos em escala nacional. O segundo turno deve confirmar esta tendência nas urnas. Os desafios econômicos, sociais e ambientais, históricos e atuais da sociedade brasileira devem ser enfrentados de uma maneira propositiva, ampliando a capacidade de diálogo e de construção de pactos políticos e sociais que avance e consolide a democracia brasileira, no caminho de transformação da nossa injusta realidade política, econômica e social.

Neste contexto, todos(as) estão desafiados(as) a ter uma efetiva participação na construção e na implementação de políticas públicas municipais, colaborando com o processo de avaliação permanente destas políticas, na busca de atender as demandas municipais, em sintonia com as outras políticas públicas regionais e nacionais, no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental de cada município brasileiro.

Os(As) vereadores(as) e prefeitos(as) eleitos(as) estão desafiados(as) a construir novas relações de Governança entre o Estado, o Mercado e a Sociedade em geral. As atuais relações não atendem às demandas da maioria da população dos municípios brasileiros.

A criação de mecanismos institucionais de acompanhar e avaliar as relações entre o Executivo, o Legislativo e a Sociedade municipal, desafia a Cidadania e o poder público à construção de novas relações entre os atores políticos, econômicos e sociais do município, na busca da sustentabilidade econômica, social e ambiental da Sociedade.

Considerando sempre a necessidade de uma visão sistêmica no processo de construção das políticas públicas em geral. Colocando-se como imperativa a escolha de prioridades, através de dialogo permanente entre governantes e governados, que garantam a implementação de políticas públicas voltadas para a sustentabilidade municipal, articuladas às políticas regionais, sob responsabilidade estadual e federal, construindo pactos de cooperação entre o Estado, o Mercado e a Sociedade Civil, através de redes regionais, nacionais e internacionais, com foco na melhoria do bem-estar da população.

Estes são os nossos dilemas a serem superados para o avanço da democracia brasileira, com a inclusão desta maioria excluída da população no processo de construção de políticas públicas sustentáveis nas áreas de educação, moradia, saúde, saneamento básico, segurança, mobilidade, trabalho e renda, como condições elementares para a dignidade da vida social em cada município brasileiro.

Portanto, o exercício pleno da Cidadania, com a participação proativa da Sociedade, é a práxis que vai criar as condições para uma efetiva transformação da realidade política, econômica e social de cada município e de toda a Sociedade brasileira.

São os desafios permanentes dos prefeitos(as), dos vereadores(as) e da Cidadania brasileira.

*George Gurgel de Oliveira, professor da Universidade Federal da Bahia e da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade


Ivan Alves Filho: O populismo, ontem e hoje

Trata-se de um equívoco acreditar que o fascismo seja um fenômeno de economias pouco desenvolvidas. Os fatos não mentem: tanto a Itália de Mussolini quanto a Alemanha de Hitler se alinhavam entre as nações mais industrializadas da Europa, nas décadas de 20 e 30, do século XX. O fascismo pode ser expressão do atraso, mas do atraso político.
O mesmo podemos dizer em relação ao populismo brasileiro. Seu berço maior é São Paulo, a chamada locomotiva do Brasil. Dali partiram Ademar de Barros, Jânio Quadros, Paulo Maluf e Lula da Silva.

Ademar foi interventor federal sob o regime estadonovista (1938-1941), duas vezes governador de São Paulo (1947-1951 e 1963-1966) e duas vezes candidato à presidência da República, ficando na terceira colocação em ambas as disputas (1955 e 1960). Deu origem ao ademarismo.

Jânio Quadros foi vereador por São Paulo (1948-1950, quando assumiu o mandato após a cassação dos vereadores do Partido Comunista - PCB). Em seguida, foi eleito deputado estadual (1951-1953), prefeito de São Paulo (1953-1955), governador (1955-1959) e, finalmente, Presidente da República (eleito em 1960). Uma carreira meteórica, portanto. Deu origem ao janismo.

Paulo Maluf foi outro populista de São Paulo. Teve uma carreira parecida com aquela dos demais: prefeito de São Paulo (1969-1971 - voltando ainda ao posto nos anos 90), governador (1979-1982) e candidato à Presidência da República, perdendo para Tancredo Neves, a 15 de janeiro de 1985, no Colégio Eleitoral. Deu origem ao malufismo.

Luiz Inácio Lula da Silva, sindicalista, disputou o governo de São Paulo em 1982, perdendo as eleições. Posteriormente, disputaria as presidenciais nada mais nada menos do que quatro vezes, vencendo o último pleito, em 2002, exatamente 20 anos depois de disputar o governo paulista. Deu origem ao lulismo.

Todas essas candidaturas têm em comum a demagogia, o despreparo administrativo, o aventureirismo, o conluio com o grande capital, o autoritarismo, apoiando-se sobre a figura de um líder carismático, que tenta passar por cima das instituições, desprezando-as e buscando o diálogo direto com as massas populares. Todas se revelaram uma farsa política.

É possível que já esteja em gestação - não para agora; nunca é… - uma nova candidatura populista, partindo de São Paulo.

Daí a importância da união do Campo Democrático na principal unidade da Federação, rechaçando o populismo - muitas vezes um fascismo que não ousa dizer o nome - do nosso horizonte. E essa união pode ser realizada em torno de Bruno Covas.

É possível. Também.

*Ivan Alves Filho, historiador, autor de mais de uma dezena de obras, das quais a última é A saída pela democracia (2020)


Cláudio de Oliveira: Eleições presidenciais nos Estados Unidos

Leio que Joe Biden, o candidato do Partido Democrata, está na frente da corrida presidencial nos Estados Unidos.

Ao que parece, a tática eleitoral dos democratas está mostrando eficácia ao atrair eleitores conservadores moderados para Joe Baden, isolando Donaldo Trump, que vai se restringindo aos eleitores conservadores mais radicais, sensíveis à polarização fabricada pela campanha republicana.

Joe Baden é da ala mais moderada do Partido Democrata, talvez um liberal-democrata centrista com viés social. Ele conseguiu o apoio das outras alas do partido, como aquela representada por Barack Obama, que seria um social-democrata de terceira como Tony Blair, e a do senador Bernie Sanders, um social-democrata clássico, mais à esquerda.

A união do Partido Democrata completou-se com a indicação da ex-procuradora e senadora democrata Kamala Harris, primeira mulher negra a disputar o cargo.

Joe Biden representa, assim, com apoio de diversos políticos do Partido Republicano, a Frente Ampla dos setores democráticos norte-americanos contra o populismo de direita. Trump tem colocado em xeque as instituições do país, ameaçando não reconhecer os resultados eleitorais e não entregar o poder ao vencedor.

*Cláudio de Oliveira é jornalista e cartunista e autor dos livros “Era uma vez em Praga – Um brasileiro na Revolução de Veludo” e “Lênin, Martov a Revolução Russa e o Brasil”, entre outros.


Luiz Werneck Vianna: Retomar o fio da meada

É cedo para se pensar no mapa eleitoral que sairá da próxima sucessão municipal, matéria para os especialistas, mas já se sentem lufadas de ar fresco que anunciam o começo de um novo dia ao fim de uma noite de pesadelo. É viva em nossa memória a velha lição de que, aqui, as eleições se manifestam como a forma superior de lutas das aspirações democráticas e das demandas sociais por políticas públicas igualitárias. E por toda a parte já assomam à superfície as indicações de que, mais uma vez, elas atuarão nesse sentido apesar das restrições impostas pela pandemia que nos aflige, presentes em candidaturas com histórico democrático confiável em várias capitais e em cidades influentes na formação da opinião pública na federação.

Decerto que eleições municipais têm um caráter singular em que são dominantes os temas locais, embora as que estão em curso guardem um significado plebiscitário implícito quanto a avaliação do governo Bolsonaro, que não por acaso evita se comprometer com candidaturas, mesmo com aquelas que lhe acenam com simpatia, salvo quando elas lhe permite confrontar com eventuais adversários em 2022, enquanto forças políticas de adesão democrática buscam demarcar com nitidez sua rejeição às suas políticas de governo, tal como nos casos da cidade de São Paulo, com a candidatura Boulos, de Porto Alegre, com a de Manuela Dávila, com as de Joao Campos e Marilia Arraes, em Recife, a de Edmilson, de Belém, e do Rio de Janeiro com a de Marta Rocha, cuja ênfase nas questões locais mal disfarça o sentido nacional da sua candidatura, inclusive pela contundente crítica ao candidato Crivela que procura identificação com o governo Bolsonaro, e em tantas outras.

É fato, contudo, que éticas de convicção rareiam neste cenário eleitoral em que predominam os cálculos de oportunidade. Mas uma circunstância externa a esse quadro pode vir a subverter as suas atuais marcações, qual seja as eleições presidenciais nos Estados Unidos, marcadas para o dia 3 de novembro, que, no caso da vitória de Biden deverá importar fortes repercussões na cena política brasileira com impactos sensíveis no pleito municipal de 15 de novembro. Até lá, convicções mal dormidas, podem encontrar tempo para despertar.

Os resultados eleitorais não terão efeitos banais. Eles servirão de vetor para o alinhamento das forças políticas e sociais, mas não se devem cultivar ilusões de superação imediata da atual cena de atraso e rusticidade da atividade política. Poderão, sim, estimular os impulsos, ainda em embrião, em favor da mobilização da oposição democrática ao que aí está, instituindo um novo patamar para novos avanços mais adiante. Por ora, fora do radar um retorno ao estado de coisas anterior ao governo Bolsonaro. Não eram apenas os 40 milhões de brasileiros que viviam em situação de invisibilidade de que apenas agora se teve ciência, era toda uma sociedade, inclusive seus segmentos ilustrados, que não foi capaz de identificar a miséria política e o primitivismo moral e intelectual que tomara conta da alma do país.

Os fios que nos mantinham vinculados às nossas melhores tradições e valores se encontram esgarçados, quando não rompidos. Conceder vida nova a eles, implica mais do que uma simples restauração, pois traz consigo o imperativo da inovação, para o que a agenda do espírito do tempo deste século com seus temas emergentes da questão ambiental e das relações solidárias entre os viventes nesse planeta é mais do que propícia. Resgatá-los, inovando-os, significa agora levantar um dique à ideologia neoliberal que nos ameaça com a desertificação moral e cívica na esteira de mecanismos autônomos do mercado como enteléquia fora de controle humano.

Sob a pandemia se visualizou com nitidez duas dimensões de onde podem fluir tal reanimação. A primeira delas é a da ciência, com protagonismo das suas instituições dedicadas às atividades da biomedicina, e a que provem da esfera pública dos subalternos no desempenho de ações orientadas para a auto-organização da vida popular, plataforma a partir da qual foram estabelecidos nexos com a universidade e segmentos do estrato dos intelectuais. Não à toa, a lista de candidatos que concorrem às câmaras de vereadores revela um bom número de originários com esse perfil.

Sob o influxo dessa movimentação de novo tipo, mesmo que em estágio precoce, germinam possibilidades de mutação na agenda tradicional das forças democráticas, especialmente na esquerda, visível na perda de ênfase da temática do nacional-popular, predominante entre nós por décadas, que ora começa a ceder lugar à pauta das demandas igualitárias. Exemplar disso está na crescente influência sobre nossos cientistas sociais da obra de Thomas Piketty, como no caso notável de “Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil (1926-2013)”, do jovem sociólogo Pedro Ferreira de Souza, que sonda as raízes da invisibilidade da nossa miséria material e político-moral.

Estivemos imersos por longas décadas a partir do Estado Novo nos temas e nas políticas de modernização, ora em versões autocráticas, dominantes no período, ora em versões brandas, mas nenhuma delas renegou o papel da esfera pública na perseguição dos seus fins. No governo que aí está, pela primeira vez em nossa história política republicana, ela é concebida em pura chave de mercado. Para o argumento neoliberal dos atuais governantes, por modernização entende-se a destituição do público e das suas instituições a fim de deixar terreno livre para o aprofundamento irrestrito da expansão do capitalismo, seja no mundo agrário, no urbano, onde quer que se identifique uma fronteira propícia à acumulação de capitais, como nos resorts do litoral ou mesmo nos cassinos, objeto de desejo do nosso patético ministro da Fazenda. Na esteira de Thatcher, Reagan e Trump, para Bolsonaro não existe essa coisa de sociedade.

Essa construção ideal é exótica às nossas tradições, mesmo nas de raiz conservadora, ela está aí por um acidente de caminho, cujas sequelas começamos a reparar, passo a passo, como nas atuais eleições.

*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, Puc-Rio


Ivan Alves Filho: Relembrando os 130 anos de Astrojildo Pereira

O que mais impressiona na trajetória de Astrojildo Pereira, a meu juízo, é a união que ele soube cimentar entre o homem de pensamento e o homem de ação. Uma combinação rara. Talvez por isso, o escritor e homem público Afonso Arinos de Mello Franco tenha se referido a ele como “a maior aventura intelectual” do Brasil, em seu tempo.

Vamos tentar entender melhor o motivo disso. Nascido em 1890, em Rio dos Índios, localidade de Rio Bonito, na velha província fluminense, Astrojildo vivenciou, em 1908, um episódio que o marcaria para o resto da vida. Foi assim. Ao ler nos jornais que o romancista Machado de Assis agonizava, ele pegou, imediatamente, uma barca em Niterói, atravessou a Baía de Guanabara e desceu na Praça Quinze, no centro do Rio de Janeiro. Lá chegando, se enfiou em um bonde e foi bater com os costados, no Cosme Velho, aprazível bairro onde vivia o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Profundo admirador da obra machadiana, o rapaz, de apenas 17 anos, queria se despedir do velho mestre. Expôs sua intenção às pessoas que se encontravam na casa e foi autorizado a entrar, no quarto do escritor. Ajoelhou-se, beijou-lhe então as mãos e logo depois se retirou. Na belíssima crônica “A última visita”, Euclides da Cunha, que presenciara a cena, escreveu: “Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”.

Dois anos após esse acontecimento, civilista convicto e já começando a se impregnar de ideias anarquistas, Astrojildo Pereira desembarcou no cais da Praça Mauá, no Rio, e foi conhecer algumas das principais capitais europeias. Perambulou seis meses pelo Velho Continente e retornou ao Brasil. No ano de 1911, ele já colaborava com o órgão anarquista Guerra Social, trabalhava como gráfico e linotipista e militava no movimento anarquista. Em 1913, integrou, com um grupo de aguerridos companheiros, a primeira central operária brasileira, a COB, da qual se tornaria o secretário geral. Em 1917 e 1918, liderou uma série de greves operárias que abalaram o Rio de Janeiro. Foi preso e barbaramente espancado pela Polícia, no final de 1917, e novamente preso, no ano seguinte. Não esmoreceu. Em 1922, sob inspiração direta da revolução bolchevique na Rússia, fez a opção definitiva pelo marxismo e ajudou a formar o Partido Comunista no Brasil. Em 1924, viajou para Moscou, já investido na condição de secretário geral do PCB. Nesse mesmo ano, assistiu, na Praça Vermelha, aos funerais de Vladimir I. Lênin – o arquiteto da revolução bolchevique e também do Estado soviético. Ainda em Moscou, por essa época, dividiu alojamento com um líder comunista que seria considerado um dos grandes estadistas do século XX: Ho Chi Minh.

De volta ao Brasil, viveu como um revolucionário profissional. Com efeito, ele não parava. Dedicou-se a organizar o PCB clandestino e se internou, em seguida, na Bolívia, em 1927. Sua missão? Contactar Luiz Carlos Prestes, o chefe da Coluna Invicta, em nome do Partido. Entregou a Prestes uma mala com livros marxistas e tentou convencê-lo da necessidade de revolucionar as estruturas da sociedade – e não apenas derrubar este ou aquele governo. Conseguiu atrair Prestes para as fileiras do PCB.

Uma vez acertado o ingresso do Partido na Internacional Comunista, Astrojildo Pereira passou a compor sua Comissão Executiva, a instância máxima da organização, em 1929, quando parte novamente para a capital soviética. Com menos de 40 anos de idade, ele já se apresentava como uma das grandes lideranças da revolução mundial.

Mas não tardaria muito e ele passou a ter sérias divergências políticas com o Partido no Brasil. Assim, foi afastado da organização, em 1932, sob a acusação de tentar barrar a linha dita de “proletarização” de sua política e de simpatizar, ainda, com as ideias de Nikolai Bukharin, opositor de Josef Stalin na direção do Partido Comunista da União Soviética.

Reintegrado ao PCB, no bojo da redemocratização do país, em 1945, Astrojildo colaborou, nesse meio tempo, com o jornal carioca Diário de Notícias e escreveu ensaios primorosos sobre Machado de Assis. Sua reputação como crítico se consolidou. Tampouco abandonou a reflexão política, debruçando-se sobre a análise do fascismo e sua influência no Brasil. Mais: foi o primeiro a apontar para a grandeza épica dos Quilombos dos Palmares, chamando Zumbi de “o nosso Spartacus negro”. Começou a publicar, então, seus vários livros de ensaios. E ainda se dedicou, de corpo e alma, à organização do I Congresso Brasileiro de Escritores, realizado em 1945. O Congresso lançaria, praticamente, a pá de cal sobre o Estado Novo de Vargas. Dele participaram Jorge Amado, Caio Prado Júnior, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e outros nomes de primeiríssima linha da literatura, da historiografia e da ensaística brasileira.

Durante o Estado Novo, Astrojildo Pereira sobreviveu vendendo frutas em um depósito em Niterói, o que motivou Manoel Bandeira a escrever um poema sobre ele:

Bananeiras – Astrojildo esbofa-se

Plantai-a às centenas, às mil

Musa paradisíaca

Que dá dinheiro neste Brasil.

E de 1945 até o dia do Golpe de 1964, realizou pesquisas sobre a obra de Machado de Assis e a trajetória do PCB. Ao lado de sua companheira Inez, estas são as grandes paixões de sua vida, desde a juventude. Daí ter escrito, certa vez, que seu ideal de vida abarcava “um doce amor de mulher em meio a uma bravia luta política”. Seja como for, Astrojildo editou, nessas duas décadas, publicações da importância de Literatura e Estudos Sociais. Trabalhou na célebre Editorial Vitória, do PCB, e passou a ditar, na prática, a política cultural do Partido. Intelectual refinado, ele contribuiu para revelar alguns valores que brilhariam na cultura e na política, como Armênio Guedes e Leandro Konder. Por essa época, já estava publicando Machado de Assis, novelista do Segundo reinado (1942), Interpretações (1944) e Machado de Assis (1949). Formação do PCB sairia em 1962.

Astrojildo conviveu com figuras altamente representativas da cultura brasileira, como Oscar Niemeyer, Di Cavalcanti, Monteiro Lobato, Alberto Passos Guimarães e Nelson Werneck Sodré – pelo lado comunista – e Otto Maria Carpeaux e Hélio Silva, intelectuais católicos. Hélio Silva, inclusive, era um querido companheiro desde os tempos do anarquismo. Mais de uma vez, eu o ouvi – fascinado – discorrendo sobre isso, em meados da década de 80, quando tive oportunidade de trabalhar com ele, no Rio de Janeiro. O saudoso historiador narrava as andanças que Astrojildo e ele promoviam pelas ruas do Rio de Janeiro, o que não excluía uma certa boemia.

A explicação para esse trânsito junto a personalidades dos mais diferentes horizontes políticos e filosóficos reside no fato de que Astrojildo Pereira defendia seus pontos de vista sem qualquer traço de sectarismo. É bem verdade que, nos momentos mais duros dos embates ideológicos travados pelo PCB, o velho revolucionário se alinhou, daqui e dali, com posições que, a rigor, contrariavam sua própria visão de mundo. É que, por formação, jamais iria contra uma diretriz do Partido. Mesmo assim, era, basicamente, um homem avançado em relação à sua época. Escrevendo de Moscou, em 1925, por exemplo, reconheceu que “a Democracia, ainda que burguesa, é vista como um bem pelas massas”.

Era, de fato, um homem raro, desses que aparecem a cada meio século. Sua primeira prisão política, que eu saiba, se deu em 1917; a última, em 1964. Em 1965, devido aos rigores da prisão, onde sofreu um infarto e teve tuberculose nos dois pulmões, morreu Astrojildo Pereira.

Foi perseguido durante a vida inteira, mas nunca perseguiu ninguém. Lutou todos os combates possíveis pela liberdade. Afonso Arinos tinha razão: Astrojildo Pereira levou uma existência que honra a inteligência brasileira. Sua vida é um desafio permanente lançado à imaginação dos melhores romancistas.

Eu o conheci em nossa casa, no Rio de Janeiro, quando estava fazendo 13 anos. Foi logo após sua saída da prisão. Meu pai tinha por ele um grande respeito. Guardo até hoje, na memória, sua semelhança física com meu avô paterno. Em ambos, eu percebia a mesma candura nos gestos, a mesma doçura no olhar, a mesma calma ao lidar com as pessoas. Como Astrojildo, vovô era um admirador do camarada Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Como ele, vovô nascera na velha província. Ao conhecer Astrojildo Pereira, foi como se eu passasse a ter mais um avô só para mim.

A bem da verdade histórica, é preciso dizer que o ex-governador da antiga Guanabara, Carlos Lacerda, apesar de ser um dos principais protagonistas do movimento político-militar de 1964, intercedeu junto às autoridades militares para que ele fosse solto. Meu pai nunca me disse, mas, pela ligação pessoal dele com Carlos Lacerda – trabalharam juntos, inclusive, em jornais – eu fiquei com a impressão de que ele pediu ao então governador da Guanabara para que interviesse para soltar Astrojildo. Aliás, em depoimento que me concedeu para o filme que fiz sobre o velho fundador do PCB, “A casa de Astrojildo”, Norma Dias, sua sobrinha, garantiu que o próprio tio lhe confidenciou, na prisão, que só não foi assassinado por interferência de Lacerda. A história bateu.

Pouco depois, soube de sua morte. Seu enterro foi uma corajosa manifestação pública de repúdio à ditadura militar então instalada no Brasil. Inez Dias, desafiando os esbirros do regime, gritou, à beira do seu túmulo: Viva Astrojildo Pereira! Da mesma forma que Gregório Bezerra, Astrojildo era de ferro e flor. Naturalmente, fiquei abalado com tudo o que estava acontecendo. No país do final da minha infância, prendiam e maltratavam homens com mais de 70 anos de idade. Seu pecado? Ter permanecido fiel às suas ideias de juventude. Era mesmo assustador.

O velho Astrojildo Pereira foi o primeiro herói da minha vida.

*Ivan Alves Filho, historiador, autor de mais de uma dezena de excepcionais livros, dos quais o último é “A saída pela democracia (2020)”