demetrio magnolli

Demétrio Magnoli: Faroeste caboclo

O ‘capitalismo’ de Salles opera em terreno semeado pelo fracasso das políticas amazônicas

Ricardo Salles, ministro do Desmatamento, disse que a preservação da Amazônia exige “soluções capitalistas”, para dinamizar a economia regional e gerar renda para seus 20 milhões de habitantes. A declaração inscreve-se na moldura de suas críticas à amplitude das unidades de conservação e terras indígenas. O “capitalismo” de Salles é um faroeste caboclo movido a bala, grilagem, motosserra, mineração e garimpo. Mas ele opera em terreno semeado pelo fracasso das políticas amazônicas conduzidas nas últimas décadas.

“Chega de lendas. Vamos faturar!”, exclamava uma peça publicitária da Sudam, divulgada em 1970, na qual o mapa da Amazônia Legal aparecia coberto por figuras de complexos industriais, explorações agropecuárias e implantações energéticas.

A ditadura militar definia a Amazônia como fronteira estratégica a ser conquistada e fronteira de recursos a ser dilapidada. A reação do Brasil democrático à barbárie da geopolítica militar foi redefinir a Amazônia nos termos de uma lenda: a coleção de árvores e “povos da floresta” que deveriam ser protegidos por uma aliança entre o Estado, as ONGs e a Igreja Católica.

Não funcionou. Segundo dados do Ipea, o PIB per capita do Centro-Oeste, em reais de 2010, evoluiu 80% entre 1985 e 2011, saltando de R$ 14.420 para R$ 26.020 e alinhando-se ao do Sudeste. No Nordeste, o PIB per capita saltou, no mesmo intervalo, de R$ 5.050 para R$ 9.700, um crescimento de 92%. Já na Região Norte, o crescimento foi inferior a 66%, de R$ 7.840 a R$ 12.980. Salles fala a populações pobres, que deixaram as várzeas e rumaram para as cidades, onde habitam em favelas secas ou palafitas e dependem de empregos informais, bolsas estatais e rendas do INSS.

A Amazônia é moderna desde o começo. Suas duas metrópoles emergiram das redes de navegação oceânica mundial, do comércio de borracha, da Revolução Industrial. Sua população é constituída, em larga maioria, por sucessivas ondas de migrações e mestiçagens superpostas. José Luís Azcona Hermoso, bispo emérito do Marajó, lamenta que a Igreja Católica atribua protagonismo exclusivo às “etnias indígenas, uma minoria mínima”, desprezando o “rosto amazônico majoritariamente pentecostal” dos caboclos urbanizados. Hermoso não quer abandonar os índios, mas sabe que a proteção dos direitos e terras indígenas exige a inclusão econômica da maioria não indígena.

As políticas estatais racialistas tiveram forte impacto na Amazônia. A população autodeclarada indígena da Região Norte saltou de 124.613 em 1991 para 305.873 em 2010, um mágico crescimento de 145%, para um crescimento de apenas 55% da população regional total. O Instituto Socioambiental (ISA) celebrou uma suposta transição dos indígenas para a “visibilidade”. Mas, de fato, sob a espada da “discriminação positiva”, dezenas de milhares de caboclos amazônidas fantasiaram-se de indígenas para escapar à exclusão. O discurso delinquente de Salles dirige-se a milhões de ninguéns: os ignorados por um Estado caolho que terceirizou a Amazônia para as ONGs.

Visitei, há pouco, um “projeto comunitário” num povoado da margem esquerda do Rio Arapiuns, perto de sua confluência com o Tapajós, a 35 km de água de Santarém (PA). A lojinha de artesanato estava fechada, por desinteresse do responsável. O núcleo do projeto, um criadouro de tartarugas amazônicas, retrata o desastre. Quase todas as três mil tartaruguinhas doadas no início perderam-se numa das enchentes regulares do rio. As 300 restantes, nutridas com ração artificial, não se reproduzem na lagoa, algo que um biólogo competente saberia prever. Quando morrerem de velhice, o projeto acaba. Uma placa expõe a lista de financiadores, que se estende do BNDES ao ISA, passando por vários órgãos públicos.

O incêndio que consome extensões cada vez maiores de mata, “solução capitalista” do governo Bolsonaro, nasceu lá atrás, ateado pela ausência de estratégias nacionais capazes de conciliar a floresta em pé com os amazônidas que precisam de trabalho, renda e serviços públicos. Salles, o piromaníaco, acende línguas de fogo em clareiras calcinadas por uma longa estiagem política.


Demétrio Magnoli: Pare (mesmo) de acreditar no governo

A sala de aula não é pátio de diversões de ideólogos ou doutrinadores

Bruno Garschagen, o assessor do (até agora) ministro Ricardo Vélezexonerado pela Casa Civil, tem ao menos uma qualidade: a capacidade de produzir uma autocrítica devastadora, ainda que involuntária. "Quando os antissocialistas mimetizam a mentalidade e a ação política do inimigo, tornam-se o espelho da perfídia", escreveu o "olavete" num artigo de jornal velho de quase dois anos. Seria preciso acrescentar que, quando tentam utilizar o poder de Estado para escrever uma "história oficial", os autointitulados liberais revelam a sua face autoritária e antiliberal.

Descubro que o mesmo Garschagen é autor do livro "Pare de Acreditar no Governo". Não o li, mas concordo com o comando do título, que tem validade geral e serve como advertência de singular relevância no caso do governo Bolsonaro. Esses "antissocialistas" não só mimetizam a "ação política" do "inimigo" como a conduzem para além de limites que o PT jamais ultrapassou. O MEC é a prova disso.

Vélez saltou da mera bufonaria —a solicitação de vídeos propagandísticos de escolares entoando o hino nacional— ao exercício abusivo da autoridade. O ministro, que oscila entre o apego canino ao cargo e a fidelidade ao Bruxo da Virgínia, anunciou uma revisão "progressiva" dos livros escolares talhada a apagar a ditadura militar do registro histórico. A missão do MEC, explicou, é "preparar o livro didático de tal forma que as crianças possam ter a ideia verídica, real, do que foi a sua história".

O governo exige que acreditem nele. Para isso, usará o poder de distribuir livros escolares, a palavra legitimada do professor e a prerrogativa de produzir o exame nacional de acesso às universidades federais.

Os poderes estatais adoram moldar as crianças de modo que elas repitam as palavras e os gestos dos governantes. A "história oficial" tem longa história escolar, que se estende das narrativas nacionalistas do século 19 até o contemporâneo revisionismo separatista catalão, passando pelos sinistros artigos de fé dos totalitarismos stalinista e nazista. O Brasil não ficou imune à politização da escola.

Sob o lulopetismo, o MEC engajou-se a fundo numa revisão "progressiva" dos manuais escolares com a finalidade de adaptá-los aos dogmas da doutrina racialista. A nação deveria ser descrita, nas aulas de História e Geografia, como uma confederação de etnias ou "raças". Nossas extensas miscigenações precisariam ser reinterpretadas como uma lenda criada para ocultar um racismo mais letal que os dos EUA da discriminação oficial ou da África do Sul do apartheid. O movimento abolicionista, uma ampla luta social que abrangeu brancos e negros, teria que escorrer pelo ralo destinado aos mitos. Vélez mimetiza o PT, mas sem a tintura "bondosa" do revisionismo racialista.

A operação lulopetista fluiu suavemente, prescindindo de rudes declarações ministeriais, maquiada como releitura acadêmica do passado. Obteve algum sucesso, graças à cumplicidade de comissões de docentes universitários militantes e à bovina obediência de editoras sempre prostradas diante da pilha de dinheiro das compras públicas. Vélez, porém, fracassará. A "verdade" estatal que ele tenta veicular choca-se com a resistência da opinião pública, dos historiadores e dos professores. Só um regime de força conseguiria impor a negação do caráter golpista do 31 de Março e da natureza ditatorial dos governos militares.

As democracias aprenderam a respeitar a autonomia das escolas. Nelas, há muito, os governos se abstêm de formular a "ideia verídica, real" da história que deve ser ensinada. O sucesso relativo do PT e o inevitável fracasso de Vélez funcionam como sinais de alerta: a sala de aula não é pátio de diversões de ideólogos ou doutrinadores. Pare (mesmo) de acreditar no governo, pois o pior professor ainda é melhor que o discurso do poder estatal.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Demétrio Magnoli: Existem três teses sobre legitimidade da eleição sem Lula

O veto legal à candidatura de Lula distingue a eleição de todas as anteriores

O veto legal à candidatura de Lula singulariza a eleição em curso, distinguindo-a de todas as anteriores, desde a redemocratização. Daí, emerge um debate sobre legitimidade, que se espraia ao longo de três teses. A primeira diz que a eleição é legal e legítima; a segunda, que é ilegítima; a terceira, e mais interessante, faz a legitimidade da eleição depender de seus resultados.

A visão convencional, adotada pela maioria dos partidos, não enxerga nenhum problema de legitimidade.

A Lei da Ficha Limpa, fonte do veto à candidatura de Lula, nasceu de um projeto de iniciativa popular e, depois de amplamente aprovada no Congresso, foi sancionada sem vetos pelo próprio Lula. É instrumento legal de validade geral, que cancelou as mais diversas candidaturas desde 2014, não uma ferramenta destinada a cassar os direitos de Lula ou do PT.

A eleição é legítima. O debate sobre o tema é que não é, derivando de um desejo de colocar Lula acima da lei ou de uma pervertida estratégia de campanha.

O segundo ponto de vista, adotado por correntes de extrema esquerda abrigadas no interior do PSOL ou em surpreendente aliança com o PT (caso do PCO), pode ser qualificado, com alguma ironia, de revolucionário. O veto a Lula é o prosseguimento do “golpe parlamentar” do impeachment e tem a finalidade de ladrilhar o caminho das “reformas neoliberais”. O Judiciário participa do “golpe”, conduzindo a perseguição legal ao ex-presidente. Os mensageiros desta tese repetem, letra por letra, a narrativa desenvolvida pelo PT desde 2016, mas com finalidades muito diferentes.

A extrema esquerda habituou-se a encher seu potinho de sonhos com as sobras do lauto banquete lulista. Em 2002, apoiou a candidatura presidencial do PT na esperança de que a “classe trabalhadora” experimentasse o governo de Lula — um “reformista” ou um “traidor”, a depender da versão — e, libertando-se de suas ilusões, ouvisse o chamado da Revolução (assim, com maiúscula). Hoje, ainda à beira da mesa, espera que a denúncia do veto a Lula finalmente desperte as massas de sua irritante letargia, propiciando o “assalto ao Céu”.

A terceira é a tese lulopetista. Na sua nunca explicitada inteireza, ela diz que a eleição terá sido legítima se Haddad vencer, mas terá sido ilegítima se Haddad perder. O alarido do protesto contra a “ilegitimidade” da eleição sem Lula, tão audível na etapa atual, cessará quando Haddad assumir o bastão, para só retornar na hipótese da derrota. A suspensão do juízo sobre a legitimidade até a proclamação dos resultados viola as regras elementares da lógica, mas atende a um imperativo partidário estratégico: na vitória, Haddad será o incontestável presidente do Brasil; na derrota, o eleito não será mais que um títere da “elite golpista”.

A história funciona mais ou menos assim. Em caso de vitória, o povo terá “corrigido” o desvio iniciado com o impeachment, derrotando o “golpe” e salvando a democracia. Já em caso de derrota, o desejo do povo de recolocar Lula no Planalto terá sido frustrado pela artimanha golpista do veto à candidatura. Restará, então, a via da resistência, convocada por meio da denúncia da ilegitimidade do presidente eleito.

A tese convencional é legalista ao extremo: identifica a democracia às normas legais, negando-se a encarar o problema político da limitação da soberania dos eleitores posto pela Ficha Lima. A tese revolucionária é finalista: identifica a democracia (“burguesa”, evidentemente) como o inimigo histórico e interpreta o veto a Lula como faísca providencial capaz de acender a grande fogueira da purificação. A tese lulopetista é, além de oportunista, autoritária: identifica a democracia ao sucesso eleitoral do Partido (assim, com maiúscula), exprimindo uma rejeição visceral ao princípio do pluralismo.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.