demetrio magnolia
Demétrio Magnoli: Pela esquerda ou pela direita, país não dá a mínima para a educação pública
Área foi catalogada oficialmente como a mais supérflua das 'atividades não essenciais'
O plano de Doria saiu há 18 dias, com cinco colunas descrevendo as fases de reabertura de São Paulo e 15 linhas elencando previsões de reativação de cada atividade.
Lá no fim, na linha educação, um retângulo vazio indica a ausência de previsão de retomada de aulas presenciais. Escolas, só depois de indústrias, escritórios, shoppings, igrejas, parques, restaurantes, bares, passeatas e futebol. A história se repete, Brasil afora. A educação foi catalogada oficialmente como a mais supérflua das "atividades não essenciais". Weintraub é a cara da elite governante nacional.
Ciência? Um artigo publicado na Lancet (https://bit.ly/30sNBeN), revisando diversos estudos internacionais, conclui pela falta de evidências de que o fechamento de escolas seja efetivo contra a Covid-19, cujo comportamento epidêmico é o oposto daquele da gripe: o coronavírus tem alta transmissibilidade mas incidência muito menor em crianças. Experiência? Na Europa, 22 países reabriram as escolas no ponto de partida da flexibilização, seis a oito semanas atrás, seguindo restrições sanitárias, sem gerar focos significativos de contágio.
A esquerda enxerga a escola pelos óculos do sindicalismo (remunerar professores), enquanto a direita a vê pelos olhos do mercado (fornecer mão de obra).
Se os professores continuam recebendo e os empregadores só precisam de um contingente limitado de profissionais qualificados, quem se importa com o fechamento das escolas?
Boatos sugerem que São Paulo reativará a rede pública em agosto, mas na forma de piada macabra, com um dia de aula semanal por turma. Inexiste escândalo. Na imprensa, formadores de opinião ignoram o assunto --e quando, raramente, circulam ao seu redor, é para fingir que acreditam na lenda do ensino a distância nas escolas públicas.
A prioridade europeia de reinício das aulas não se deve à merenda e apenas parcialmente ao fardo imposto às famílias trabalhadoras de cuidar o dia todo de crianças sem aulas. Por lá, a urgência derivou do reconhecimento dos direitos dos alunos, conceito desconhecido entre nós.
Os educadores sabem que a falta prolongada de escola prejudica, para sempre, o desenvolvimento de habilidades cognitivas essenciais.
As crianças e adolescentes sem aulas ao longo de um semestre inteiro estão sofrendo uma amputação intelectual oculta, que as acompanhará pelo resto da vida. Claro, isso com exceção dos filhos da elite, que dispõem de livros em casa, ensino a distância razoável e aulas particulares de reforço. Ah, sim: os filhos dos governantes pertencem ao grupo da exceção.
A cegueira de classe manifesta-se como epidemiologia militante. "Deus! Você arriscaria uma única vida só por causa de artigos científicos e das experiências de 22 países?"
Vidas relevantes, vidas descartáveis. Os fundamentalistas da saúde simulam não saber que, nas periferias urbanas, os mais jovens jamais praticaram o caro esporte da quarentena. Eles não aventam a hipótese de que, nas escolas, os alunos venham a receber orientações sanitárias superiores às vigentes nas ruas.
É verdade que três quartos das escolas municipais de São Paulo carecem de sabonete líquido nas pias (Folha, 28 de maio). Mas, com muito boa vontade, Covas poderia resolver isso, no hiato entre uma e outra intervenção viária piramidal."Lápis, nunca mais/Livros, nunca mais/Do verão/Até o outono/Talvez não voltemos jamais/A escola foi estilhaçada/Sem escolas no verão/Sem escolas para sempre".
Doria tinha 14 anos em 1972, quando o roqueiro Alice Cooper cantava "School's Out" enredado numa cobra de estimação. Acho que ele ouviu, gostou e dançou. Hoje, aos 62, deixando em branco o último retângulo do seu plano, realiza um sonho delinquente.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Demétrio Magnoli: As Oprahs e o marketing de Deus
João Teixeira de Faria, o João que usa o nome de Deus em vão, ganhou fama mundial em 2012, graças a uma reportagem da apresentadora americana Oprah Winfrey. Antes e, sobretudo, depois dela, inúmeras celebridades periféricas conferiram a credibilidade indispensável à expansão dos negócios do charlatão. A história subterrânea do médium, tal como exposta por centenas de acusações de ataques sexuais, ainda precisa de comprovação judicial. Mas todos sabiam sobre sua história pública de prática ilegal da medicina. A Oprah mais badalada e o resto do séquito de celebridades não se envergonham do papel que desempenharam na ascensão do João charlatão?
Todas pediram desculpas — mas, invariavelmente, pelo motivo errado. Oprah, a original, divulgou sua “empatia pelas mulheres que estão se apresentando agora”. Bruna Lombardi imagina que “todos perdemos um pouco”, e Camila Pitanga declarou sua “solidariedade” às mulheres agredidas. Xuxa Meneghel declarou-se “até um pouco envergonhada”, Maria Cândida disse ter ficado “horrorizada” e Ana Furtado, “decepcionada”. Elas, porém, não tinham como saber sobre a história oculta de assédios sexuais. Por outro lado, sabiam perfeitamente que a “figura muito especial com dom divino e abençoado” (Ana Furtado) praticava cortes e perfurações sem cuidado algum de esterilização. Sobre isso, os crimes indiscutíveis, nenhuma abriu o bico.
Celebridades têm o costume de declarar apoio a candidatos. Imaginam, erroneamente, que suas opiniões políticas exercem influência sobre seus fãs, uma ilusão de óbvios efeitos balsâmicos. Já o hábito de compartilhar fotos com feiticeiros, bruxos e assemelhados nada tem de inofensivo. As pessoas comuns não ligam a mínima para o “pensamento político” dos famosos, mas tendem a acreditar que dinheiro farto e vastas relações sociais informam apropriadamente as escolhas na vida pessoal. Quando Oprah, Xuxa, Pitanga, Furtado, Lombardi e Cândida curvam-se diante de um curandeiro, estão produzindo massas de clientes para práticas de disseminação de infecções. Sobre isso, nenhuma delas está “um pouco envergonhada”?
E se, por milagre (milagre é com ele!), o tal João jamais tiver atacado alguma mulher? Nessa hipótese improvável, o “divino e abençoado” curandeiro ainda terá provocado incontáveis transmissões dos vírus de hepatite, HIV e outras doenças nas suas sessões ilegais de cortes superficiais com instrumentos inadequados. As Oprahs podem alegar, com razão, que a fiscalização de tais práticas compete à Anvisa, cuja conivência com os crimes do curandeiro mereceria maior atenção policial. Não têm, porém, o direito moral de invocar a santa ignorância ou a cegueira da fé. Como tudo mais, a fama, a exposição pública são via de dupla mão. Numa, vem a ascensão profissional, a grana, a boa vida. Na outra, deveria vir um mínimo de responsabilidade social.
João (que não é de Deus, mas sabe o que faz) tratou-se de câncer com o cirurgião Raul Cutait e sua equipe, no Hospital SírioLibanês, em São Paulo. Nas dez horas da operação de extração do tumor, em agosto de 2015, todos os instrumentos sofreram esterilização.
“Assepsia para mim; infecções para os outros” — eis o seu dístico implícito. A dupla moral do curandeiro não precisava da prova das agressões sexuais. Mas suas conexões sobrenaturais, propagandeadas pelos famosos, protegeram-no do escrutínio público. A Oprah e as outras Oprahs funcionaram como engrenagens do negócio do charlatanismo.
A fé explica bem menos que o cálculo. Desde que apareceu no show da Oprah, João de Faria foi elevado ao estatuto de celebridade mundial. Uma implicação disso é que, no marketing dos famosos, o fluxo de valor sofreu parcial reversão. A foto com o curandeiro, um intercâmbio comercial simbólico, agrega à celebridade periférica valor até maior que ao próprio médium. João que se quer de Deus ganha carne para cortar quando tira fotos com celebridades. Na ponta oposta, as celebridades ganham publicidade qualificada quando se fotografam ao lado de um mensageiro de Deus.
E tome faca, sangue, hepatite e HIV.
Demétrio Magnoli: Cancellier, eu e você
Cancellier não fará o que fez Caldas, temos que fazer por ele, para nós
“Convivo com a pior de todas as sentenças: a mácula da minha honra por crimes que não cometi ou que sequer existiram”. Eduardo Jorge Caldas, secretário-geral da Presidência no governo FHC (1995-98), enfrentou uma incessante campanha de acusações, sem prova ou nem sequer denúncia formal, conduzida por Luiz Francisco de Souza, um procurador-militante. Reagiu, lutando nos tribunais por uma década, até provar sua inocência.
Já o reitor Luiz Carlos Cancellier, preso sem um fio de prova e proibido de colocar os pés na universidade, não resistiu à “pior de todas as sentenças”, suicidando-se diante do público num shopping de Florianópolis. Cancellier não fará o que fez Caldas. Temos que fazer por ele, para nós.
O Conselho Nacional do Ministério Público reconheceu finalmente, em 2009, que Luiz Francisco perseguia Caldas por razões político-partidárias. Prudentemente, desde o fim do governo FHC, o procurador sumiu do palco iluminado, desistindo da missão sagrada da denúncia da corrupção para refugiar-se num sinistro blog “socialista cristão”, de onde dispara petardos difamatórios.
Já a delegada Erika Marena, que mandou prender o reitor, foge à obrigação mínima de reconhecer o erro monstruoso, preferindo inventar um processo vazio contra um colega da vítima. Quanto pesa a injustiça? Será necessária uma nova década até que se repare o irreparável?
De Caldas a Cancellier, mudaram os tempos. Sob o signo da Lava Jato, há cheiro de sangue no ar. Da barriga da operação anticorrupção que desvendou tantos crimes escorrem líquidos contrastantes. Num lado, vastas, justificadas esperanças cívicas; no outro, a substância tóxica da arrogância missionária.
Nas suas imensas diferenças, o acordo de imunidade judicial para Joesley e a prisão de Cancellier ilustram o desvio escuro da Lava Jato. Pois, embora a Operação Ouvidos Moucos, que vitimou o reitor, não tenha ligação formal com a Lava Jato, nela pulsa o espírito do arbítrio angelical.
“Cortem-lhe a cabeça!” –a Rainha de Copas que premia Joesley é a mesma que condena um reitor sem amigos na corte. A delegada Marena notabilizou-se na força-tarefa da Lava Jato, em Curitiba. Deslocada para a Ouvidos Moucos, levou para Florianópolis uma inclinação ao espetáculo que resultou na tragédia.
A acusação a Cancellier, de obstrução da Justiça, tinha as marcas kafkianas clássicas: a “prova” brandida pela Polícia Federal era um ato oficial do reitor, avocando para si a condução da investigação interna. Quem, no mundo, obstrui a Justiça por meio de decisões administrativas documentadas? Mas, sob o amparo da juíza Janaina Machado, o arbítrio fez seu curso, impondo a um inocente a “pior de todas as sentenças”.
Mais Kafka. Em janeiro, diante de um modesto ato acadêmico em memória de Cancellier, a delegada Marena moveu inquérito contra o professor Áureo Moraes, chefe de gabinete da reitoria, acusando-o do “crime” de aparecer, num vídeo estudantil, à frente de cartazes de denúncia do abuso de autoridade.
A Justiça converte-se em ferramenta de intimidação. “Eles não têm nenhum cuidado com a honra alheia e são tão cuidadosos quando criticam os seus”, registrou Gilmar Mendes, conclamando o ministro Jungmann a “instalar o Estado de Direito na PF”.
“Cortem-lhes a cabeça!”. Dos 686 mil presos no Brasil, 236 mil são provisórios. A presunção de inocência está morta para essa multidão de gente sem rosto que, atrás das grades, aguarda julgamento pelo tempo médio de um ano.
Na sua saga judicial contra o abuso de autoridade, Caldas lutou para limpar seu próprio nome, mas também por um princípio geral inegociável. O ato extremo de Cancellier, tão diferente na forma, aponta o mesmo norte. Quando holofotes iluminam as portas das delegacias e dos tribunais, quem não deve teme sim. Dessa vez, não é comigo ou com você. Por mero acaso.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.