demagogia
RPD || Rogério Baptistini: O populismo e a demagogia amplificam a tragédia brasileira
No mês de abril, o Brasil atingiu a marca de 400 mil mortos pela pandemia de Covid-19. O número de vítimas do coronavírus certamente é ainda maior, dado que desde o início da crise sanitária há relatos de subnotificação e, inclusive, pouco interesse do governo federal no acompanhamento e controle dos casos. Mas o que incomoda é o alheamento do presidente e de seus auxiliares em relação ao sofrimento dos concidadãos. É como se não tivessem responsabilidades para com o povo, o elemento pessoal do Estado. E aqui, o paradoxo de nossa situação.
Bolsonaro chegou ao governo como expressão do populismo, um fenômeno tão antigo quanto a própria democracia. Neste, confluem um líder e um povo mobilizado por um discurso que divide a sociedade política entre um nós e um eles, geralmente uma elite corrupta. A própria condição de mito, atribuída ao ex-deputado do baixíssimo clero reforça a percepção do que seria uma condição atávica de nossa evolução política. Acompanhando Ernst Cassirer, o mito, no populismo, personifica a vontade coletiva e se impõe à Constituição e às próprias instituições. “O que fica é apenas o poder e a autoridade mística do líder e a sua vontade suprema é a lei”. (2003, p. 325)
O passado, como ensinava o historiador Mac Bloch (1886-1944), não é objeto de ciência, mas ilumina o presente. E quando olhamos para trás, verificamos que a absolutização dos conflitos na história brasileira degenerou sempre em regressão na cultura democrática, em que pese o salto para a frente da aceleração econômica e a incorporação dos “de baixo” pela via dos direitos sociais. Estas, as camadas sociais inferiores, são o elemento central da lógica populista, manipuladas conforme a conjuntura, num dualismo de aceitação ou rejeição: mortadelas contra coxinhas, patriotas contra comunistas, cristãos contra destruidores da família.
Pilar do Estado moderno, a noção de povo deriva diretamente do populus romano. Ali, ao lado das famílias presentes no Senado, que representavam o núcleo originário da República, este participava das decisões sobre o destino comum, constituindo o elemento democrático e plural – a civilitas – do conjunto de cidadãos que fundava o corpo social – a civitas. A lei seria a expressão de sua responsabilidade política, traço de urbanidade e o próprio contrato que os uniria. Contraditoriamente, foi o apoio popular ao Principado e, depois, ao Dominado, que encolheu o papel político do povo romano (COLLIVA, 1991), culminando no ocaso de uma civilização e nas trevas do medievo.
Verdadeira presença ausente na democracia, o povo não é uma nulidade. Apesar de não constituir uma massa compacta, ele existe e padece as consequências do populismo. O descaso para com as leis, a corrupção da República e a demagogia como uma perversão que acomete os governos democráticos representam a catástrofe para os populares; o apocalipse medido em mortes e desesperança. E novo alimento para o irracionalismo, para as soluções que apresentam a vida como uma luta inconteste entre o Bem e o Mal. A economia contra a saúde; o mercado contra o Estado; o deus dos fundamentalistas contra o demônio.
No momento mesmo da invenção da política como esfera autônoma, na antiguidade clássica, Platão alertava para os perigos que a manipulação do demos poderia gerar pela ação de demagogos. O risco da implantação da tirania, quando da exploração dos ressentimentos populares por um perverso e o desejo irracional de castigar o levavam a descrer do governo democrático. A agonia do momento presente representa o ápice da demagogia entre nós.
É a atuação do povo como bloco que alimenta o populismo e faz da demagogia uma perversão. Tanto um como outra estiveram em germe, desde a redemocratização, na atividade de líderes e partidos, culminando no autocanibalismo do que se apresentava como o “novíssimo” na política brasileira, “diferente de tudo o que está aí”. A transformação do espaço público como espaço de luta pelo exclusivismo, no qual todo o adversário passou a ser visto como inimigo a ser derrotado trouxe uma vitória de Pirro para os adeptos do conflito, com consequências irreparáveis para uma geração de brasileiros, e a política sendo desviada para a margem dos canais institucionais pacientemente construídos.
Aos democratas, resta lutar nas trincheiras da razão e não ceder aos apelos do dualismo populista que insiste na exploração do desespero popular. A hora é de reconstrução da cultura pública essencial ao exercício da cidadania informada, ativa e plural, capaz pactuar em favor da democracia como caminho para o futuro.
*Rogério Baptistini Mendes é sociólogo, pesquisador do LabPol -Laboratório de Ciência Política da Unesp/FCL-CAr.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
Fonte:
Eliane Cantanhêde: PSDB ataca Doria, DEM tira o tapete de Huck, Lava Jato engole Moro. E Luiza Trajano?
Quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas
Se parece pato, anda como pato e grasna como pato, pato é. Se o novo ministro da Cidadania, João Roma, fez toda a sua carreira no DEM, colado em ACM Neto e era seu chefe de gabinete, ACM Neto ele é. Jura que foi parar no colo do presidente Jair Bolsonaro pelo Republicanos e por Marcos Pereira, ninguém acredita. Depois de Sérgio Moro, em 2019, o maior troféu de Bolsonaro é ACM Neto, que perde o status de uma das grandes promessas nacionais e arrasta junto o DEM.
Além de, novamente, garantir mais armas e mais balas para civis, Bolsonaro está soltando fogos. O Centrão transformou o Congresso em puxadinho do Planalto e o DEM cala Rodrigo Maia, voz decisiva da resistência ao autoritarismo e ao atraso, imobiliza Luciano Huck, obrigado a procurar outra sigla, e desarticula uma saída da catástrofe pelo centro – que está descambando para a extrema direita.
Num movimento combinado, o PSDB segue o desastre do DEM, como um piloto que, em meio a forte tempestade, entra em estado de desorientação espacial. Trancado na cabine (no caso, na bolha), não enxerga nada à frente, não sabe mais se está subindo ou descendo e acelera até se esborrachar no solo logo ali. É mesmo estonteante o DEM e o PSDB elegerem João Doria e Maia como inimigos prioritários.
É hora de atacar Doria? Goste-se ou não dele, e muita gente não gosta, ele é governador do principal Estado do País, ocupa a mais importante vitrine nacional dos tucanos e merece aplausos pela visão, diligência e decisão ao providenciar as vacinas. Com legitimidade, fazia uma dupla fundamental com Rodrigo Maia para dizer “não” a investidas golpistas e medidas retrógradas.
O que seria do Brasil sem as “vacinas chinesas do Doria”? Em fevereiro, teríamos dois milhões de doses para 210 milhões de habitantes, com 9,8 milhões de contaminados, 238 mil mortos e novas variantes mais ameaçadoras, enquanto o presidente insiste no “e daí?”. E, sem Maia na Câmara e Doria no PSDB de São Paulo, quem dará voz e cara à oposição? Bolsonaro torce para Lula e Fernando Haddad.
O tucano Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, tem lá suas qualidades, mas não pode ser séria a articulação do seu nome para a Presidência. Muito jovem, está no primeiro mandato relevante, num Estado que se especializou em torrar seus quadros políticos e nunca reelegeu um único governador. Logo, a caravana tucana pode tê-lo convencido, mas a ninguém mais.
Chutar Doria para pôr Leite no lugar tem cara de blefe, para dissimular uma outra jogada: a aproximação com Bolsonaro. Consolida, assim, a análise de que o melhor que pode acontecer ao PSDB é pôr ponto final na sua bela história, antes de um triste fim - que pode estar perto. Depois do ministro de ACM Neto, Bolsonaro busca nomes vistosos do PSDB e do MDB para o governo.
Com PSDB e DEM se autodestroçando, Bolsonaro corre sozinho, cada vez mais lépido, fagueiro, sem noção e sem escrúpulos, sustentado por Forças Armadas, polícias, milícias, os reinos de Deus, Centrão, Congresso e “oposição”. Não pensem o PT e a esquerda que isso é bom para Lula, Haddad ou quem quer que seja. Na implosão do centro, a debandada é para Bolsonaro.
Doria, Huck, Moro e Luiz Henrique Mandetta são torpedeados antes de alçar voo, mas, como não há vácuo em política, quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas, como cotas, vacinas, menos ideologia e mais resultados. Sim, Luiza Trajano, sem partido e sem traquejo político, mas instada a botar o bloco na rua e, num carnaval tão atípico, animar e atrair um grande aliado de Bolsonaro: o eleitor desiludido, ou desesperado, que só vê o buraco aumentando.
Vinicius Torres Freire: A nova lei da gasolina de Bolsonaro e as velhas mentiras sobre combustíveis
Projeto do governo é até razoável, mas não resolve o problema dos preços
O projeto de lei do governo Jair Bolsonaro que propõe mudar o ICMS sobre combustíveis é razoável. Ou melhor, seria razoável em um mundo em que:
1) Bolsonaro não fosse o demagogo Bolsonaro: a lei não mexe necessariamente com o nível do preço dos combustíveis;
2) os estados se dispusessem a perder receita do ICMS sobre combustíveis, o que é politicamente inviável se não houver compensações que, em um futuro remoto, talvez sejam decididas em uma reforma tributária.
O projeto prevê que o ICMS sobre cada tipo de combustível seja idêntico em todos os estados e que o tributo tenha um valor fixo por quantidade (litro ou quilo), em vez de uma porcentagem. Parece inviável.
A alíquota de ICMS varia de 12% a 34% entre os estados. Ninguém vai querer perder receita se não houver alguma compensação. O ICMS sobre combustíveis equivale a quase 15% da arrecadação dos estados, na média.
O ICMS é cobrado como um percentual do preço de referência dos combustíveis. Quanto maior o preço, maior a receita de imposto, pois. Se o imposto fosse fixo por litro, digamos, o preço final de venda subiria menos em caso de aumento do combustível. Em tese, cairia menos também. Tudo depende da inclinação dos estados de mexer periodicamente nesse valor fixo de imposto por quantidade.
É verdade que o projeto de lei pode limitar a sonegação e também acabar com uma outra mutreta. O ICMS é cobrado sobre um valor estadual de referência do combustível, em geral uma média de preços em algum período. A fim de arrecadar mais, alguns estados mexem pouco nessa média (quando esse valor é alto).
Mas não está aí o problema central. Gasolina ou diesel ficam mais caros porque o dólar aqui está caro e porque o preço do petróleo está aumentando. Deve aumentar mais caso a economia mundial saia da lama da epidemia. O dólar está aparentemente caro demais em parte por causa do estado de avacalhação da economia e da política.
O preço nas refinarias é “livre”: nesse setor ainda dominado pela Petrobras, desde 2017 segue o mercado mundial (ou quase isso, pois a petroleira tem atrasado reajustes). Caso o governo tabelasse o preço dos combustíveis, o prejuízo acabaria na conta da Petrobras, como no governo Dilma Rousseff (tudo mais constante, a empresa tem receita menor, dívida relativamente maior, paga juros mais altos e investe menos). Com a venda das refinarias da Petrobras, vai ser difícil controlar preços.
O preço dos combustíveis tem impacto social sério, como no caso do gás de cozinha. É possível subsidiá-lo com verba do Orçamento (mas seria preciso também cortar outra despesa ou aumentar impostos). Subsidiar gasolina e diesel incentiva a poluição e arruinou a indústria do etanol.
É também possível reduzir a variação excessiva de preços cobrando um imposto regulador (como a Cide). Esse imposto aumenta quando os combustíveis estão em baixa e diminui quando estão em alta. Assim, é possível manter o custo do combustível dentro de uma faixa mais estreita de variação (desde que baixas e altas no mercado mundial não sejam muito grandes). O governo não cuidou de implementar tal política.
Essa conversa toda é bem velha. Já foi objeto de muita discussão sob Michel Temer, em 2018. Mas não houve solução alguma para o problema a não ser subsidiar o diesel dos caminhoneiros a fim de evitar um colapso de abastecimento ou coisa pior durante o caminhonaço, tumulto aliás apoiado por Bolsonaro, que volta agora a fazer demagogia.
A gente está cada vez mais rodada, mas não sai do lugar
Martin Wolf: Reeleição de Trump é perigo para o mundo
O povo americano escolher um demagogo clássico por duas vezes não poderá ser classificado como um acidente
De uma só cartada, o presidente dos EUA, Donald Trump, ficou livre. Com a esperada demonstração de partidarismo puro e simples, os republicanos do Senado (com exceção de Mitt Romney) abandonaram seus papéis de juízes constitucionais dos supostos abusos de poder cometidos por ele. Eles transferiram a decisão para os eleitores, nas eleições presidenciais de novembro. Trump terá muitas vantagens: apoiadores fervorosos, um partido unido, o colégio eleitoral e uma economia saudável. Sua reeleição parece provável.
A razão mais óbvia da possível vitória de Trump é a economia. Até mesmo por seus parâmetros, o discurso sobre o Estado da União na semana passada foi um caso de exagero carregado de hipérboles. Conforme observou Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, o desempenho dos EUA parece fraco pelos padrões de outros países em aspectos importantes, especialmente a expectativa de vida, as taxas de emprego e a desigualdade.
Além disso, o PIB, o nível de emprego, o desemprego e os salários reais seguem em grande parte tendências definidas no pós-crise. Dada a escala do estímulo fiscal, que resultou em grandes e persistentes déficits fiscais estruturais, isso não é uma grande realização. Mesmo assim, muitos americanos sentirão que a economia está melhorando. E isso certamente terá um grande papel nas próximas eleições.
Se Trump vencer, a nova vitória poderá ser ainda mais significativa que a primeira. Pois o povo americano escolher um demagogo clássico por duas vezes não poderá ser classificado como um acidente. Será um momento decisivo.
A implicação mais óbvia da vitória de Trump seria para a democracia liberal nos EUA. O presidente acredita estar fora do alcance da lei e do Congresso em relação ao que faz no cargo. Ele acredita dever explicações apenas para o eleitorado. Ele também acredita que todos os membros nomeados de seu governo, servidores públicos e autoridades eleitas de seu partido, devem lealdade a ele, e não a qualquer causa maior.
Os pais fundadores temiam esse tipo de homem. No primeiro dos Artigos Federalistas, Alexander Hamilton escreveu que “dos homens que subjugaram as liberdades das repúblicas, o maior número começou suas carreiras cortejando o povo de maneira servil; começando como demagogos e terminando como tiranos”. Nisso, ele foi acompanhado por Platão, que escreveu como um homem que assume o poder como protetor do povo pode ser tornar “um lobo - ou seja, um tirano”. Em seu Discurso de Despedida de 1796, George Washington afirmou que “as desordens e o sofrimento resultantes [do sectarismo] gradualmente levam a mente das pessoas a buscar segurança e confiar no poder absoluto de um indivíduo”. E o sectarismo certamente é abundante na América de hoje.
Não temos como saber até onde Trump estará disposto a ir ou até onde as instituições da república permitirão que ele vá. Mesmo assim, será que há algo que Trump poderia fazer, além de perder a lealdade de sua base, que pudesse convencer Mitch McConnell, líder da maioria republicana no Senado, a se entusiasmar com ele? Não são as instituições que importam mais, e sim as pessoas que as servem.
Mesmo que a grande republica sobreviva em grande parte ilesa ao teste (o que é uma posição otimista), a reeleição desse homem - um demagogo, um nacionalista, um mentiroso contumaz e um admirador de tiranos - terá uma implicação mundial.
Déspotas veem Trump como alma gêmea. Os liberais democratas sentiriam-se ainda mais abandonados. A noção do Ocidente como uma aliança com algumas fundações morais iria se evaporar. Ele passaria a ser, na melhor das hipóteses, um bloco de países ricos tentando manter suas posições globais. Como nacionalista, ele continuaria detestando e desprezando a União Europeia (UE) como um ideal e detentora de um poder econômico de oposição aos EUA.
David Helvey, secretário da Defesa assistente e em exercício dos EUA, recentemente escreveu sobre a hostilidade da China e Rússia à “ordem baseada em regras”. Esse ideal é realmente importante. Infelizmente, seu inimigo mais poderoso é agora o seu próprio país, porque isso sempre dependeu da visão e energia americanas. Com seu mercantilismo e bilateralismo, Trump apontou um míssil intelectual e moral contra o sistema comercial global. Ele até mesmo vê seu próprio país como a maior vítima de sua própria ordem. O problema, então, não está no fato de Trump não acreditar em nada, e sim no fato de que aquilo em que ele acredita está sempre muito errado.
De uma maneira mais ampla, seu transacionalismo e disposição de usar todos os instrumentos imagináveis do poder dos EUA cria um mundo instável e imprevisível não só para os governos, mas também para os negócios. Essa incerteza também poderá piorar num segundo mandato. É uma questão em aberto a sobrevivência de algum tipo de ordem jurídica internacional.
Há grandes desafios práticos que precisam ser administrados. Um deles é a relação complexa e tensa dos EUA com a China. Mas mesmo neste ponto Trump está longe de ser o mais radical dos americanos. Ele tem uma camada de pragmatismo. Gosta de fazer acordos, não importando o quão mal ajambrados eles possam ser.
Talvez a questão mais importante (se não tivermos em conta evitar uma guerra nuclear) seja a gestão dos recursos comuns do planeta - acima de tudo, a atmosfera e os oceanos. Preocupações cruciais são o clima e a biodiversidade. Pouco tempo resta para agir contra as ameaças nos dois casos. Um governo Trump renovado, hostil a essas causas e ao próprio conceito da cooperação global, tornariam impossíveis as ações necessárias. Seu governo parece nem mesmo reconhecer o patrimônio público como uma categoria de desafio digna de preocupação.
Estamos num ponto crítico da história. O mundo precisa de uma liderança global excepcionalmente sábia e cooperativa. Não vamos conseguir isso. Pode ser tolice esperar isso. Mas a reeleição de Trump poderá muito bem representar uma falha decisiva. Preste atenção: o ano de 2020 será importante. (Tradução de Mário Zamarian)
*Martin Wolf é editor e principal analista econômico do FT
Marco Aurélio Nogueira: Déspotas, populistas e demagogos, os arautos dos tempos atuais
Quando Silvio Berlusconi surgiu na cena política em maio de 1994, houve espanto e curiosidade. Não pelo fato de um magnata vencer eleições e governar a Itália, mas porque Il Cavaliere, como era conhecido, simplesmente reunia, em sua persona, a figura do rico empresário, do bon vivant e do homem da indústria do entretenimento, condição derivada do controle que mantinha sobre a maior rede privada de comunicação do país.
Era a imagem perfeita de uma liderança política que iria se sintonizar com os tempos que então se anunciavam: tempos de dificuldades para a democracia, de crise da representação, de desorganização política e social, de redução da densidade ética e política dos estadistas. Beneficiado pelas circunstâncias, Berlusconi assumiu o governo como premiê e nele construiu uma casamata de proteção dos próprios interesses, impulsionado por um império midiático e por um movimento de novo tipo (a “Força Itália”) que erodia as bases de reprodução dos partidos políticos, devorando-os por dentro e por fora.
No arco de quase duas décadas, Berlusconi ganhou e perdeu eleições, mas permaneceu no centro da política italiana. Chegou por três vezes ao cargo de primeiro-ministro, a última das quais se encerrou em 2011. Ao todo, ocupou o cargo de primeiro-ministro durante nove anos, um tempo considerável. Saiu da cena política formal em 2013, deixando um rastro de escândalos e tramoias que ainda hoje cercam sua trajetória, fazendo dela um verdadeiro case político.
Berlusconi foi um arauto. Com ele, a democracia representativa passou a conviver com personagens que carregam consigo a utilização abusiva dos meios de comunicação, que fazem da imagem, do histrionismo cênico e do personalismo os principais canais de interpelação dos cidadãos. Com eles, a política foi “reinventada”, passando a ser praticada com ingredientes explosivos: a mentira, a centralidade da televisão e das redes, a pregação racista, a xenofobia explícita, o separatismo, a demagogia populista, a ameaça, o baixo nível generalizado, a rusticidade argumentativa, o marketing movido a rios de dinheiro.
Uma visão em grande angular da política atual mostra bem como esse novo padrão está em marcha ascendente. De Trump a Marine Le Pen, do Movimento 5 Estrelas de Beppe Grillo na Itália ao Brexit e a Nigel Farage na Inglaterra, dos racistas holandeses e dinamarqueses à Alternativa para a Alemanha (AfD), de Frauke Petry, dos nacionalistas populistas aos vários separatismos, tudo se acomoda na ideia de que a extrema-direita encontrou uma estrada para acessar o grande palco da política, nele não só acampando como fazendo-o de forma totalitária, animada pela ideia de tomar o poder para atenuar as liberdades, repor a “ordem” e conter a democracia. Mantêm-se as instituições e as rotinas eleitorais, mas mudam-se o conteúdo e os estilos, com a infiltração na cultura democrática de valores e procedimentos que a corroem e desvirtuam.
Uns falam em “pós-democracia”, outros em morte dos ideais iluministas, outros ainda em novo irracionalismo. Todos procuram as chaves explicativas do processo em curso. Sabem que ele se associa à globalização e à reorganização do capitalismo, que estão a enfraquecer os Estados nacionais, a fragmentar as sociedades e a desestruturar as economias, levando os cidadãos à angústia da desproteção e fazendo com que o sistema representativo e seus operadores (a começar dos partidos políticos) mergulhem em uma fase de impotência e diluição. O cenário é perfeito para a multiplicação de pessoas providenciais.
Quando Berlusconi iniciou seu controle sobre a política italiana, o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004), um liberal-socialista então com mais de 80 anos, saiu em seu encalço. Como explicar o fato, como aceitar que um magnata do entretenimento, controlador dos principais órgãos de comunicação do país, concentrasse em suas mãos o poder político e o fizesse com aplausos entusiasmados de parte ponderável do eleitorado italiano?
Bobbio escreveu diversos artigos na imprensa diária da Itália para tentar não somente entender o fenômeno mas sobretudo alertar a opinião pública. Viu Berlusconi como um autêntico ovo da serpente, do qual nasceriam demônios difíceis de serem controlados.
Uma seleção desses artigos foi então reunida pela revista Critica Liberale no volume Contra os novos despotismos. Escritos sobre o berlusconismo, que a Editora Unesp e o Instituto Norberto Bobbio acabam de publicar no Brasil.
Os textos mostram o que Bobbio tinha de melhor: a retórica afiada e elegante, a argúcia argumentativa, sempre movimentando um pêndulo entre a realidade factual da política e as grandes elaborações teóricas e filosóficas, com as quais a política foi sendo pensada ao longo do tempo. Estão ali alguns de seus maiores achados e praticamente todas as suas obstinações: a complexidade, a indispensabilidade e as promessas fracassadas da democracia, o perigo dos totalitarismos, a importância dos partidos políticos, a força criadora do liberalismo social, a face demoníaca do poder, a relevância do cidadão politicamente educado.
Para Bobbio, o perigo representado por Berlusconi derivava do fato de que ele reunia, em uma só pessoa, aquilo que devia ser separado: o poder econômico, o poder político e o poder cultural. Não lhe parecia razoável que alguém que detinha um quase monopólio das redes de comunicação pudesse disputar um cargo público e chegar à posição de primeiro-ministro, a partir da qual teria força não somente para defender seus próprios interesses como para burlar e desorganizar o sistema democrático, enxertando nele sementes de um novo tipo de despotismo, que, do antigo, conservava o fundamental: ser um “governo sem leis nem freios”.
Tal como tantos líderes de hoje, Berlusconi criava partidos e movimentos ad hoc, para servi-lo. Se os grandes partidos o rejeitavam, explorava suas correntes internas, de modo a extenuá-los. Conseguia, assim, ir formando partidos pessoais, obedientes às suas ordens. Como insistiria Bobbio, a “Força Itália” berlusconiana não era um partido, mas “um conjunto de comitês eleitorais difusos por todo o país”. Não se sabia quem a financiava, quem a compunha, qual o seu projeto para o país. Era, na verdade, uma “rede de grupos semiclandestinos”, uma invenção sem precedentes com a qual se imaginava fazer funcionar a democracia.
O líder dispensava o trabalho diuturno de edificação partidária para se dedicar à montagem de uma “videocracia triunfante”, na qual o poder seria exercido não mais somente por meio da palavra falada escrita ou falada, mas “por meio da imagem que entra insistentemente na casa de todos e se fixa na memória, bem mais do que um discurso”. Desta forma, transmitia-se à sociedade mensagens que valorizariam a figura providencial do “grande homem” e destilariam medos e ameaças de todo tipo, voltados sobretudo para o ataque às esquerdas e à democracia. O poder televisivo mostraria, assim, sua pior face: forneceria ao poder político a posse dos “meios essenciais para a formação do consenso”.
O novo despotismo está solto pelo mundo. Faz-se acompanhar de demagogos e populistas de variada espécie, quase todos autoritários e que se apresentam como “determinados e enérgicos”, contrários à temperança e ao que veem como “frouxidão” dos adversários. São tipicamente de direita, mas a praga, a rigor, não escolhe campo para proliferar.
Bobbio foi direto ao ponto. “Uma das características mais conhecidas e documentadas da ‘personalidade autoritária’ é a absoluta confiança em si mesmo, nas próprias possibilidades de resolver os mais difíceis problemas não apenas para si mesmo, mas também para os outros”. O líder autoritário não falha e sempre tem razão, cerca-se quase sempre de uma “missão divina” que o põe um palmo acima dos outros, sua generosidade é proverbial, apresenta-se como um serviçal do povo. É performático, estampando na face a estudada indignação de quem se julga vítima dos poderosos, dos aristocratas endinheirados de Wall Street ou dos que controlam os esquemas tradicionais da política. São invariavelmente inescrupulosos quando se trata de poder.
O filósofo se atormentava com a incapacidade que os progressistas tinham de bloquear a irrupção dos novos déspotas. “Tenho a impressão de que nesse universo globalizado continuamos a discutir sobre ideias, enquanto o que conta agora são os grandes interesses econômicos e financeiros, que passam por cima da política e não estão muito preocupados com a cultura”. (p. 81).
Olhando os dias que passam, magnatas como Berlusconi continuam atuantes na política. Talvez já não causem mais espanto, mas continuam a produzir uma sombra sobre a dinâmica democrática, especialmente quando sabem o que fazer com os meios de comunicação. Junto com eles, estão em campo populistas autoritários pouco preocupados com a institucionalidade democrática. Bobbio escreveu que, na Itália dos anos 1990, “um vento de loucura está arrastando nosso já frágil sistema político”. É um diagnóstico que permanece atual para onde quer que se olhe no mundo de hoje.
*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Roberto DaMatta: Quem é de esquerda?
Numa velha investigação que realizei sobre identidade política, encontrei uma divisão nítida entre “esquerda” e “direita”. No início dos anos 1960, um mundo muito maior e menos transparente do que o atual, dava pleno sentido à divisão entre direita e esquerda. Além disso, quem era de esquerda ou de direita via o outro lado como contrário, mas também como imprescindível. Um dos maiores erros dos radicalismos e, no caso do Brasil, da direita representada pelo regime militar foi a tentativa de dar uma “solução final” para a outra margem, esquecendo-se do rio por onde a história não deixa de correr. O mesmo ocorreu com a esquerda desmoralizada pelo lulopetismo. A destruição do opositor subtrai a legitimidade de quem tem o “poder”. Quem sustenta a governabilidade é o derrotado.
Daí a importância da competição eleitoral, que acabamos de vivenciar. O processo eleitoral ajuda a descobrir novas lideranças tanto quanto a descartar projetos de “soluções finais” de quem, alojado no poder, planejou jamais perder uma disputa eleitoral. Enfrentar o nosso papel como eleitores não é fácil, quando não há salvadores da pátria ao lado de um punhado de partidos com bandeiras cansadas ou sem mastro. Naquele tempo havia medo, mas não havia vergonha nem culpa em ser “esquerdista”. Examinando meus dados, vejo que muitos se viam como peça de resistência ou vítima, mas todos tinham orgulho de sua escolha política. Ser de “esquerda” era ser uma pessoa fiel, honesta e de boa vontade. Era ser alguém que enxergava a “realidade brasileira” (ou o todo) desdenhando os “interesses de classe” que remetiam à parte e exprimiam egoísmo e descaso pelos pobres. Pelos explorados que constituíam o “povo” brasileiro ao qual nós, nos coretos acima da multidão, obviamente não pertencíamos.
Éramos pastores do povo e eu confirmei tal atitude numa entrevista na qual um operário dizia: “Os teóricos são o farol que guia a nossa prática”. Tal opinião confirmava a busca utópica de uma igualdade substantiva. A esquerda queria o paraíso neste mundo e perseguia o altruísmo. Ademais ela não havia estado no poder. Esse poder que muda até mesmo a igreja do diabo, como ensinou Machado de Assis. O poder corrompia, mas nós não entraríamos nisso. Como disse o próprio Lula, décadas depois: em seis meses, o PT acaba com a corrupção. E José Genoino, presidente do partido, já no poder, reiterava: o PT não rouba e não deixa roubar. O “poder” era um cetro ou palácio. Ele não era contraditório ou personalizado. Reprimíamos o fato de sermos meninos brancos de classe média que viviam em “casas” hierarquizadas e aristocráticas, com um pai-patrão e seus empregados e, talvez por isso mesmo, tínhamos o sonho de uma igualdade ilimitada no plano político.
Vencer uma discussão com o pai, cantar que o Brasil era um país subdesenvolvido, era fazer a revolução… Uma revolução que surgia como um conjunto de “reformas” a serem perpetradas pelo governo e por decreto, tal como ocorreu no comício da Central do Brasil em março de 1964. Ali, João Goulart decretou alguns dos seus pontos cruciais. Dezenove dias depois, veio – aí, sim – o golpe militar que, em menos de 48 horas, pôs a esquerda na marginalidade, explodindo uma margem do rio. Naquele tempo, havia “reacionários”. Hoje, há conservadores defendendo a “ordem” para situá-la ao lado do “progresso” e um enorme time de fascistas (úteis e inúteis) com suas listas de temas e pessoas a serem banidos e, eventualmente, eliminados.
Em 1960, imitando a experiência cubana, falava- se em paredão; hoje – imitando sem saber os velhos nazistas – temos soluções finais para o mercado e para um capitalismo diabolizado. Em nome dos direitos, evita-se corrigir a desigualdade que começa no desencontro entre uma aristocracia paga pelo Estado e os cidadãos comuns. Os idiotas que trabalham para sustentar um Estado a ser descontaminado de sua imagem de fiador do roubo, da incompetência e de uma burocracia marginal à norma da igualdade. É incabível, com a devida vênia aos meus amigos do Judiciário, que um juiz venal seja condenado à aposentadoria em sua residência com salário integral! Essa foi uma eleição histórica. Nela, a esquerda abalada e derrotada pelo lulopetismo que a marginalizou. A crise fez com que ser esquerdista virasse sinônimo de demagogia burra, irresponsável e arrogante. Ou, para resumir numa palavra: a tudo o que era de “direita”.
* PS: Se Marta Suplicy não é de esquerda, tudo é possível. (O Estado de S. Paulo – 05/10/2016)
Fonte: pps.org.br