década perdida

Guido Mantega: Mais uma década perdida

Crescimento de desigualdade e concentração de riqueza alimentou conflitos e geraram onda populista de extrema direita

A crise do coronavírus reflete o triste fim de uma década infame, que começou mal em 2011, sob o impacto da grande crise financeira de 2008. Nesse período, o comércio mundial encolheu e a maioria dos países não cresceu, ou o fez a um ritmo muito lento, o “novo normal”.

No Brasil, caso se confirme a previsão de um PIB negativo de 5% neste ano, a economia do país terá ficado estagnada nesses dez anos, com crescimento anual de no máximo 0,2%. Não se trata só de mais uma década perdida, mas a de pior desempenho desde a que inaugurou o século passado, segundo o IBGE.

O capitalismo mundial vem perdendo dinamismo desde o fim das políticas de bem-estar social, nos anos 70. Desde então, a cada década o investimento no mundo fica mais fraco —no Brasil caiu de 20,5% do PIB em 2014 para 15,4% em 2019.

Depois da crise de 2008, a produtividade dos países avançados e do Brasil cresceu em média de 0,5% a 1% ao ano. Foi a menor alta das últimas cinco décadas. Com a desregulação dos mercados estabeleceu-se o império do capital financeiro.

Os lucros apropriados pelo setor financeiro, que representavam 10% do lucro das corporações em 1950, passaram para mais de 30% em meados da década de 2010. No Brasil os juros e os lucros do setor financeiro continuaram elevados nos anos 2010, conforme pode ser constatado pelos lucros dos grandes bancos.

A outra face dessa moeda é a precarização do trabalho e o aumento da desigualdade e da concentração de renda em escala mundial. Agora, com a Covid-19, o desemprego vai bater recorde na maioria dos países. No Brasil já está em 14%, e tende a aumentar no ano que vem.[ x ]

De acordo com o IBGE, os 10% mais ricos da população brasileira concentravam 43% da massa de rendimentos em 2018, enquanto os 10% mais pobres ficavam com apenas 0,8%. O aumento da desigualdade e da concentração de renda é uma característica marcante da década de 2010, com perda de direitos dos mais pobres e a consequente deterioração da democracia.

Martin Wolf escreveu no Financial Times que a ascensão do capitalismo rentista poderá significar a morte da democracia liberal.

O Brasil começou a década perdida com expansão razoável de 3% ao ano e chegou a 2014 com a economia desacelerada, mas com uma dívida líquida baixa (36,7% do PIB) e com abundantes reservas financeiras (US$ 376 bilhões). No final de 2014 o desemprego era de 4,7%, o menor da séria histórica, assim como a pobreza e a miséria estavam nos mais baixos patamares.

Logo depois da reeleição de Dilma Rousseff o país mergulhou numa forte crise política que deixou o governo acuado. A Operação Lava Jato paralisou a Petrobras e a cadeia produtiva de gás e petróleo, e as grandes construtoras, responsáveis por boa parte do investimento.

Essa crise foi amplificada pelo abandono da estratégia desenvolvimentista praticada até 2014. Com a nomeação de Joaquim Levy para o ministério da Fazenda em 2015 foi inaugurada uma nova fase neoliberal que vigora até hoje.

O crescimento da desigualdade social e da concentração de riqueza alimentou fortes conflitos, que desembocaram em mobilizações sociais e geraram uma onda populista de extrema direita, que fomentou o ódio e a radicalização. Foi assim que surgiram Donald Trump, nos EUA, e Bolsonaro, no Brasil. Grã-Bretanha, Polônia e Hungria são outros exemplos.

O esgarçamento do tecido social e o desespero da população nos EUA foi muito bem retratado por A. Deaton e A. Case no livro “Deaths of Despair” (2019). O livro registra a proliferação de suicídios e mortes por overdose devido ao consumo excessivo de álcool e opioides. No Brasil a situação não é diferente. O país é o quinto em número de pessoas com depressão —cerca de 12 milhões, segundo a Organização Mundial da Saúde.

O cenário não é animador. Mas já apareceu uma luz no fim do túnel: a recusa do eleitor americano em renovar o mandato de Trump, o símbolo do novo autoritarismo. Pode ser o primeiro passo para a queda de outros líderes truculentos e incompetentes.

*Guido Mantega foi ministro do Planejamento (2003 a 2004), presidente do BNDES (2005) e ministro da Fazenda (2006 a 2014). É professor da FGV desde 1980.


Josilmar Cordenonssi: O (ex-) país do futuro não consegue superar a ‘década perdida’?

De acordo com projeções da FGV, esta década que termina agora em 31 de dezembro de 2020 apresentará um crescimento negativo do PIB per capita do Brasil em toda a série histórica que se tem deste indicador, superando a chamada “década perdida” dos anos 80. Usando os dados do Banco Mundial, naquela década, o PIB per capita do Brasil caiu 4,38% e nessa década, até 2019, já caiu 1,46%, como esse ano é esperado uma outra queda é possível ter um resultado ainda pior que o dos anos 80.

A década de 80 foi perdida por praticamente toda a América Latina, devido à crise da dívida externa e o forte ajuste de balança de pagamentos que foi exigido dessas economias, com maxi desvalorizações, queda de consumo e PIB. Nos anos 70, a grande maioria dos países latino-americanos eram governados por ditadores militares, cuja legitimidade estava baseada no crescimento e desenvolvimento econômico. Assim, após os choques do petróleo em 73 e 79, esses países, em vez de deixar que as economias absorvessem esses choques recessivos, preferiram controlar o preço desta commodity artificialmente para que as economias não perdessem (tanto) o ritmo de crescimento, através de endividamento externo, com as bênçãos do governo americano. Os desequilíbrios da balança de pagamentos só cresciam.

Entretanto, com o segundo choque de petróleo a nova administração do Fed (Banco Central americano) deu um choque de juros em 1981, fazendo a taxa básica (federal funds rate, a Selic deles) sair de 11% para 20%, para combater a inflação de lá. Com isso, os países latino-americanos ficaram incapazes de pagar o serviço da dívida (pagar os juros) e ficaram insolventes, tendo que negociar os pacotes de ajuda com o FMI. Essa foi a principal razão para a década perdida dos anos 80.PUBLICIDADE

Com exceção de 2020, quando a pandemia provocou uma recessão em praticamente todos os países do mundo, o nosso desempenho pífio nesta década é fruto de erros de política econômica feitos por nós mesmos. Após crescer 7,5% em 2010, o Brasil tinha superado a crise financeira internacional de 2008, entretanto, o governo Dilma continuou a expandir as medidas de “contracíclicas”. O BNDES continuou recebendo aportes crescentes do Tesouro Nacional para financiar grandes empresas (“campeões nacionais”) a comprarem empresas estrangeiras, por meio de emissão de dívida pública. Foram feitas desonerações de encargos sociais na folha de pagamento de alguns setores, que até agora não foram revertidas, dada a força política desses setores junto ao Congresso Nacional. Além disso, houve ingerências indevidas no preço da gasolina, taxa Selic artificialmente baixa e consequente descontrole inflacionário. Tudo isso gerou forte incerteza na sustentabilidade da dívida, profunda recessão e que culminou no impeachment da presidente. O PIB per capita do Brasil em 2016 foi 8,57% menor do que o de 2013, quase o dobro da queda esperada para esse ano de pandemia.

Quando analisamos o crescimento do Brasil nos últimos 60 anos em relação à principal economia do mundo, os EUA, em 1960, o PIB per capita (em poder de paridade de compra) do Brasil era 22,86% dos americanos. Atingimos o ápice em 1980, 34,30% e voltamos praticamente ao mesmo patamar de 1960 em 2019, com 23,43%. Apesar de todos os avanços que tivemos nesse período, nós não conseguimos fazer o chamado catch up, isto é, não estamos conseguindo nos aproximar do nível de desenvolvimento dos EUA. Por outro lado, os países asiáticos estão sistematicamente conseguindo se aproximar dos países mais avançados. Por exemplo, a Coreia do Sul em 1960 tinha um PIB per capita de apenas 7,06% do PIB per capita americano, ou seja, menos de um terço do brasileiro. Em 2019, a Coreia esteve a quase 70% (exatamente 68,39%). Mas a Coreia não é um caso único, apesar de ser um caso espetacular. A Malásia saiu de 15,61% em 1960 para chegar a ter 45,36% do PIB per capita americano, em 2019. Enquanto os países asiáticos estão chegando ao futuro antes de nós, o Brasil ainda não superou a década perdida.

Para o Brasil encontrar o seu caminho para o desenvolvimento é preciso primeiro que o setor público deixe de ser um entrave ao desenvolvimento e passe a ser um parceiro do setor privado. Fazer reformas que ajustem as contas públicas para garantir uma taxa de juros baixa, deixando de competir (de forma desleal) com o setor privado pela poupança interna e externa já é um começo. E investir naquilo que é cada vez mais estratégico: capital humano, gente capaz de aprender, produzir e criar coisas diferentes. A sociedade, e não só o governo, precisa entender que investir em capital humano significa também garantir as mesmas oportunidades a todas as crianças, não importando se nasceram em um palacete ou na favela. Dar as mesmas oportunidades de competição para empresas de capital nacional ou estrangeiro, instaladas aqui ou alhures. Além disso, nós temos que ter políticas que protejam aqueles que se arriscam ao criar negócios. A destruição criativa faz parte de uma economia avançada e dinâmica, o risco é inerente ao capitalismo, portanto, quebrar e falhar, não deve ser punido como se o empreendedor fosse um bandido. O instituto da responsabilidade limitada tem que ser sagrado. Casos de suspeita de fraude devem ser investigados e punidos caso comprovados, mas têm que ser a exceção, não a regra.

Se a sociedade adotar esses valores, os futuros governos irão desenvolver políticas públicas alinhadas a esses valores e estaremos mais perto de encontrar um fast track rumo ao desenvolvimento econômico e social. Esses valores podem ser chamados de Liberalismo.

*Josilmar Cordenonssi Cia é graduado em Economia, mestre e doutor em Administração de Empresas. É professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie