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RPD || José Luis Oreiro: Reforma Administrativa ou retorno ao Estado Patrimonialista?
Reforma Administrativa com o objetivo de preservar o teto de gastos parece ideia desprovida do mínimo senso de realidade, avalia José Luis Oreiro em seu artigo
Recentemente, o Ministério da Economia encaminhou proposta de Reforma Administrativa na forma da PEC 32/2020. A proposta parte explicitamente do pressuposto de que existiria uma série de distorções na administração pública que aumentariam o gasto com os salários e benefícios dos servidores públicos a patamares elevados como proporção do PIB na comparação com outros países, além de tornar os serviços públicos de má qualidade. Nesse contexto, a reforma administrativa permitiria reduzir de forma significativa o gasto com o funcionalismo público, liberando espaço no orçamento fiscal para o aumento do investimento público, sem violar a Emenda Constitucional do Teto de Gastos, promulgada em 2016, que estabelece o congelamento do valor real da despesa primária da União por um prazo de 20 anos.
A realização de uma Reforma Administrativa com o objetivo de preservar o teto de gastos parece-me ideia desprovida do mínimo senso de realidade. No debate econômico brasileiro atual é crescente o consenso de que não é possível manter o Teto de Gastos (EC 95), que estabelece o congelamento dos gastos primários da União em termos reais até 2036, devido ao crescimento dos gastos com Previdência Social a um ritmo de 3% a.a, mesmo após a Reforma da Previdência, realizada em 2019. O que levará a um esmagamento progressivo das despesas discricionárias como, por exemplo, os gastos com investimento público e com o custeio de Saúde e Educação.
Além disso, o elevado nível de desemprego da força de trabalho combinado com alta ociosidade da capacidade produtiva na indústria, resultantes dos efeitos combinados da grande recessão de 2014-2016 e da pandemia do coronavírus, exige aumento expressivo da demanda agregada, o que, nas condições atuais, só pode ocorrer por intermédio do investimento público. O que esbarra nas limitações legais ao aumento de gasto público imposto pela EC 95. Para não mencionar que a experiência das reformas administrativas nos países europeus após a crise financeira internacional de 2008 mostra que os ganhos fiscais obtidos são, na melhor das hipóteses, irrisórios.
Um dos principais problemas da PEC 32 é que acaba sendo vazia, uma vez que deixa para regulamentar o essencial posteriormente – como a definição de quais serão as carreiras típicas de Estado, os critérios de avaliação de desempenho e as novas formas de acesso ao serviço público, tanto quanto a política remuneratória e de benefícios percebidos pelos servidores, as regras para a ocupação de cargos de liderança e assessoramento, e a progressão e a promoção funcionais que serão tratados por projeto de lei complementar.
Outro ponto crucial é que a reforma proposta deixa de fora as maiores fontes de distorções no serviço público – os militares, os juízes e membros do Ministério Público, e os parlamentares. No caso dos militares, parece que até obterão ganhos com essa reforma, ao poderem acumular determinados cargos (docência e empregos na saúde, sob certas condições), o que é explicitamente facultado no novo texto.
Presumiu-se que seria inconstitucional o Poder Executivo arbitrar regras para membros de outros poderes. Mas a Reforma do Judiciário promulgada em 2004 foi feita a partir de uma PEC apresentada pelo então deputado Hélio Bicudo, com adendos inclusive do Executivo, com vistas a ampliar as funções da Justiça Federal. Em 2005, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) e declarou a inexistência de qualquer “vício formal” na proposta apresentada por outros Poderes que não o Judiciário.
A reforma cria também novos meios de acesso ao serviço público e tende a reduzir fortemente os cargos com estabilidade. Os concursos públicos e a estabilidade são avanços da Constituição Federal de 1988. Os concursos são processos seletivos democráticos, transparentes, comprovam a qualificação e o conhecimento de maneira impessoal (rompendo a prática de indicações, nepotismo, trocas eleitorais, ou seja, com o velho Estado Patrimonialista). A estabilidade busca dar mais liberdade aos concursados para atuarem tecnicamente, sem a necessidade de consentir com todas as práticas de seus superiores.
E já existe a possibilidade de demissão dos servidores, sendo que desde 2003 foram demitidos 7.766 servidores federais, 566 os quais em 2018, por exemplo. Esse número não está distante de outros países (levando em conta a quantidade de servidores), como é o caso do Canadá, em que houve uma média de 130 demissões ao ano entre 2005 e 2015.
Em suma, a PEC 32, ao fragilizar a estabilidade dos servidores públicos, pode transformar os servidores em funcionários do governo de plantão, ao invés de funcionários do Estado Brasileiro, constituindo-se assim num retrocesso em direção ao velho Estado Patrimonialista.
José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB.
Rosângela Bittar: Balé de sombras
Alcolumbre está ocupado em tempo integral na montagem das batalhas pela reeleição
De hoje até o dia D da sucessão das presidências da Câmara e do Senado, serão 110 dias, tempo suficiente para correção de rumos.
Na Câmara, está claro o processo da disputa de duas forças políticas. De um lado, o governo. O deputado Arthur Lira torna-se representante do Palácio do Planalto e, se for eleito, transfere o comando da Câmara ao próprio presidente Jair Bolsonaro.
De outro, a Câmara propriamente dita. A entrega da presidência ao controle preferencial dos deputados, o que representaria a continuidade da liderança de Rodrigo Maia. Depois de aparecerem vários favoritos, o candidato do grupo autonomista à presidência, no momento, é Baleia Rossi, do MDB de São Paulo.
Com as bênçãos do atual presidente e alavancado pelo trabalho de aliciamento do ex-presidente Michel Temer. Que, atuando em causa própria, elegeu-se presidente da Casa em três legislaturas. Temer é reconhecido como o maior especialista nestas negociações típicas da atividade parlamentar.
Já a sucessão da presidência do Senado tornou-se um balé de sombras. O atual presidente, senador Davi Alcolumbre, persegue um desfecho do tipo ilegítimo e ilegal.
Alcolumbre voluntariou-se para reeleger-se. Uma decisão pessoal, cuja razão real ainda não emergiu.
Como se o instituto da reeleição, por si só, já não envolvesse tantas dúvidas e clamores por sua extinção, Alcolumbre acrescentou outras transgressões. A começar pela hipótese de exigir uma decisão judicial para viabilizar seu desejo. O presidente do Senado assumiu tal obstinação e paralisou as atividades da Casa.
No último domingo, 11 de outubro, em reportagem no Estadão, Amanda Pupo listou os itens do “paradão” do Senado. Nas votações suspensas ou adiadas estão urgências, como o novo marco legal do mercado de gás, as regras para regulação dos setores ferroviário e elétrico, sem falar das votações em sessões conjuntas do Congresso. Que não avançam porque dependem da atuação do presidente do Senado, ocupado em tempo integral na montagem das suas mirabolantes batalhas pela reeleição.
O silêncio do Senado conta com a conivência da oposição, dos ex-governadores, dos estreantes, dos antigos e de todos. Indiferentes às ações do presidente da Casa, que só age quando se torna premente usar, através da sua, a mão oculta do governo na definição das pautas.
Na verdade, o Senado sempre teve uma tradição de vida serena, em oposição à trepidante Câmara. Ou seja, cada um, ali, faz o que quer, sem ser incomodado. Paz quebrada, em períodos da história, por independentes bons de briga e de discurso, como foram o senador Pedro Simon, por 30 anos, ou, muito remotamente, o legendário senador Teotônio Vilela. Agora, nem isto.
A imobilidade do Senado é estratégica. Os ex-governadores, experientes em composições esdrúxulas nas bases estaduais, tendem a repetir o descompromisso ao assumir o Senado.
E a oposição não tem oportunidade de se exercitar. Como se vê pelo repertório do seu líder, Randolfe Rodrigues. Que se sobressai muito mais nas votações do Supremo do que no próprio Senado. Mais advogado do que senador. Mais demandante judicial que parlamentar em ação.
E, à falta do Centrão, que inexiste no Senado, o governo caça com Alcolumbre. O Senado resolveu se tornar, de fato, uma Casa secundária. Presta-se pouca atenção ao que lá se passa e, sobretudo, ao que não se passa.
O Congresso, de fato, não se renovou. Câmara e Senado seguem como orquestras paralelas. E o velho maestro arranjador de outros tempos, senador Renan Calheiros, acaba de retornar ao posto para reforçar a pretensão de Davi Alcolumbre, que o destituiu e agora se beneficia de seu apoio e renovado fôlego.
Numa composição esperta, que dá a Bolsonaro tempo livre para abandonar-se à obsessão contagiante: a sua própria campanha da reeleição.
Andrea Jubé: Trio de nomeações turbina passe de Davi
Presidente do Senado concentra nas mãos diversos trunfos para forçar sua reeleição
Os ventos da política sopram a favor do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que tenta reeditar a dobradinha velada de 2019 com o Palácio do Planalto para ser reconduzido a novo mandato à frente da instituição, apesar da encruzilhada constitucional.
Um dispositivo da Constituição Federal veda a reeleição para o mesmo cargo da Mesa Diretora, mas Alcolumbre articula com seus pares uma revisão da norma constitucional mediante a singela alteração do regimento interno.
Enquanto essa articulação ganha corpo, como mostrou o Valor na semana passada, as mudanças no tabuleiro político valorizam o passe do presidente do Senado. A atuação de Davi será essencial ao Palácio nos próximos três meses, quando ele presidirá duas votações estratégicas para o governo na Casa: as indicações do presidente Jair Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal e para o Tribunal de Contas da União.
O número sobe para três, se o indicado para o Supremo for um ministro do Superior Tribunal de Justiça. Na atual conjuntura, após a denúncia do Ministério Público do Rio que transforma em réu o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), junto com Fabrício Queiroz, uma vaga no STJ - colegiado que julgará os recursos dessa ação - torna-se ainda mais estratégica, ou oportuna, do que uma cadeira no Supremo.
Pela proximidade das datas, as atenções voltam-se para o preenchimento da vaga no STF, porque o decano Celso de Mello antecipou a aposentadoria para o próximo dia 13. Dois meses depois, será a vez do presidente do TCU, José Múcio Monteiro, sair de cena.
Um senador influente do Centrão disse à coluna que a indicação do ministro da Controladoria-Geral da União, Wagner Rosário, para a vaga do TCU em dezembro é pule de dez. Egresso da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), com mestrado em combate à corrupção na Espanha, Rosário é próximo de Bolsonaro e dos ministros da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, e da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas.
Por sua vez, cotado para o STF, Jorge Oliveira é o coringa de Bolsonaro, a carta que o presidente usará para não errar a jogada. Se Jorge quiser, vai para o STF. Mas se o “timing” político favorecer outra indicação, aguardará a vaga do ministro Marco Aurélio. Em qualquer situação, será o homem da confiança de Bolsonaro no Supremo.
Mas o “timing” agora favorece a abertura de uma vaga no STJ. Além de ser o foro competente para os recursos da ação contra Flávio Bolsonaro, é a instância responsável por julgar os governadores - e a maioria dos mandatários estaduais é considerada adversária pelo presidente.
É nessa conjuntura tão sensível para o jogo político que Davi Alcolumbre, ganha mais protagonismo. Caberá a ele liderar a articulação para viabilizar, junto à senadora Simone Tebet (MDB-MS), a pauta na Comissão de Constituição e Justiça, e depois no plenário, para que haja quórum e os 41 votos necessários para aprovar o indicado de Bolsonaro para o STF. O mesmo ocorrerá, se depois houver nomeação para o STJ.
Em dezembro, a pouco mais de um mês para a eleição da Mesa, igualmente caberá a Alcolumbre liderar a articulação para viabilizar a pauta na Comissão de Assuntos Econômicos, junto ao senador Omar Aziz (PSD-AM), e depois no plenário, para que haja quórum e os 41 votos necessários para aprovar o indicado para o TCU.
Garantir quórum será um desafio, porque a pandemia continuará intimidando os senadores do grupo de risco, que ainda evitam Brasília. A votação no “drive thru” deverá ser reeditada nesses casos.
Na semana passada, ganhou corpo a articulação pela reeleição de Alcolumbre. O Valor mostrou que ele se reuniu pessoalmente com quase 50 senadores, articulando acordos, divisões de espaços na Mesa e presidência de comissões. Ele tem os apoios de grandes bancadas, como PSD e PP, mas ainda não tem o aval do MDB, maior força da Casa.
Mesmo que reedite o apoio do Planalto e conte com o respaldo de grupos que estavam com Renan Calheiros (MDB-AL) em 2019, Davi terá de resolver o imbróglio constitucional.
O parágrafo 4.º do artigo 57 da Constituição diz que os mandatos dos membros da Mesa Diretora serão de dois anos, “vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.
Para viabilizar pelo menos uma reeleição, Câmara e Senado fizeram interpretações inconstitucionais afirmando que o dirigente poderia ser reconduzido uma vez na eleição entre uma legislatura e outra. Isso consta do Regimento Interno da Câmara e de um parecer da CCJ do Senado de 1998.
O professor José Afonso da Silva, um dos maiores juristas brasileiros, afirma que essa interpretação sobre a reeleição é inconstitucional. “A Constituição quis impedir o exercício continuo do cargo [da Mesa Diretora] por quatro anos”, registrou o constitucionalista.
O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), delegado de carreira, esclarece que a vedação à reeleição é constitucional. Ele afirma que se Alcolumbre reeleger-se baseado em simples alteração do Regimento Interno, o grupo “Muda, Senado” vai propor mandado de segurança contra o ato junto ao STF. “Não dá pra fugir disso”, afirmou. Se o presidente da Corte, Luiz Fux, não pautar a ação do PTB que questiona o fato, a eventual reeleição será questionada adiante.
A ironia de todo esse processo é que a PEC da reeleição (PEC 101/2003), aprovada em comissão especial da Câmara em maio de 2004, que autorizaria expressamente a recondução dos presidentes das Casas para novo mandato, era de autoria do então deputado Benedito de Lira (PP-AL), pai do líder do PP, Arthur Lira (AL), forte candidato à sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Se tivesse sido aprovada, a PEC de Benedito de Lira iria sabotar o projeto político de seu filho, Arthur, que 16 anos depois, teria de disputar a sucessão com Maia.
O Estado de S. Paulo: Alcolumbre não tem respaldo para reeleição, diz nota da consultoria do Senado
Interpretação será usada por adversários para reagir à tentativa do parlamentar de ser reconduzido ao comando do Congresso em fevereiro do próximo ano
Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Uma análise da Consultoria Legislativa do Senado afirma que a reeleição do atual presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), é inconstitucional. A interpretação será usada por adversários para reagir à tentativa do parlamentar de ser reconduzido ao comando do Congresso em fevereiro do próximo ano.
De acordo com a nota, assinada pelo consultor Arlindo Fernandes de Oliveira, é "inequívoco" que a reeleição é proibida dentro da mesma legislatura, ou seja, sem uma nova eleição para renovação dos mandatos no Legislativo federal. O documento não é uma opinião oficial do Senado, mas serve como subsídio para o posicionamento dos parlamentares sobre o tema. A análise foi feita a pedido do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), que faz oposição a Alcolumbre no Senado.
"É conhecido o critério adotado tanto pelo Senado Federal quanto pela Câmara dos Deputados para a eleição de suas mesas, e esse critério, embora tenha comportado mudanças, nos trinta anos de vigência da Constituição de 1988 e do regime democrático que ela instituiu, nunca comportou a reeleição dentro de uma mesma legislatura, após o exercício pleno de um mandato", diz a nota do consultor legislativo.
De acordo com o técnico do Senado, a reeleição do presidente da Casa não encontra respaldo na Constituição nem no regimento interno da Casa. A Carta Magna estabelece que os integrantes das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado serão eleitos para um mandato de dois anos, "vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente". O regimento repete a mesma regra.
Princípios
Além das questões técnicas, a nota da consultoria aponta a renovação no poder como um princípio republicano. O técnico também aponta a necessidade de segurança jurídica nas normas eleitorais para não se alterar a regra no meio do jogo e beneficiar quem está no poder. Mesmo que a Constituição seja alterada para permitir a reeleição, senadores questionam se a mudança poderá valer para 2021 e beneficiar Alcolumbre na disputa.
A nota da consultoria é diferente do posicionamento adotado pelo próprio Senado. Em manifestação enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF) em agosto, a Mesa Diretora da Casa argumentou a legalidade da reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. A Corte julgará uma ação que questiona a possibilidade. Alcolumbre tenta aval do tribunal para emplacar sua candidatura.
O relator da ação no STF é o ministro Gilmar Mendes. Na última segunda-feira, 21, ele esteve em um jantar com Alcolumbre na casa da senadora Kátia Abreu (PP-TO), que articula a reeleição do amapaense no Senado. O banquete, nesse caso, foi servido por interessados no julgamento para aquele que vai julgar o caso.
O entendimento de que a reeleição da cúpula do Congresso é assunto que cabe apenas ao Legislativo ganha força entre diferentes alas do Supremo e mobiliza adversários de Alcolumbre. "O único caminho viável para a reeleição do Davi é mudar a Constituição. A esperança de ver o STF rasgar a constituição me parece irreal", afirmou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). "Se o STF lavar as mãos será a maior desmoralização do STF desde o seu surgimento", disse o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
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Alessandro Vieira: Pedalada jurídica
O desejo de Alcolumbre de se reeleger esbarra na Constituição
O presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre, tem se movimentado para criar condições políticas e jurídicas que lhe permitam disputar novamente o cargo que ocupa há pouco mais de um ano e meio. O desejo de Alcolumbre esbarra, no entanto, num obstáculo intransponível: a Constituição Federal. Em seu art. 57, § 4°, a Carta veda claramente a recondução para a presidência do Senado na mesma legislatura. Também o Regimento Interno da Casa reforça essa proibição, reproduzindo o dispositivo constitucional em seu artigo 59. Esses fatos bastariam para sequer dar margem a tal discussão.
Mas nem a Constituição parece impedir o presidente do Senado de comandar articulações políticas para se manter no poder e buscar amparo em interpretações casuísticas de normas claras e indiscutíveis. Trata-se, sim, de uma inusitada pedalada jurídica, que não pode ser aceita por aqueles que respeitam a lei. Por isso, peticionamos junto ao Supremo Tribunal Federal com o objetivo de assegurar que o Regimento do Senado — assim como o da Câmara — seja interpretado conforme dita a Constituição, no único sentido possível: confirmar a impossibilidade de reeleição para o comando da Casa na mesma legislatura.
Não se trata de qualquer tentativa de atingir pessoalmente os presidentes do Senado ou da Câmara. No entanto, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, a julgar pelo noticiário cotidiano, colocam o interesse pessoal acima do público, ao tentar driblar o Direito e dar elasticidade ao que o legislador constituinte restringiu expressamente. A única forma possível, ainda que totalmente inadequada ao momento, para que pudessem disputar novamente os cargos que ocupam seria por meio da aprovação de uma emenda constitucional. Certamente, um debate descabido em tempos de pandemia, crise econômica, fragilidade institucional e, como se não bastasse, com o Congresso trabalhando remotamente. Há uma extensa agenda de reconstrução do país a ser cumprida. Não podemos nos desviar da rota da urgência.
Não é demais reforçar: uma simples alteração regimental não teria força para desautorizar a Constituição Federal. Tampouco pode-se acreditar que o Supremo Tribunal Federal, com o devido respeito às atribuições da mais alta Corte, poderia conferir ao mero desejo de um político a benesse de uma interpretação diferente daquela inequivocamente expressa na Carta.
O constituinte não gastou palavras em vão. O impedimento diante do qual se deparam hoje Alcolumbre e Maia tem como propósito preservar a alternância de poder, pilar da democracia e princípio que deveria nortear, em especial, as atitudes daqueles que fazem as leis. Os comandantes do Legislativo têm o absoluto controle sobre a pauta, influenciando de forma decisiva os destinos do país e a vida da população. O bom senso e a boa prática política recomendariam compartilhar definições e escolhas tão importantes com um colégio de líderes. Infelizmente, no caso particular do Senado, isso não vem acontecendo. Decisões são tomadas de forma personalista, à revelia do conjunto de senadores que votou na eleição da Mesa do Senado, em 2019, justamente buscando práticas mais democráticas no exercício da presidência da Casa.
Também não cabe o desvario de tentar aplicar por analogia a regra de reeleição referente a cargos do Executivo, pois, como sabe bem qualquer estudante de Direito, o recurso à analogia é viável apenas quando não há regra específica a disciplinar determinada situação, o que não é o caso, pois a norma específica existe e é claríssima. Dito em outras palavras, temos 80 senadores e 512 deputados aptos a disputar a presidência do Senado e da Câmara, e só dois expressamente impedidos. Seus nomes são Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia.
Em uma era de instabilidade política como a que temos vivido, não podemos nos furtar à eterna vigilância. Ela deve começar no Congresso Nacional, sempre com o olhar guiado pela Constituição que juramos todos defender. Essa é uma tarefa diária que não admite dubiedade. A morte da democracia, mostra a História, não acontece apenas em grandes atos de agressão. A erosão desse edifício ocorre também de maneira sutil, sob diversos disfarces. Quando se ignora a lei em nome de projetos pessoais, a ruína é inevitável.
*Alessandro Vieira é senador (Cidadania-SE)
Alon Feuerwerker: Esperteza que engole o dono
O noticiário relata que os presidentes do Senado e da Câmara buscam um atalho para se candidatarem à reeleição, mesmo no meio da legislatura. A Constituição proíbe expressamente isso, mas argumenta-se que o tema é interno às casas legislativas. Assunto interna corporis, a ser resolvido entre os candidatos e seus eleitores (deputados e senadores).
Se o Brasil não tivesse sido transformado, e sempre sob as anunciadas melhores intenções, num paraíso da insegurança e do criacionismo jurídicos, a tese continuísta seria rechaçada sem piedade. Mas aqui a pessoa acorda de manhã sem saber que trecho da Constituição está vigorando, ou se algo foi introduzido durante a noite na Carta “porque é justo”.
Nessas horas é prudente recorrer à sabedoria do Conselheiro Acácio, o personagem de Eça de Queiroz que nos advertiu sobre as consequências virem sempre depois. Se os presidentes das duas Casas do Congresso podem pleitear um novo mandato contra a letra expressa da Carta, argumentando ser "assunto interno" do Legislativo, por que não usar o mesmo critério para o presidente da República e os eleitores dele?
Se alguém pode ter direito a uma reeleição que a Constituição proíbe, bastando para isso que assim o queiram os eleitores envolvidos, por que negar ao ocupante do Palácio do Planalto a possibilidade de se submeter ao julgamento do eleitorado para tentar obter um terceiro mandato? Ou um quarto? Ou um quinto? E por que não a possibilidade da reeleição ilimitada?
Afinal, se o povo não estiver de acordo, que derrote o presidente-candidato.
Seria só a extensão para o conjunto dos eleitores de um direito antes reservado aos membros do colégio eleitoral que escolhe os presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados. Se suas excelências do Congresso Nacional podem outorgar-se essa possibilidade, por que negar ao povo?
Foi aliás o argumento de Evo Morales para driblar a consulta popular que o derrotara e tentar buscar um novo mandato de presidente na Bolívia. O resultado é conhecido. Como se diz, esperteza quando é muita vira bicho e come o dono.
O Brasil não é propriamente um exemplo de apego à letra da lei. O estado de direito por aqui costuma ser, digamos, flexível. Coisa exacerbada nesta era de bonapartismos, quando o pessoal que pede respeito às regras é visto como uma gente chata que abusa do mimimi.
No rumo atual vamos deslizando perigosamente para o predomínio de uma única lei: a do mais forte. Sabe-se hoje que as portas do inferno foram abertas lá atrás com a aprovação da reeleição no Executivo. O que veio depois foi só consequência. Não tem mesmo jeito, sempre acabamos voltando à sabedoria do Conselheiro.
Poderia ser o contrário. Poderíamos aproveitar o momento para dar um basta na reeleição ou pelo menos estabelecer regras mais justas. Por que um governador ou prefeito precisam renunciar ao mandado para poder concorrer contra um presidente que pode lutar pela reeleição confortavelmente sentado na cadeira e com a caneta na mão?
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado originalmente na revista Veja 2.703, de 09 de setembro de 2020