Daciolo
Fernando Gabeira: Meditando com Daciolo
Todos os líderes populares do momento se expressam nessa linguagem direta, cheia de incorreções, mas sem a frieza do texto
Quando vi o Cabo Daciolo subir a montanha, anunciando que iria expulsar a maçonaria e os illuminati do Brasil, cheguei a pensar: é uma campanha singular no planeta, um candidato na cadeia e outro caminhando para o hospício. Teosóficos, cabalísticos, neopagãos e rosacruzes que se cuidem.
Mas é inegável que ele tem uma coerência estratégica: quer entregar o país a Deus. Sua atuação parlamentar confirma, pois tentou alterar o texto da Constituição: todo poder emana de Deus, e não do povo.
Semana passada estava lendo por acaso um livro que falava do poder da transmissão oral . Todos os líderes populares do momento se expressam nessa linguagem direta, cheia de incorreções, mas sem a frieza do texto.
Um jornalista estrangeiro queria minha opinião sobre a campanha, baseada em dois nomes: Bolsonaro e Lula. Minha explicação para o Bolsonaro de hoje é a de que ele tenta encarnar duas grandes correntes: conservadores e liberais. Não era liberal em economia, mas se tornou liberal no caminho, unindo-se a economistas e intelectuais que expressam essa tendência.
Embora tenham pontos de convergência, como o respeito à propriedade privada, há um grande potencial de atrito nesse casamento. Na medida em que a economia avança, tende a se internacionalizar, levando a uma reação nacionalista, como a de Donald Trump.
Os liberais partem do indivíduo; os conservadores, da família. Esses pontos de partida potencialmente também conflitam. E digo isso não com a visão de um teórico, mas de alguém que observa a história dos costumes no Brasil.
Tive a oportunidade de andar nas ruas com o senador Nélson Carneiro. Testemunhei como as pessoas lhe agradeciam pela lei do divórcio. Na época, muitos achavam que seria um golpe mortal na família.
Hoje, creio, até os defensores da família tradicional podem constatar as mudanças na estrutura familiar, em muitos casos mantida apenas pela mulher. O próprio Jair Bolsonaro já se casou algumas vezes. A tensão entre o conservador e o liberal existe na própria vida particular do candidato.
Mas é uma aliança que alguns liberais querem. Um grupo chamado MBL, que aparece em inúmeras polêmicas, também tentou construir essa ponte, quando denunciou uma exposição com um artista nu.
Eles diziam que não condenam a nudez em si, mas uma exposição daquele tipo feita com dinheiro público. Buscaram um argumento republicano para estender a ponte entre as duas tendências, tão sonhada por alguns atores: conservar nos costumes, liberar na economia.
Essas tensões já existem no governo Trump. A tendência ao nacionalismo protetor já começa a assustar setores liberais. E, possivelmente, o comportamento pessoal de Trump, sua linguagem vulgar e aventuras com atrizes pornôs não devem ser um fator de orgulho para conservadores.
No campo da esquerda, vejo tensões de outra natureza. O PT foi obrigado a se radicalizar diante da prisão de Lula.
Se a direita já constitui uma espécie de rumo geral, ainda que contraditório, a esquerda liderada pelo PT se fixou na luta para liberar seu líder e, ao adotar um tom mais radical, parece resignada a perder a disputa pela aprovação da maioria. No meu entender, isso não significa um destino inescapável.
Há um caminho alternativo. Longo e difícil. Passaria, em primeiro lugar, por uma autocrítica da roubalheira que houve durante o governo do PT.
Em segundo lugar, de uma visão mais realista da conjuntura, sobretudo nas relações Estado e mercado. Entre os que querem privatizar tudo ou estatizar tudo, há sempre a possibilidade de discutir racionalmente o tamanho do Estado num momento histórico dado.
Finalmente, no campo cultural, das lutas identitárias, é preciso dialogar com as forças majoritárias, sem a pretensão de conquistá-las para suas ideias, mas sim de achar o momento exato de propor mudanças razoáveis, como Nélson Carneiro.
Finalmente, no campo político, era preciso renegar a afirmação de que os fins justificam os meios. Isto significa aceitar as regras do jogo, trabalhar dentro da lei.
Esse ponto é o mais difícil de ser compreendido no momento. Para salvar Lula, é necessário condenar a Justiça.
Marco Aurélio Nogueira: Como se não houvesse amanhã
Candidatos à Presidência precisam ensaiar mais, ser mais sérios e cuidadosos em todos os fundamentos
Um novo debate eleitoral sempre cria expectativas e esperanças. Fica-se na torcida para que haja um avanço, para que cada candidato mostre finalmente a que veio.
Não foi bem o que ocorreu ontem na RedeTv.
O tom foi um só, basicamente: eles falam como se não houvesse amanhã. Limitam-se a brandir promessas, frases genéricas, pegadinhas e compromissos, como se tudo dependesse deles e nada mais precisasse ser feito a não conseguir que um novo personagem ocupe a cadeira presidencial. São ilusionistas. Atores de uma pantomima típica da vida de exposição que levamos, feita de insights, caras e bocas, frases curtas, minutos controlados, pressa.
Dá para apontar o dedo, seletivamente, para os momentos em que alguém foi além disso, embasando de modo mais “técnico”, político-administrativo, seus planos de governo.
Somente três candidatos se destacaram. Ciro e Alckmin mostraram firmeza, serenidade e conhecimento prático. Marina cresceu ao enquadrar Bolsonaro e ser mais propositiva. Os demais perderam uma boa oportunidade para esclarecer o que estão a fazer ali, que papel estão se propondo a representar.
Bolsonaro tropeçou nas próprias palavras e teve de ver Daciolo pressioná-lo pelos flancos. Álvaro e Meireles, muito pouco à vontade, limitaram-se a repetir slogans e chavões. Boulos, uma caricatura forçada do Lula de bem antes, mostrou ter língua afiada, mas continuou a se perder nas propostas maximalistas e de “ataque frontal”.
São políticos antipolíticos, que recusam a política realmente existente como se lhes fosse possível eliminá-la por decreto. Políticos que não falam de alianças e negociações, a não ser para demonizá-las ou justificá-las envergonhadamente. Que não se dedicam a falar do “como”, das concessões inevitáveis, dos “sacrifícios” que precisarão pedir ao povo. Derramam-se em elogios ao “novo” sem se darem ao trabalho de qualificá-lo.
Sempre haverá quem faça um desconto e diga que, num palco de TV, rola um show e nele o comportamento é fictício: estão a jogar para a plateia, obedecendo a roteiros traçados por assessores e especialistas em marketing eleitoral, onde o que menos importa é o conteúdo, já que o fundamental é produzir efeito e fumaça com uma performance calculadamente eficiente.
É verdade. Mas deve-se considerar também que existem dramas e dramas, roteiros melhores e piores, bons e maus desempenhos cênicos. Candidatos à Presidência precisariam, no mínimo, ensaiar mais e ser mais cuidadosos em todos os fundamentos. Não podem ser artistas, nem mesmo quando estão no palco.
Afinal, estão se dispondo a fazer girar a roda da História, a interferir na nossa vida, a direcionar um País que assiste ao show com várias pulgas atrás da orelha.