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Revista Política Democrática || Lilia Lustosa: Coringa — o grito liberado

Minha curiosidade em ver Coringa foi mais forte que minha bronca. Me rendi e digo: valeu cada segundo. Filme é duro de ver, não pelo excesso de violência física, mas pelo excesso de realidade impresso na tela, avalia Lilia Lustosa

 Logo que soube que ia sair o Coringa, pensei: mais um blockbuster de heróis! No caso, de anti-herói. Superprodução, efeitos especiais, muito barulho, cortes rápidos, muita ação, pouco tempo para se analisar qualquer coisa, puro cinema de entretenimento. E logo imaginei que isso fosse uma reação da DC Films, que anda perdendo terreno para a Marvel Studios nos últimos anos, com seus Avengers e Panteras Negras da vida.

Confesso que não estava muito animada para vê-lo, até que soube da repercussão que o filme estava tendo nos Estados Unidos, onde chegou mesmo a ser entendido como uma mensagem subliminar contra o governo Trump. E, ainda, do texto que Michael Moore publicou defendendo o filme e ressaltando o valor de sua mensagem em tempos atuais, época sombria, em que tantos medos povoam nossos pensamentos.

Me rendi então à famosa peer pressure e fui assistir ao Coringa, mesmo ciente de que estava em pleno período de “invasão blockbuster”. Ou seja, um único filme hollywoodiano ocupando praticamente todas as salas de cinema da cidade, deixando os piores horários para produções locais ou estrangeiras menores. Mas minha curiosidade foi mais forte que minha bronca. Me rendi e digo: valeu cada segundo!

O filme de Todd Phillips é um filmaço, daqueles que você sai e fica por horas discutindo, refletindo. Um filme, sem dúvida, duro de ver, não pelo excesso de violência física, mas pelo excesso de realidade impresso na tela. Excesso de verdade atirada na nossa cara. Excesso quase insuportável quando entendemos que nós, que estamos ali sentados confortavelmente naquela sala de cinema, somos a elite ali representada. Aquela elite que ataca, que chuta, que discrimina e que, acima de tudo, ignora o que está acontecendo. Elite que desvia o olhar ao passar ao lado de um mendigo dormindo na rua, que fecha rapidamente o vidro do carro quando vê chegar aquele velhinho ou deficiente físico para pedir dinheiro outra vez. Mea culpa.

Obviamente, Coringa é uma grande alegoria de nossa sociedade e, por isso mesmo, se permite trabalhar com excessos e metáforas. E isso assusta! Mas são justamente essas extrapolações ou caricaturas de nós mesmos que nos fazem entender aquela tela como um espelho do que estamos nos tornando ou, quem sabe até, do que já somos.

Ao acompanharmos o passo a passo da construção do “monstro” em que vai se convertendo Arthur Fleck (magistralmente interpretado por Joaquin Phoenix), enxergamos muitos conhecidos nossos, quer seja na pele do próprio Arthur, quer seja na pele dos que estão em seu entorno, ajudando a construir a “criatura”. Enxergamos, no início, um homem com um sonho: vencer na vida como comediante. Uma pessoa que, apesar das adversidades sociais (pobreza) e psicológicas (doença mental em que não controla o riso), tenta alcançar licitamente seu sonho. Vemos, então, ao longo do filme, vários gestos de bondade (como o cuidado com a mãe velha e doente) e até mesmo de ingenuidade, transmitidos por aquele corpo frágil que não se faz compreender nem pela assistente social que deveria ajudá-lo. No entanto, o descaso e a ignorância dos que detêm o poder (políticos, empresários, imprensa, artistas, assistentes sociais, “meninos de Wall Street” etc.) vão minando a conta-gotas a bondade que resta naquele corpo solitário e sofrido.

Não à toa, o Coringa de Phillips é cheio de referências implícitas e explícitas ao grande Charles Chaplin, que sabia tão bem dosar o riso e a dor. Quem melhor, na história do cinema, soube e teve coragem de levar às telas comédias de aparência ingênua e que eram, na verdade, grandes críticas à sociedade moderna?

Não, definitivamente Coringa não é uma apologia à violência, como muitos clamam por aí. Ao contrário. O triunfo do Coringa, aplaudido em seu ato final, não é pelos assassinatos que cometeu, muito menos pelo monstro em que se transformou. Sua grande vitória – e por isso as palmas –, é ter-se feito ouvir e, assim, ter liberado o grito de milhões de “palhaços” que vivem na penumbra, escondidos atrás de máscaras que lhes roubam a identidade. É de ter dado voz aos “invisíveis”. É de ter despertado uma camada da sociedade que vinha aguentando as pequenas violências do dia a dia sem nada fazer.

O filme de Todd Phillips me fez pensar na tela O Grito, de Edvard Munch. É isso: Coringa é a liberação daquele grito sufocado, que tenta escapar de dentro de um ser deformado pela sociedade, de uma figura contorcida de dor e sofrimento. É a materialização daquele grito, do pedido de socorro de nossa gente!