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Luiz Carlos Azedo: A pedra cantada

Barroso propôs o fim do foro privilegiado porque a atual regra leva muitos processos à prescrição (extinção da pena), em razão da demora no julgamento

Já era esperado o pedido de vista do ministro Dias Toffoli para estudar o processo e, com isso, paralisar o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o alcance do foro privilegiado em crimes cometidos por deputados e senadores. A presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, até fez a proclamação provisória do resultado: 8 dos 11 ministros votaram pela restrição do foro privilegiado de parlamentares federais — 7 acompanharam o relator e um, Alexandre de Moraes, divergiu em relação ao alcance da restrição). Mas ainda faltam os votos de Toffoli, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, que teoricamente ainda podem convencer os demais a mudar de ideia. O julgamento não foi concluído e pode ficar para as calendas gregas. Se tivesse acabado, a maioria dos políticos enrolados na Operação Lava-Jato seria julgada pelo juiz federal Sérgio Moro, em Curitiba.

Doze homens e uma sentença, um clássico norte-americano produzido por Sidney Lumet e dirigido e escrito por Reginald Rose, ilustra bem as razões de as coisas funcionarem assim nos tribunais. Lançado em 1957, o filme tem como atores principais Henry Fonda, Jee L. Cobb, Jack Warden e Martin Balsam. Doze homens julgam um garoto acusado de matar próprio pai com uma faca. O juiz orienta os jurados a ter cautela na decisão, pois trata-se da vida de um jovem que está nas mãos deles. Pede que decidam por unanimidade. Existem testemunhas e provas, que supostamente comprovam a culpa do garoto acusado, porém, ainda deixam uma grande margem de dúvidas.

Parte dos jurados toma por base o senso comum dos fatos: se a diz mulher que viu o garoto cometer o crime, então o garoto de fato é culpado; se o garoto é pobre e vive no meio de bandidos, também é um bandido etc. Os doze jurados seguiram o procedimento padrão, quando fizeram uma votação preliminar, antes mesmo de discutir quaisquer aspectos, apenas para conhecer o entendimento prévio de cada um e, somados, de todos eles, no seu conjunto. Um dos juradores, porém, revela que não tinha certeza da inocência do réu; mas que também não estava convicto quanto a sua culpa, pelo assassinato do seu próprio pai.

Coincidentemente, o oitavo jurado do filme, como Alexandre de Moraes, diverge da maioria. Há resistência de quase todos os outros 11 jurados, mas rapidamente, um a um, começam a se sentir inseguros quanto ao seu posicionamento inicial. A cada rodada de votação, ao mesmo tempo em que ia sendo ampliada a contagem dos votos de “inocente”, cada um dos jurados a enxerga de forma diferente o mesmo fato, o mesmo dado, a mesma prova. O veredicto passa a ser lentamente transformado de culpado a inocente. O filme é um libelo em defesa da chamada “presunção de inocência”.

Prescrição

Antes que imaginem que estou defendendo a manutenção do foro privilegiado para os políticos que cometeram crimes comum, registro: estou apenas explicando a razão de um tribunal não concluir o julgamento enquanto o último magistrado presente não se manifestar. Teoricamente, ele pode mudar o entendimento da Corte. Isso faz parte do “devido processo legal”, das prerrogativas dos jurados e dos direitos e garantias dos réus. Se a regra é usada para uma manobra política ou “chicana”, não importa, a criança não pode ser jogada fora com a água da bacia. O julgamento de ontem começou em maio, em razão de uma ação penal contra o prefeito de Cabo Frio (RJ), Marquinhos Mendes (PMDB), devido à suposta compra de votos em campanha eleitoral no município. Tramitou por diversas instâncias desde 2008, uma vez que o político mudou de cargo e, consequentemente, de foro. Hoje, é deputado federal e integra a bancada do PMDB.

No Supremo, há duas propostas em votação; a do ministro Luís Roberto Barroso já conta com seis votos, deixa no Supremo somente os processos sobre delitos cometidos durante o mandato e necessariamente relacionados ao cargo. Com isso, sairiam do STF e iriam para a primeira instância acusações contra parlamentares por crimes como homicídio, violência doméstica e estupro, por exemplo, desde que não ligados ao cargo. Alexandre de Moraes, voto vencido até agora, deixa no Supremo todas as ações sobre crimes cometidos durante o mandato, mesmo aqueles não ligados ao exercício da função de parlamentar. Votaram com Barroso os ministros Marco Aurélio Mello, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Luiz Fux e Celso de Mello.

Barroso propôs o fim do foro privilegiado porque a atual regra leva muitos processos à prescrição (extinção da pena), em razão da demora no julgamento, porque cada vez que um político muda de cargo, o processo migra de tribunal, atrasando a conclusão. Toffoli argumentou que o Congresso também discute outras formas de restringir o foro privilegiado. A proposta em tramitação na Câmara, por exemplo, restringe o foro privilegiado às autoridades máximas do país: os presidentes da República, da Câmara, do Senado e do próprio STF. Pretende esperar o Congresso decidir.


Ivan Alves Filho: Um século russo

O século XX – um século breve, conforme a definição do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm – começou e acabou na Rússia. Teve início em 1917, quando os revolucionários bolcheviques liderados por Vladimir Illitch Lênin tomaram de assalto o Palácio de Inverno, num sete de novembro, em São Petersburgo. E terminou com o fim da experiência soviética – iniciada em 1921 -, com a queda de Mikhail Gorbachev, o último secretário geral do Partido Comunista, em 1991.

Muito já se escreveu a propósito do desmoronamento do socialismo realmente existente. O sistema teria sido minado por seus próprios desvios burocráticos. Ou sucumbido à poderosa propaganda ideológica do inimigo capitalista. Ou, ainda, desdenhado a questão da democracia política. Para outros, a corrida armamentista deslanchada pelo campo ocidental, sobretudo pelos norte-americanos, enfraqueceria de maneira irreversível as economias socialistas, (historicamente debilitadas, se comparadas com o desenvolvimento das potências capitalistas, com o ponto de partida delas). Tudo isso é verdade. Mas existe um outro aspecto nunca lembrado nessa questão do desmoronamento da União Soviética: o país não soube – ou não pôde – se dotar de uma base material que possibilitasse sustentar no topo relações de produção de novo tipo, livres de qualquer exploração do homem pelo homem, conforme estabelecia o ideário marxista. E sem uma base material nova, não existe modo de produção historicamente novo. É o que a marcha da História nos ensina.

O fato é que a antiga URSS fez uma revolução política mas herdou a base material por excelência do sistema capitalista – a unidade fabril. E não criou nada no lugar dela. E o mais dramático ainda estaria por vir: a base material da sociedade sem classes – representada pela revolução técnico-científica em curso no mundo há pelo menos três décadas, com base na automação – surgiria primeiro no Ocidente capitalista. A base técnica dessa sociedade, bem entendido – e não a sua base social e política. É como se a Revolução Russa de 1917 tivesse colocado a política na frente da economia (ou das forças produtivas, mais concretamente) e o Ocidente tivesse feito justamente o contrário disso.

Seja como for, a União Soviética não somente deixaria de modificar essa base material (o capitalismo, diga-se de passagem, mudou a base do feudalismo, o que possibilitou explodir de fato com as relações servis de produção, reforçando assim o próprio capitalismo) como também manteria as relações assalariadas de produção já presentes no capitalismo. E o que é ainda mais sintomático, o capital permaneceria intocado também no interior do socialismo real. A pergunta parecia ser: o que fazer com ele?

O que o socialismo real modificaria estruturalmente, então? Na verdade, apenas o estatuto formal dos meios de produção, doravante sob o controle do Estado, não necessariamente socializado. É preciso reconhecer isso. Não é demérito. É que não havia condições de se caminhar mais longe do que isso, dada as condições da sua implantação. No fundo, os bolcheviques contavam com o pipocar da revolução na Alemanha, área mais avançada, para viabilizar de fato a Revolução Russa. Tanto que o idioma oficial da III Internacional, criada em 1919, era o alemão.

Problemas fundamentais que têm que ver com o caráter da gestão, tão ou mais importantes até do que o próprio estatuto da propriedade, foram praticamente postos de lado. Afinal, se apropriar dos meios de produção é inseparável de se apropriar dos meios de gestão – ou deveria ser. Pior ainda: a ideia de socialismo se restringia à esfera econômica, mais concretamente às nacionalizações operadas no âmbito da indústria. Vale destacar ainda que o próprio Karl Marx evitava se referir ao termo socialismo: para o filósofo e ativista alemão o que havia, na realidade, eram duas fases do comunismo, uma inferior e outra superior. Está na Crítica do Programa de Gotha.

E a relação com a propriedade assim como a relação de exploração do trabalho não eram as únicas apontadas por ele como responsáveis pela alienação do homem. Ou seja, a coisificação crescente do ser humano e a opressão exercida pelo Estado sobre ele foram ignoradas pelo socialismo realmente existente. Vale dizer, são muitas as áreas da experiência humana que mereceram a atenção de Marx, e não apenas a opressão econômica. Contudo, acabou prevalecendo a redução da “etapa inferior” do comunismo à simples organização de um sistema econômico com base nas empresas estatais. Deu no que deu.

Na seara política, prevaleceria um absolutismo próximo daquele vigente na Europa do Oeste durante o século XIX. Absolutismo esse que deitava raízes no velho czarismo, é bem verdade – mas que o fechamento da Assembleia Constituinte pelos bolcheviques só agravaria. Na realidade, os líderes políticos russos viraram as costas a algumas das mais caras práticas democráticas presentes desde o final do século XIX no movimento socialista e operário europeu, como os direitos de greve, de reunião e de voto. Ora, se essas conquistas foram obtidas sob o capitalismo, mais uma razão para que fossem mantidas por aqueles revolucionários. Questão complexa esta da democracia.

O fato é que a Revolução Russa teve dificuldades em assimilar o que a civilização humana havia produzido de melhor, até então. E a democracia é justamente isso: um conjunto de valores civilizatórios, em que despontam conquistas como o habeas corpus, que data do Império Romano. A tradição autoritária russa – uma área de frágil presença da sociedade civil, frequentemente engolida pelo Estado, em prática nitidamente “oriental” – acabou falando mais alto.

A extraordinária contribuição da União Soviética à luta contra o nazismo não seria, infelizmente, assimilada internamente no sentido de uma abertura política. Mesmo assim, os comunistas ajudaram a consolidar a democracia no Ocidente, participando de governos de União Nacional, como na França e na Itália, e estimulando políticas de frentes populares. Propuseram a importantíssima política de coexistência pacífica entre regimes sociais diferentes. E o papel dos comunistas nas lutas pela descolonização também foi digno de nota, com destaque para seu apoio inabalável ao povo do Vietnam. Os comunistas da III Internacional – é preciso dizer – também fizeram sua parte na luta contra a barbárie. Lamentavelmente, por momentos também mergulharam nela, como no período stalinista.

No fundo, a grande diferença entre a proposta comunista e a capitalista é de natureza antropológica. Ou seja, reside na batalha pela desalienação do homem em todos os planos da sua existência, do econômico ao modo de vida. Uma batalha pela superação daquilo que Marx denominava por “pré-história” do homem. Não basta mudar a sociedade; é preciso também mudar a própria civilização. A rigor, a Revolução Russa ficará para a História como uma espécie de ala esquerda da sociedade industrial.

A História ensina que, com todas as limitações de uma primeira experiência revolucionária, a luta pela preservação da Revolução e a montagem de um Capitalismo de Estado – a definição é do próprio Lênin, em seus escritos sobre o caráter da Rússia pós-1917, mais exatamente em seus artigos econômicos – liberaria uma energia extraordinária, como que represada por longos anos na velha Rússia dos czares. É que havia a esperança de uma mudança radical no modo de vida. E, em vários setores do conhecimento e da prática humanas, essa esperança se concretizou. E isso também é inegável, é preciso que se reconheça. Da servidão à industrialização: a Rússia, em pouquíssimas décadas, passou de um país de servos a um país onde os proletários almejavam, pela primeira vez na História, chegar ao poder. Tudo isso não é pouco mesmo.

Os artistas e a arte russa e soviética materializariam esse início de mudança – para melhor, imagino – das fontes da vida no chamado socialismo real. É o que a própria realidade objetiva nos diz. Vejamos a coisa de perto. O cinema documental, com Dziga Vertov à frente, nasceu durante o processo revolucionário russo. Seu belíssimo “Três cânticos para Lênin” até hoje emociona as plateias do mundo inteiro, pela força de suas imagens, até por uma certa aspereza que delas emana. Fascinante, realmente. Serguei Eisenstein, pelo lado do cinema ficcional, dirigiu e montou verdadeiras obras-primas, como “Outubro”, “Ivan, o Terrível” e “Que viva México!” (este último inacabado. Os soviéticos chegaram então a sondar Glauber Rocha para terminar o filme.). Como esquecer um criador como Eisenstein, se ele já pertence ao patrimônio cultural da humanidade?

Se caminharmos para o lado das artes plásticas, impossível deixar de mencionar os nomes dos criadores russos Marc Chagall (que chegou a ser comissário do povo ou ministro no novo governo da Revolução), Malevitch e Kandinsky, verdadeiros ícones da modernidade, compreendendo aí os experimentos com as linguagens abstratas na pintura.

E a história se repete na poesia, na dramaturgia e na novelística, onde despontam nomes como Maiacovski, Essenin, Bloch, Meierhold e Máximo Gorki, todos de primeiríssima linha. A influência desses artistas e escritores extrapolou a própria cultura russa, encantando o conjunto da cultura ocidental.

O que dizer ainda? No terreno das práticas educacionais, não podemos esquecer tampouco o nome de Makarenko. O pensamento revolucionário russo não ficaria atrás: teóricos como Lênin, Bukharin, Lunacharski e Trotsky enriqueceriam a compreensão dos fatos políticos no século XX. E é preciso reconhecer que o próprio Josef Stalin, em que pese seus erros e crimes brutais, foi autor de um estudo dos mais rigorosos sobre a questão da nacionalidade. Difícil encontrar um país como a Rússia, decididamente.

Revolução, pelo visto, também é cultura. Esta, talvez, uma das heranças mais memoráveis de 1917 – talvez até a principal delas. E essa memória aquece os nossos corações, irremediavelmente esperançosos, apesar das vicissitudes da História recente.

Na velha Rússia, e também fora dela.

* Ivan Alves Filho é jornalista, historiador, autor de mais de uma dezena de importantes livros, o último dos quais é O Homem e o Tapeceiro, editado pela Fundação Astrojildo Pereira

 


Cacá Diegues: Mudar as regras do jogo 

Tenho torcido para que as eleições de outubro de 2018, daqui a menos de um ano, representem uma refundação do país, com novas ideias, políticas e pessoas públicas, com novos projetos capazes de reinaugurar o Brasil. Mas, pelo jeito, está difícil. Ainda não vi um só movimento nessa direção.

Do ponto de vista dos atores do drama, ainda não ouvimos falar de um só nome que não esteja comprometido, de algum modo, com o passado perverso da vida pública nacional. Ninguém representa alguma coisa que já não esteve ou ainda está instalada nos palácios de Brasília. Até agora, ninguém teve coragem de dizer que não quer nada disso que está aí, seja do governo ou da oposição.

Aquilo que se considera de direita, que sempre foi raivosa e sem charme, se organiza defendendo uma economia liberal, sob controle de política autoritária. A esquerda, cada vez menos charmosa e mais raivosa, defende uma economia sob o controle do Estado, com uma política liberal para os museus de todo o país. E tome porrada de um lado e de outro, sem um minuto sequer de reflexão sobre o que está se tornando o mundo de hoje.

Não são os políticos que são corruptos e não prestam por sua própria natureza. Talvez seja a política que já é tudo isso em si mesma. Talvez seja o jeito dela de se organizar, o modo único que a faz funcionar entre nós, a necessidade maldita sem a qual ela não pode existir. O que talvez precisemos mudar é justamente esse caráter necessariamente perverso da política, reorganizar o sistema de representação popular de outro jeito, sem deixar ao alcance de seus agentes o que os faz bandidos, eliminando o que os tenta, seja isso recursos materiais ou poder excessivo.

Em alguns países do mundo, o controle dos políticos pelas sociedades locais tem sido muito mais eficiente. Primeiro, porque esses países vivem essa experiência de representação há mais tempo, estão mais calejados. Depois, porque as estruturas institucionais desses países, sendo mais antigas e treinadas, são bem mais sólidas e rigorosas que as nossas. Mesmo assim, vimos o que aconteceu na Itália no fim do século passado, durante a Lava-Jato deles; ou na França, com a queda de quatro ministros recém-nomeados, logo depois da eleição de Macron.

O político canalha é um fenômeno universal que só alcança tanto destaque no Brasil porque aqui a vigilância é insuficiente e nada competente. As sociedades não podem ser a polícia permanente de seus representantes no Estado. É preciso que elas confiem neles de verdade, que tenham com eles uma real sensação de correta representação, sem servir-se de vantagens indevidas.

O mais importante, o primordial, é mudar a estrutura da política, mudar as regras do jogo, inventar um novo jogo. A forma que conhecemos de representação popular não passa (com poucas exceções individuais) de uma “representação”, no sentido teatral da expressão. Precisamos tratar da representação democrática (a única que vale a pena) no mundo contemporâneo, através das novas tecnologias, dos novos modos de manifestação da população, das estratégias de definição ideológica praticadas hoje.

Mas sei que aí já é querer demais da grande maioria de nossos pobres congressistas que ainda vivem no século XIX. À direita ou à esquerda.

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Esta semana, será votada a renovação da Lei do Audiovisual, cuja vigência estaria se encerrando no final de 2017. Essa lei, promulgada em 1993 durante o governo Itamar Franco, se renovou e progrediu desde então, graças às contribuições dos governos seguintes de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. De um modo ou de outro, todos esses governos reconheceram a importância da lei e colaboraram com seu fortalecimento.

Nesses 24 anos de existência, a Lei do Audiovisual produziu uma história moderna e fluente do cinema brasileiro, que deixou de existir apenas em curtos ciclos de vida, como antes dela. Graças a essa lei, o Brasil produziu, no ano passado, 143 filmes de longa metragem, um número nunca antes alcançado por nós ou por qualquer outro país latino-americano. Em 2017, a previsão é de uma produção de cerca de 160 filmes de todos os gêneros, regiões e gerações.

O cinema brasileiro vem produzindo filmes de sucesso comercial, como “Os dez mandamentos”, “Tropa de elite” ou “Minha mãe é uma peça”, entre muitos outros; assim como filmes cujo valor artístico é reconhecido inclusive internacionalmente, como “Central do Brasil”, “Cidade de Deus” ou “Aquarius”, entre muitos outros. São filmes que fazem de nosso cinema uma cinematografia diversa.

A irracional criminalização da cultura a que assistimos hoje, produto de um pensamento político inimigo da liberdade de expressão, tem combatido o mecanismo criado pela Lei do Audiovisual e outras (como a Rouanet), por excessivas. Mas o incentivo fiscal à cultura (e não só ao cinema) representa muito menos do que 1% do total dos incentivos concedidos pelo Estado brasileiro a outras atividades econômicas. Está barato para fazer o país se divertir e pensar, que é o que o cinema melhor faz.

* Cacá Diegues é cineasta

 


Gaudêncio Torquato: Cultura punitiva se alastra  

A cultura punitiva ganha corpo no país sob um pesado clima de denúncias, intenso bombardeio midiático, elevação de juízes e procuradores ao pódio de “salvadores da Pátria”, invasão de quadros que administram a justiça no campo dos encarregados de fazer as leis e, para coroar, uma paisagem de violência que se descortina nos centros e nas margens do território.

Os perversos efeitos dessa radiografia se fazem ver na quase nula credibilidade da esfera representativa, com visível extensão às instituições políticas, no desprestígio de governantes das três esferas federativas, e consequente desequilíbrio dos eixos de sustentação dos Três Poderes.

A ideia de que chegou o momento de colocar meio mundo na prisão – como forma de resgatar a base moral da política - se fortaleceu com a expansão da delação.

De instrumento excepcional, a ser usado de maneira pontual e voltado para desmontar redes de criminalidade, a delação tornou-se banal, negociada aqui, ali e alhures, adotada de maneira quase indiscriminada, abarcando um sem número de figurantes, cujo interesse em se livrar de elevadas penas acaba obrigando-os a “arrumar” provas e, por dificuldade de consegui-las, a esticar uma expressão acusativa que imprime o tom das mídias.

Todos os dias, telespectadores se deparam com o verbo farto de delatores e áudios de gravações, muitas realizadas com o prévio fim de criminalizar A, B e C.

Delatores, participantes de teias de corrupção acabam indo para suas casas na companhia de uma tornozeleira eletrônica, reduzindo de maneira drástica o tamanho de sua penalidade.

Os delatados são presos ou aguardam a decisão da Justiça. A partir daí, criam-se dribles e jogadas para “administrar” as malhas de corrupção descobertas.

O jogo obedece a essas regras: primeiro, colhem-se as denúncias; segundo, os fios dos rolos da corrupção são desfiados e, pela tuba de ressonância da mídia, particularmente a televisiva, chegam aos mais distantes rincões; com a repetição diária, as mensagens ganham ares de verdade junto à opinião pública.

Novas emoções ocorrem com áudios bombásticos. Forma-se uma divisão entre céu, inferno e limbo.

O céu abriga os mocinhos; no inferno, queimam-se os bandidos; e no limbo, jogam-se aqueles que ficam à espera de salvação ou condenação.

Profissionais de investigação, buscas e apreensões se juntam a figuras do judiciário e são entronizados na galeria dos “heróis”; na outra banda, estão os bandidos, quase sempre reunindo políticos, empresários e burocratas.

Bombeiro mediático
As mídias massivas (rádios, TVs e meios impressos) são reforçadas pelas mídias especializadas (TVs do Judiciário e das casas congressuais). Não há figura que resista a bombardeio tão intenso. Nesse momento, outro fenômeno baliza comportamentos de atores da banda do Bem: o narcisismo.

No Estado-Espetáculo, protagonistas da política, do mundo do Direito e da Justiça, a par das classes artísticas, são atraídos pelo brilho e pelas luzes das mídias. Esforçam-se para aparecer. Intencionam transmitir a imagem de zeladores do Bem, administradores da Ordem, feitores da Justiça, salvadores da Pátria, perfis da Honra e da Dignidade.

Com tais vestimentas, ganharão o respeito e a admiração de grupos sociais. Visibilidade positiva é para eles o foguete de propulsão para subir aos céus da glória. Assim, meios impressos e eletrônicos equivalem ao espelho em que Narciso contempla sua beleza.

A política desce ao mais profundo poço da execração pública. Seus participantes não serão respeitados nem em festas religiosas, como a missa da padroeira, na Catedral de Aparecida do Norte, onde os poucos políticos que ali compareceram foram apupados. Dessa forma, as instituições políticas acabam recebendo respingos de lama e o desprezo com que imensas parcelas da população tratam a representação parlamentar.

Não há, inclusive, preocupação de separar o joio do trigo, a semente sadia da semente podre.

Situações embaraçosas se sucedem. Embalados no celofane da opinião pública, os magistrados da Alta Corte são levados a adentrar o terreno dos legisladores, interpretando a Lei Maior em aspectos que, segundo se constata, não lhes dizem respeito. (Pergunta recorrente: se o STF pode afastar um parlamentar, em tese poderá afastar 513 deputados e 81 senadores).

Com a decisão sobre Medidas Cautelares, na última quarta-feira, constata-se que metade do Supremo pensa assim. Aliás, nos últimos tempos a Corte Maior tem mais parecido uma instância criminal. A modelagem de equilíbrio (pesos e contrapesos) entre os Poderes, arquitetada pelo barão de Montesquieu, fenece.

Nova tríade
Uma nova Tríade do Poder se forma no país, formada pelo Ministério Público, Judiciário e Imprensa. Em relação à imprensa, a observação que se faz é sobre o processo de apuração de casos que chegam às redações. Manchetes retumbantes abrem o noticiário, com imenso peso dado ao lado acusatório e diminuto espaço à banda acusada.

Que aparece no espaço de poucas palavras negando os fatos. O argumento de que a imprensa tem de noticiar o que lhe chega às mãos não se sustenta sob o ideário da livre expressão com responsabilidade. A mídia precisa apurar todos os detalhes de uma denúncia, checar fontes, analisar e avaliar visões múltiplas e evitar a espetacularização dos acontecimentos.

O fato é que, sem apuração acurada, a imprensa acaba “condenando”, antes da Justiça, uns e outros. Eventual correção que se faz, por meio de duas ou três frases, não tem o peso de uma manchete bombástica e negativa.

O elemento final da equação que explica a extensão da cultura punitiva no país é a insegurança pública. A violência tem se expandido em dimensão geométrica, enquanto o aparato policial não cresce. Na maior metrópole do país, São Paulo, a criminalidade ganha índices aterradores. No Rio de Janeiro, idem. Nas capitais do Nordeste, os assaltos se multiplicam.

Nota de pé de página: e ainda há demagogos usando programa eleitoral para conclamar o eleitorado a votar no PT, a Salvação da Nação.

* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP, consultor político e de comunicação

 

 


Luiz Carlos Azedo: A pinguela de ouro

No futuro, historiadores e cientistas políticos terão que explicar a submissão dos nossos reformadores progressistas à velha cultura ibérica, na qual entrincheiraram suas próprias ideias

É do ex-senador Marco Maciel uma das ironias mais finas do nosso folclore político recente: “O problema é que as consequências vêm depois”. É sob medida para a reforma política recém-aprovada pelo Congresso, que terá grande impacto no nosso sistema político e partidário. Por quê? Primeiro, porque cria condições muito favoráveis para que os caciques políticos e partidos enrolados na Operação Lava-Jato sobrevivam a eventual tsunami eleitoral em 2018, tamanha a “disparidade de armas” que terão a seu favor, em termos de financiamento de campanha e tempo de propaganda de tevê e rádio. Segundo, porque possibilita que esses partidos — principalmente o PMDB — canibalizem os demais, salvando os deputados eleitos das legendas barradas no baile.

O surgimento de uma alternativa renovadora dos costumes políticos e reformista da economia no centro democrático se tornou muito mais difícil, embora não seja uma engenharia impossível, à margem do atual sistema de poder. Na verdade, o aperfeiçoamento da democracia brasileira, que alguns consideram ameaçada por uma “ditadura do Judiciário” ou sob tutela militar, está sendo bloqueado, apesar do clamor por mais ética na política. No futuro, historiadores e cientistas políticos terão que explicar a submissão dos nossos reformadores progressistas à velha cultura ibérica, na qual entrincheiraram suas próprias ideias, em razão da experiência vivida de resistência pacífica à ditadura. Percebem o impacto causado pela globalização e pela revolução tecnológica, mas não conseguem traduzi-lo em novas práticas políticas.

Enquanto isso, o velho patriarcado descrito por Gilberto Freyre, em Casa grande & senzala, está vivíssimo. O jovem ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, que nesta semana revelou o desejo de privatizar a Petrobras, por exemplo, é herdeiro direto do capitão português Valério Coelho Rodrigues, pioneiro do sertão pernambucano que obteve uma grande fazenda da Casa da Torre por volta de 1745, na região dos atuais municípios de Afrânio, Dormentes, Petrolina, Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista.

O relator da denúncia contra o presidente Michel Temer na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara é Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), deputado federal desde 1979. Descendente por parte de pai do patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, começou a carreira como oficial de gabinete no Ministério da Agricultura do governo Dutra. Passou por vários partidos (UDN, Arena, PSD, PTB) antes de se filiar ao PSDB. Na linha de frente da tropa de choque do Palácio do Planalto, mantém ainda hoje o protagonismo da mais tradicional família de políticos mineiros.

Conciliação
Se o patrimonialismo é uma das faces do nosso iberismo, a outra é a velha “política de conciliação” que uniu liberais (“luzias”) e conservadores (“saquaremas”) no Império, a partir do gabinete de Marques do Paraná (1853), o mineiro Honório Hermeto Carneiro Leão. Seu objetivo era conciliar as ações políticas dos dois partidos do Império, o Conservador e o Liberal, em torno de interesses comuns; no caso, a manutenção da escravidão, que somente foi abolida em 1888. Para o notável historiador Capistrano de Abreu, a política de conciliação era um “termo honesto e decente para qualificar a prostituição política de uma época.”

Mas essa não era a ilustre opinião de Joaquim Nabuco. Conservador e monarquista, o político e diplomata pernambucano escreveu duas obras monumentais: O abolicionismo (1883), fruto de suas pesquisas no British Museum, de Londres, cuja famosa biblioteca também era frequentada por Karl Marx (autor de O capital), e os três volumes de Um estadista no Império (1897-1899), dedicada ao seu pai, o conselheiro Nabuco de Araújo, autor de um dos mais célebres discursos da história do Senado: “A ponte de ouro”, no qual se coloca em oposição aos liberais na província de Pernambuco, mas aceita participar do gabinete de maioria liberal de Paraná por lealdade ao imperador Dom Pedro II.

Em suas memórias, o abolicionista Nabuco justifica assim seu apoio à monarquia e à “política de conciliação”: “O reformador em geral detém-se diante do obstáculo; dá longas voltas para não atropelar nenhum direito; respeita, como relíquias do passado, tudo que não é indispensável alterar; inspira-se na ideia de identidade, de permanência; tem, no fundo, a superstição chinesa — que não se deve deitar abaixo um velho edifício, porque os espíritos enterrados debaixo dele perseguirão o demolidor até a morte”.

É mais ou menos o que está acontecendo com a política brasileira, prisioneira de suas velhas contradições, como se nosso patrimonialismo fosse realmente uma fatalidade. Na travessia de pinguela que nos levará às eleições de 2018, arrastarmos as correntes do passado como almas penadas.

 


Luiz Carlos Azedo: Ficha Limpa retroage

A decisão pode promover um expurgo na política, alijando da disputa eleitoral não somente muitos prefeitos e vereadores eleitos nas últimas eleições, mas também candidatos às eleições de 2018

O alcance da Lei da Ficha Limpa foi ampliado ontem pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu estender a aplicação da medida aos políticos condenados por abuso de poder em campanhas eleitorais antes de 2010, quando a lei entrou em vigor, por 6 votos a 5. Esse efeito retroativo é consequência do fato de a Corte ter ampliado de 3 para 8 anos o período de inelegibilidade dos políticos, o que alcança vários prefeitos eleitos em 2014, que agora correm o risco de terem os mandatos cassados pela Justiça Eleitoral. Prevaleceu o voto do ministro Luiz Fux, que classificou a decisão como uma “condição de moralidade”.

Edson Fachin. Luís Barroso, Rosa Weber e a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, votaram a favor da medida, contra os votos de Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello. Na próxima quinta-feira, porém, será discutida a aplicação da pena aos prefeitos eleitos em 2010 que haviam sido condenados e cumpriram a pena de três anos de inelegibilidade. Para alguns ministros, eles não poderão ser cassados, já que cumpriam os requisitos exigidos à época da candidatura. Segundo Fux, a ausência de condenação (ficha limpa) é um dos requisitos para registro de candidatura.

Foi mais uma situação na qual o ministro-relator foi derrotado pelos colegas, no caso o ministro Ricardo Lewandowski. O julgamento começou em 2015, mas havia sido interrompido por um pedido de vista. A decisão tem repercussão geral, embora tenha sido proferida por causa de um candidato a vereador de Nova Soure (BA) nas eleições de 2012, que recorreu contra a rejeição de seu registro de candidatura.

Ele fora condenado por abuso de poder econômico e compra de votos em 2004 e cumpriu o prazo de três anos de inelegibilidade. Em 2008, o candidato concorreu novamente ao cargo, foi eleito e exerceu o mandato, mas em 2012, teve a candidatura negada com base no novo prazo de oito anos de inelegibilidade da Ficha Limpa.

A decisão pode promover um verdadeiro expurgo na política brasileira, alijando da disputa eleitoral não somente muitos prefeitos e vereadores eleitos nas últimas eleições, mas também possíveis candidatos às eleições de 2018, que acreditavam ter se livrado da ficha suja. No pleito passado, para a Câmara, já foi visível o impacto da nova legislação, com a eleição de jovens parentes de políticos que estavam impedidos de disputar eleições. Há expectativas que esse impacto seja ainda maior nas eleições de 2018. Somam-se a isso os processos da Operação Lava-Jato, já que muitos políticos estão sendo investigados porque seus nomes aparecem nas listas de doação do caixa dois da Odebrecht e da JBS. Há também dezenas de processos por abuso de poder nas eleições de 2016 que ainda estão em curso.

Coligações

A Emenda Constitucional que cria uma cláusula de desempenho, a partir de 2018, para as legendas terem acesso ao Fundo Partidário e ao tempo gratuito de rádio e TV foi promulgada ontem pelo presidente do Congresso, senador Eunício de Oliveira (PMDB-CE). Terá um impacto no sistema partidário que está sendo subestimado. Deve reduzir o número de partidos significativamente, provocando fusões e incorporações, antes e depois das próximas eleições, porque prevê o fim das coligações proporcionais a partir das eleições de 2020. A emenda teve origem no Senado, onde foi aprovada em 2016. Como sofreu mudanças na Câmara, o texto precisou ser aprovado novamente pelos senadores, o que ocorreu na terça-feira, numa sessão que durou 30 minutos.

Nas eleições de 2018, os partidos terão de obter, nas eleições para deputado federal, pelo menos 1,5% dos votos válidos, distribuídos em, no mínimo, um terço das unidades da federação, com ao menos 1% dos votos válidos em cada uma delas; ou ter eleito pelo menos nove deputados, distribuídos em, no mínimo, um terço das unidades da Federação. Em 2022, para a Câmara, pelo menos 2% dos votos válidos, distribuídos em, no mínimo, um terço das unidades da Federação, com ao menos 1% dos votos válidos em cada uma delas; ou ter eleito pelo menos 11 deputados, distribuídos em, no mínimo, um terço das unidades da Federação.

Em 2026, os partidos precisarão de pelo menos 2,5% dos votos válidos, distribuídos em, no mínimo, um terço das unidades da Federação, com ao menos 1,5% dos votos válidos em cada uma delas; ou ter eleito pelo menos 13 deputados, distribuídos em, no mínimo, um terço das unidades da Federação; e finalmente, em 2030, pelo menos 3% dos votos válidos, distribuídos em, no mínimo, um terço das unidades da Federação, com ao menos 2% dos votos válidos em cada uma delas; ou ter eleito pelo menos 15 deputados, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação. Todos terão que alcançar esse objetivo sem coligações.

 


Luiz Carlos Azedo: A memética da Lava-Jato

Os fatos revelados pela Operação Lava-Jato são tão surpreendentes que parecem fugir à lógica do instinto de sobrevivência dos políticos. É como se uma epidemia tivesse tomado conta dos partidos

Para quem gosta de analogias para explicar o que está acontecendo no mundo da política, o livro Sapiens, uma breve história da humanidade, do israelense Yuval Noah Harari (L&PM), é um prato cheio. Uma das pérolas do livro é a referência à tese neodarwiniana de que, além dos genes replicadores das espécies responsáveis pela evolução orgânica da Terra, existiria um replicador responsável pela transmissão de informações culturais de uma geração para a outra: os “memes”.

Com base nela, alguns estudiosos já tratam a cultura como uma espécie de epidemia infecciosa, provocada por um parasita mental, sendo os homens seus hospedeiros voluntários. Harari entra nessa seara para explicar o que poderíamos classificar de “pós-fim da história”. Explico: quando acabou a União Soviética e o Leste europeu derivou de volta ao capitalismo, graças a um artigo de Francis Fukuyama (célebre economista e filósofo americano de origem japonesa, que foi um dos ideólogos de Ronald Reagan), que depois virou livro, a velha tese do “fim da História” de Hegel ressurgiu das cinzas. Harari vai além: defende que a História não é feita pelos e para os humanos.

Segundo ele, não há provas disso. O fio condutor do seu livro é a saga de uma das seis espécies de humanos que habitavam a Terra há 100 mil anos, os sapiens, que exterminaram os neandertais. Mas, entretanto, a História não atuaria em prol dos humanos. Ela não seria fruto de decisões de seus governantes e líderes, mas dos tais “memes”: “Os parasitas orgânicos, como os vírus, vivem dentro do corpo de seus hospedeiros. Eles se multiplicam e se espalham de um hospedeiro a outro, alimentando-se deles, enfraquecendo-os e, às vezes, até os matando. Contanto que os hospedeiros vivam o bastante para transmitir o parasita, este pouco se importa com a condição em que o seu hospedeiro se encontra”. Da mesma forma, as ideias culturais viveriam dentro da mente dos humanos. “Elas se multiplicam e se disseminam de um hospedeiro a outro, às vezes enfraquecendo os hospedeiros e até mesmo os matando.”

A tese exposta por Harari é perturbadora e nos remete aos conflitos religiosos e raciais e à crise humanitária do Mediterrâneo, berço da nossa civilização. Desde o fatídico 11 de setembro de 2001, dia do atentado às Torres Gêmeas de Nova York, as cidades mais cosmopolitas do mundo deixaram de ser lugares seguros para morar, trabalhar e visitar. “Uma ideia cultural — tal como a crença no paraíso cristão nos céus ou no paraíso comunista aqui na Terra — pode forçar um ser humano a dedicar sua vida a espalhá-la, às vezes tendo a morte como preço. O humano morre, mas a ideia se espalha.”

Narrativas
A memética é uma polêmica abordagem antropológica: “Culturas bem-sucedidas são aquelas que se sobressaem ao reproduzir seus memes, independentemente dos custos e benefícios aos hospedeiros humanos. Essa forma de abordagem é tratada como um amadorismo pela academia, que considera essa analogia muito tacanha. Mas, com a mais fina ironia, Harari situa o pós-modernismo acadêmico como uma espécie de irmão gêmeo da memética, pois seus defensores falam que os discursos, como os blocos construtores de cultura, também se propagam sozinhos. O nacionalismo e a guerra seriam frutos desse fenômeno. A pós-verdade estaria ainda mais associada aos “memes” com suas “narrativas”.

Mas o que isso tem a ver com a crise ética, política e econômica que estamos vivendo? Ora, muita coisa. Os fatos revelados pela Operação Lava-Jato são tão surpreendentes que parecem fugir à lógica do instinto de sobrevivência dos políticos. É como se uma epidemia tivesse tomado conta dos partidos. Além da reprodução biológica facilmente constatável pelos velhos sobrenomes de batismo das oligarquias — a genealogia começa no Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre —, a cultura do desvio de dinheiro público e do caixa dois tornou-se tão dominante na política que os investigados na Operação Lava-Jato, mesmo sabendo das quebras de sigilo bancário, das escutas telefônicas, das buscas e apreensões e prisões, não conseguem viver sem maços de dinheiro vivo guardados nos armários, caixas de joias, viagens de jatinho e contas bancárias milionárias.

A Operação Lava-Jato desencadeou uma espécie de guerra de “memes” entre políticos, magistrados, promotores, delegados, auditores e advogados, no qual duas grandes correntes se digladiam, uma quer nos livrar dos “memes” da corrupção, outra tenta nos salvar dos “memes” do autoritarismo. E bilhões de reais deixam de ser gastos em saúde e educação. Outra vez, a tese do Harari: a História não leva em conta a vida dos indivíduos. Bom domingo!


Luiz Carlos Azedo: O homem que virou suco

A saída de João Batista da Cultura não foi boa para o governo, a senadora Marta Suplicy (PMDB) recusou convite para voltar à pasta

O drama da resistência de um poeta popular diante de uma sociedade opressora, que o obriga a eliminar suas raízes, é simultaneamente uma alegoria do desenraizamento, da clandestinidade e do exílio, aos quais muitos dos opositores do antigo regime militar foram submetidos. Esse é o enredo do filme O homem que virou suco, do diretor João Batista de Andrade, lançado num momento decisivo da história política do país, após a anistia e o fim do bipartidarismo. Em 1981, a oposição ao regime militar já havia ganho as ruas, mas enfrentava a resistência terrorista dos porões da ditadura, cujo momento mais dramático foi o frustrado atendado à bomba do Rio Centro, em 30 de abril daquele ano.

Deraldo é um nordestino esclarecido que busca sobreviver em São Paulo apenas de suas poesias e folhetos, o que ainda hoje é comum na capital paulista. De camiseta, calção e chinelos, Plínio Marcos, o consagrado dramaturgo de Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne, por exemplo, era visto com frequência vendendo seus livros nos eixos São João-Ipiranga, São Luiz -Augusta, Angélica-Consolação. Tudo vai muito bem com o herói do filme, até ele ser confundido com um funcionário de multinacional que matou o patrão na festa em que recebeu o título de operário padrão.

Perseguido pela polícia, Deraldo perde a identidade e a cidadania. Para sobreviver, refaz a trajetória da maioria dos nordestinos numa grande metrópole: vai trabalhar na construção civil, aceita realizar serviços domésticos, vaga pelo metrô, sofre toda sorte de humilhação e violências. Até que resolve contar a história do assassino e escreve o livro O homem que virou suco.

Além de consagrar seu diretor, o filme revelou o grande talento de José Dumont, ao lado de Denoy de Oliveira, Raphael de Carvalho, Ruth Escobar e Dulcinéia de Moraes. Colecionou prêmios em festivais: Melhor Filme em Moscou; Melhor Ator (José Dumont) em Nevers (França); Prêmio da Crítica em Huelva (Espanha); Melhor Roteiro, Melhor Ator (José Dumont), Melhor Ator Coadjuvante (Denoy de Oliveira) no Festival de Gramado; Melhor Roteiro, Melhor Ator (José Dumont) em Brasília; São Saruê da Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro; e Prêmio Qualidade (Brasil) no Concine.

Liquidificador
Na sexta-feira, para não virar suco na crise ética e política, João Batista de Andrade entregou sua carta de demissão ao presidente Michel Temer. Ministro da Cultura interino, pegou o boné porque já estava sendo moído pelo Palácio do Planalto, depois de uma queda de braços em torno da indicação do presidente da Ancine. Queria emplacar no cargo um nome de consenso no meio artístico: “A Débora Ivanov era a indicação de todas as entidades do cinema e também do Ministério da Cultura. O governo resolveu que vai nomear outra pessoa”. O candidato de preferência do presidente Michel Temer é Sérgio Sá Leitão, que já ocupa uma diretoria da Ancine.

O cineasta foi para a secretaria executiva do Ministério da Cultura a convite do ex-ministro Roberto Freire (PPS), a quem é ligado por laços partidários. Foi destacado membro do chamado “Setor Cultural” do antigo PCB, ao lado de outros cineastas, como Alex Viany, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos e Zelito Viana. Ex-secretário de Cultura de São Paulo, Batista presidia o Memorial da América Latina quando foi convocado por Freire, em meio à crise provocada pela barulhenta demissão do seu antecessor: o ex-ministro Marcelo Calero gravou uma conversa politicamente incorreta com Temer, na qual o presidente da República pedia que atendesse um pleito do ex-ministro da Articulação Política Geddel Vieira Lima, que também acabou caindo.
Batista pavimentou o caminho para Freire assumir a pasta, desarmando bombas junto à classe artística, na qual sempre foi muito respeitado. Com a saída do titular, a seu pedido, permaneceu à frente do ministério, interinamente, com toda a equipe que havia sido montada pelo presidente do PPS. O cineasta, porém, nunca foi um homem de aparelho partidário. Antes mesmo da saída de Freire, já se queixava das pressões do Palácio do Planalto em relação à Ancine.

Na semana passada, sua posição tornou-se insustentável. Temer mandou um oficial de gabinete ligar para o ministro interino e comunicar sua indicação para a presidência da Ancine, Sá Leitão. Batista já havia anunciado publicamente o nome de Débora Ivanov e disse ao auxiliar de Temer que a nomeação seria acompanhada de sua exoneração. A saída de João Batista não é uma boa notícia para o governo, ainda mais porque logo veio acompanhada da informação de que a senadora Marta Suplicy, que já foi ministra da Cultura, já havia recusado o convite para voltar à pasta. A bancada do PMDB na Câmara, agora, pleiteia o cargo para o deputado André Amaral (PB). Temer só pretende anunciar o próximo ministro quando voltar da viagem à Rússia.

* Luiz Carlos Azedo é jornalista

Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-homem-que-virou-suco/

 


Roberto Freire: Cultura tem papel central na economia do futuro

Dois primeiros volumes do Atlas Econômico da Cultura Brasileira foram lançados em cerimônia realizada no Itaú Cultural, em São Paulo; obra completa, com seis livros, tem conclusão prevista para abril de 2018

Com a presença do ministro Roberto Freire, foi apresentado nesta quarta-feira (5) um trabalho inédito no país e que pode ser fundamental para a compreensão da importância da cultura na composição do PIB (Produto Interno Bruto) nacional. Em evento realizado no Itaú Cultural, em São Paulo, o MinC (Ministério da Cultura) promoveu o lançamento dos dois primeiros volumes da Coleção Atlas Econômico da Cultura Brasileira. Ao todo, serão seis obras que pretendem, utilizando metodologia e critérios unificados de aferição, dimensionar o impacto da cultura na economia.

Além de Freire, participaram do lançamento o secretário de Economia da Cultura do MinC, Mansur Bassit, o secretário de Articulação e Desenvolvimento Institucional, Adão Cândido, e o professor Leandro Valiati, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). O diretor do Departamento de Promoção Internacional do ministério, Adam Muniz, e a chefe da representação do MinC em São Paulo, Haifa Madi, também estiveram presentes.

“Precisamos entender tudo isso que está acontecendo. A economia da cultura talvez seja o futuro que estamos discutindo aqui. A cultura será cada vez mais central na economia do futuro. Daí a importância de um Atlas como este que apresentamos hoje”, afirmou Freire. “A história nos ensina muita coisa. O mundo está passando pela maior revolução que a aventura humana já experimentou.”

Segundo o ministro da Cultura, “vivemos mudanças e isso afeta todas as instituições e também as relações humanas”. “Essa sociedade do futuro ainda não tem nome. Não sabemos bem o que vai acontecer, mas temos de nos preparar porque algo acontecerá.”

Investimento e metodologia

Com investimento de R$ 1,3 milhão por parte do MinC, a obra completa da coleção tem conclusão prevista para abril de 2018. Em junho deste ano, deve ser lançado o terceiro volume. Também serão publicados cadernos setoriais contendo informações específicas sobre a cadeia produtiva de setores que compõem a economia da cultura.

Os dois primeiros volumes, que trazem o marco referencial teórico e metodológico que será usado para aferição dos dados, esclarecem que o estudo será apoiado em quatro eixos: empreendimentos culturais, mão-de-obra do setor cultural, investimentos públicos e comércio exterior. O Atlas aponta ainda para algumas das cadeias produtivas que serão estudadas de forma prioritária: audiovisual, games, mercado editorial, música e museus e patrimônio.

Elaborado em parceria com a UFRGS, o Atlas conta com a colaboração de instituições como a Organização das Nações Unidades para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento e Econômico e Social), a Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos), a Firjan (Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro) e o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas).

(Fábio Matos/Assessoria do Ministro)


Roberto Freire: Novos caminhos para a cultura

Publicado no Blog do Noblat em 24/03/2017

O anúncio da Instrução Normativa que estabelece novas diretrizes para a aplicação da Lei Rouanet é um passo determinante que simboliza este novo momento e reitera o compromisso do atual governo com a cultura brasileira. As principais mudanças buscam garantir, efetivamente, que sejam cumpridos os fundamentos determinados pela Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, entre os quais o fomento à cultura de forma ampla e descentralizada, além da democratização do acesso aos recursos obtidos por meio do incentivo fiscal e aos produtos culturais oriundos dos projetos aprovados pela lei.

Lamentavelmente, o processo político brasileiro passou por uma profunda crise que também se estendeu à economia, mas não apenas a ela – atingiu, sobretudo, os valores éticos e morais de tal forma escandalosa que até mesmo parte do setor cultural caiu em descrédito. A lei de incentivo à cultura não fugiu à regra e sofreu um forte abalo junto à opinião pública, com riscos de sofrer sua própria desmoralização. Houve um processo de demonização que atingiu duramente uma das grandes conquistas da cultura nacional, instrumento fundamental para o país e que pode e deve ser utilizado pelos brasileiros.

Grande parte das críticas à Lei Rouanet, muitas delas pertinentes, se concentrava justamente na falta de transparência e na ausência de mecanismos de fiscalização e controle em relação à movimentação financeira dos recursos via incentivo fiscal. Atualmente, o Ministério da Cultura acumula um passivo de mais de 18 mil projetos deixados pela desídia do governo anterior e cujas prestações de contas ainda estão pendentes de análise.

A partir de agora, essa prestação será feita em tempo real por meio de um novo modelo de transação eletrônica. Cada projeto cultural beneficiado pela Lei Rouanet terá uma conta vinculada no Banco do Brasil que permitirá a comprovação dos gastos. Estes, por sua vez, serão lançados diretamente no Portal da Transparência do governo federal, de modo que qualquer cidadão poderá acompanhar em tempo real de que forma o dinheiro será utilizado.

Desde o início da apresentação de propostas culturais, haverá uma interligação com o sistema da Receita Federal por meio das chamadas trilhas de verificação de riscos, o que tornará possível a identificação imediata dos proponentes que apresentem pendências com a União. As trilhas também identificarão a relação entre proponentes e fornecedores, alertando sobre eventuais conflitos de interesse na condução dos projetos.

Outra preocupação que tivemos ao elaborar a Instrução Normativa foi a de incentivar a descentralização regional e proporcionar maior equilíbrio na distribuição do acesso à cultura em todas as regiões do Brasil. Hoje, quase 80% dos recursos captados pelos projetos culturais estão concentrados nos estados da Região Sudeste. Para que essa distorção seja corrigida, estabelecemos que projetos integralmente realizados no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste terão um teto maior, de R$ 15 milhões por projeto. Nessas regiões, os custos de divulgação também podem ultrapassar os 20% do valor do projeto, chegando a 30%. E quem quiser apresentar mais do que o limite por perfil do proponente terá um aumento de 50% no número de projetos e no valor total deles.

Ainda com o objetivo de democratizar o acesso ao incentivo fiscal e à produção cultural e em meio a uma realidade de escassez de recursos públicos, a Instrução Normativa estabelece limites anuais de captação de recursos por proponente e por projeto cultural, de forma a coibir a aprovação de projetos com valores excessivamente elevados. Por isso, estipulamos tetos para a captação de recursos via Lei Rouanet, escalonados de acordo com o perfil do proponente (microempresário individual, pessoa física, empresas individuais de responsabilidade limitada, sociedades limitadas e demais pessoas jurídicas), que podem chegar a, no máximo, R$ 10 milhões por projeto e R$ 40 milhões por proponente ao ano.

É evidente que as novas regras publicadas na última quarta-feira (22) no Diário Oficial da União são um primeiro passo de um longo caminho. O MinC está aberto ao debate permanente com os produtores culturais e disposto a corrigir a rota caso isso se faça necessário. Como se trata de uma Instrução Normativa, não há a rigidez de uma legislação – ou seja, se ela não funcionar em determinado aspecto, não há nenhum problema em reconhecermos os pontos a melhorar e fazermos as adaptações necessárias.

A Lei Rouanet não merece ser demonizada e, se acompanhada com atenção e responsabilidade, tem todas as condições de contribuir para o desenvolvimento da cultura brasileira e do país. Estamos no rumo certo e vamos seguir em frente.


*Roberto Freire é Ministro da Cultura

Alberto Aggio: Cultura, modernidade e democracia

Cultura, modernidade e democracia: O embate no Prêmio Camões só impediu que se discutisse o que deve ser discutido 

As cenas de antidemocracia que ocorreram na entrega do Prêmio Camões a Raduan Nassar, promovidas por uma claque conhecida em determinados ambientes políticos, é mais um desserviço à cultura e à política democrática em nosso país. Os atos e especialmente sua repercussão nas redes e na opinião pública, negativos em si, retiram o foco do que seria essencial discutir, de forma mais produtiva, a respeito das relações entre cultura e política na contemporaneidade e no nosso país.

No passado havíamos muitas vezes provado que sabemos fazer essa reflexão, mas parece que precisamos reaprender, ultrapassando as inclinações instrumentais que, a partir de visões finalistas e autoritárias, querem anular a convivência entre diferentes. A natureza e os sentidos do debate cultural sempre foram muito vivos entre nós e precisam ser resgatados e expandidos para o conjunto da sociedade. Há que superar ideologismos rasteiros, posturas fechadas e diretrizes normativas preestabelecidas e ir ao encontro do pluralismo que marca nossas sociedades para se estabelecer uma relação fecunda entre cultura, modernidade e democracia.

As políticas públicas para a cultura são fruto do ambiente político em que vivemos, bem como da nossa presença nele. São objetivas e subjetivas, simultaneamente, e no caso brasileiro guardam um sentido preciso: a esperança de se construir um país mais democrático, com relações cada vez mais igualitárias, promotoras da alteridade e operadas a partir da plena liberdade de expressão e de manifestação. Seu objetivo principal é garantir a todos e a cada um o acesso amplo às manifestações culturais, bem como à possibilidade de produção simbólica, independentemente de sexo, etnia, credo religioso e origem.

Em termos culturais, um país democrático se constrói quando se pensa a partir de um princípio: o locus da produção cultural é e deve continuar sendo a sociedade civil. Uma política cultural de viés emancipador deve partir desse ponto, mobilizando a participação efetiva, independente e criadora dos produtores culturais. Enquadrar a política cultural a partir de uma lógica de grupos, partidos ou mesmo do Estado sempre criou mais problemas e disfunções do que o florescimento da cultura. Partidos políticos que se fundam nessa lógica não têm dado uma contribuição positiva à sociedade, muito ao contrário. Como afirmou Norberto Bobbio, “a política da cultura é uma posição de abertura máxima em direção a posições filosóficas, ideológicas e mentais diferentes, dado que é uma política relativa àquilo que é comum a todos os homens de cultura e não atinente ao que os divide”; é, no fundo, “uma política feita pelos homens de cultura para os próprios fins da cultura”.

Sabemos que a produção de cultura necessita do apoio do Estado para se tornar viável. O engajamento do poder público vem da consciência de que boa parte da produção cultural não é capaz de sobreviver a contento numa sociedade predominantemente mercantilizada. Por isso o impulso e o estímulo à criação artístico-cultural devem procurar combinar suas ações, sempre que possível, buscando um equilíbrio entre o Estado e as exigências do mercado.

Mas é importante compreender que a política cultural, ao incentivar, promover, proteger e difundir a cultura em todas as suas formas e expressões, visa também a aproximar cultura de cidadania, atribuindo às manifestações culturais o status de um direito. Um dos dados mais importante da conjuntura que vivemos é o fato de que o País assimilou a necessidade de se estabelecer uma conexão entre as instituições políticas da democracia e os desafios abertos com a atual “revolução cidadã” que a Nação vive desde as manifestações de 2013. Nada a estranhar: nossa cultura sempre foi mais criativa quando se abriu e realizou o embate político, sem receio e sem preconceitos, envolvendo, na criação e na crítica, intelectuais e artistas de diversos matizes.

Claro está, portanto, que uma política cultural supõe e exige comprometimento com a trajetória democrática do País, além de imparcialidade e incorporação de uma visão pluralista que brota da sociedade. Supõe também a recusa à famigerada barganha político-eleitoral que muitos governos – até os que se declaram de esquerda – acabaram por reproduzir, mesmo que embalada em maquiagens modernas, contribuindo com a reprodução de uma visão oligarquizada e patrimonialista do Estado, nefasta à democracia. Uma política cultural democrática deve ser aberta e projetada para servir à cultura e só a ela. Deve fazer jus à ideia de que a cultura é uma esfera social e humana que supre e, ao mesmo tempo, gera novas necessidades culturais.

Integrados ao mundo como sempre fomos, nós, brasileiros, invariavelmente nos inclinamos a promover uma perspectiva cultural de superação das fronteiras artificiais e reducionistas que opõem o caráter popular ao erudito, essa “muralha chinesa” mental que vem criando obstáculos à intersecção dessas duas dimensões culturais da nossa formação histórica. Algo que nunca fez muito sentido porque nossa cultura sempre expressou hibridismo e uma mescla étnica que impediram o estabelecimento de guetos culturais e populacionais, como em outras histórias nacionais.

Uma política cultural progressista se pauta, portanto, na máxima qualificação da produção cultural, seja ela de perfil popular ou não. O País precisa resgatar e dar um novo curso a essa visão. Trata-se de uma tarefa que depende – mas a supera – da esfera dos artistas e intelectuais e deve ser assumida por toda a sociedade.

O embate desastroso provocado na sessão do Prêmio Camões só contribuiu para impedir que se discuta com abertura, pertinência e profundidade o que deve ser discutido na área cultural. Foi, mais uma vez, a imposição de uma narrativa estapafúrdia que só faz consumir nossas melhores energias.

*Alberto Aggio é historiador, é professor titular da UNESP

Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,cultura-modernidade-e-democracia,70001686453

 


Roberto Freire

Roberto Freire: Um teto para a Lei Rouanet

Ministro criará instrução fixando limite para patrocinador e proponente. A ideia é atacar a concentração

Robinson Borges e Rosângela Bittar | Eu & Fim de Semana/Valor Econômico

BRASÍLIA - O ministro da Cultura, Roberto Freire, vai anunciar nos próximos dias uma instrução normativa para a Lei Rouanet. Sua principal ação será fixar um limite de valor para o proponente e para o patrocinador cultural. Com essa medida, pretende atacar duas distorções bastante criticadas da lei de incentivo: a concentração e a regionalização. Um projeto não poderá ultrapassar o limite de R$ 10 milhões, salvo as exceções previstas na lei, como construção e restauração de obras. Haverá também uma barreira de valor para o patrocinador, ainda não definida. Se uma companhia quiser ultrapassar esse teto, terá de incentivar projetos em regiões que não têm tanto retorno de imagem. "Se tenho R$ 1 bilhão de renúncia fiscal, se deixo que isso fique para poucos espetáculos, gero concentração, não democratizo o acesso", diz Freire ao Valor.

A Lei Rouanet é a principal ferramenta de estímulo à cultura no Brasil, responsável por cerca de 80% dos recursos destinados ao setor. No ano passado, entretanto, houve uma redução de projetos aprovados e no valor de recursos aportados. A má fase já vinha de antes: em julho, iniciou-se a Operação Boca Livre, da Polícia Federal, que investiga desvio de recursos em projetos culturais com uso de isenção fiscal. Pouco antes, havia começado a abertura da CPI da Rouanet, que apura irregularidades na concessão de benefícios fiscais por meio da lei de incentivo.

Com a instrução, Freire pretende diminuir o passivo que a Lei Rouanet tem frente a opinião pública. "Estou querendo definir algo que corresponda à política de incentivo e, ao mesmo tempo, responda a alguma indignação por você olhar para um projeto que pede somas astronômicas. É o desperdício. Desperdício, porque o dinheiro é público", comenta.

Pernambucano, Roberto Freire, de 74 anos, foi eleito deputado federal pelo PPS, partido que presidiu. Ele já havia sido sondado pelo presidente Michel Temer para ficar responsável pela Cultura no início do governo, quando a pasta teria seu status reduzido a uma secretaria. No entanto, foi indicado oficialmente para o cargo em novembro, logo depois da ruidosa saída de Marcelo Calero. O ex-ministro da Cultura pediu demissão após afirmar que o então ministro Geddel Vieira Lima (Secretaria do Governo) o teria pressionado a produzir parecer técnico para favorecer seus interesses pessoais.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão que está submetido à pasta da Cultura, havia permitido a construção de um prédio de até 13 andares numa região tombada de Salvador, mas o projeto original era de 31 andares. Geddel teria interesse no imóvel, pois seria proprietário de um dos apartamentos mais altos.

"O grave seria se os ministros tivessem continuado e se não tivéssemos referendado a decisão do Iphan. Aí você podia espantar. 'Um ministro caiu?' Ótimo! É sinal de que estamos numa democracia e que as leis são respeitadas, diferentemente de governos passados", diz.

Com um bolo total de cerca de R$ 2 bilhões, orçamento dividido com a Ancine - que fica com a maior fatia -, o Ministério da Cultura enfrenta escassez de recursos. Freire tenta convencer o governo Temer a não contingenciar os recursos do Fundo Nacional de Cultura, um instrumento para compensar a regionalização e a concentração das produções culturais. "Se houvesse um bom entendimento do governo, esse fundo não teria contingenciamento, porque não depende de arrecadação do governo. Depende de 3% da loteria", afirma "Nesse momento de crise, a discussão é saber se vai continuar." Hoje, são contingenciados R$ 280 milhões. O que chega ao ministério não ultrapassa os R$ 60 milhões.

Apesar de enaltecer as realizações da Ancine, o ministro considera a hipótese de transferir parte dos recursos da agência para a Secretaria do Audiovisual, que tem orçamento de R$ 10 milhões. "Vamos analisar", diz.

Ex-comunista, Freire afirma que permanece um homem de esquerda, mas hoje é um defensor do mercado. "Já fui do dirigismo total. Não deu certo. Porque algumas pessoas pensam: 'O mercado gera problema', mas o mercado é pluralista. Não posso, como Estado, definir quais são as obras que eu tenho que financiar", pondera.

O ministro diz que ainda não assistiu, mas pretende, a "Aquarius", filme de Kléber Mendonça Filho. O longa esteve no centro de protesto no Festival de Cannes contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o que teve apoio de parcela importante da classe artística, também refratária ao novo governo. "O diálogo com o setor foi retomado", afirma. "Pode ter lá muita gente que tenha esse histrionismo de imaginar que estamos vivendo num golpe. Num país que tem a plena liberdade, não tem preso político. Num regime democrático até a estultice política é permitida."

Leia, a seguir, trechos da entrevista:

Valor: Quais são as novidades da instrução normativa para a Lei Rouanet?

Roberto Freire: A gente vai enfrentar algumas das distorções. Você concentrou a atuação da Rouanet quase que na totalidade no Sudeste e no Sul. Você terá a possibilidade de fixar limites [para o proponente e o patrocinador]. Raramente você tem captação - nas artes cênicas, de espetáculo, de show - acima de R$ 2 milhões.

Valor: Mas grandes musicais custam mais de R$ 10 milhões, por exemplo. Eles poderiam se beneficiar da lei?

Freire: Beneficiar-se, sim, [mas] vai ter teto. Se tenho R$ 1 bilhão de renúncia fiscal, se deixo que isso fique para poucos espetáculos, gero concentração, não democratizo o acesso. Estou querendo também definir algo que corresponda à política de incentivo e, ao mesmo tempo, responda a alguma indignação por você olhar para um projeto que pede somas astronômicas. É o desperdício. Desperdício, porque o dinheiro é público.

Valor: Vão ter tetos para diferentes setores?

Freire: Não vários, mas uns dois ou três tetos. Um projeto não poderá ultrapassar o limite de R$ 10 milhões, salvo as exceções previstas na lei, como construção e restauração de obras.

Valor: Como se dará o teto para o patrocinador?

Freire: Estamos começando a ver.

Valor: O senhor não teme diminuir a produção e o investimento à cultura?

Freire: Não, estou dizendo a ele [patrocinador] que se quiser a mais do que isso, vai ter que fazer nas regiões que não são atendidas.

Valor: Mas o senhor não vai afetar só os grandes patrocinadores?

Freire: Sim, só os grandes. Mas no momento em que começo, tem outros mecanismos. Estamos discutindo que patrocinador entra nesse mercado, que [hoje] teria de demonstrar dois anos de experiência, uma série de requisitos. Estamos diminuindo isso. Hoje tem controle maior. Você entra no Google, sabe quem é a pessoa. Tem um nível de informação para ter garantias que não necessita trazer: "Eu tenho experiência" ou um currículo. No serviço público, você pode começar a ter uma rede que se sabe como qualquer proponente está nas suas obrigações tributárias e como é a sua atuação no serviço público. Ninguém pode ser enganado. Chega aqui, você não sabe: "Não sabíamos quem era o Bellini" [investigado pela Operação Boca Livre, da Polícia Federal, o Grupo Bellini Cultural é acusado de fraudar projetos culturais financiados com renúncia fiscal que somavam R$ 25 milhões]. Não acompanhava porque não queria. Temos quase 20 mil processos de prestação de conta não analisados.

Valor: O senhor tem mão de obra para analisar todos esses processos? Como resolver isso?

Freire: Vamos tentar discutir. A força-tarefa não está dando conta, porque ao mesmo tempo que você tem que enfrentar esses 18 mil, 20 mil, tem que acompanhar as prestações de contas atuais. Estamos discutindo, talvez com o Ministério de Transparência, tentar uma licitação para empresas de auditoria entregarem logo.v

Valor: Sempre se falou que casos policiais como esse [da Boca Livre] não são a regra da distorção principal da lei, que é permitir que quem tem bilheteria tire de outras, que precisam de incentivo.

Freire: Isso é o seu julgamento, o meu. A CNIC [Comissão Nacional de Incentivo à Cultura] é que aprova os projetos. É o critério deles. Senão não precisava de comissão. A instrução tem que ser objetiva. Não posso criar uma instrução subjetiva.

Valor: Havia partidarização da cultura?

Freire: Não na Rouanet. Tinha [em] outros mecanismos e era muito, muito forte.

Valor: Quais?

Freire: Setores da diversidade. Era distribuído em função de partidos. Tanto é que é uma outra área onde também prestação de conta não existe. Estamos com sindicância.

Valor: Qual é a sua política para essa área de diversidade? O senhor pretende manter?

Freire: Aquilo que estiver funcionando dentro da normalidade, da legalidade, não tem problema. Quem não prestou conta, primeiro tem que prestar conta para nós liberarmos recurso.

Valor: O elemento-chave para minimizar a regionalização e a concentração é o teto para o patrocinador. Há outro mecanismo?

Freire: O Fundo Nacional de Cultura deve ser instrumento para você compensar. É a política pública para que você não exclua regiões, inclusive regiões que têm uma riqueza cultural. No Nordeste está, talvez, um dos Estados onde você tem uma produção cultural, uma tradição importantíssima: Pernambuco - não é porque é o meu. Não é um grande mercado - já foi. Mas, do ponto de vista cultural, talvez seja uma das maiores expressões da cultura brasileira.

Valor: Como o senhor vai usar o Fundo Nacional de Cultura com um ajuste fiscal?

Freire: Se houvesse um bom entendimento do governo, esse fundo não teria contingenciamento, porque não depende de arrecadação do governo. Depende de 3% da loteria. Não é um tributo que a sociedade paga. Não tinha que sofrer contingenciamento, mas [o contingenciamento] vem há muito tempo. Nesse momento de crise, a discussão é saber se vai continuar.

Valor: Qual é o tamanho dos recursos do Fundo Nacional de Cultura?

Freire: São contingenciados R$ 280 milhões. O que vem para cá é aproximadamente uns 50 e poucos, R$ 60 milhões.

Valor: Qual é o bolo total da Cultura?

Freire: Tudo? Para pagar custeio, tudo? R$ 700 milhões. R$ 1 bilhão e pouco é da Ancine. Uns R$ 2 bilhões no total.

Valor: Como o senhor vai aumentar o financiamento da cultura?v

Freire: Estou tentando mostrar a Temer que isso [o Fundo Nacional de Cultura] é uma distribuição de recursos públicos importante para os municípios brasileiros.

Valor: O senhor pretende também apostar no fundo a fundo. Como ele vai funcionar?

Freire: No Sistema Nacional de Cultura, os municípios e os Estados podem se integrar a ele, criando Conselhos Municipais ou Estaduais de Cultura. Automaticamente cria o Fundo Municipal ou Estadual de Cultura. A lei prevê transferências do Fundo Nacional para o dos Estados ou dos municípios, tentando facilitar a transferência. Posso ter um valor que seja pela expressão da população. O mínimo que pode transferir é R$ 100 mil. Não pode aplicar sem a anuência do Conselho Municipal. Você chega no Nordeste, a coisa mais comum é o cara dizer: "O bumba meu boi daqui é diferente". Por quê? Porque tem uma característica própria daquele município. Não sou eu, de Brasília, imaginando o grande espetáculo. Esse, a Lei Rouanet cuida.

Valor: O senhor pretende incentivar emendas parlamentares para a cultura?

Freire: Há recurso geral das emendas parlamentares. Estamos trabalhando para que o parlamentar invista na cultura. Um programa que estamos iniciando para valer: as feiras de livro. Temos condições de fazer, em qualquer município, uma feira de livro importante com R$ 100 mil. Se for por emenda constitucional, não custa nada para o ministério. Não sei se vai funcionar, mas quando você tem qualquer incentivo, se a Petrobras contribuiu, sai lá Petrobras. Com as emendas parlamentares, vou criar que coloque-se o nome do parlamentar. Se ele contribuiu para a construção de um prédio, estará lá. Não é só BNDES, Petrobras - o deputado [também]. Porque ele fez uma lei para beneficiar aquilo. Qual é o deputado que não quer chegar no seu município e dizer: "Olha, contribuí efetivamente. No meu mandato, está aí, algo concreto, uma lei que fiz destinando recursos".

Valor: Como o senhor vê a questão da Ancine, um pouco diferente das outras agências, pois além de regular ela também executa? O senhor pensa em alterar a função da Ancine?

Freire: Isso talvez possa ser algo meio esdrúxulo em relação às chamadas agências, mas tem funcionado. Não tem porque mexer. Que crítica se faz? É de que no ministério tem uma Secretaria de Audiovisual que precisa funcionar. A Ancine tem determinados objetivos. Essa secretaria tem, também no audiovisual, outros: políticas mais compensatórias, de mais incentivos dirigidos à cultura. Você precisa fazer com que essa secretaria exista. Nem tudo cabe à Ancine. Maior integração e maior responsabilidade, isso é uma discussão. Mas não é modificar.

Valor: A Ancine vai perder recursos?

Freire: Vamos analisar. Uma coisa que é preciso entender é o seguinte: a Ancine tem essa característica, mas a Ancine é subordinada ao Ministério da Cultura.

Valor: O orçamento da Secretaria do Audiovisual está em quanto?

Freire: R$ 10 milhões. Não tem. O ministério tem que analisar...

Valor: Isso tem potencial de reação do setor.

Freire: Sim, mas chiadeira maior deu o impeachment, e a gente fez.

Valor: O senhor gostou de "Aquarius", ministro?

Freire: Ainda não vi, mas estou para ver. Tenho ouvido boas referências ao filme.

Valor: O cinema brasileiro tem produzido cem longas-metragens por ano, uma produção relativamente grande. Mas não consegue aumentar sua participação no mercado.

Freire: Há uma diminuição do número de público para o cinema brasileiro do que quando você produzia 70, 80. Quem cria o mercado é a qualidade. Não vamos ficar imaginando que a gente vai criar pelo subsídio.

Valor: Um ex-ministro do Ministério da Educação e Cultura, do antigo MEC, dizia: "A cada dois cineastas é um partido político". A campanha do impeachment e a entrada do governo Temer mostrou isso; o cinema talvez tenha sido a área cultural que mais reagiu. Está reagindo ainda hoje?

Freire: Já mudou. o Conselho Superior de Cinema, órgão que cuida de definir diretrizes para o desenvolvimento do cinema e o audiovisual, pouco decidia. Homologava o que era mais ou menos definido pela Ancine, muito em consideração à política. Tinha um lá que disse: "Passei dois anos aqui como conselheiro, não votei uma resolução. Servi para homologar". Hoje já tem vários cineastas, dois deles da maior importância, Cacá Diegues e Bruno Barreto. O diálogo com o setor foi retomado. A gente tem um grande cineasta e secretário-executivo do ministério, o João Batista [de Andrade]. Não estou sentindo problema. Pode ter lá muita gente que tenha esse histrionismo de imaginar que estamos vivendo num golpe. Num país que tem a plena liberdade, não tem preso político. Num regime democrático até a estultice política é permitida. Não tem nenhum problema. Não vejo isso. Claro que tem, num governo que está há 12 anos e havia um projeto de poder claro - inclusive despreocupando-se até mesmo com o código penal para implantar esse projeto de poder -, a sua ideologia se refletia em todas as áreas.

Valor: Mas o senhor tornou-se ministro numa situação gerada por um outro tipo de interferência na área cultural, com o caso Geddel.

Freire: Não é um problema. Uma questão menor. É tão verdadeiro que você se lembra disso, mas não resultou em nada. Foi mantida a decisão.

Valor: Saíram dois ministros...

Freire: E daí? O grave seria se os ministros tivessem continuado e se não tivéssemos referendado a decisão do Iphan. Aí você podia espantar. "Um ministro caiu?" Ótimo! É sinal de que estamos numa democracia e que as leis são respeitadas, diferentemente de governos passados. Agora, você me dizer que está vivendo numa sociedade onde não existe problema, aí não dá. Como é que você reage ao problema? Não tenha dúvidas de que isso daí, hoje, você lembra, mas isso não gerou nenhum grande problema.

Valor: Até porque outros problemas mais graves apareceram depois (no governo). Talvez se não tivesse essa sucessão de problemas graves...

Freire: Sim, mas olha: não escolhi esse governo, embora hoje, pelo que Temer tem feito, mereça o meu respeito. Estou participando de um governo que é por imposição constitucional e democrática de tirar um governo irresponsável e corrupto e tivemos que colocar um governo que era parte do governo que foi impedido.

Valor: Uma das bandeiras do ex-ministro Gilberto Gil era a questão dos direitos autorais, em virtude das novas tecnologias. Como o senhor pretende lidar com esse tópico?

Freire: Ele foi um ministro que entendeu que a cultura não será mais o que era. Como você pode falar de direitos autorais em cima de plataformas? O Brasil está até inovando: votou recentemente a cobrança de imposto sobre serviço das plataformas, Netflix e outras. Alguns países estão com tremendas dificuldades, porque não têm esse tipo de imposto. E aí vão brigar onde, vão cobrar imposto onde? Essas plataformas não têm espaço físico. Podem estar em tudo que é lugar.

Valor: O ministério tem política para a questão?

Freire: A cultura é uma economia das que mais cresce no mundo. O que é fundamental para entender é que você não tem uma força política, porque a esquerda hegemônica no Brasil é reacionária. Não conseguiu entender que não tem que ficar discutindo que tem que resguardar direitos. Que direitos? Estamos falando aqui de direitos autorais. Quais são? Como vai ser? E isso é por quê? Porque queremos ir contra o que era direito dos artistas, dos cineastas? Não. É porque a nova realidade das relações no mundo está colocando a emergência de outros direitos e outras formas de você ter a aplicação desses direitos... Alguns cineastas e roteiristas não recebem direito autoral. Só recebem pela obra. Tem tantas repetições, e aquilo não gera para o criador. Depois de feito é do produtor, do distribuidor. É uma briga que está aí. Achei interessante a discussão da lei porque deram o nome de Nelson Pereira dos Santos.

Valor: O Projeto de Lei para a criação do ProCultura está em debate há dez anos. O senhor o apoia?

Freire: Tem um problema que é como na Rouanet, a distinção de mecenato e de mercado. É uma visão muito dirigista. Não tem minha simpatia. Já fui do dirigismo total. Não deu certo. Porque algumas pessoas pensam: "O mercado gera problema", mas o mercado é pluralista. Não posso, como Estado, definir quais são as obras que eu tenho que financiar. Enquanto o controle que a própria sociedade, no seu pluralismo, exerce é o que é fundamental na cultura. É ela que vai definir. Quanto menos Estado tiver nisso, menos risco se tem de você imaginar a cultura como propaganda. O risco de ser propaganda.

Valor: O senhor ainda é de esquerda?

Freire: Sim, sempre fui. Não costumo desqualificar, mas uma esquerda que não está envolvida nesse processo de enxovalhamento que ocorreu no Brasil, fruto do governo do PT. Antes, era uma esquerda respeitada. Podia ter cometido erros, mas não tinha se confundido com a corrupção. Hoje, chamar esquerdista de bandido, de ladrão, é coisa comum na rede. Por quê? Um assomo da direita? Não. É porque fizemos, no governo, besteira. Fizemos como esquerda. Eu me separei disso rompendo com isso.