cultura do cancelamento
Vera Magalhães: Karol Conká, Bolsonaro e o foco da indignação
Desde a edição que tinha o Diogo Alemão e a Siri, sei lá em que ano, não assito mais Big Brother Brasil. Quem me acompanha nas redes sociais sabe que tem poucos temas em que eu não meta a colher de pau, mas pode procurar por lá e não vai ver nenhum pitaco meu sobre as tretas da Karol Conká.
Inclusive apliquei inúmeros filtros para não ser bombardeada pelo assunto, todos eles inúteis diante da recorrência doentia na TL. Parece que a falta de abraço, de festas, de Carnaval levou as pessoas a só se preocuparem com uma coisa. Mas será essa a coisa mais importante para mobilizar a indignação do Brasil e suscitar a formação da tão sonhada e tão utópica frente ampla nacional?
Não, não sou dessas que acham que realities são entretenimento ruim, que quem fala sobre isso é alienado etc. Acho que ali se mostram, mesmo, muitos dos comportamentos que vemos todos os dias em casa, nas famílias, no trabalho, na política, e que essa lupa posta na maneira como as pessoas agem para manipular umas às outras e se dar bem é muito interessante, fonte inesgotável de entretenimento e didática.
Mas não acho que a Karol Conká seja a maior vilã do Brasil, merecedora de 99,17% de rejeição, algo bastante irracional, e alvo preferencial das frustrações da sociedade. Na minha casa, a eliminação dela (que sim, eu estava assistindo, vencida finalmente pelo hype) foi seguida de -- atenção -- FOGOS DE ARTIFÍCIO. Talvez os guardados pelos palmeirenses pela não vinda de mais um Mundial.
Não existe o menor propósito nisso quando se vê que o presidente da República, este sim responsável por decisões de vida e morte para a população, que jurou respeitar a Constituição, que tem o poder de derrubar com uma fala o valor da maior empresa do Brasil, ainda tem entre 33% e 40% de pessoas que dizem que seu governo é ótimo ou bom.
Sob qual aspecto? Por qual métrica? Qual o critério usado?
A economia está arrasada, somos um dos países que menos vacinaram sua população, não temos vacinas em quantidade suficiente num futuro próximo, não sabemos de onde vamos tirar dinheiro para bancar um urgente e atrasado auxílio emergencial, a Petrobras sofreu intervenção, o presidente emitiu quatro decretos ilegais para liberar armas e munições a granel na sexta-feira de Carnaval, o STJ acaba de começar a melar a investigação de um esquema milionário de peculato envolvendo o filho do presidente e também senador Flávio Bolsonaro, há um deputado federal da cozinha do presidente preso por ameaçar o Judiciário e a democracia...
A lista é infinita e de extrema gravidade.
Diferentemente dos chiliques e das vilanias de Karol, não se restringem a um grupo selecionado pela Globo para um confinamento que por si só já tem o poder de alterar o discernimento de quem se submete a ele e ainda vê a perspectiva de ficar milionário.
Esses atos são cometidos por uma pessoa investida pelas urnas do mais alto cargo do país. Que não foi eleita pela maioria da população, governa para uma parcela imensamente menor dela e age apenas pensando na manutenção do poder, ainda que para isso seja necessário tentar mudar o regime, conforme deixou escapar em um de seus ataques verborrágicos.
O que Karol fez com Lucas, Bolsonaro faz diariamente contra minorias do País. Suas milícias virtuais investem contra a honra de ex-aliados, da imprensa, de entidades ligadas à defesa dos direitos humanos, de ativistas. Sem que o brasileiro médio, esse que tem a pachorra de ir para a janela soltar rojões na eliminação de uma rapper num reality, mova sequer a pestana de preocupação.
Está descalibrado o senso de justiça do brasileiro. Está desalinhada sua capacidade de reconhecer o que tem potencial de causar dano real ao país.
O governo tenta retirar as fontes de financiamento do SUS e do Fundeb enquanto a pessoa está com o dedo formigando de tanto votar na Karol.
Existe uma síndrome grave num país anestesiado para mais de 250 mil mortes que se choca a esse ponto com cenas de um BBB.
É preciso dar às coisas o peso que elas têm, sob pena de seguirmos até 2022 com os canais interditados para o enfrentamento cívico a um governo ineficiente, inepto e que causa prejuízos ao país em todas as áreas.
O que eu chamo de enfrentamento cívico? Que as instituições exerçam na plenitude seu papel, que a imprensa acompanhe com diligência cada ato do Executivo e cobre o presidente sobre suas obrigações, a começar pela de colocar de pé um Plano Nacional de Imunização que não seja um fracasso como esse que está aí, que os partidos se conscientizem da sua função de apresentar ao país alternativas de um projeto para tirá-lo do atoleiro e que a sociedade pare de perder tempo com distrações e cobre seus direitos e as obrigações do presidente.
Depois que tudo isso estiver arrumado, podemos todos ligar a TV para exercer nosso direito à distração. Mas sem pesos e medidas essa distração se transforma em catarse coletiva e abre espaço para o linchamento. Esse caminho é apenas uma das degenerescências que o fundo do poço da política que vivemos faz parecer normal. Acreditem: não é. 99,17% de ódio em cima de uma pessoa não eleita e rojões (!!!) nas janelas do Brasil numa eliminação de BBB são sintomas de histeria nacional.
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Esta coluna é, como todas são, como tudo o que não é amanhã é, um eco do passado. São oito da noite de terça-feira, e, se o meteoro não atingiu o planeta entre agora e logo mais, Karol Conká terá sido eliminada do “Big Brother 21” com uma rejeição recorde, ou quase isso, porque afinal bater os 98,76% anteriores, do Nego Di, é difícil até para uma arquivilã de caricatura.
(Sim, foi: 99,17%. Só mesmo eleições na Coreia do Norte atingem esse nível.)
Karol Conká cabe como uma luva na clássica definição que o ministro Luis Roberto Barroso pregou na testa do colega Gilmar Mendes, uma das joias mais perfeitas da História do Brasil: ela é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia.
Nem o seu fã-clube aguentou, e desativou a conta que tinha criado para segui-la na casa:
“Nós, como fãs da carreira musical da Karol, decidimos criar esse perfil para informar e acompanhar ela no BBB. Mas, devido a todos os acontecimentos dentro da casa, percebemos que ela na verdade é uma pessoa horrível. Iremos desativar a página e desejamos que ela se f*.”
Pronto, fãs, desejo atendido.
O problema é que uma trama sem vilões perde muito. Ainda sobram vilões no “BBB 21”, mas nenhum com o talento para o papel da Karol Conká. Karol aparece na tela e o público imediatamente se alvoroça, porque sabe que lá vem treta.
Karol é cruel, falsa e fofoqueira — mas é inteligente, interessante e tem uma capacidade de liderança inquestionável. É carismática e vistosa como a madrasta da Branca de Neve ou a Cruela Cruel. Sabe plantar dúvidas nos corações, semear a discórdia e ferir os outros. O mais fascinante é que faz tudo isso sem perceber, convencida de que é boa gente e que não fez nada de mais. Fica genuinamente surpresa quando alguém se queixa das patadas, e se exime de responsabilidade moral com o argumento de dez entre dez pessoas grosseiras: “Eu sou assim mesmo!”.
(Tiago Leifert foi no ponto na eliminação ao questionar os brothers sobre quem são; e foi cauteloso e gentil ao criar um colchão metafórico para atenuar o tombo descomunal da Conká.)
O “BBB 21” vai perder muito da dinâmica e da graça com a ausência da sister — mas isso me perturba.
A questão é: a que custo nos divertimos? Os participantes fazem questão de frisar, continuamente, que o programa não passa de um jogo. Mas é um jogo jogado por humanos reais, com os sentimentos de que dispõem.
Os jogos do Coliseu romano também eram jogados por humanos, e também eram considerados divertidos illo tempore.
O que vai acontecer com Karol Conká?
Horrível ou não, ela é uma pessoa real. Vê-la experimentar do próprio veneno só é gratificante até o momento em que nos damos conta de que esse veneno é, exatamente, o que nos causa tanta repulsa.
Pessoas boas odeiam pessoas más por serem más, mas acham justificável serem más com os maus.
Quem somos, afinal?
A cultura do cancelamento é uma guilhotina desembestada: um dia, todos seremos cancelados. Ninguém perde por esperar.