Cristovam Buarque
Cristovam Buarque: A irresponsabilidade da divisão
Bolsonaro já provou seu despreparo técnico e psicológico para cuidar do presente
O presidente eleito em 2018 surpreende sempre para pior. Nesta semana, foi o deboche para se referir à tortura sofrida por sua antecessora, a presidente Dilma Rousseff, quando jovem militante contra a ditadura. Só este gesto demonstra sua psicologia política doentia. Mas na mesma semana, disse “estar nem aí” para a demora em aprovar e distribuir a vacina contra o corona vírus, debochando também do sofrimento de milhões e da morte de 200 mil pessoas, que o elegeram para gerenciar nossa saúde.
Bolsonaro já provou seu despreparo técnico e psicológico para cuidar do presente e conduzir ao futuro, mas também provou estar preparado para a politicagem que elege os populistas irresponsáveis. Devido a este preparo cínico, ele pode se reeleger apesar do péssimo desempenho de seu governo em todas setores, até mesmo com a possível volta da inflação, se as forças democráticas não se unirem com uma alternativa e um nome que não sofra maior rejeição que ele.
Com seu despreparo e maldade, Bolsonaro foi eleito sobretudo pelos democratas-progressistas que estiveram no poder por 26 anos. Por nossos erros, especialmente pelo PT, o eleitor queria “outro”, qualquer que fosse. Bolsonaro conseguiu usar uma máscara de “outro”. E por nossa divisão que permitiu colocar no segundo turno um nome que seria melhor presidente do que o eleito, mas que provocava rejeição no eleitor.
O Brasil e seus eleitores não merecem que as lideranças democráticas, de direita ou esquerda, repitam os erros da divisão que leve ao segundo turno um nome com rejeição maior do que o presidente com apesar de sua psicológica política doentia. Bolsonaro contará com um núcleo duro de simpatizantes que o colocarão no segundo turno.
Seria uma traição, que os democratas apresentem tantos nomes, que leve um núcleo duro de simpatizantes colocar no segundo turno um nome contrário ao Bolsonaro, mas que o elegerá na disputa entre os graus de rejeição e não de esperança. Não temos o direito de correr o risco de facilitar sua eleição pela rejeição ao seu concorrente. As lideranças democráticas lúcidas e responsáveis precisam se unir para construir uma alternativa capaz de chegar ao segundo turno e barrar a reeleição de Bolsonaro. Promover uma aliança com base em compromissos para um governo de transição que deixe as diferenças aflorar em 2026. Fizemos isto com Tancredo em 1985. Em 2022, temos a obrigação de repetir aquela unidade. Podemos exigir que o nome escolhido assuma o compromisso de não tentar a reeleição, que seu governo seja uma espécie de frente com compromissos básicos em comum.
Até aqui, a aliança para eleger o novo presidente da Câmara dos Deputados, a unidade na defesa do uso da ciência e a solidariedade à ex-presidente Dilma nos permitem esperança na possibilidade de uma unidade por uma presidência com sanidade mental e valores democráticos.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Cristovam Buarque: Obscurantismo na luz
Nossos textos básicos precisam ser conhecidos e respeitados pelo que iluminaram do nosso passado. Mas, para que iluminem o futuro, é preciso saber o que eles obscurecem: um país racista, violento, desigual e atrasado por não cuidar da educação de sua população''
Casa grande e senzala é uma das mais substanciais obras iluminadoras do passado, mas obscurece ao dar a ideia de que o Brasil é uma democracia racial. Quando publicado, fazia menos de 50 anos da Lei Áurea, depois de mais de três séculos de escravidão. Mesmo assim sugere que a relação entre senhores e escravos, especialmente com escravas, indicaria falta de racismo, apesar da exploração brutal contra eles.
No caso das relações sexuais, tratava-se de ato de violência, não gesto de tolerância. Apesar dessa violência ter mestiçado a cor de nossa gente, ela era produto do machismo, da supremacia branca e do poder escravocrata. Ela não quebraria o racismo porque a fábrica do racismo não está na genética que mestiça a pele, mas na educação que forma a mente: tolerante ou racista, conforme os ensinamentos. Não é a cama, é a escola que constrói a democracia racial.
Casa grande e senzala, apesar de seu texto genial que ilumina muito do nosso passado, obscureceu o papel da educação na construção do Brasil que somos, porque não analisa a formação da mente escravocrata por falta de educação para os escravos e educação preconceituosa para os senhores. Ausência de educação para uns e promoção da ideia de supremacia branca para outros.
Gilberto Freyre não é o único que obscurece ao iluminar. Sérgio Buarque de Holanda escreveu um livro iluminador das raízes brasileiras, mas obscureceu nossa realidade, mesmo sem ter a intenção, por dar origem ao estereótipo do “homem cordial”. O homem brasileiro pode ser informal, simpático, divertido, mas se fosse cordial não aceitaria a brutalidade que jorra por todos os poros de nossa sociedade. Sérgio Buarque de Holanda formulou o conceito de “homem cordial” para indicar a aceitação das maldades sem revolta política; não queria, mas obscureceu nossa realidade, ao dar origem ao falso estereótipo de que somos plenos de cordialidade e não de aceitação e conivência com a maldade.
Por quase toda nossa história, o brasileiro branco praticou a maldade da escravidão. Depois da abolição, continuamos campeões de desigualdade, de analfabetismo, exclusão social, violência, destruição de florestas e genocídio contra povos indígenas; implantamos um sistema de apartação, mas acreditamos ter índole cordial. Isso faz com que nossos intelectuais, poetas, músicos e escritores de ficção raramente manifestem horror diante de nossa realidade. Muitas vezes glamourizam a pobreza e a desigualdade. Castro Alves é uma das exceções.
Poucos de nossos intelectuais foram tão iluminadores como o grande Celso Furtado, com diversos de seus livros, especialmente Formação econômica do Brasil. Além de iluminar o passado, inspirou o futuro com propostas para romper as amarras do atraso e promover o desenvolvimento econômico do Brasil. Furtado avançou no papel do progresso tecnológico, da criatividade e da cultura na indução ao desenvolvimento, mas ao concentrar sua interpretação na economia, teve reduzida a importância da educação de base universal como vetor do progresso ou causa do atraso.
Os intérpretes da nossa formação — uma das exceções é Darcy Ribeiro — ajudaram a alienar a consciência nacional da importância da educação como fator de progresso. Essa é uma característica dos intérpretes brasileiros e também dos latino-americanos. Eduardo Galeano formulou a formidável metáfora das “veias abertas” para explicar o atraso latino-americano, devido ao saque imperialista de nossas riquezas materiais, obscurecendo que nosso atraso decorre sobretudo dos “neurônios tapados”, por falta de cuidados educacionais por opção de nossos dirigentes, de direita ou esquerda, nestes 200 anos de independência.
Com a obra Dependência e desenvolvimento na América Latina, Fernando Henrique Cardoso deu contribuição iluminadora ao identificar a dependência econômica como uma das causas de nosso atraso, mas reduziu a culpa de nossa elite dirigente e não deu importância à falta de qualidade e de equidade na educação de base. Tampouco que a falha foi nossa, e não de nações estrangeiras. Stephen Zweig, no livro Brasil: país do futuro iluminou nosso potencial, mas passou a ideia de que bastava esperar. O progresso chegaria sem esforço.
Nossos textos básicos precisam ser conhecidos e respeitados pelo que iluminaram do nosso passado. Mas, para que iluminem o futuro, é preciso saber o que eles obscurecem: um país racista, violento, desigual e atrasado por não cuidar da educação de sua população.
*Cristovam Buarque é professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Cristovam Buarque: Vacina contra o Atraso
Escola de qualidade para todos, uma questão nacional
O Brasil percebe que o seu sistema de vacina imunológica deve ser resultado de esforço e estratégia nacionais. Mas se recusa a tratar a vacina contra o atraso, a escola de qualidade para todos, como uma questão nacional.
Os Estados Unidos surgiram como união de estados independentes, sem intenção clara de ser um país unificado. Entre 1776 e 1861, a escravidão foi deixada como opção de cada estado. Para impor a vontade nacional de abolir a escravidão foi preciso uma guerra civil. No século do trabalho livre, os Estados Unidos entenderam que a Abolição não era uma questão de cada estado. No século do conhecimento, o Brasil precisa entender que educação é uma questão federal, não municipal.
Nascemos com a unidade de um Estado Imperial. A Abolição foi aceita por todos “estados” e municípios. Até porque já não interessava manter a escravidão no único país do Ocidente que ainda tinha este regime desumano, bárbaro, repulsivo e atrasado economicamente.
Mas cultura escravocrata se manteve na sua última trincheira, ao negar escola aos filhos dos ex-escravos e dos pobres em geral. É graças a isto que se mantém formas de trabalho servil, desigualdade, improdutividade, pobreza, racismo e o atraso nacional. Ingressamos na Era do Conhecimento oferecendo educação de qualidade conforme a renda da família e a receita e a vontade do município onde a criança mora. Além de indecente, porque sacrifica a vida da criança, esta diferenciação é estúpida, porque desperdiça o potencial de dezenas do principal fator de produção nos tempos atuais: o cérebro. A educação é o cimento da nacionalidade e a ferramenta do progresso. Impossível conseguir isto se a qualidade da escola depende da renda e do endereço.
Se olharmos para o futuro com o propósito de quebrar as amarras do atraso e construirmos progresso econômico e social, vamos perceber que o Brasil precisa de um sistema nacional para a educação de base de todas suas crianças. Nos últimos 40 anos, fizemos dezenas de leis e programas para o governo federal apoiar, sem responsabilizar-se os quase 7.000 sistemas educacionais mantidos e geridos pelos municípios. Melhoramos quando nos comparamos com o nosso passado, mas ficamos para trás e abrimos brechas ficando para em relação aos outros países; também em relação ao que um aluno de hoje aprende, comparado com o que precisa saber; e aumentando a brecha entre a educação dos pobres e a dos ricos.
A implantação de um sistema nacional é uma necessidade a ser implantado em uma estratégia ao longo de anos, voluntariamente, nos municípios que desejem.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador.
Cristovam Buarque: IDH - A culpa é nossa
Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo
O atual Presidente da República é o menos dotado de inteligência, capacidade gerencial, empatia social, espírito de tolerância e gosto pelo diálogo entre todos os que foram eleitos ao longo dos 130 anos de República; isto não justifica jogar sobre ele a responsabilidade pela queda da classificação do Brasil na escala do IDH. Ignorar a responsabilidade dos governos anteriores é uma forma de negacionismo, mentira que impede conhecer a realidade e aprender com os erros.
O IDH de cada país foi definido por dados de 2019, mas resultantes de anos e até décadas de descasos anteriores. A culpa, portanto, é dos governos precedentes ao longo de toda a República, especialmente nos 33 anos da nova democracia, dos quais 26 por governos progressistas, 13 dos quais de esquerda. A piora na renda per capita entre o IDH anterior e o atual não ocorreu por causa de 2019, mas devido a recessão iniciada em 2014. Os efeitos do período Bolsonaro serão vistos no futuro, e tudo indica que teremos quedas ainda maiores. Mas esta queda foi culpa nossa, não dele. Até porque nosso IDH melhorou ligeiramente, outros cinco países melhoraram mais e nos superaram.
Nisto está nossa falta: melhoramos ficando para trás, sobretudo em educação. Depois de quase 50 anos de medidas paliativas, avançamos piorando ao ampliar três brechas: avançamos, mas os outros países avançaram mais; a educação dos pobres melhorou, mas a dos ricos mais; estudamos mais, entretanto, o que ensinamos aumentou menos do que o que o mundo moderno exige.
Tudo indica que os países vizinhos, inclusive mais pobres, erradicarão o analfabetismo de adultos antes do Brasil. Os que se preocupam com a educação investem em escolas privadas para resolver o problema de seus filhos, não do país. Não têm educação de qualidade como propósito nacional, apenas para seus filhos, ignoram a educação de todos que é utilizada para calcular o IDH. Não vemos a necessidade de executarmos uma estratégia nacional consistente a longo prazo, para termos educação de qualidade para todos, sem o que o IDH não sobe em relação aos outros países.
A resistência à essa estratégia decorre, em primeiro lugar, de que não e gostarmos de longo prazo, preferimos as ilusões dos pequenos passos – Fundef, Fundeb I e II, Piso Salarial do Professor, Merenda, Livro Didático, PNE-I e II, IDEB, ENEM. Tudo certo e tudo insuficiente. Em segundo lugar, porque educação com a máxima qualidade pelos padrões internacionais não é um sonho brasileiro, ainda menos a crença de que a escola deve ter a mesma qualidade independente da renda e do endereço da família. Preferimos nos comparar pelo padrão FIFA do que pelo padrão PISA ou IDH. Nestas condições, dificilmente vamos ter uma estratégia de longo prazo para o governo federal adotar a educação de base nas cidades pobres. o apego municipalista prefere sacrificar as crianças das cidades pobres a entregar as escolas municipais ao governo federal.
Por isto, daqui a dois anos teremos novas surpresas tristes com o PISA e com o IDH e jogaremos a culpa no governo do momento, esquecendo os erros de todos nós no passado e relegando a tragédia no futuro.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Cristovam Buarque: É o futuro, esquerda
Em pleno século XXI, nossa direita ainda não aceitou a Lei Áurea e a esquerda não percebeu a queda do Muro de Berlim. A primeira mantém a divisão do Brasil entre Casa Grande e Senzala, por isso o capitalismo continua amarrado ao passado. A segunda conserva as mesmas ideias que vêm do socialismo dos séculos XIX e XX.
Não dá para ter ilusão no reacionarismo atávico da direita, que não vai se reciclar para o capitalismo moderno, dinâmico, inclusivo e sustentável. Difícil ter esperança na esquerda atual, porque não está sintonizada com a realidade de transformações que ocorrem no mundo. Uma está do lado dos donos, a outra do lado dos trabalhadores agregados à Casa Grande, sem propostas transformadoras para o futuro.
A direita olha o presente, querendo manter privilégios para a minoria; a esquerda reivindica privilégios para trabalhadores e gestos solidários com o neoliberalismo social, como bolsas e cotas. A esquerda tem sensibilidade social, mas não tem proposta para um novo sistema econômico e social. Defende os sem-teto no presente, mas não tem estratégia para fechar a fábrica de sem-teto da estrutura social brasileira.
A direita sempre repudiou e a esquerda aposentou a palavra revolução, depois que suas ideias ficaram velhas e suas corporações conseguiram sentar à mesa da Casa Grande. Defende ampliação de universidades, mas não se empenha em erradicar o analfabetismo e garantir educação de base com qualidade igual para todos; defende os que já estão no sistema de aposentadoria, não os que estão fora dele; os sindicalizados, não os excluídos; os sem-teto, não o fim da exclusão.
Com individualismo e egoísmo, a direita repudia o Estado quando ele tenta beneficiar os pobres, e a esquerda não percebe que sem reformas o Estado se esgota porque seu gigantismo o faz ineficiente, seu elitismo atende mais a interesses da própria máquina que da população; seus dirigentes se viciaram na corrupção. Nosso estatismo faz parte da Casa Grande. Não aceita que estatal não é sinônimo de público nem de popular.
A esquerda não vê que a mudança no perfil da pirâmide etária exige reforma da previdência; nem que o avanço técnico exige reforma trabalhista. Entende que a globalização é invenção do capitalismo e não a marcha da civilização industrial. Não percebe que a política não se faz por partidos polarizados, mas por partidos com divergências e convergências. A esquerda não entende que inflação é roubo à população e que é preciso quebrar a tradição de governos conservadores de gastar mais do que se arrecada, jogando a conta para o povo.
Não percebe que a economia não é mais realizada apenas pelo capital, trabalho e recursos naturais; porque dois novos fatores são fundamentais: conhecimento, que se produz na educação, e confiança, que exige regras duráveis, especialmente com moeda estável. Deve reconhecer que consumidores e investidores devem tirar proveito do mercado e não ignorá-lo. Ela ainda não quer entender que limites ecológicos ao crescimento exigem mais do que proteger o meio ambiente: requer substituição do PIB por novos indicadores de progresso.
A esquerda não pode mais representar apenas trabalhadores agregados à Casa Grande e deve entender que luta de classes se faz na divisão de recursos públicos no orçamento de governos para revolucionar a estrutura social na direção da inclusão, sustentabilidade e eficiência. Ela deve sair do tempo de reivindicar para o de lutar pela distribuição de recursos públicos, enfrentando os que perdem privilégios, mordomias, vantagens e subsídios. Sobretudo, entender que neste século o vetor do progresso econômico e social é a educação. Por isso, deve radicalizar e defender que todas as escolas tenham a mesma qualidade, indicando como fazer isso, determinando prazo e custos e quem os pagaria. Esta seria a revolução possível e necessária hoje.
O problema da esquerda é que, prisioneira do presente eleitoral e de alianças corporativas, não tem ousadia de olhar para o futuro, nem de defender as ideias que ele exige. O problema político do Brasil não é só falta de sensibilidade da direita, ainda escravocrata, mas de compreensão da esquerda saudosista e corporativa. Ambas atrasadas: uma 100 anos, a outra 30; as duas olhando o mundo desde a Casa Grande, uma com olhares de senhores, a outra dos agregados. As duas conservadoras.
*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Cristovam Buarque: Letras e Cores
Passadas as eleições municipais, as lideranças nacionais se dedicam a imaginar alianças para 2022. Tentam composições com base em nomes de candidatos e siglas. Não se fala qual o propósito de cada aliança, salvo vencer o nome e a sigla do adversário. Uma disputa por letras, não por cores.
Deve ser assim nos países onde tudo funciona bem e o presidente deve apenas gerenciar o governo. Mas diante da crise que o Brasil atravessa, as siglas deveriam ser menos importantes do que as cores das propostas para o futuro.
As alianças deveriam construir as bases políticas para enfrentar:
- a violência generalizada que domina nossas cidades;
- quais os instrumentos para manter a estabilidade monetária;
- qual estratégia para retomar o crescimento econômico com sustentabilidade; para eliminar a tragédia da pobreza, e desfazer a brutal desigualdade de renda entre pessoas e regiões;
- como dar eficiência na gestão, eliminar corrupção e garantir ética na definição das prioridades do Estado;
- como elevar a qualidade e garantir equidade na educação de base, independente da renda e do endereço do aluno e como erradicar o analfabetismo de adultos;
- o que fazer para transformar nossas “monstrópoles” em centros urbanos eficientes e conviviais;
- o que fazer para assegurar acesso de milhões de brasileiros a um endereço limpo, com água potável, coleta de lixo e esgoto;
- quais medidas poderão dar futuro à juventude;
- como recuperar o prestígio perdido pelo Brasil no cenário internacional, por causa das decisões do governo, nos últimos dois anos;
- que ações para assegurar emprego, sem perder eficiência, nem competitividade, neste tempo de modernização;
- quais e como fazer as reformas do Estado: fiscal, trabalhista e política, para sintonizar o Brasil com os rumos do progresso mundial;
- como eliminar os privilégios que caracterizam a sociedade brasileira e tiram legitimidade do poder público.
As letras de nomes e de siglas ficam sem sentido se não tiverem cores definidas pelos propósitos das propostas de cada candidatura para o futuro. Mas não se vê debate sobre cores, apenas letras que amarrarão o Brasil no seu passado, qualquer que seja a sigla e o nome vitorioso.
*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Cristovam Buarque: Sem Teto e Sem Futuro
Radicalismo solidário não é o bastante
Boulos trouxe uma cara nova para a esquerda, mas não apresentou ideias novas da esquerda. Trouxe o radicalismo solidário, decente e justo de não aceitar um sem-teto em frente a edifício sem morador, mas não defendeu reformas necessárias para fechar a fábrica de sem-teto que caracteriza a estrutura social brasileira. Ele aproximou a esquerda dos sem-teto, mas não dos sem-futuro: uma utopia para o Brasil, a ser construída sobre bases sustentáveis. Ele ressuscitou a solidariedade que a direita nunca teve nem terá, e a esquerda eleitoreira e sindical perdeu; mas passou a ideias que foram soterradas pela evolução da realidade. A impressão é que a esquerda não percebeu que o Muro de Berlim caiu, e a direita não aceita que a Lei Áurea foi proclamada.
Não percebemos que o Estado se esgotou financeira, ética e gerencialmente. Seu gigantismo se fez ineficiente e atende mais aos interesses da própria máquina do que aos da população. Não aceitamos que estatal não é sinônimo de público, ainda menos de popular. Não vimos que para servir melhor aos interesses do povo é preciso considerar a inversão na pirâmide etária e a velocidade do avanço técnico, que a realidade exige reformas econômicas.
Não entendemos que a globalização, não é uma invenção do capitalismo, mas uma marcha da civilização industrial, e que o papel do progressista é tirar proveito dela para todos.
Não percebemos que a política não se faz mais por partidos em polarizações nítidas, mas por meios complexos com divergências e convergências, dezenas de agentes nem sempre organizados. Ainda não entendemos que inflação é uma forma de corrupção que rouba o salário do trabalhador; e que por isto a estabilidade monetária é do interesse do povo, especialmente dos pobres. Não percebemos que além do trabalho e do capital, a Confiança dos investidores e consumidores também é um fator para o bom funcionamento da economia.
Ainda não queremos entender que os limites ecológicos ao crescimento exigem mais do que proteger a natureza, exigem substituir o PIB por novos indicadores de progresso.
Sobretudo, não entendemos que educação é o vetor do progresso, tanto econômico quanto social. Por isto não radicalizamos na defesa de que as escolas dos pobres devem ter a mesma qualidade que as escolas dos ricos Não apresentamos como se faria isto, em quanto tempo, quanto custaria e quem pagaria.
O problema da direita é seu reacionarismo, social, insensibilidade e opção pelos ricos, sem desejar um país integrado socialmente; o da esquerda é a opção pelos sindicatos, não pelo povo, e sua prisão ao presente eleitoral e a ideias progressistas em um mundo passado. Por isto, conseguimos cara nova para radicalismo solidário mas não radicalismo reformista para construir utopias novas. Queremos corretamente atender aos sem-teto, no presente, mas não propomos um Brasil futuro sem sem-teto. Não temos tido ousadia de olhar para o futuro, nem defender as ideias que ele exige. A direita não aceita plenamente a abolição da escravidão, a esquerda nega a queda do muro de Berlim.
*Cristovam Buarque, professor emérito da Universidade de Brasília
Cristovam Buarque: “Eu não sou brasileiro?”
''Educação é um direito de cada brasileiro e, também, o vetor para o progresso de todos os brasileiros. 'Eu não sou brasileiro?' é um grito tão importante moralmente quanto 'vidas negras importam' e tão relevante politicamente quanto 'independência ou morte', 'viva a República', 'queremos democracia'"
Ao assistir pela televisão um homem negro sendo espancado até à morte, imaginei-o gritando: “eu não sou brasileiro?”. Foi o grito de um negro perguntando “eu não sou um ser humano?” que despertou o movimento contra a escravidão, na Inglaterra, no século XIX. Se ele era um ser humano, como puderam arrancá-lo de sua família e de sua vila na África, forçando-o a caminhar por centenas de quilômetros, jogando-o em um navio fétido, por meses no mar, através do Atlântico, vendendo-o como animal e obrigando-o ao trabalho forçado por toda sua vida, assim como a seus filhos e netos? Milhões de pessoas negras viveram e morreram nessas condições, sob a aceitação dos brancos.
Aquela pergunta ajudou a despertar os ingleses para a indecência da escravidão, a incentivar a luta abolicionista e a provocar a emancipação dos escravos em 1834, em todas as colônias inglesas. No Brasil, a pergunta não foi ouvida. Esperamos ainda meio século, para sermos o último país do Ocidente a abolir a legalidade da escravidão. A Lei Áurea proibiu, em 1888, a venda e a compra de pessoas, impedindo que negros fossem propriedade de brancos.
Mas quando, em 2020, olhamos as estatísticas de assassinatos, pobreza, violência, renda, desemprego, moradia, saúde, educação, um brasileiro negro tem razão em perguntar: “eu não sou brasileiro?”. Igualmente se justifica a pergunta de milhões de crianças pobres, brancas ou negras: “se sou brasileira, como podem me negar escola com a mesma qualidade da escola de outras crianças brasileiras?”.
A escravidão se faz sob a forma do cativeiro ou negando-se educação; a primeira escraviza o corpo, a outra o intelecto. De qualquer forma é escravidão, porque o ser humano tem corpo e mente: a liberdade exige o fim da escravidão do corpo e o acesso da mente à educação.
A Lei Áurea proibiu a comercialização de vidas negras, mas manteve as algemas do analfabetismo e da baixa educação que ainda aprisionam, devido à falta de conhecimento e consequente desemprego, forçando trabalhos em condições desumanas com salários insuficientes, impedindo a liberdade plena para todos os pobres, cuja imensa maioria é descendente dos escravos. Impede também o Brasil de se beneficiar do trabalho com alta produtividade graças à educação da mão de obra. Por isso, cada adulto pode se perguntar: “se eu também sou brasileiro, por que me negaram uma educação de qualidade no passado, e no presente fazem o mesmo com meus filhos? Por que 132 anos depois da Abolição, Escolas-Casa-Grande para uns e Escola-Senzala para nós?”
“Eu não sou brasileiro?” pode ser perguntado por cada um dos 12 milhões que não sabem ler o lema na bandeira do Brasil e por dezenas de milhões que sabem ler palavras, mas não conseguem entender plenamente um livro com a história do país; e pelos milhões sem coleta de esgoto em suas casas, sem comida para seus filhos.
Ao ver a fartura nos bairros ricos, o pobre brasileiro tem razão em perguntar “eu não sou brasileiro?”, tanto quanto os negros da África do Sul se perguntavam “eu não sou sul-africano?”, ou os judeus, durante o holocausto, indagavam “eu não sou ser humano?”. Na ótica da escravidão, do apartheid e do nazismo, nem todos eram considerados seres humanos. Na hipocrisia da nossa democracia, dizemos que todos os brasileiros têm o mesmo direito, mas as crianças que ficam em Escolas-Senzalas, que aprisionam o futuro delas, têm direito à pergunta de todos os que sofrem holocaustos – na escravidão, no apartheid, no nazismo, ou no holocausto educacional que incinera cérebros no Brasil, dizendo que são cérebros de brasileiros.
Essas perguntas se justificam do ponto de vista moral, por alguns, mas também do ponto de vista patriótico, por todos nós. Porque negar escola de qualidade é deixar milhões de cérebros para trás, sem desenvolver o potencial de cada um deles; é imoral, como última trincheira da escravidão, e é uma estupidez por ser um muro contra o progresso nacional.
Educação é um direito de cada brasileiro e também o vetor para o progresso de todos os brasileiros. “Eu não sou brasileiro?” é um grito tão importante moralmente quanto “vidas negras importam”, e tão relevante politicamente quanto “independência ou morte”, “viva a República”, “queremos democracia”. Ela pode despertar a consciência, tanto do ponto de vista moral do direito de cada criança, quanto do ponto de vista político do interesse nacional, do conjunto de todos os brasileiros.
Pena que ainda não descobrimos a força dessa pergunta, feita por um escravo na Inglaterra, 200 anos atrás.
*Cristovam Buarque professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Cristovam Buarque: Desculpas pelo atraso
Não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para todos
No dia seguinte ao pleito de 15 de novembro, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do TSE, pediu desculpas pelo atraso de algumas horas na divulgação dos resultados eleitorais. Surpreende que ninguém antes tenha pedido desculpas pelo atraso educacional de cem anos. Nem temos a quem responsabilizar: não há TSE da educação nacional.
Presidentes e ministros cuidam de universidades e escolas técnicas, enquanto a educação de base é responsabilidade de quase 6 mil prefeitos e alguns governadores. A população com renda não culpa o governo, porque utiliza escolas particulares; os pobres acostumaram-se a ver a escola como restaurante para os filhos receberem merenda. O eleitor não dá à educação a mesma atenção que ao resultado rápido da eleição.
Todos os presidentes e políticos, desde 1889, especialmente depois de 1985, devem pedir desculpas pelo atraso e pela desigualdade educacional no Brasil.
Fui ministro por 12 meses e devo pedir desculpas por não ter construído força política para me manter no cargo pelo tempo necessário para implementar as ferramentas que defendo, e iniciei, como a Escola Ideal, embrião de um sistema nacional de educação de base. Como governador, implantei a Bolsa Escola e diversos programas na educação de base no Distrito Federal. Como senador, criei duas dezenas de leis, como a do Piso Salarial Nacional dos Professores, a obrigatoriedade de vaga desde os 4 até os 17 anos de idade. Mas nada disso mudou a realidade. Como candidato a presidente só consegui 2,5% dos votos.
Reitero as desculpas por não ter convencido a opinião pública de que educação é o vetor do progresso e a estratégia para isso passa pela nacionalização do sistema municipal. A educação não será de máxima qualidade, nem será igual nas 200 mil escolas do Brasil, enquanto a responsabilidade pela educação das crianças brasileiras não for do governo federal.
Para isso cinco passos são necessários: 1) transformação do MEC em ministério com a responsabilidade exclusiva de cuidar da educação de base; 2) criação de uma carreira nacional do magistério, todos os professores com muito boa formação, avaliados permanentemente, com dedicação exclusiva e, para isso, muito bem remunerados; 3) prédios escolares com a máxima qualidade e instalações culturais e esportivas; 4) escolas com os mais modernos equipamentos da pedagogia, que permitam saltar das tradicionais aulas teatrais para as aulas cinematográficas com recursos da teleinformática, adotando métodos que desenvolvam a criatividade; 5) todas as escolas em horário integral.
Raríssimas cidades são capazes de financiar a execução dessa estratégia. Ela requer processo de nacionalização da educação de base ao longo de alguns anos, com adesão voluntária de cidades que queiram substituir seus frágeis sistemas educacionais por um robusto sistema nacional.
O custo para ter essa “escola ideal” é de R$ 15 mil/ano por aluno. Valor que permitiria financiar todos os gastos e investimentos e pagar salário de R$ 15 mil ao professor por mês, em salas com 30 alunos. Esse salário faria do magistério uma profissão atraente, permitindo que o selecionado aceitasse ir para a cidade que lhe fosse determinada, com dedicação exclusiva à sua escola e submetido a avaliações periódicas. Num ritmo de 300 cidades por ano, o novo sistema chegaria a todo Brasil em 20 anos. Se o PIB crescesse a um ritmo médio de 2% ao ano, o sistema nacional custaria cerca de 7% do PIB, para atender 50 milhões de alunos.
Considerando que o número de alunos deverá ser menor e que as novas técnicas permitirão diminuir o custo por aluno, a dificuldade dessa estratégia é política: convencer os ricos de que a escola com qualidade apenas para seus filhos amarra o progresso do País e limita o bem-estar e o futuro de todos; e os pobres, de que seus filhos têm direito a uma escola que ofereça muito mais do que merenda e seja tão boa quanto as melhores do país. Convencer também os políticos de que terão de enfrentar eleitores mais conscientes; e mostrar aos sindicatos que os interesses dos professores devem ser associados aos interesses das crianças, da educação e do futuro do país.
Não será fácil atrair a população para a ideia de que as escolas brasileiras poderão ser tão boas quanto as de países com educação de qualidade. E que crianças pobres devem ter escolas com a mesma qualidade das dos ricos.
No final do século 19 tivemos dificuldade para convencer que era possível o Brasil ser um país industrial e para isso era preciso abolir a escravidão. Agora o desafio é convencer que sem escola com a máxima qualidade para todos não completaremos a Abolição, nem avançaremos para o progresso com eficiência econômica, justiça social e sustentabilidade ecológica no mundo global da civilização que caracteriza o século 21. Antes não tínhamos futuro com a escravidão, agora não teremos futuro sem escola com máxima e igual qualidade para todos. E que nenhum cérebro seja deixado para trás. Enquanto isso não for feito, precisamos pedir desculpas pelo atraso a que condenamos o Brasil.
*Professor Emérito da Universidade de Brasília
Cristovam Buarque: Dúzia de Trumps
Partidos sem estratégia para o Brasil
Na mesma semana em que Donald Trump afirmou sua vitória contra Biden, dirigentes do PT comemoraram vitória nacional do partido nas eleições municipais. Sofrem da mesma doença: o negacionismo. Mas não são os únicos. Nos mesmos dias, outros comemoraram o fim do PT, negando duplamente a realidade: primeiro, porque este partido tem uma base sólida, está longe de acabar; segundo, porque estes que comemoram a derrota do PT, não têm vitória a comemorar, ao negar a verdadeira dimensão de nossa crise de falta de coesão e rumo, e não terem alternativa para o futuro do país.
O PSOL que se apresenta como vencedor sobre o PT e os partidos conservadores, é uma simpática novidade no nome e na sigla, mas não traz novo rumo para um Brasil sintonizado com o futuro: eficiente na economia, justo na sociedade e sustentável na natureza. Tem a mesma matriz ideológica do PT, sem o ônus de ter passado pelo poder. É a mesma concepção negando as mudanças que ocorrem na civilização industrial: os limites ecológicos ao crescimento, o esgotamento fiscal do Estado, o reacionarismo do corporativismo, a globalização, a instantaneidade nas comunicações, a elitização das classes trabalhadoras do setor formal, a mudança no perfil da pirâmide etária, a robotização e a inteligência artificial. A vitória fez bem ao cenário nacional do presente, mas não aponta uma esperança para o futuro.
Na direita, os que comemoram a vitória são responsáveis, juntos com os democratas-progressistas, pelo Brasil com dramáticos e vergonhosos indicadores sociais, com uma economia ineficiente, sem competitividade, nem inovação, salvo no mesmo setor de 500 anos atrás, agricultura e mineração.
Nenhum dos vitoriosos, na direita ou na esquerda, tem projeto estratégico para o país. Negam responsabilidade nas décadas de atraso e de injustiça, sem vigor transformador, sem olhar para o futuro; imaginando que basta arrumar a sociedade atendendo aos interesses corporativos e identitários, graças a recursos ilimitados do Estado. Negam a realidade e acreditam em mágica. Os centros comemoram vitória sem perceber que são muitos e sem propostas, divididos entre uma parte que quer aderir e outra que quer derrotar o governo.
Não estão vendo a realidade: o estancamento econômico, o tamanho da tragédia social, nem o vazio de propostas para o futuro. Uma dúzia de Trumps.
*Cristovam Buarque foi ministro, senador e governador
Cristovam Buarque: Apagão invisível
Certos apagões são mais visíveis que outros. Quem sobrevoa, à noite, ou caminha, de dia, pelas cidades do Amapá, percebe o apagão de energia elétrica, mas quem anda pelas ruas brasileiras não enxerga o apagão educacional que amarra o progresso econômico e a justiça social no Brasil inteiro ao impedir o desenvolvimento e o uso da energia potencial que há em cada cérebro. O apagão educacional é invisível, porque ele impede tanto sua percepção, quanto a identificação de suas causas. No Amapá, foi um raio, no resto do Brasil foi desprezo histórico à educação.
Recentemente, um trabalho acadêmico mostrou como a cor da pele vai escurecendo na medida em que se segue da Zona Sul para a periferia no Rio de Janeiro. Mas o estudo não diz que o número de anos de escolaridade vai diminuindo quando se caminha dos bairros nobres para os bairros pobres. Não é apenas a cor que escurece, é também o apagão educacional que vai se intensificando. Não deve haver analfabeto entre jovens de Ipanema e a maior parte deles estuda ou já concluiu algum curso superior. Na periferia, ainda é grande o número de analfabetos plenos ou funcionais, e são raros os que fazem cursos universitários, especialmente os mais demandados. A perversa geografia do racismo se sobrepõe e decorre da geografia e do apagão educacional. As pessoas veem a geografia do racismo sem perceberem que ela deriva do nível educacional a que as populações pobres foram condenadas. Além dos resquícios da escravidão, a geografia das raças é consequência da geografia da educação.
O apagão educacional é a causa do atraso econômico e da desigualdade social. Isso não é percebido porque o apagão educacional provoca o analfabetismo político, que esconde a causa de nossos problemas nacionais. Por não perceberem isso, alguns bem intencionados propõem superar a desigualdade educacional apenas com incentivos para ingresso no ensino superior, sem cuidar da educação de base para todos. Não percebem, ou não dizem, que isso beneficiará raríssimos e mesmo estes não entrarão nos cursos mais procurados e de maior prestígio. E mesmo estes raríssimos não conseguem acompanhar as exigências de seus cursos, se não tiveram boa educação de base.
Em reportagem para o programa Fantástico, da TV Globo, a jornalista Sônia Bridi apresentou, de forma enfática, a discriminação educacional no Brasil, mostrando que cada brasileiro, desde cedo, tem acesso a uma das três escadas sociais: uma tradicional de cimento, que permite a poucos gênios ascenderem com muito esforço; outra moderna rolante, que leva para cima com pouco esforço; e uma terceira, moderna rolante, mas que roda no sentido contrário ao propósito da subida.
A primeira é a escola sem qualidade em uma cidade tranquila para filhos de pais com alguma motivação para o estudo dos filhos; a segunda é a escola de qualidade em bairros protegidos e casas com pais educados; a terceira é aquela que atende aos meninos e meninas em quase-escolas com pais sem educação, em bairros sem serviços públicos e com violência.
Estas três escadas, em funcionamento há décadas, não vão eliminar o apagão. Nem mesmo um Ministério temos ao qual recorrer, porque nosso Ministério da Educação cuida do Ensino Superior e do Ensino Profissionalizante, deixando as 200 mil escolas por conta e responsabilidade dos municípios pobres e desiguais.
Diante do apagão visível no Amapá, o Brasil inteiro se mobilizou, mas não se mobiliza para superar o apagão invisível da educação.
A solução conhecida é deixar uma só escada moderna para todos os brasileiros, independentemente da renda, do endereço, da cor: um só sistema educacional ao qual tenham acesso ricos ou pobres, brancos ou negros, habitantes de bairros nobres ou da periferia, com todas suas escolas com a máxima qualidade, todos seus professores muito bem remunerados, bem formados e com dedicação exclusiva ao magistério, contando com edificações completas e equipamentos modernos, em horário integral.
A perversa geografia da desigualdade só será vencida quando acabar a mais brutal das geografias, da desigualdade educacional, a mãe de todas as desigualdades. Mas isso não ocorrerá enquanto nossos dirigentes, eleitos e eleitores, não perceberem o apagão educacional que faz do Brasil um buraco negro, que não mostra sua falta de luz, mantendo o apagão invisível e escondendo as causas que o apaga.
*Cristovam Buarque, professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)
Cristovam Buarque: Olhando para o umbigo do passado
Os erros dos progressistas
Os conservadores olham para trás, por isto é importante conhecer os erros dos progressistas que devem acenar para a construção do futuro.
O primeiro erro é não perceberem que nos, tempos atuais, Confiança é um fator determinante para o avanço de qualquer economia. Ela não funciona satisfatoriamente sem estabilidade monetária, ética na política, instituições sólidas com regras permanentes, participação no mundo global, capacidade de poupança, distribuição de renda, paz nas ruas, todos os ingredientes para dar confiança ao mercado, consumidores e investidores.
O segundo erro foi não perceberem que no longo prazo o vetor do progresso está na educação de base com qualidade para todos, tanto para aumentar a produtividade, criar tecnologia e inovação, além de ser o caminho para distribuir renda.
Os progressistas, especialmente aqueles mais à esquerda, não perceberam que “estatal” não é sinônimo de “público”. Este foi o terceiro erro. Uma empresa pode ser do governo, seus trabalhadores empregados públicos, mas seu serviço não servir à população, pela má qualidade, pela ineficiência e custo elevado. Este erro levou-os a preferir apoiar as reivindicações dos sindicatos de servidores do Estado, do que atender às necessidades da população. No lugar de sociais, os progressistas ficaram corporativos.
A base destes erros é que os progressistas não perceberam que os esquemas do passado para explicar e orientar o processo político-social não se aplicam aos novos tempos da globalização, da inteligência artificial, da robotização, das comunicações de massa personalizadas e instantâneas. Por isto, os esquemas de organização partidária baseada na divisão binária, “a favor” ou “contra”, capital versus trabalho, estatal contra privado já não servem para orientar o progresso do país em busca de coesão social e rumo histórico. Isto já aconteceu no passado, quando muitos progressistas republicanos se opuseram à Abolição da Escravidão, porque ela chegava pelas mãos de governo conservador e pelas mãos do Imperador. Eles ficaram prisioneiros dos esquemas políticos tradicionais, monarquia versus república, sem entender que o progresso não estava no regime político, mas no trabalho livre e na abertura do país ao comércio internacional.
Os progressistas de hoje não respondem ao povo e para o futuro, mas aos eleitores do momento emperrando a marcha ao futuro. Não é por acaso que depois de 26 anos no poder, nós progressistas deixamos o quadro social trágico que as estastíscas divulgadas ontem mostram. Os progressistas também não se livraram da tradição sociológica de explicar pobreza como falta de renda e não como falta de acesso aos bens e serviços essenciais, nem todos comprados no mercado.
O maior erro é ficar preso às ideias do passado e ficarem tão reacionários quanto os conservadores. Estes olhando para o passado e nós, progressistas, presos ao presente, olhando para o umbigo.
*Cristovam Buarque foi senador e governador