Cristiano Romero
Cristiano Romero: Populismo, volver?
O populismo jogou a Argentina numa penosa decadência
O populismo costuma brotar nos momentos de fraqueza dos governantes, quando as coisas não vão bem ou quando uma política que promete o paraíso na Terra não dá certo. No caso do governo Jair Bolsonaro, emergiu em menos de quatro meses de mandato. Testado pela primeira crise real de sua gestão, o presidente reagiu de forma populista ao ordenar que a Petrobras suspendesse o reajuste do preço do óleo diesel, que não se move há mais de 20 dias, mesmo em meio à forte escalada do petróleo neste ano.
Esse era o risco mais temido pelos eleitores "móveis", aqueles que vão além da base social de qualquer candidato e que, por puro pragmatismo, são capazes de votar em Dilma Rousseff (PT) numa eleição e em Bolsonaro (PSL) na seguinte, dois extremos do espectro político nacional. Se dependesse apenas dos eleitores que se identificam com suas ideias, Bolsonaro não estaria hoje em Brasília, no comando do país cuja economia é a 9ª maior do planeta, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI) - no auge do último "boom" (2004-2010), chegou a ser a 6ª e nós, brasileiros crédulos, confiamos que ultrapassaria a da Inglaterra, tomando-lhe a 5ª posição. Depois de chegar em 2º lugar em três corridas presidenciais, Lula venceu em 2002 porque os eleitores "móveis" decidiram lhe dar um voto de confiança.
Mas, afinal, como se define um político populista? Populista é aquele que promete durante a campanha eleitoral algo que sabe que não poderá cumprir. É o governante que adota políticas que não cabem no orçamento público. Revestidas de forte apelo social, são deliberações feitas para conquistar eleitores a qualquer preço e, assim, sustentar projetos de poder.
O populismo enfraquece a democracia. Seus adeptos iludem os eleitores com a ideia de que suas ações são legítimas porque atendem aos interesses do cidadão comum, dos pobres e desvalidos. Não é à toa que, mesmo sem representação parlamentar, os pobres constam da "exposição de motivos" da grande maioria das políticas aprovadas em Brasília. Apesar disso, o nível de miséria e pobreza da população segue vexaminoso, escancarando o verdadeiro caráter de iniciativas adotadas em nome dos mais necessitados.
É curioso, por exemplo, que ninguém questione o fato de o Bolsa Família atender hoje praticamente o mesmo número de pessoas (cerca de 50 milhões, quase um quarto da população) que atendia quando o programa foi lançado, há 15 anos. O elogiado esquema de transferência de renda, de inspiração liberal, diga-se de passagem, seria mais efetivo se fosse a base para a emancipação de cidadãos que, por falta de acesso à educação e à saúde, têm desde sempre a miséria como destino e não como partida. Os beneficiários estão cadastrados, o poder público conhece suas necessidades, mas nada é feito para tirá-los dessa situação.
Historicamente, diz-se que o político populista alicia as classes sociais de menor poder aquisitivo. É um fato, mas é preciso registrar que isso só é possível graças à opinião favorável das elites culturais, que, convenhamos, não se importam em estar na companhia desse tipo de polítoco, muitas vezes até lhes dando um lustre intelectual, obviamente, imerecido.
O populismo, claro, não é exclusivo dos partidos de esquerda. A história do país é pródiga nesse aspecto. Até na segunda metade da ditadura militar (1964-1985), foram concedidas benesses, principalmente à classe média, para conter o clamor desse segmento da população pelo retorno das liberdades civis. A conta ficou para as gerações seguintes. Veio na forma de explosão da inflação, baixo crescimento do PIB, contração dos investimentos públicos etc.
Alguns indagam: "Se a medida [de caráter populista] é para melhorar a vida dos mais pobres, então, é válida". Como são adotadas sem lastro no orçamento, políticas populistas provocam, ao longo do tempo, severas crises fiscais que, no fim, aumentam a pobreza, penalizando justamente os grupos sociais que justificaram a adoção das medidas.
A América Latina é o continente onde o populismo fez mais estragos ao longo da história. O caso da Argentina, nação que iniciou o século XX entre as mais ricas do planeta, é o exemplo mais acabado do que os populistas são capazes de fazer. Outro triste exemplo é a Venezuela, onde, para supostamente ajudar os pobres, criou-se um Estado insustentável que transgrediu a democracia e colapsou a economia. Dono da maior reserva de petróleo do mundo, a nação vizinha vive as consequências do populismo desbragado: no ano passado, o PIB teve contração de 18% (neste ano, a expectativa é de novo recuo, desta vez, de 25%), a inflação chegou a incomensuráveis 1.560.000% (é isso mesmo, 1,5 milhão; neste ano, estima-se variação de 10.000.000%) e a taxa de desemprego, a 35%. O caos é a antessala de uma tragédia que pode jogar a nação numa guerra civil, evento que todos julgávamos superados, pela América Latina, depois da década de 1980.
Bolsonaro não foi eleito para fazer um governo populista. Na verdade, ao perceber que a ruinosa gestão de Dilma Rousseff disseminou forte sentimento antipetista na sociedade, ele se apresentou como aquele que, instalado no poder, faria tudo diferente. Em sua peregrinação pelo país e usando as redes sociais como veículos de propagação de sua cruzada, o então pré-candidato ainda tomou o cuidado de não se apresentar como o antiLula. Sabia que, mesmo preso em Curitiba, o ex-presidente gozava de amplo apoio popular e que a principal razão para isso foi o sucesso econômico de seus dois mandatos, medido pela elevada popularidade com que deixou o Planalto Central.
O populismo de Dilma foi do tipo que se adota após o fracasso de políticas mal traçadas, inspiradas em experiências comprovadamente equivocadas, erradas em sua essência. Quando a "Nova Matriz Econômica" fez o avião da economia brasileira embicar - em 2013 -, contrariando a política econômica que levou a ex-presidente ao poder sem nunca ter disputado um cargo eletivo anteriormente, Dilma entrou em modo pânico e passou a adotar freneticamente, dali em diante, medidas populistas que, ao fim da jornada, afundaram o país numa crise interminável e da qual ainda não saímos, passados cinco anos do início do pesadelo.
Cristiano Romero: Forças ocultas?
Ninguém entendeu ainda o que pretende Jair Bolsonaro
A forma como o presidente Jair Bolsonaro está lidando com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), deve ser parte de uma estratégia ainda não compreendida pelos melhores observadores da cena política em Brasília. Ou não, o que torna tudo ainda mais nebuloso e preocupante, uma vez que Maia não integra as fileiras da oposição ao governo, muito pelo contrário. Número 2 da República, o presidente da Câmara se comprometeu com a articulação para a aprovação das mudanças nas regras de aposentadoria - a reforma das reformas - e de projetos relevantes, como o que dá autonomia legal ao Banco Central.
Convidado para um encontro com Maia e Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Bolsonaro decidiu desmoralizar o anfitrião (o presidente da Câmara) ao levar 20 ministros, anulando assim o caráter "petit comité" da reunião. Nas redes sociais, Bolsonaro deu a ideia de que Maia o convidou para oferecer apoio em troca de cargos. Foi um golpe de marketing de resultado pífio e perigoso.
A carreira política de Maia tomou impulso quando ele se elegeu presidente da Câmara no período 2017-2018, um momento extremamente delicado da vida nacional. Dilma Rousseff foi afastada em maio de 2016 - e impedida, em caráter definitivo, de ficar no cargo em agosto daquele ano - em meio a uma das mais graves crises econômicas da história do país, ruína da qual a nação ainda não se recuperou. Impeachment de presidentes eleitos é sempre um processo traumático numa democracia.
No presidencialismo de coalizão, modelo político que grassa no Brasil na ausência de partidos fortes, presidentes da República dependem sobremaneira, para governar, dos presidentes da Câmara e do Senado Federal, especialmente do primeiro. A deposição de Dilma mostrou isso com clareza. A então presidente tentou, em vão, impedir a ascensão ao comando da Câmara do deputado Eduardo Cunha, e este lhe deu o troco - usou uma das prerrogativas do cargo, a decisão monocrática de tirar da gaveta e colocar em tramitação um dos pedidos de impeachment contra a então chefe do Poder Executivo, para derrubá-la.
É verdade que Cunha tentou negociar durante meses um armistício com Dilma, mas a ex-presidente julgava-se, como Bolsonaro, acima dos políticos que, inclusive, integravam sua base de apoio no Congresso e cujos apadrinhados ocupavam milhares de cargos, muitos sem nenhuma qualificação, no enorme aparato estatal nacional. Eleita, Dilma, passou a ter desprezo até pelo responsável por sua chegada triunfal ao poder - Luiz Inácio Lula da Silva -, sem nunca ter sido eleita antes para coisa alguma.
"House of Cards Brazil": quando se tornou público o escandaloso caso da compra superfaturada, pela Petrobras, da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, Lula teria mandado um emissário - o ex-ministro Antonio Palocci, coordenador da primeira campanha de Dilma, em 2010 - informar à presidente que Pasadena ajudou a elegê-la. A reação da mandatária teria sido um festival de palavrões dirigidos ao interlocutor e ao remetente do aviso. Lula decidiu mandar o recado depois de ver Dilma, como presidente do conselho de administração da Petrobras, confessar, em entrevista, que assinara um parecer tecnicamente "falho" em defesa da compra da refinaria em 2006, em pleno governo Lula. Amigos do ex-presidente têm convicção de que Dilma procurou jogar o caso no colo de Lula para conter seu assanhamento para ser o candidato do PT à Presidência em 2014.
Bolsonaro quis mostrar a seus milhões de seguidores nas redes sociais, e com os quais ele acha que governa este imenso país, que repele a "velha política" e que Maia é um exemplo acabado da velhacaria. Duas hipóteses derivam da ação de Bolsonaro:
1) Ao tentar desmoralizar publicamente o presidente da Câmara, ele tenta enfraquecê-lo porque sua desenvoltura em Brasília, segundo assessores, o incomoda desde sempre. Fraco, Maia perderia poder sobre seus pares e, assim, os governistas dominariam a Câmara com o "apoio" das redes sociais, o que facilitaria ao presidente e seus aliados impor sua principal agenda - mudar na marra, com a força das leis, os costumes de uma sociedade marcada pela diversidade e que, desde a redemocratização, vem avançando de forma significativa no quesito tolerância;
2) Qual Policarpo Quaresma, o anti-herói quixotesco de Lima Barreto, Bolsonaro estaria dizendo ao povo que em Brasília só há políticos corruptos que não o deixam governar com decência, idealismo e em favor dele, o povo. Seria, claro, um simulacro, uma vez que Bolsonaro, eleito presidente do Brasil quando ninguém esperava por isso, não compartilha a ingenuidade de Quaresma. A intenção, portanto, seria atirar em Rodrigo Maia para atingir toda a classe política e, desta forma e com o "incrível" apoio das massas, pedir licença para ter poderes excepcionais nesta quadra da vida nacional, momento que, dada a gravidade da crise econômica, demanda líderes fortes, destemidos, obstinados, denodados e, por que não, autoritários.
Ontem, dia em que as tensões na Praça dos Três Poderes se intensificaram, o presidente "matou a reforma e foi ao cinema". O chiste de mau gosto, que se disseminou nas redes qual epidemia, foi inevitável. No clássico "Matou a Família e Foi ao Cinema", de 1969, o cineasta Júlio Bressane mostra um rapaz que mata os pais com uma navalha e, impassível, vai ao cinema. Bolsonaro se mostra solene e imune a paixões em sua marcha contra Maia.
No retrovisor, vemos o seguinte: em 1961, Jânio Quadros comanda governo dividido por forças da esquerda e da direita e, sete meses depois da posse, renuncia, alegando "forças ocultas" e achando que o povo iria às ruas para lhe dar o poder supremo. Ninguém deu o ar da graça porque o presidente se esqueceu de combinar o ardil com os "russos". Collor assumiu em 1990 sem a companhia dos partidos tradicionais. Confiscou, no primeiro ato, o dinheiro dos viventes sem o apoio de PMDB, do PFL etc. Deu tudo errado e um ano depois caiu nos braços da tradição - o PSDB só não aderiu porque Mário Covas não deixou -, o que não o impediu de ser apeado do cargo em setembro de 1992.
Cristiano Romero: Crise em Brasília já consome capital político
Perda rápida de força política pode levar líder ao populismo
Não se tenha dúvida: o escândalo que provocou a queda de um ministro lotado no centro do poder, em menos de dois meses de mandato, já consumiu um pedaço do capital político do presidente Jair Bolsonaro. Todo o alarido em torno do caso mostra que o governo começou a envelhecer cedo, e o alvoroço não foi o primeiro da nova administração.
Houve antes o caso da investigação de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), senador e filho mais velho do presidente, por movimentação financeira suspeita. Queiroz é próximo dos Bolsonsaros há décadas, uma espécie de faz-tudo da família, e no episódio em questão fez depósito na conta da primeira-dama Michelle. Revelou-se, também, a história da mulher que trabalhou no gabinete de Flávio - quando este era deputado estadual - e cujo filho tornou-se foragido das autoridades por suspeita de envolvimento com milícias no Rio. O "House of Cards" da nova era, pelo jeito, promete.
Bolsonaro elegeu-se presidente da República com 57,7 milhões de votos, desbancando as duas forças políticas que governaram o Brasil por quase 22 anos: o PSDB e o PT. Sua surpreendente e meteórica ascensão, cuja explicação ainda não foi totalmente entendida, atropelou a social-democracia brasileira, cujos fundamentos foram forjados na resistência democrática à ditadura militar e na Constituição "cidadã", promulgada em 1988.
O mandatário quebrou uma tradição nacional - a não eleição de candidatos com discurso extremista à direita ou à esquerda - e rompeu o "pacto" que consagrou os pilares da estabilidade política e econômica que o Brasil alcançou, a duras penas, em 33 anos de redemocratização. Aquele pacto só rendeu frutos porque, ao jeitinho brasileiro, não rompeu com as estruturas do patrimonialismo reinante no país desde a descoberta da Ilha de Vera Cruz. Seus dois principais expoentes - Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - foram reformistas, jamais revolucionários.
O atual presidente, que tem perfil completamente distinto ao de FHC e Lula, apresentou-se bem cedo - em 2015, quando o governo Dilma Rousseff, no início de seu segundo mandato, naufragava sem chances de salvação - como o político contrário a "tudo o que está aí". Não se sabe se foi de caso pensado, mas a estratégia teve nuance inteligente do ponto de vista eleitoral: em vez de se mostrar como o antiLula, Bolsonaro vestiu a fantasia do antipetista.
O lulismo é mais forte que o petismo. Lula, mesmo preso em Curitiba, teve 40% da preferência nas pesquisas. O governo ruinoso de Dilma Rousseff, que jogou a economia na mais longa recessão de sua história, com perda de quase 8% do PIB, desemprego recorde e calamidade nas finanças públicas, criou o principal sentimento das eleições de 2018 - o antipetismo. Melhor, então, ser antipetista que antiLula.
Bolsonaro jogou o PT e o PSDB na mesma vala justamente por perceber que os dois tinham características indissociáveis. Em discursos e entrevistas, ministros do novo governo, inclusive Paulo Guedes, liberal da Escola de Chicago que comanda a pasta da Economia, professam fé não apenas contra o PT, a esquerda, o comunismo e o socialismo, mas também em oposição à social-democracia, o que soa ousado nesta Terra de Santa Cruz.
Como costuma dizer o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, no Brasil não há direita nem esquerda. Estamos equidistantes e costumamos ver os extremos com picardia. Isso talvez explique o fato de a maioria não ter compreendido o fenômeno Bolsonaro. A previsão, inclusive do titular desta coluna, era que o então deputado federal, que ninguém levou a sério em 28 anos de Brasília, "derreteria" durante a campanha de 2018.
Bem, se Bolsonaro derrotou a social-democracia, as esquerdas, o centro, enfim, a todos, o que ele quer fazer do Brasil? No discurso, uma pátria liberal, o que implica concluir a "revolução burguesa" tardia, reduzir drasticamente o tamanho do Estado, acabar com os subsídios, privatizar a maioria das companhias estatais e instituir nos trópicos uma economia pró-mercado que nunca tivemos. Tudo isso em meio à debacle do politicamente correto, ao alinhamento automático aos Estados Unidos e à guinada ao conservadorismo no que diz respeito aos costumes.
Um parêntesis: esta é a grande contradição do discurso bolsonarista, afinal, não existe separação entre liberalismo na economia e nos costumes, assim como é inexistente o divórcio entre democracia e liberdade de expressão. Tentativas de se governar a bordo de interesses fortemente dissonantes resultam em fracassos que, na sequência, ameaçam a democracia - Jânio Quadros caiu nessa armadilha.
Bolsonaro nunca foi liberal. Jamais esteve num cargo executivo, o que dificulta a análise. Capitão da reserva, já defendeu o bolivarianismo de Hugo Chávez e entrou na política para defender os soldos e vantagens da carreira militar, sinais da confusão que imperou em sua trajetória política.
Para aprovar a agenda que sua equipe econômica defende, a começar pela reforma da Previdência, o presidente precisará de um estoque de capital político que nenhum presidente brasileiro teve. A agenda econômica é meritória, mas justamente por essa razão esbarra nos interesses arraigados e anacrônicos dos grupos específicos mais poderosos do país, como o funcionalismo público, as grandes empresas privadas, as multinacionais da indústria automobilística, as oligarquias políticas, os bancos e companhias estatais, os sindicatos patronais, os cartéis, os sindicatos patronais e de trabalhadores etc.
O risco de um político popular que perde capital político rapidamente é tornar-se populista. Dilma Rousseff foi um exemplo trágico.
Cristiano Romero: Falta urgência na reforma da Previdência
Déficit do INSS chegará a 3% do PIB 16 anos antes
O Brasil viveu, de 2014 a 2016, a recessão mais longa de sua história. Naquele triênio, perdemos quase 8% de tudo o que produzíamos até então, a renda per capita encolheu cerca de 10% em termos reais (descontada a inflação do período), o número de desempregados superou a trágica marca de 14 milhões de pessoas e outros milhões foram devolvidos ao estado de pobreza. A crise foi tão forte que, pela primeira vez, a recuperação da economia tem sido excessivamente lenta. A rigor, há cinco anos o país não sabe o que é crescer, o que só faz agravar as tensões sociais, numa sociedade em que quase um quarto da população (uma Argentina!) é miserável, sobrevive de esmola do Bolsa Família (o mais barato dos programas sociais) e não vê no horizonte a mínima chance de emancipar-se.
O diagnóstico da tragédia - o estouro irresponsável e criminoso dos gastos públicos entre 2008 e 2015 - que se abateu sobre a 6ª maior economia do planeta é disputado hoje apenas por políticos e economistas que a provocaram. Ora, se no período mencionado o gasto federal cresceu 50% acima da variação da inflação e a arrecadação avançou apenas 17%, não há o que dizer, a não ser "Brasília, nós temos um problema".
O descompasso entre a evolução de receitas e despesas fez a dívida pública aumentar 20 pontos percentuais do PIB em dez anos - de 56% do PIB em 2008 para 76,7% do PIB no ano passado. O governo Temer, uma gestão de transição e, por causa do caos encontrado, revestido de caráter emergencial, começou a pôr a casa em ordem, propôs medidas duras e iniciou o desmonte de uma das principais fontes da irresponsabilidade fiscal que prevaleceu nos quase seis anos da presidente Dilma Rousseff - a concessão de subsídios pelo BNDES, principalmente a grandes empresas, a partir de elevação, da ordem de 10% do PIB, da dívida pública.
A estratégia do governo anterior para enfrentar o problema consistiu em três pontos: obrigar o BNDES a antecipar o pagamento do que deve ao Tesouro, uma vez que o banco estava abarrotado de dinheiro em caixa e só quitaria a dívida em 2065 (!), o tipo de compromisso daquela piada de mau gosto - "no futuro, estaremos todos mortos" -; convencer o Congresso Nacional a aprovar emenda constitucional instituindo um teto para os gastos, impedindo que a despesa tenha crescimento real (acima da inflação) em 20 anos; e apresentar projeto de emenda constitucional para mudar as regras de aposentadoria vigentes no país, uma vez que os gastos previdenciários já respondem por quase 60% do total desembolsado pela União.
Dois terços da estratégia foram bem-sucedidos - o corte de uma parte relevante dos subsídios, com o BNDES antecipando uma parte do que deve ao Tesouro e o teto de gastos está em vigor desde 2017. O bom andamento dessas providências fez o mercado acreditar que o problema fiscal estava sendo enfrentado, finalmente, com boa chance de sucesso. Isso fez com que as condições financeiras - bolsa de valores e taxas de juros e câmbio - melhorassem de forma significativa desde então.
Trata-se, porém, de uma aposta, de uma expectativa, porque falta a cereja do bolo: o fim dos déficits primários nas contas públicas, condição sine qua non para o reequilíbrio das finanças e a contenção e posteriormente redução da dívida pública. A reforma da Previdência - terceiro ponto da estratégia do governo anterior - passou pelas devidas comissões na Câmara dos Deputados e estava prestes a ser votada em plenário quando o então presidente Michel Temer perdeu, em maio de 2017, as condições políticas para aprovar medidas importantes no Congresso.
Todas as medidas fiscais anunciadas, entre as já aprovadas e as que o parlamento ainda não votou, como as mudanças nas regras de aposentadoria, resolverão o grave problema fiscal? Sabe-se que não. Se o buraco não será coberto, como as condições financeiras continuam boas, sendo que as contas públicas tendem a seguir no vermelho e isso é incompatível com crescimento da economia?
A razão está no fato de o mercado acreditar que o novo governo terá vontade política e força para aprovar a reforma previdenciária neste ano. Se isso não ocorrer, os juros subirão, a taxa de câmbio sofrerá forte desvalorização, a bolsa de valores terá fortes perdas e a economia, consequentemente, continuará patinando depois de já ter vivido sua meia década perdida. O mercado transformará fé em desconfiança e todos sofreremos.
Segundo trabalho de Manoel Pires, pesquisador associado do FGV Ibre e ex-secretário de Política Econômica do antigo Ministério da Fazenda, nos últimos cinco anos as projeções oficiais do déficit da Previdência do Regime Geral de Previdência Social, o regime do setor privado, pioraram em 16 anos. "Em outras palavras, o nível deficitário de 3% do PIB, que pelas contas do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2015 só seria atingido em 2037, agora está previsto para ocorrer - pelo último PLDO, de 2019 - em 2021", revela o presidente do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV), Luiz Guilherme Schymura.
"Esses números ilustram o grande agravamento da questão previdenciária no Brasil nos últimos anos. É útil recordar que, durante a campanha presidencial de 2014, embora a reforma da Previdência fosse tema tabu entre os candidatos, suas assessorias econômicas já tinham plena consciência de que ela seria necessária", acrescenta Schymura, mostrando a falta de urgência da sociedade (não é só da classe política) em enfrentar seus mais graves problemas.
Sob a ótica fiscal, ao longo dos últimos anos houve forte deterioração das contas da Previdência. A piora vai muito além do simples acúmulo do problema não resolvido, diz Schymura, que trata do assunto na Carta de Conjuntura do Ibre. A diferença de quase dois pontos percentuais do PIB entre as projeções de déficit para 2021 realizadas em 2014 e 2018 revela que, simplesmente, trabalhou-se há cinco anos com hipóteses equivocadas e excessivamente otimistas para equacionar o problema - que, aliás, já parecia de extrema gravidade desde 2014.
O que, afinal, fugiu tanto do figurino projetado em 2014 para tornar o problema previdenciário brasileiro ainda mais colossal do que se imaginava? Sem dúvida nenhuma, observa o presidente do Ibre, a intensidade da queda do PIB de 2014 a 2016 não estava no radar dos analistas no fim do primeiro mandato de Dilma.
Cristiano Romero: Obstáculo da reforma está na desinformação
Uma das características marcantes do debate nacional é a manipulação da informação. É mais fácil “dialogar” quando o interlocutor não sabe exatamente do que se está falando. Muito antes do advento das “fake news” que se propagam feito erva daninha nas redes sociais, notícias falsas, lendas urbanas e mistificações já se disseminavam com enorme facilidade para além das conversas de bar.
A ignorância repetida como verdade, registre-se, nunca foi privilégio de pessoas com baixo acesso à educação formal e aos meios de comunicação. Nas universidades públicas, lócus do conhecimento e supostamente do livre debate de ideias, elites intelectuais, reféns do corporativismo, são contrárias às reformas de que o Brasil precisa para se tornar socialmente mais justo. Funcionam como igrejas, de um credo só, onde opiniões que questionem o status quo de seus “donos” (professores e funcionários) não são bem-vindas. Mesmo quem tem por ofício, como os jornalistas, informar da maneira mais ampla, objetiva e desinteressada possível, queda-se muitas vezes pelo caminho obscuro da desinformação. O alheamento aos problemas renitentes deste imenso país é um defeito inaceitável na conduta de quem possui o dever de informar.
A discussão urgente sobre a necessidade de o país mudar as regras de aposentadoria de seus cidadãos, principalmente dos funcionários públicos, é hoje a principal vítima da manipulação de informação, uma forma perversa de se perpetrar a desinformação. Uma sociedade mal informada é campo fértil para a sagração de populistas, demagogos e patrimonialistas.
Por que privilégios do funcionalismo não revoltam jovens da Vila?
A defesa de ampla e profunda reforma previdenciária é missão árdua em Brasília, palco das decisões nacionais. Em tese, não deveria ser tão difícil, afinal, se a reforma é para reduzir privilégios do funcionalismo público de um lado e, do outro, adequar as regras de aposentadoria dos trabalhadores do setor privado – que se aposentam pelo INSS, com piso de um salário mínimo e teto pouco acima de R$ 5 mil – à evolução da demografia, o pendor por mudanças seria determinado pelo grupo mais numeroso de brasileiros. Infelizmente, não funciona assim.
O desequilíbrio é chocante e deveria impressionar os moradores da Vila Madalena, animado bairro de classe média de São Paulo, reduto de jovens em sua maioria contrários a mudanças na Previdência e a reformas que revolucionem a vocação histórica do Estado brasileiro de destinar a maior parte de seus parcos recursos a quem menos precisa de sua ajuda (grandes empresas, estudantes de famílias abastadas, multinacionais da indústria automotiva, Estados e prefeituras mais ricos, funcionários públicos, monopólios, estatais etc).
Temas como o fim da estabilidade do funcionalismo e a cobrança de mensalidade nas universidades públicas, mudanças que poderiam ajudar a diminuir a concentração de renda reinante por aqui desde quando nos chamávamos Ilha de Vera Cruz. A razão para tanta conversa fiada é uma só: desinformação. Junte-se a isso a velha prática da esquerda brasileira de defender slogans antes de conhecer as ideias que os justifiquem e pronto: o debate será sempre torto e, portanto, inútil, o que contribui decisivamente para o país ter dezenas de milhões de pessoas vivendo em regime de miséria absoluta e outras dezenas de milhões em estado de pobreza imobilizante.
Os números da Previdência em 2018 foram os seguintes:
1) contabilizando o que todos – trabalhadores e patrões – contribuímos para o INSS e as despesas com pagamento de aposentadoria, pensões e benefícios assistenciais, faltaram R$ 195,19 bilhões. Este foi o déficit da Previdência Social, que se refere a um universo de cerca de 30 milhões de pessoas, entre aposentados, pensionistas e beneficiários de programas assistenciais;
2) a outra parte da conta está nos regimes próprios de previdência do funcionalismo federal e dos militares, um contingente de aproximadamente um milhão de pessoas. Neste caso, a conta também não fecha: entre o que servidores e militares contribuíram em 2018 para a aposentadoria e o que os aposentados e pensionistas receberam, o saldo, negativo, chegou a R$ 46,4 bilhões entre os civis, R$ 43,9 bilhões no caso dos militares e a R$ 4,8 bilhões entre funcionários do Distrito Federal, cujos benefícios ainda são pagos pela União. Total: R$ 95,1 bilhões, R$ 10 bilhões acima do rombo de 2017.
Assim, o déficit total da Previdência no último ano somou a incrível cifra de R$ 290,3 bilhões, R$ 20 bilhões a mais que no ano anterior. Se faltou dinheiro, como o Tesouro Nacional cobriu a conta? De duas formas, como se vem fazendo há muitos anos: tomando dinheiro emprestado no mercado a juros altos e cortando gastos de outras áreas, como educação, saúde e segurança pública, além de investimentos onde o Estado é demandado.
A área que mais perde é a saúde e apenas esse fato deveria ser suficiente para mobilizar o pessoal da Vila Madalena, preocupado com os rumos da nação. Muitos não ligam uma coisa à outra, mas por que o Brasil melhora a passos de cágado os indicadores de saúde e educação de sua população? Claro, o problema não é só falta de recursos, mas isso explica uma boa parte do problema. O fato é que, enquanto não houver uma solução de médio e longo prazos para as contas Previdência, o Brasil terá sempre mania de grandeza, em vez de grandeza.
No debate, alguns alegam que uma parte da conta – os benefícios assistenciais não contributivos, como o abono salarial – deveria estar fora do déficit, e que este deveria refletir apenas o saldo entre contribuições e despesas. É um argumento razoável, mas é preciso ponderar que a Constituição de 1988 introduziu o conceito de seguridade, inspirado no modelo espanhol e que vai além da Previdência. O que está por trás desse modelo é a ideia de que todos – cidadãos e empresas – devemos contribuir para melhorar a vida de quem tem menos oportunidade, parte da visão de que uma sociedade com menos desigualdades é melhor para todos. De toda forma, retirar as despesas assistenciais não acabaria com o déficit.
Cristiano Romero: Uma oportunidade para o Estado encolher
Uma das contrapartidas dos Estados na renegociação de suas dívidas com a União será a privatização de empresas estatais. O governo do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, concordou em privatizar a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). Goiás, por sua vez, aceitou vender a Celg, a distribuidora de energia do Estado.
O processo de venda das estatais estaduais será conduzido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), uma exigência do governo federal. O banco, como se sabe, tem expertise no assunto, tendo sido responsável pelas privatizações realizadas nos governos Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
“O BNDES já está trabalhando intensamente nisso [na privatização da Cedae]”, informou ao titular desta coluna o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. “Os governadores concordaram que o BNDES seja o coordenador do processo”, revelou, conforme antecipou ontem o Valor PRO, o serviço de informações em tempo real do Valor.
União negocia com todos os Estados a venda de estatais
A equipe econômica está negociando com todos os Estados a venda de empresas estatais. A privatização é parte do esforço para melhorar a situação fiscal do setor público, principal vulnerabilidade da economia brasileira neste momento. A medida tem um efeito colateral importante: com a desestatização, a tendência dos setores onde as estatais atuam é ter mais eficiência. Privatizar é, também, uma forma de reduzir drasticamente os incentivos à corrupção.
Na renegociação anterior das dívidas estaduais, em 1997, adotou-se o mesmo compromisso, muitas empresas foram vendidas, mas ainda existe um bom par delas em vários Estados. A severa crise fiscal é uma oportunidade histórica para o Estado brasileiro desistir de vez de sua atuação empresarial, passando a concentrar-se em atividades típicas de sua atuação, como educação, saúde e segurança.
O governo fluminense, na gestão de Marcello Alencar (1995-1998), tentou privatizar a Cedae, mas esbarrou em questões regulatórias – a disputa entre Estados e municípios quanto à competência sobre os serviços de saneamento básico -, na resistência de grupos políticos e no corporativismo dos funcionários. No ano passado, o tema veio à baila na Assembleia Legislativa.
Além do compromisso com a venda de ativos, os Estados concordaram com sua inclusão na proposta de emenda constitucional que limita a correção das despesas públicas à inflação do ano anterior e com a não concessão, por 24 meses, de aumentos reais aos salários do funcionalismo público. O ministro Henrique Meirelles explica que a Constituição assegura aos servidores a reposição do poder de compra (isto é, a inflação), mas alguns governadores entendem que é possível dar reajustes abaixo da variação da inflação.
“Não podemos impedir o que está previsto na Constituição, mas o fato é que, com essa regra, o crescimento real (acima da inflação) dessa despesa será zero. Muitos Estados vinham concedendo reajustes muito acima da inflação”, contou Meirelles.
Considerando-se apenas oito Estados (SP, RJ, MG, RS, SC, PR, BA e GO), o Distrito Federal e a prefeitura de São Paulo, a despesa com pessoal e encargos saltou de 3,7% para 5,2% do PIB entre 2008 e 2015. O investimento desses entes caiu, no mesmo período, de 0,8% para 0,5% do PIB. A despesa corrente (o gasto com educação e saúde, por exemplo) teve que encolher: de 4,7% para 3,8% do PIB.
Um aspecto muito importante da reunião dos governadores com a equipe econômica foi a concordância quanto à necessidade de adesão de todos os Estados à renegociação, mesmo daqueles que estão situação razoável, como o Espírito Santo. “Coloquei na reunião que ou fechávamos um acordo com todos ou não seria possível fazer apenas com alguns. Todos entenderam que era importante resolver a questão não só das dívidas, mas também da questão fiscal dos Estados”, revelou o ministro.
A adoção do teto de evolução das despesas é crucial porque, de 1997 a 2015, observa Meirelles, as despesas da União cresceram 6% ao ano em termos reais. Tomando-se o período em que os governos Lula e Dilma decidiram adotar a chamada “Nova Matriz Econômica” – de 2008 a 2015 -, o gasto avançou 14,5% acima da inflação acumulada. No mesmo período, a despesa total saltou 51% em termos reais, forçando o Tesouro Nacional a elevar a dívida pública em R$ 2,2 trilhões.
“Aprovada a emenda constitucional que fixa o teto, no ano que vem teremos zero de crescimento real”, previu Meirelles. De 2004 a 2015, a despesa primária (que não inclui os juros da dívida) do governo central saltou de 15,6% para 19,5% do PIB. O governo espera, com o teto, diminuí-la em dois pontos percentuais do PIB em três anos.
O ministro da Fazenda confirmou que, em 2017, o setor público consolidado (União, Estados e municípios) deve apresentar um novo déficit primário. Acredita, porém, que o saldo negativo vai baixar ao longo do tempo. O cálculo é o seguinte: Meirelles aposta que, à medida que as iniciativas na área fiscal comecem a ser aprovadas e implementadas, o setor produtivo voltará a confiar na política econômica, o que ajudará a destravar as decisões de investimento, impulsionando a atividade econômica. A retomada do PIB, por seu turno, aumentará a arrecadação, auxiliando o ajuste fiscal.
Talvez, muitos ainda não tenham se dado conta, mas a imposição de um teto para as despesas acabará por tornar realistas os orçamentos públicos. Diante do teto, caberá aos governantes, em negociação com o Congresso e as assembleias legislativas, estabelecer as prioridades do gasto público. Hoje, pode tudo e o resultado é inflação, carga tributária e dívida pública crescentes, asfixia do setor privado e por conseguinte dos investimentos, baixo crescimento e baixa qualidade dos serviços públicos. (Valor Econômico – 22/06/2016)
Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras
E-mail: cristiano.romero@valor.com.br
Fonte: pps.org.br