Cristiano Romero
Cristiano Romero: Faria Lima tem dívida com a democracia
Muitos ainda creem que o Brasil precisa de um regime autoritário
Ao discursar na Câmara dos Comuns, em 11 de novembro de 1947, Winston Churchill proferiu a mais curta e célebre definição de democracia: “A democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”. Uma variante dessa definição seria a seguinte: “A democracia é o mais imperfeito dos regimes políticos. Viva a democracia”.
A pedra basilar da democracia é a liberdade de expressão. Todo cidadão tem o direito sagrado de discordar do governante de seu país e de manifestar publicamente o seu desagrado. Num regime democrático, não deve existir crime de opinião, do contrário, não se trata de democracia.
Quando uma ditadura irrompe, o primeiro direito suprimido é a liberdade de expressão, que se traduz na censura às empresas de mídia. Jornais são fechados, jornalistas são vigiados, presos e calados. Isso ocorre antes mesmo de políticos da oposição serem cassados.
No Brasil, durante a segunda metade da ditadura militar, que nos suprimiu, de 1964 a 1985, o direito de escolher pelo voto direto o presidente da República, forças antagônicas se juntaram para resistir ao regime autoritário. Em 1984, no palanque do movimento “Diretas Já”, pontuaram representantes do centro à esquerda no espectro político. Olhando o grupo mais de perto, era possível ver vultos da centro-direita e da extrema esquerda.
Derrotada a emenda Dante de Oliveira, que instituiria a eleição direta naquele ano, antecipando em cinco anos o retorno do sufrágio universal para a escolha do presidente, próceres da ditadura - José Sarney, da Arena, partido do governo durante o regime militar - e da chamada “resistência democrática” - Tancredo Neves, do então MDB, além de Ulisses Guimarães, maior liderança da oposição à ditadura - se uniram para impedir que outro prócer do regime - Paulo Maluf, ex-governador biônico de São Paulo - ganhasse o pleito indireto que o Congresso Nacional realizou para eleger o sucessor de João Figueiredo, o último general a presidir o país (de 1979 a 1985).
Terminada a ditadura, cada grupo político reunido em torno das “Diretas Já”, todos subscritores dos valores capitais de um regime democrático, foi para um lado. Os que chegaram ao poder não tardaram em reclamar da imprensa, esquecendo-se que restaurar a democracia não era outra coisa a não ser restabelecer a liberdade de expressão. A Constituição de 1988, ao estabelecer entre os direitos fundamentais do cidadão brasileiro o fim de qualquer forma de censura - numa versão popular, “é proibido proibir” -, refletiu a opinião de uma sociedade que amargou um regime ditatorial pela segunda vez no espaço de apenas 27 anos. Ainda assim, nenhum governo, repita-se, absolutamente nenhum, conviveu bem com a imprensa em 30 anos de presidentes eleitos.
Democracia e economia de mercado são quase sinônimos. Não existe democracia com economia planificada. Porque a liberdade de empreender é fundamental para o bom funcionamento de uma economia de mercado. Logo, o oposto também não faz sentido: não há liberalismo em regimes autoritários. Mas, por aqui, governos flertam com o autoritarismo e setores econômicos torcem, à boca pequena, para que isso aconteça. Trata-se de um enorme equívoco.
Muitos no mercado financeiro acreditam na tese de que, para avançar na economia, o Brasil precisa de um regime autoritário. A democracia, pensam, atrasa o país. O exemplo citado é o do Chile, que, sob a ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet entre 1973 e 1990, quando milhares de pessoas foram vítimas do regime, entre executadas, desaparecidas e torturadas, economistas formados pela prestigiosa Escola de Chicago - a mesma do ministro Paulo Guedes - implantaram sólida economia de mercado ao sul da Linha do Equador.
Outro exemplo mencionado é o da China, que, dominada por um regime comunista fechado, conseguiu forjar experimento capitalista que a transformou, em pouco mais de quatro décadas, na segunda maior economia do planeta. O que se diz é que, sem democracia, governos fortes conseguem impor agendas liberalizantes que aceleram o crescimento do PIB, criando as condições para eliminar a pobreza.
No caso da China, poucos analistas identificam as chances de as coisas desandarem adiante. Cerca de 400 milhões de chineses, de uma população de 1,39 bilhão, vivem no mundo do capitalismo ocidental. Trata-se de uma imensa classe média, mais numerosa que a de qualquer outra nação. Mas um detalhe é inescapável: mesmo com dinheiro no bolso, esses milhões de cidadãos não têm liberdade para se expressar e seus direitos, inclusive o de ir e vir, são restritos. A China é uma ditadura. Ponto.
Imagine-se o seguinte: se a China não fosse uma ditadura, a maioria dos que vivem no grupo do 1 bilhão, entre gente que mora no campo e nas cidades, sendo que a população urbana já superou a rural, migraria para o “Sul maravilha”, onde ficam as províncias capitalistas.
Num regime fechado, o Estado escolhe quem salta da Idade Média para o século XXI. Se a escolha fosse livre, as cidades chinesas já teriam favelas mais povoadas que as do Brasil. Mas não se iludam os defensores do modelo político chinês: nenhum, dos 400 milhões de viventes da China capitalista, está feliz com a falta de liberdade.
Chineses, como brasileiros e indianos, buscam o progresso, o que significa procurar, sempre, o lugar onde possam viver melhor. A urbanização acelerada do Brasil desde a década de 1950 provocou o crescimento desordenado das principais capitais do país. O subproduto desse processo foi o surgimento de favelas gigantescas no Rio, São Paulo, Recife, Salvador etc.
É razoável esperar que, à medida que a China caminhe para se tornar uma economia avançada, o clamor por mais liberdade e direitos aumente de forma acelerada. O povo pedirá democracia porque isso é intrínseco ao ser humano. A pressão por mudança de regime será crescente e isso, claro, terá efeito negativo sobre a expansão da economia.
Cristiano Romero: Conselhos, onde estão as mulheres?
Entidade criada por um grupo de mulheres busca corrigir a ‘discriminação’ de gênero no conselho de empresas no país
Num país onde a escravidão perdurou por quase 400 anos, a discriminação do outro é regra e não exceção. É o que mais nos distancia da possibilidade de sermos uma nação. Tanto tempo vivendo sob um regime escravagista nos condenou a jamais enxergar o outro como um de nós. Na Ilha de Vera Cruz, mas não só aqui, floresceram todas as formas de discriminação: étnica, social, de gênero, origem, opção sexual...
A escravidão, previu o abolicionista Joaquim Nabuco, “permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. A história ensina que decorria do domínio de um povo sobre outro. Na colonização das Américas, de um cálculo econômico: a acumulação de capital, uma vez que escravos eram mercadoria, não recebiam salário e isso dava às colônias do Novo Mundo, dominado pelos europeus, vantagem competitiva em relação à Asia.
O Brasil foi o derradeiro país do continente americano a abolir a escravidão, em maio de 1888. O contexto em que isso se deu evidencia a dificuldade que sempre teremos para superar o vergonhoso legado. Contrários ao fim da escravidão, barões do café ajudaram a derrubar a monarquia pouco mais de um ano após a abolição da escravatura. O regime monárquico esticou a desonra escravagista, mas a nossa República não nasceu para modernizar o país. Fruto de um golpe militar, esteve a serviço dos produtores rurais de São Paulo e Minas Gerais por mais de 30 anos, condenando os habitantes de 48% do continente sul-americano a um atraso extraordinário.
Barões do café, senhores de engenho e correlatos não só odiavam os negros; eles os desprezavam. Por isso, em represália ao fim da mão de obra escrava, forçaram o primeiro governo republicano a abrir a imigração para japoneses e europeus, especialmente das nações que viviam momentos de dificuldade. Muitos imigrantes foram tratados como escravos porque, para os capitalistas nacionais, eles eram custo.
E os escravos? Rejeitados, foram jogados à própria sorte em Estados como Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Não tinham acesso à educação, saúde, nada. Seus descendentes nasciam condenados pela cor da pele. Para sobreviver, voltaram à escravidão, disfarçada de emprego, principalmente, o doméstico.
A ignomínia nos acompanhou por tanto tempo que transbordou para outros aspectos da vida nacional. Discriminar tornou-se a principal forma de organização social. E é. As relações pessoais e profissionais, as distinções entre regiões, Estados, capitais, cidades e bairros, entre sotaques, para ficar nestes exemplos, são mediadas sempre por uma hierarquia. Esta é estabelecida por critérios como cor da pele, naturalidade, gênero, renda...
Neste imenso território, as mulheres só começaram a votar na década de 1930. Observe-se portanto o caráter da República instaurada no início do século passado. A boa nova por aqui é que, depois de superar por duas ditaduras no espaço de apenas três décadas, e de viver acelerado processo de industrialização e crescimento econômico entre as décadas de 1950 e 1980, a sociedade civil começou a andar mais rapidamente que o Estado e suas instituições anacrônicas. Esse caminhar resultou na adoção, pela Constituição de 1988, de aspectos civilizadores, como a penalização de toda e qualquer forma de discriminação.
Jair Bolsonaro chegou à Presidência da República com uma agenda recheada de ideias que contrariam avanços da sociedade no que diz respeito a direitos consagrados não só pela Constituição de 1988, mas também por jurisprudências firmadas por decisões do Supremo Tribunal Federal. Num país marcado pela distinção das minorias, soa muito fora de lugar qualquer iniciativa para reduzir direitos de cidadãos livres.
Até o momento, apesar do alarido, Bolsonaro não logrou sucesso na agenda de sua base social, de seus eleitores naturais. Mas a ameaça de retrocesso tem feito florescer uma série de iniciativas de fortalecimento da diversidade. O curioso é que, embora motivadas pelo temor ao bolsonarismo, as ações combatem a falta de diversidade perpetrada por vários setores da sociedade.
É nesse contexto que um grupo de mulheres criou, no ano passado, a WOB (podia ser no idioma pátrio, mas é a sigla de “Women on Board”, isto é, “Mulheres no Conselho”). Chris Aché, Carol Conway, Carolina Niemeyer e Patrícia Marins constataram que há pouquíssimas mulheres nos Conselhos de Administração das empresas de capital aberto e nos Conselhos Consultivos das companhias familiares, de capital fechado.
Com a ajuda de um software desenvolvido pelo Fundo Teva, a WOB mapeou, a partir dos formulários de referência, os conselhos de todas as empresas de capital aberto. Os critérios são rigorosos. Foram consideradas somente as empresas listadas e negociadas na bolsa. Ficaram de fora as companhias em recuperação judicial ou extra judicial; além daquelas negociadas em mercado de balcão. Não entraram, também, as firmas sem negociação no mês de referência da pesquisa (31 de dezembro de 2019). Empresas que não tenham enviado formulários de composição do conselho nos últimos 12 meses também foram excluídas.
As conclusões são chocantes e mostram a falta de diversidade de gênero no Brasil num segmento da vida nacional (os conselhos de empresas de capital aberto) do qual se espera mais e não menos civilidade: das 272 empresas de capital aberto, mulheres têm assento no CA de apenas 137. Apenas 46 possuem duas ou mais mulheres nos conselhos.
Com o apoio da ONU-Mulher, o WOB criou um selo de certificação para as companhias que tiverem duas ou mais conselheiras, critério que, comprovadamente, mostra força nos conselhos Quando o WOB publicou a lista das que se enquadram nesse critério, as concorrentes correram à sua porta para se comprometer a fazer o mesmo. É um bom começo.
Cristiano Romero: PGBL será usado como garantia de crédito
Cruzada do BC contra custo de crédito inclui FGTS e hipoteca
Dentro do esforço para reduzir as taxas de juros cobradas no crédito a pessoas físicas, o Banco Central (BC) quer autorizar o uso de investimentos em PGBL ou VGBL como garantia de empréstimos. O PGBL, assim como o VGBL, é uma forma de aplicação destinada a financiar a complementação da aposentadoria. Ao longo da vida laboral, o trabalhador faz depósitos mensais, muitas vezes acrescidos de contribuição, na mesma proporção, da empresa onde trabalha, e forma uma poupança para custear seu sustento após aposentar-se.
Para o BC, parte dos recursos depositados pode ser usada pelo beneficiário do PGBL ou do VGBL como garantia de um empréstimo que ele precise fazer num momento de dificuldade. No Brasil, um cidadão que tenha algum patrimônio (uma hipoteca ou um imóvel quitado) ou um recebível (saldo no FGTS ou um PGBL/VGBL) e que, não importa a razão, se endivide, enfrenta problema idêntico ao do sujeito que não possua nada para oferecer ao credor.
Nos dois casos, os indivíduos caem na espiral da cobrança de juros sobre juros que, ao fim, pode obrigar aquele que possui ativos a se desfazer da casa, o que, na maioria dos casos, poderia ser evitado. O mesmo raciocínio vale para o FGTS. Este fundo foi criado no início do regime militar como uma forma de poupança compulsória, para compensar o fato de os trabalhadores brasileiros terem perdido, naquela ocasião, o direito à estabilidade no emprego - um anacronismo que, inexplicavelmente, persiste no serviço público.
As empresas são obrigadas a depositar mensalmente 8% do salário do trabalhador no FGTS, o equivalente a um salário por ano. O dinheiro rende atualmente 3%, além da variação da TR, que neste momento está fixada pelo BC em zero. Só pode ser sacado em caso de demissão, acrescido de multa de 40% sobre o saldo, ou para financiar a compra da casa própria. Como se trata de um “funding” barato, o custo do crédito imobiliário feito com esses recursos costuma ser menor que os da praça.
Nos estertores do governo Dilma, o então ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, propôs ao Congresso Nacional mudança na lei para permitir que as pessoas pudessem usar, até o limite de 10% do saldo do FGTS, como garantia de um empréstimo consignado. A medida foi aprovada, mas não saiu do papel. No ano passado, o governo fez nova regulamentação e, novamente, não funcionou. O BC investiga o porquê e, com ajuda do Ministério da Economia, vai reformular o mecanismo.
No caso do “home equity”, que é a possibilidade de um mutuário renegociar a hipoteca de seu imóvel com o banco para levantar um empréstimo, tirando proveito da valorização desse ativo no mercado, o Banco Central adotou medidas no ano passado para estimular essa forma de crédito, mas vai continuar atuando para tirar pedras do caminho porque o Brasil, como se sabe, não é para amadores.
Um exemplo: os bancos cobram, indistintamente, taxa de R$ 3 mil para avaliar os preços dos imóveis. Sem entender o valor dessa taxa, o BC questionou as instituições e elas disseram que autoridade deveria falar com os peritos. Estes foram procurados e deram a seguinte explicação: “A gente cobra R$ 300; os R$ 2.700 vão para os bancos”. Devolvida a indagação aos bancos, estes admitiram: “É margem”. Lucro, na linguagem mais acessível. Tradução: num segmento com poucos atores, os bancos usam seu poder de mercado para impor preços e elevar o lucro.
Os bancos não estão fazendo nada ilegalmente, o problema é da sociedade, que precisa lidar com ineficiências acumuladas ao longo da nossa história - a concentração bancária é uma delas. Novas formas de acesso a crédito, e a custos mais baixos, não são viáveis se essas ineficiências não forem identificadas e eliminadas.
No ano passado, o “home equity” fechou na nova modalidade contratos no total de R$ 500 milhões, um valor ainda muito modesto. O estoque de operações está em R$ 10 bilhões, o equivalente a 2% do volume total do crédito imobiliário. A taxa de juros nessa modalidade já caiu - de 17% ao ano no início de 2019 para 13,8% agora, o que faz o BC acreditar que essa forma de empréstimo vá expandir-se doravante a uma velocidade mais rápida.
Na agenda do BC para baratear o crédito imobiliário, constam a possibilidade de os financiamentos terem a inflação como indexador; o estímulo à securitização das carteiras - o “empacotamento” dos créditos pelo banco que concedeu os financiamentos e a sua venda para fundos de investimento, providência que tira esses ativos daquela instituição, que fica livre, portanto, para fazer empréstimos para novos clientes -; e a adoção de regras que facilitem a fundos comprar essas carteiras dos bancos.
Ao olhar de perto esse segmento, o BC identificou um obstáculo nada desprezível: as prefeituras cobram uma jabuticaba chamada ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis). Em São Paulo, o comprador paga alíquota de 3% do valor do imóvel. No caso de créditos imobiliários securitizados, o ITBI é pago duas vezes, o que inviabiliza a operação. A ideia da securitização é ampliar os recursos disponíveis para a compra da casa própria.
É também com esse intuito que o BC decidiu regulamentar, como antecipou ontem o Valor, a cobrança feita pelos bancos quando um cliente solicita a transferência de seu crédito para outra instituição, isto é, a portabilidade. Hoje, a instituição que recebe o crédito paga à que cedeu uma taxa chamada de Ressarcimento de Custo Operacional (RCO). Nos empréstimos mais altos, representa de 1,5% a 2% do total.
Os grandes bancos criaram, em regime de autorregulamentação, tabela fixando o valor do RCO em operações entre eles. Para os bancos de menor porte, estabeleceram uma taxa maior. O BC decidiu regular essas operações porque o RCO está encarecendo e dificultando a portabilidade de crédito, uma forma de estimular a concorrência no sistema bancário e reduzir os juros cobrados de famílias e empresas.
A regra a ser adotada pelo BC e à qual os bancos estarão submetidos permitirá a cobrança de taxa nas operações de portabilidade, mas os participantes das operações serão obrigados a cumprir duas determinações: o banco que ceder o crédito terá que explicitar o quanto está cobrando e a instituição que recebê-lo não poderá repassar esse custo ao devedor.
*Cristiano Romero é editor-executivo
Cristiano Romero: Tão longe do Brasil e tão perto do poder
A ideia de estabilidade no emprego no serviço público é tão disseminada que os empregados de estatais gozam desse privilégio sem nenhum amparo na lei
Embora o governo Bolsonaro tenha demonstrado até agora pouco interesse na reforma administrativa, o tema ocupou o debate e é parte da agenda do Congresso Nacional. A reforma é necessária e a justificativa vai além da premente questão fiscal. No conceito mais amplo, de mudança radical na forma como o Estado brasileiro está estruturado, as mudanças não dizem respeito apenas aos servidores públicos, mas a todos os setores específicos da sociedade que se beneficiam do orçamento público, em detrimento dos interesses difusos.
A máquina pública brasileira não foi pensada para defender os interesses de quem não possui representação política em Brasília. Mas, mesmo quem tenha essa agenda - seja um político, seja um movimento, seja uma entidade da sociedade civil -, não é o ideal porque, na luta democrática, esses serão apenas mais um grupo de pressão. Distribuição de renda, acesso gratuito a serviços de saúde e educação, combate à pobreza e auxílio a indigentes, por exemplo, não deveriam ser bandeiras de grupos de pressão nem de partidos políticos, mas missões do Estado brasileiro em todas as esferas, como prescreve a Constituição de 1988.
As dezenas de milhões de brasileiros inalcançados pelos aspectos civilizadores da Constituição não deveriam depender nem de governantes sérios nem muito menos, portanto, de populistas. Nem sempre elegemos os melhores governantes e, por isso, boas políticas são descontinuadas. Populistas são perversos porque prometem o que não podem, dão agora o que não será mantido adiante, apenas para iludir os eleitores e manter-se no poder.
O correto é que as instituições do Estado atendam a todos de forma neutra, independente, automática, impessoal, desvinculada de qualquer propósito político. A reforma do Estado não se explica apenas pela necessidade de se atender melhor ao público, mas de mudar totalmente as prioridades da máquina estatal, de forma que suas missões precípuas sejam levar serviço público a quem não o tem, formar cidadãos, igualar oportunidades, reduzir as desigualdades, garantir segurança pública à maioria (que não dispõe de recursos para viver em condomínios), proteger brasileiros que vivem em áreas controladas por organizações criminosas e milícias, assegurar segurança alimentar a quem não a tem etc.
Cabe aos políticos, cada qual com sua orientação ideológica, defender um modelo de Estado, mas sem que lhe seja possível impedir o cumprimento do que está na Constituição. O Brasil é desigual porque o orçamento público, desde sempre, destina mais recursos aos ricos, aos grupos mais influentes, às elites de todo tipo. No orçamento de renúncia fiscal da União, superior a R$ 300 bilhões por ano, é possível ver a lista dos beneficiários e chegar à triste conclusão de que mesmo quem não precisa, como o titular desta coluna, representante da classe média, tem direito a vantagens que fazem muita falta à maioria pobre.
Políticos devem ser julgados por seus eleitores pelo que contribuem para o avanço do país como civilização, mas não porque, num dado momento, se apresentam como representantes dos pobres em Brasília. A rigor, essa categoria não existe. Os partidos de esquerda, por exemplo, defendem políticas que, na prática, concentram ainda mais a renda. Ao rejeitar, por exemplo, as reformas da Previdência e agora a administrativa, por causa de seus vínculos com sindicatos do funcionalismo federal, a esquerda impede a possibilidade de o Estado combater as desigualdades.
Nenhum governo, desde a redemocratização, propôs uma reforma do Estado que não discutisse somente ou tão somente o tamanho dos gastos com os servidores. Na verdade, o tema só aparece quando há urgência fiscal - foi assim nos governos Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e no atual. A questão fiscal tem o mérito de motivar a equipe econômica do governo federal, preocupada com o equilíbrio das contas públicas, e também prefeitos e governadores, em que a escassez de recursos é maior.
A Constituição, a despeito do mérito civilizador de muitos de seus dispositivos, criou incentivos errados no que diz respeito ao funcionamento do Estado. Talvez, o pior tenha sido assegurar a todos os servidores públicos estabilidade no emprego, e não apenas às carreiras típicas. A alegação é que, sem estabilidade, os funcionários estariam sujeitos a vicissitudes impostas por políticos, favorecendo a corrupção e o desvio do Estado de suas funções.
Se o objetivo era esse, a estabilidade não funcionou, afinal, escândalos de corrupção sucedem desde então com a participação de servidores e, portanto, sem que os malfeitos sejam prevenidos. A ideia de estabilidade no emprego no serviço público é tão disseminada que os empregados de estatais gozam desse privilégio sem nenhum amparo na lei. Quando um governo decide demiti-los, eles vão à Justiça e ganham o direito de voltar, não importando se a demissão foi por incompetência, falta ao trabalho, fechamento da empresa etc.
O argumento de que a indemissibilidade protege o patrimônio público é falso como uma nota de R$ 3. Na Petrobras, o enorme esquema de corrupção que desviou R$ 20 bilhões foi arquitetado e conduzido por funcionários de carreira. Logo, não é a exigência de concurso nem a estabilidade que dão ao serviço público garantia contra a malversação de recursos públicos e o desvio de suas missões. A mudança passa pela redefinição do papel do Estado não só na economia, mas em todos os aspectos da vida nacional.
Estáveis no emprego, recebendo salários bem mais altos (o que não é um mal em si), além de vantagens e direitos jamais vistos pela média dos trabalhadores do setor privado, os servidores públicos se tornaram, naturalmente, o maior obstáculo à reforma do Estado. Por que abririam mão de direitos? Este é o problema. Insulados em Brasília, onde a atividade econômica depende fundamentalmente do serviço público, os servidores dispõem de poder autóctone para criar benefícios, legislar em causa própria, estabelecer prioridades de gasto etc.
Se considerássemos São Paulo, centro financeiro e produtivo do país, a síntese do Brasil, seria possível dizer que Brasília é um cidade longe de São Paulo, mas muito perto do poder.
*Cristiano Romero é editor-executivo
Cristiano Romero: Muito além da economia
Para oferecer mais democracia a quem mais necessita dela, o Estado brasileiro terá que passar por profunda e difícil reforma
O economista Luiz Guilherme Schymura é um liberal que gosta de discordar. À frente do Ibre, o mais antigo centro de estudos econômicos do país, não deixa a instituição funcionar como igreja. Bem pensado: ninguém vai à igreja no domingo para questionar o chefe da paróquia - quando a discórdia é grande, o sujeito muda de igreja ou funda a sua ou, o mais difícil, tenta reformá-la. Ademais, economia não é religião.
É enfadonho o debate que apenas repete o samba de uma nota só do pensamento hegemônico. E é lamentável, neste país, a recusa da maioria ao debate civilizado e civilizador. O que se observa aqui é a demolição intelectual prévia do outro, com o apoio automático de alguns “sacerdotes”. Por aqui, a desmoralização do interlocutor chama mais atenção do que o debate de ideias. Mas, no “país do futuro”, demoniza-se o outro por ter vinculação política com o partido A ou B ou por ter estudado em Harvard e não no MIT ou nascido em Juazeiro (BA) e não em Petrolina (PE), por torcer para o Fluminense e não para o Flamengo. Perde-se muito tempo na Ilha de Vera Cruz com pequenezas.
Além de promover o debate e a “disputa” de ideias, facilitar a emergência do contraditório, tirar colegas da zona de conforto e de lembrar a todos que economia não é ciência exata, Schymura põe suas próprias ideias para brigar, sem abrir mão de sua sólida formação liberal. Nas análises, introduz aspectos que a maioria de seus colegas releva por considerá-los imponderáveis. Ora, o pensamento não chegaria a lugar algum se não houvesse ousadia, sonho, utopia.
A ciência que mais sofre na tentativa de entender o Brasil é justamente a destinada a esta missão: a antropologia. Porque o Brasil é um imenso encontro de etnias marcado por uma infâmia chamada escravidão, com a qual convivemos oficialmente durante quase quatro séculos e que, por isso, é a nossa principal característica como sociedade, como advertiu Joaquim Nabuco há mais de um século.
O Brasil, na verdade, ainda não existe. Nossa singularidade - a diversidade étnica - é vista pelas elites colonizadas como um defeito de origem. Ora, o conceito vago que temos de nação, o que julgamos ser parte de alguma identidade, a nossa riqueza como povo novo, na acepção de Darcy Ribeiro, deriva justamente desse encontro de imigrantes com os povos que estavam aqui antes da sua chegada.
Onde entra a economia nessa conversa? Para Luiz Schymura, não basta olhar para os números das finanças públicas e constatar que, deficitários, impedem a economia de crescer mais rapidamente. Essa análise é fácil. O difícil é largar a calculadora um minutinho e procurar entender por que o governo - em todas as esferas - gasta mais do que arrecada e, o mais importante, por que faltam recursos para o que é essencial (formar cidadãos) e sobram para quem não precisa.
Quem disser que é por causa da corrupção, cuidado! A corrupção é um mal em si, mas não faz cócegas no buraco das contas públicas, que, em 2019, somou R$ 429 bilhões. Quem acha que uma explicação possível está na maneira como o Orçamento é formulado está no caminho certo. O Orçamento Geral da União (OGU) é um retrato do pacto que nos impede de ser uma nação.
O OGU mostra que a divisão dos recursos públicos privilegia os mais ricos, as elites de todo tipo (não só as econômicas e financeiras, mas também as sindicais, intelectuais e culturais), a burocracia estatal, as grandes empresas e as multinacionais (a automobilística, que há 70 anos alega ter prejuízo no Brasil, mas não sai daqui), enfim, os grupos de interesses específicos. É provável que, ao ler o Orçamento, alguns leitores constatem estar entre os beneficiários do regime que faz do nosso contrato social um dos mais injustos do planeta.
Pior do que criar para si próprio privilégios é ser beneficiário deles e calar-se. No primeiro caso, estão os “donos do poder”, os que legislam em causa própria em todas as instâncias do poder; no segundo, os cúmplices, que recebem riqueza imerecida do Estado. São tantos, mas tantos exemplos de privilégios, que a tarefa de identificá-los é um exercício de cidadania.
No debate, Schymura afirma: o brasileiro quer mais democracia. E clama por isso desde a segunda metade do século XX. Os 50 milhões de miseráveis atendidos pelo Bolsa Família; as dezenas de milhões da faixa acima à dos beneficiários do Bolsa Família; as dezenas de milhões dos menos pobres, mas com pouquíssimas chances de ascensão devido ao caráter concentrador de renda das políticas públicas; a maioria quer mais democracia.
A história nos últimos 70 anos é reflexo desse desejo, observa Schymura. Nesse período, o que vimos foi a disputa entre quem quer mais ou menos democracia. Em 1984, fomos às ruas exigir a volta do direito de eleger o presidente pelo voto direto. Em 1985, aprovamos o direito dos analfabetos votarem. Em 1988, promulgamos a Constituição que instituiu direitos civilizadores, como o acesso universal gratuito à saúde e à educação, o pagamento de aposentadoria a trabalhadores do campo, mesmo sem terem contribuído para o INSS, e o direito de os indigentes receberem um salário mínimo mensal.
A Carta Magna, registre-se, acabou com a censura e definiu qualquer forma de discriminação como crime, passível de punição (artigo 5º, inciso XLI). Defensores da economia de mercado deveriam entender que a democracia é o melhor regime para o florescimento do capitalismo. Milhões de brasileiros foram às ruas em 2013 exigir serviços públicos de qualidade, prova de que nossa democracia é manca num aspecto fundamental: oferecer oportunidades iguais a todos.
Assegurada pela Constituição, a liberdade de expressão é um pilar da democracia. A defesa da concorrência, por sua vez, é o alicerce da economia de mercado. A insatisfação com juros e preços altos e a baixa qualidade dos bens e serviços é crescente. Não há economia forte onde poucas empresas e bancos dominam o mercado. A existência de monopólios e oligopólios estatais e privados enfraquece a economia de mercado e, em última instância, a democracia, e pouco se fala disso no mercado.
A profunda e perigosa divisão que a sociedade vive nesta hora pode ser fruto da reação de setores da sociedade ao “mais democracia”. Não se deve, porém, confundir “mais democracia” com assistencialismo e populismo, práticas que sabotam a própria democracia. Para oferecer mais democracia, o Estado terá que passar por profunda reforma. Terá que acabar com o sistema de castas que distingue trabalhadores do setor privado de funcionários públicos; combater o patrimonialismo que faz com que burocratas ajam como donos dos serviços públicos; “estatizar” o Estado, impedindo que grupos empresariais influenciem em decisões do governo.
*Cristiano Romero é editor-executivo
Cristiano Romero: Muito além da economia
Para oferecer mais democracia a quem mais necessita dela, o Estado brasileiro terá que passar por profunda e difícil reforma
O economista Luiz Guilherme Schymura é um liberal que gosta de discordar. À frente do Ibre, o mais antigo centro de estudos econômicos do país, não deixa a instituição funcionar como igreja. Bem pensado: ninguém vai à igreja no domingo para questionar o chefe da paróquia - quando a discórdia é grande, o sujeito muda de igreja ou funda a sua ou, o mais difícil, tenta reformá-la. Ademais, economia não é religião.
É enfadonho o debate que apenas repete o samba de uma nota só do pensamento hegemônico. E é lamentável, neste país, a recusa da maioria ao debate civilizado e civilizador. O que se observa aqui é a demolição intelectual prévia do outro, com o apoio automático de alguns “sacerdotes”. Por aqui, a desmoralização do interlocutor chama mais atenção do que o debate de ideias. Mas, no “país do futuro”, demoniza-se o outro por ter vinculação política com o partido A ou B ou por ter estudado em Harvard e não no MIT ou nascido em Juazeiro (BA) e não em Petrolina (PE), por torcer para o Fluminense e não para o Flamengo. Perde-se muito tempo na Ilha de Vera Cruz com pequenezas.
Além de promover o debate e a “disputa” de ideias, facilitar a emergência do contraditório, tirar colegas da zona de conforto e de lembrar a todos que economia não é ciência exata, Schymura põe suas próprias ideias para brigar, sem abrir mão de sua sólida formação liberal. Nas análises, introduz aspectos que a maioria de seus colegas releva por considerá-los imponderáveis. Ora, o pensamento não chegaria a lugar algum se não houvesse ousadia, sonho, utopia.
A ciência que mais sofre na tentativa de entender o Brasil é justamente a destinada a esta missão: a antropologia. Porque o Brasil é um imenso encontro de etnias marcado por uma infâmia chamada escravidão, com a qual convivemos oficialmente durante quase quatro séculos e que, por isso, é a nossa principal característica como sociedade, como advertiu Joaquim Nabuco há mais de um século.
O Brasil, na verdade, ainda não existe. Nossa singularidade - a diversidade étnica - é vista pelas elites colonizadas como um defeito de origem. Ora, o conceito vago que temos de nação, o que julgamos ser parte de alguma identidade, a nossa riqueza como povo novo, na acepção de Darcy Ribeiro, deriva justamente desse encontro de imigrantes com os povos que estavam aqui antes da sua chegada.
Onde entra a economia nessa conversa? Para Luiz Schymura, não basta olhar para os números das finanças públicas e constatar que, deficitários, impedem a economia de crescer mais rapidamente. Essa análise é fácil. O difícil é largar a calculadora um minutinho e procurar entender por que o governo - em todas as esferas - gasta mais do que arrecada e, o mais importante, por que faltam recursos para o que é essencial (formar cidadãos) e sobram para quem não precisa.
Quem disser que é por causa da corrupção, cuidado! A corrupção é um mal em si, mas não faz cócegas no buraco das contas públicas, que, em 2019, somou R$ 429 bilhões. Quem acha que uma explicação possível está na maneira como o Orçamento é formulado está no caminho certo. O Orçamento Geral da União (OGU) é um retrato do pacto que nos impede de ser uma nação.
O OGU mostra que a divisão dos recursos públicos privilegia os mais ricos, as elites de todo tipo (não só as econômicas e financeiras, mas também as sindicais, intelectuais e culturais), a burocracia estatal, as grandes empresas e as multinacionais (a automobilística, que há 70 anos alega ter prejuízo no Brasil, mas não sai daqui), enfim, os grupos de interesses específicos. É provável que, ao ler o Orçamento, alguns leitores constatem estar entre os beneficiários do regime que faz do nosso contrato social um dos mais injustos do planeta.
Pior do que criar para si próprio privilégios é ser beneficiário deles e calar-se. No primeiro caso, estão os “donos do poder”, os que legislam em causa própria em todas as instâncias do poder; no segundo, os cúmplices, que recebem riqueza imerecida do Estado. São tantos, mas tantos exemplos de privilégios, que a tarefa de identificá-los é um exercício de cidadania.
No debate, Schymura afirma: o brasileiro quer mais democracia. E clama por isso desde a segunda metade do século XX. Os 50 milhões de miseráveis atendidos pelo Bolsa Família; as dezenas de milhões da faixa acima à dos beneficiários do Bolsa Família; as dezenas de milhões dos menos pobres, mas com pouquíssimas chances de ascensão devido ao caráter concentrador de renda das políticas públicas; a maioria quer mais democracia.
A história nos últimos 70 anos é reflexo desse desejo, observa Schymura. Nesse período, o que vimos foi a disputa entre quem quer mais ou menos democracia. Em 1984, fomos às ruas exigir a volta do direito de eleger o presidente pelo voto direto. Em 1985, aprovamos o direito dos analfabetos votarem. Em 1988, promulgamos a Constituição que instituiu direitos civilizadores, como o acesso universal gratuito à saúde e à educação, o pagamento de aposentadoria a trabalhadores do campo, mesmo sem terem contribuído para o INSS, e o direito de os indigentes receberem um salário mínimo mensal.
A Carta Magna, registre-se, acabou com a censura e definiu qualquer forma de discriminação como crime, passível de punição (artigo 5º, inciso XLI). Defensores da economia de mercado deveriam entender que a democracia é o melhor regime para o florescimento do capitalismo. Milhões de brasileiros foram às ruas em 2013 exigir serviços públicos de qualidade, prova de que nossa democracia é manca num aspecto fundamental: oferecer oportunidades iguais a todos.
Assegurada pela Constituição, a liberdade de expressão é um pilar da democracia. A defesa da concorrência, por sua vez, é o alicerce da economia de mercado. A insatisfação com juros e preços altos e a baixa qualidade dos bens e serviços é crescente. Não há economia forte onde poucas empresas e bancos dominam o mercado. A existência de monopólios e oligopólios estatais e privados enfraquece a economia de mercado e, em última instância, a democracia, e pouco se fala disso no mercado.
A profunda e perigosa divisão que a sociedade vive nesta hora pode ser fruto da reação de setores da sociedade ao “mais democracia”. Não se deve, porém, confundir “mais democracia” com assistencialismo e populismo, práticas que sabotam a própria democracia. Para oferecer mais democracia, o Estado terá que passar por profunda reforma. Terá que acabar com o sistema de castas que distingue trabalhadores do setor privado de funcionários públicos; combater o patrimonialismo que faz com que burocratas ajam como donos dos serviços públicos; “estatizar” o Estado, impedindo que grupos empresariais influenciem em decisões do governo.
*Cristiano Romero é editor-executivo
Cristiano Romero: A estagnação brasileira
País mostra que não superou modelo falido de 1982
Um olhar sobre a trajetória da economia brasileira nas últimas quatro décadas, quando o ritmo de crescimento caiu para um patamar bem inferior ao registrado nas décadas anteriores, mostra que, muito provavelmente, o país ainda não acabou de desmontar o modelo de desenvolvimento que faliu em 1982. Naquele ano, por causa da elevação da taxa de juros nos Estados Unidos a inacreditáveis 20% ao ano, países em desenvolvimento, como o Brasil, que se endividaram na década de 1970 simplesmente quebraram.
Em vez de reconhecer o fato de que, dali em diante, o modelo de Estado-empresário e de substituição de importações não teria mais como ser mantido por causa da enorme e abrupta restrição fiscal e creditícia surgida em 1982, os governantes optaram, nos anos seguintes, principalmente durante o governo Sarney (1985-1990), por insistir na salvação do que não tinha mais como dar certo.
A extensão do modelo de forte intervenção do Estado na economia e de fechamento comercial criou dificuldades que visivelmente até hoje impedem o país de voltar a crescer de acordo com seu potencial histórico. A insistência, ademais, permitiu que os setores da sociedade beneficiados por aquele regime econômico - a burocracia estatal e a indústria - se organizassem e reagissem a mudanças. A fatura do atraso - a escalada permanente dos preços a níveis crônicos e depois hiperinflacionários - foi paga por todos, mas especialmente pelos pobres, de quem o chamado “imposto inflacionário” mais retira renda.
Crises econômicas costumam ser semeadas durante períodos de bonança, quando cidadãos e empresas perdem a noção do risco ao acreditar que o ciclo econômico em que estão jamais acabará. A explosão do preço do petróleo no início da década de 1970 elevou a níveis impensáveis a liquidez mundial. A derrama de “petrodólares” derrubou fortemente as taxas de juros cobradas pelos bancos internacionais. Ato contínuo, essas instituições ofereceram crédito a um custo muito baixo a países como o Brasil, que, sendo estruturalmente uma economia importadora de capitais, foi à banca buscar esses recursos.
O país terminara a década de 1960 com dívida externa em torno de US$ 6 bilhões. Dez anos depois, graças ao funding dos “petrodólares”, essa dívida saltou para algo próximo de US$ 100 bilhões. O Brasil precisava desse dinheiro? Não se tenha dúvida. Foi isso que permitiu promover um ambicioso investimento em infraestrutura, absolutamente necessário para uma economia que, naquele momento, crescia acima de 10% ao ano, o ritmo mais veloz do planeta.
Com o dinheiro da dívida externa, o país criou um sistema elétrico integrado nacionalmente, expandiu fortemente a capacidade geradora de energia, implantou um sistema de telefonia federal razoavelmente moderno, construiu rodovias federais cortando praticamente todo o território, inspiradas no modelo americano, ampliou aeroportos, ferrovias etc. A crença de que a dívida seria honrada se baseava na percepção, correta, de que, como a economia avançava num ritmo veloz, não faltariam receitas para pagar os débitos.
O problema é que as taxas de juros, embora baixas, eram flutuantes. Como a segunda crise do petróleo, em 1979, provocou nova escalada nos preços dos combustíveis, a inflação americana assanhou-se, chegando a atingir mais de 20% A reação do Federal Reserve (Fed) foi a que se espera de um banco central independente: elevar a taxa de juros para conter a demanda e, consequentemente, os preços. A pancada no custo do dinheiro bateu nos juros flutuantes das dívidas dos países do chamado Terceiro Mundo e então a quebradeira foi generalizada.
Na reunião anual do Fundo Monetário Internacional (FMI), o “pobre México, tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos” - na célebre frase de um de seus ex-presidentes, Porfirio Díaz - foi o primeiro a se declarar incapaz de honrar os vencimentos das dívidas contraídas na década anterior. Na sequência, outras economias fizeram o mesmo, generalizando o calote e iniciando um período terrível de nossa história econômica, marcado pela falta de acesso a poupança externa para financiar nosso desenvolvimento.
Os calotes se sucederam, o país foi obrigado a promover maxidesvalorizações de sua moeda frente ao dólar para elevar a competitividade das exportações e, assim, gerar saldos positivos na balança comercial, suficientes para pagar os vencimentos da dívida externa. Numa decisão drástica, o Banco Central centralizou o câmbio - basicamente, passou a definir a quem pagaria a dívida lá fora, uma vez que não havia divisas para pagar a todos.
As consequências vieram em forma de mais inflação, arrocho salarial, imprevisibilidade dos principais indicadores econômicos, enfim, uma situação que apenas os brasileiros com mais de 40 anos hoje viveram na pele. E, a partir dali, sem acesso a poupança externa e com inflação fora de controle, a taxa média de crescimento caiu a níveis nunca vistos nas três décadas anteriores.
Olhemos os números: da primeira década do século XX até a década de 1970, o Brasil cresceu a uma taxa média anual de 4,6%; de 1971 a 1980, esse ritmo saltou para 8,8%; na década de 1980, a taxa média de expansão recuou para 3%; na década de 1990, caiu para 1,8%; nos primeiros dez anos deste século, aumentou para 3,4% ao ano; na última década, a década perdida do novo século, o crescimento anual médio da economia brasileira foi de apenas 1,4%, a menor das 12 décadas desde 1900.
“Muita gente continua falando da recessão que acabou, mas alguns ignoram que estamos ainda numa depressão e, mais ainda, que estamos numa estagnação que acaba de completar quatro décadas”, diz o economista Roberto Macedo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. “Essa grave estagnação não vem sendo pautada pela mídia e tampouco está na pauta dos políticos. Meu objetivo é fazer com que cresça a percepção dessa tragédia, com a esperança de que venham ações para saná-la. É humilhante o fato de que a década passada foi a de pior desempenho do PIB desde 1901.”
Cristiano Romero: O grande risco
Espera-se que Bolsonaro não ameace cumprimento da agenda econômica defendida hoje pela maioria dos brasileiros
Em julho de 2015, o economista Nilson Teixeira fez uma profecia terrível: a recessão que atingira o país no segundo trimestre do ano anterior seria a mais longa da história e a recuperação, a mais lenta. Infelizmente, acertou. A “Grande Recessão” durou três anos (2014/16) e registrou contração do PIB de 6,2%. A recuperação tem sido medíocre: entre 2017 e 2019, o crescimento acumulado pode ter sido de apenas 3,8%, muito inferior, portanto, à queda ocorrida no triênio anterior.
Economista-chefe do Credit Suisse quando fez o vaticínio, Nilson, hoje sócio da gestora Macro Capital, e sua equipe projetaram números menos pessimistas que os revelados mais tarde pela realidade. Ainda assim, a previsão contrariava a tradição da economia brasileira, de recuperação rápida de crises. A severa crise fiscal, um governo fraco e sem nenhuma intenção de promover reformas e corrigir os erros que provocaram a “Grande Recessão” compunham um quadro tão desolador que a superação levaria tempo.
Ninguém esperava, porém, que o PIB fosse recuar 3,5% em 2015 e 3,3% em 2016. Nos últimos três anos, o crescimento foi desanimador, contrariando as expectativas da maioria dos analistas - de 1,3% em 2017 e 2018 e de 1,16% em 2019, considerando para o ano passado a mediana das expectativas do mercado captadas pelo Banco Central.
O gráfico abaixo mostra que, em termos de crescimento econômico, a segunda década deste século foi perdida. Não foi à toa que os brasileiros respaldaram dois movimentos políticos: o primeiro, em 2016, de apoiar nas ruas o impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT); o seguinte, eleger o candidato que se apresentou bem cedo, nas redes sociais, como o anti-PT, o político que revogaria as políticas que afundaram o Brasil na crise mais longa e profunda de sua história.
Fernando Henrique Cardoso costuma dizer que, para tirar um presidente do cargo na nossa democracia é preciso cumprir três condições (não basta apenas uma delas): ter apoio das ruas (manifestações populares demonstrando insatisfação), maioria de votos no Congresso e pelo menos uma razão de natureza técnico-jurídica que justifique o questionamento do chefe do Executivo. Essas condições estiveram presentes tanto no impeachment de Fernando Collor, em 1992, quanto de Dilma, em 2016.
Ao apoiarem a queda de Dilma, as ruas deixaram claro que, neste momento, apoiam agenda oposta à da ex-presidente. Mesmo tendo sido eleita pela extraordinária popularidade de seu antecessor e então mentor (Lula), Dilma abandonou a política econômica que herdou dele. Desta forma, rompeu com o consenso que vigorava na área econômica desde 1999, desde o início do segundo mandato de FHC. Abraçou o populismo fiscal sem constrangimento e, em 2015, reeleita com dificuldade e prometendo aprofundar o que já tinha dado errado, esboçou correção de rumo ao adotar política fiscal austera, contrariando o que prometera a seus eleitores. Mas, logo, à semelhança do escorpião da fábula, voltou ao seu normal, desistiu do ajuste, rompeu com aliados e foi destituída do cargo.
O capital político do vice Michel Temer, que assumiu a Presidência em maio de 2016, era implantar a agenda anti-Dilma. Em pouco tempo, reformas que se diziam impossíveis, como a fixação de um teto para o aumento dos gastos da União, foram aprovadas no Congresso. No meio do caminho, entretanto, Temer perdeu seu capital político no episódio da gravação de diálogo embaraçoso com o empresário Joesley Batista, mas isso, ao contrário do que imaginou a elite política do país, não abalou o apoio da população à agenda econômica adotada desde a queda de Dilma.
Essa agenda não é de um grupo político específico, à direita do espectro partidário. Ela é necessária, urgente, absolutamente racional, de quem tem um mínimo de consciência, ética e responsabilidade em relação ao contrato social que rege ou deveria reger a vida dos mais de 200 milhões de viventes da Ilha de Vera Cruz. Dos presidentes eleitos pelo voto direto desde a redemocratização, cinco abraçaram essa agenda de uma forma ou outra, deixando Dilma na incômoda posição de exceção, o que só agrava sua avaliação.
Jair Bolsonaro, deputado de uma nota só (a defesa dos interesses corporativistas dos militares), percebeu isso, mas Geraldo Alckmin, do PSDB, e Fernando Haddad, do PT, não. O tucano nunca fez oposição aguerrida ao PT nem defendeu o receituário econômico com que FHC, a maior liderança de seu partido, governou o país de 1995 a 2002. O petista defendeu em sua campanha os anacronismos perpetrados pelas políticas da presidente deposta, o que leva a crer que Lula, sabido que só ele, colocou Haddad na disputa porque, claro, sabia que ele trataria de ser derrotado.
Setores da esquerda brasileira que ainda não superaram a Queda do Muro logo trataram de rotular a agenda em vigor de liberal. É uma forma de constranger formadores de opinião porque, no Brasil, lucro é coisa do cão babão.
Bolsonaro é um presidente que incomoda bastante, mas muito mesmo, quem preza por uma sociedade civilizada, que não tolera discriminação de qualquer espécie, inclusive, porque é isso o que prescreve a Constituição de 1988. Incomoda seu excesso de gesticulação na área ambiental, onde o Brasil, desde a Rio 92, se destacou como um ator crucial. Incomoda com seu discurso em defesa do uso de armas e que tais. Espera-se que tudo isso e muito mais não ameacem o cumprimento da agenda econômica defendida hoje pela maioria dos brasileiros.
Cristiano Romero: Juros baixos. Chegou a vez dos bancos
A concentração bancária é um dos itens relevantes dos spreads
O cidadão lê nos jornais que a taxa básica de juros (Selic) está hoje em 5,5% ao ano, o menor nível da história, e que pode terminar 2019 abaixo de 5%. E indaga: “Por que os juros que eu pago no cartão de crédito, no cheque especial e no crédito especial (ex-CDC), e mesmo no consignado, são bem mais altos e não caem na mesma velocidade?”. Alguns leitores chegam a se irritar quando nós, jornalistas, damos muito destaque à Selic e nem tanto assim às taxas cobradas pelos bancos no cotidiano. Os leitores estão certos.
A taxa Selic, que serve de referência para toda a economia, é o instrumento usado pelo Banco Central (BC) para levar a inflação à meta definida pelo governo. Se a inflação medida pelo IPCA obe e contamina outros preços, o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC, a depender das causas que aumentaram o custo de vida, eleva os juros. No regime de metas, o Copom acompanha de maneira minuciosa a atividade, mas olha principalmente para as expectativas dos agentes econômicos, colhidas semanalmente com mais de cem instituições.
A Selic reflete também o custo do financiamento do Tesouro Nacional, cuja dívida (a nossa dívida) beira o equivalente a 80% do Produto Interno Bruto (PIB). Logo, se a taxa Selic sobe muito porque o Copom necessita de mais aperto monetário para combater a inflação, a despesa do setor público (União, Estados e municípios) com o pagamento de juros explode. Em meados de 2002, para não quebrar o Tesouro, o BC teve que negligenciar temporariamente o controle da inflação. Os economistas chamam isso de “dominância fiscal”.
Quando a Selic cai, como nos últimos três anos, os juros cobrados de empresas e consumidores também recuam. Isso ocorreu em boa medida nesse período, mas as taxas continuam em patamares nada civilizados. Em agosto, o juro médio do capital giro, sem o qual as empresas não saem de lugar, estava em 18,5% ao ano. No chamado “crédito livre” para pessoa jurídica, a taxa média estava em 18,9%.
No caso dos cidadãos, em agosto, a taxa média de juros do crédito consignado (garantido por dedução mensal de parcela do salário) estava em 35% ao ano. Já o consignado dos funcionários públicos custava 20,3% ao ano - prova de que, na Ilha de Vera Cruz, há duas categorias de cidadão: a especial e a ordinária.
E temos, ainda, os juros pornográficos impostos às pessoas físicas: os bancos cobram juro médio hoje de 116,16% ao ano no crédito pessoal, de 319,6% no cartão de crédito e de 306,9% no cheque especial. Certa vez, quando a Selic frequentava a estratosfera (algo em torno de 45% ao ano!), o cartunista Cláudio Paiva, do velho “Jornal do Brasil”, fez uma charge sobre o tema “juros nas alturas”. Na piada, o pessoal da Nasa perde contato com o veículo lunar. Ato contínuo, o chefe da missão na Terra ordena: “Tentem os juros!”.
A diferença entre a Selic e os juros na ponta se chama “spread”, que tem diminuído, mas num ritmo nada comparável ao da Selic. Há um sem-número de razões que explicam a distância amazônica entre os juros de captação dos bancos das taxas cobradas de pessoas físicas e jurídicas. A composição dos “spreads” é um tema tratado desde a gestão de Armínio Fraga à frente do BC, há 20 anos. Houve avanços, mas o fato é que, com Selic alta, inflação saliente e volatilidade do produto, é difícil tocar agenda que reduza o custo do crédito e amplie de forma significativa a sua oferta. Sem crédito a um custo razoável, a economia não crescerá.
A concentração bancária é um dos itens relevantes dos spreads. O Brasil tem cinco “bancões”: Itaú, Bradesco, Banco do Brasil, Santander e Caixa. As instituições alegam que não é bem assim, sustentam que existe competição etc. Os bancos têm razão em alguns aspectos desse debate, que é bastante complexo, mas é inegável a existência de concentração, que aumentou muito desde o lançamento do Plano Real. Uma alegação dos banqueiros privados é verdadeira: BB e Caixa (esta, 100% estatal e, portanto, sempre sujeita a interferência política) são dois bancos públicos que concentram metade dos depósitos do sistema.
No segundo trimestre deste ano, Itaú, Bradesco, BB e Santander tiveram lucro somado de R$ 21, 6 bilhões. Isso é dinheiro em qualquer lugar do planetinha. Cabe a indagação: depois de três anos parada no hangar, a economia brasileira é um avião que taxia, taxia, mas não decola; sendo assim, de onde vem esse lucro se a economia não se move, companhias e cidadãos não tomam empréstimo, se há 13 milhões de desempregados e a indústria não sabe o que é crescer desde meados de 2010?
Um banco tradicional tem cinco pilares que servem como barreira de entrada de outros concorrentes - não se trata de crítica, esta é a realidade:
1) rede de agências, com capilaridade;
2) estrutura fechada: o banco vende dentro do próprio banco seus produtos, como seguros, fundos de investimento etc; esta é uma velha forma de capturar os clientes;
3) sistema de pagamentos, que também faz o cliente honrar suas contas no próprio banco. Trata-se de mais um sistema de captura à revelia da eficiência do banco;
4) estrutura de capital: os bancos têm uma coisa chamada “mature transformation”, que lhes permite multiplicar o capital por meio de prazos distintos das operações;
5) monopólio de dados: os bancos não fornecem aos concorrentes dados dos seus clientes.
O Ministério da Economia e o Banco Central estão trabalhando em medidas para mitigar cada uma dessas barreiras e, assim, ampliar o acesso da população e das pequenas e médias empresas a financiamentos. Não são medidas para prejudicar os bancos, mas, sim, para permitir a entrada de concorrentes no mercado bancário e, especialmente, viabilizar o ingresso das fintechs, que têm surgido a uma velocidade estonteante, explorando justamente as falhas dos bancos no atendimento do público.
Um produto regulamentado no início do ano pelo BC é o “home equity”, muito usado nos EUA. Dados do IBGE mostram que os imóveis residenciais das capitais brasileiras valem hoje R$ 12 trilhões, sendo que o mercado imobiliário movimenta apenas R$ 500 bilhões. O valor dos imóveis é o declarado no Imposto de Renda, logo, a soma é bem maior. Isso revela que 96% de todo o estoque de imóveis está pago. É um sistema muito pouco alavancado, logo, a ideia é usar os imóveis em garantia de empréstimos com juros baixos.
Cristiano Romero: Receita para lidar com crise de 2008 se esgotou
Os sinais de desaceleração da economia mundial, com risco de uma recessão global, estão por toda parte
Maior economia da zona do euro, a Alemanha já pode estar em recessão, uma vez que seu Produto Interno Bruto (PIB) encolheu 0,1% no segundo trimestre e, de julho a agosto, segundo estimativas de consultorias europeias, pode ter recuado novamente. Crescimento negativo por dois trimestres consecutivos caracteriza uma recessão. Os sinais de desaceleração da economia mundial, aparentemente “coordenada”, com risco de advento de uma recessão global, estão por toda parte.
A poucos dias de concluir seu mandato, o presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi, fez apelo dramático para que os países da União Europeia (UE) e os países ricos em geral promovam políticas de expansão fiscal. O pano de fundo da exortação de Draghi, que entrega o cargo em 1º de novembro a Christine Lagarde, ex-diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), é preocupante por mais de uma razão.
Como a taxa de juros fixada pelo BCE já está negativa em 0,5% e isso, pelo jeito, não está sendo suficiente para reanimar as economias da UE, esgotou-se o uso da política monetária como instrumento para prevenir recessões ou enfrentar crises como a de 2008. A quebra de grandes bancos e empresas na ocasião, além da destruição das economias de milhões de investidores e aposentados, levou os bancos centrais dos Estados Unidos, da Inglaterra, da União Europeia e do Japão a lançar mão de uma medida heterodoxa: a compra de títulos emitidos pelos respectivos governos para forçar a queda das taxas de juros de longo prazo, de forma a estimular as empresas a investir.
Nos EUA, além de reduzir fortemente os juros, o Federal Reserve (Fed) comprou à mancheia títulos do Tesouro americano e hipotecas. Em abril de 2017, seu balanço acumulava US$ 4,5 trilhões em ativos, algo jamais visto. Levou tempo, mas a estratégia deu certo e a economia americana engrenou no momento seguinte num longo período de crescimento. Na Europa, o BCE adquiriu também papéis privados. A zona do euro, enfim, se levantou, mas num prazo maior e com menos intensidade que os EUA.
Os manuais dizem que bancos centrais não devem financiar nem governos nem empresas, logo, durante a Grande Recessão fecharam-se os olhos para os pecadilhos cometidos, afinal, a confusão se mostrava mais grave e desafiadora, na opinião de muitos economistas, do que a Crise de 1929. Como “as consequências vêm depois” (Marco Maciel, depois do Barão de Itararé), muitos países saíram da crise altamente endividados do ponto de vista das contas públicas. Por causa disso, começaram a adotar medidas de austeridade fiscal.
Os bancos centrais, por sua vez, iniciaram a caminhada de volta para casa. Em meados de 2013, o Fed anunciou que chegou o momento de interromper a compra mensal de papéis. Deixou claro também que, em algum momento, os juros voltariam a subir, depois de demorado recesso. A economia crescia e o dragão da inflação, advertia o BC americano, poderia acordar depois de longa inatividade.
A necessidade de normalização da política monetária tirava - e ainda tira - o sono de muita gente. Temia-se o óbvio e o não tão óbvio assim, afinal, estava-se diante de algo inédito, que ninguém teve coragem de afirmar, na largada, que daria certo. A preocupação óbvia, mais na Europa que nas demais economias avançadas: elevar juros naquele momento poderia abortar a recuperação pós-crise. A menos óbvia era uma indagação: o que ocorrerá com os preços dos ativos nos mercados quando os bancos centrais começarem a se desfazer dos papéis públicos e privados para equilibrar seus balanços.
O Fed teve dificuldade de iniciar o desmonte de sua política de afrouxamento monetário porque uma das justificativas não se materializava: mesmo com a economia crescendo em ritmo acelerado, a inflação ficou comportada. Ciclos econômicos têm fim porque, num dado momento, não há mais trabalhadores disponíveis no mercado e os que estão nas fábricas começam a receber convites para mudar de emprego. Ato contínuo, os salários sobem, pressionam o custo unitário do trabalho e, portanto, a inflação.
Zelador do poder de compra da moeda, o banco central reage à saliência inflacionária elevando os juros e contendo a quantidade de moeda em circulação da economia - é perverso, mas é a realidade: diante de um cenário como o citado, os bancos centrais estimam a quantidade de trabalhadores que precisam perder o emprego para conter determinada fatia da demanda e, assim, reduzir a inflação à meta definida pelas autoridades, no caso dos países onde o BC não possui autonomia assegurada em lei.
Em 2015, o Fed começou a aumentar os juros e, desde 2018, a se desfazer dos títulos de sua carteira. O PIB americano continuou crescendo, a inflação não se manifestou de maneira perigosa e a taxa de desemprego caiu aos menores níveis em cinco décadas - em setembro, 3,5% ou pleno emprego, o que significa dizer que só não está trabalhando quem não pode (pessoas desabilitadas física ou mentalmente e por causa da estatística, que captura “desempregados” quando, na verdade, são trabalhadores mudando de emprego).
Nos últimos meses, porém, surgiram sinais de desaceleração inquestionáveis, especialmente, na Alemanha, carro-chefe da Europa.
O ativismo monetário foi imediatamente acionado. Desde maio, nada menos que 18 países (contando a zona do euro como um só), inclusive, a Ilha de Vera Cruz, vêm cortando os juros. O Fed voltou a cortar juros e o BCE a comprar títulos, a mesma receita da crise de 2008. Vai funcionar desta vez?
“O ‘zero lower bound’ [o limite zero, numa tradução livre] da política monetária não só foi rompido - já há taxas de política monetária abaixo de zero, como a do BCE -, como já se acumula uma montanha de US$ 17 trilhões de títulos de rentabilidade negativa nos mercados mundiais. E, no entanto, a reação da demanda na economia real continua a decepcionar, ao mesmo tempo em que se teme que haja uma bolha de renda fixa no mundo, com os BCs a alimentar as compras de papéis por preços cada vez maiores (o que resulta em rentabilidades crescentemente negativas)”, diz Luiz Guilherme Schymura, diretor do Ibre, da FGV.
Cristiano Romero: Já viram o juro real?
Juro real em julho caiu para 1,81% ao ano, o 2º menor do real
O Brasil convive neste momento com a menor taxa de juros desde o lançamento do real, em 1º de julho de 1994. O juro real, isto é, a taxa descontada da inflação projetada para os próximos 12 meses, é o segundo menor da série. No país "viciado" em juro alto, ver juro real cadente ao longo do tempo e de forma consistente é muito positivo (ver gráfico abaixo). Em 2003, quando a economia brasileira enfrentou grave crise, o juro real médio foi de 13,20% ao ano. No ano passado, caiu para 3,06% e, neste ano, até o dia 9 deste mês, estava em 2,36% ao ano. Em julho, ficou abaixo de 2% - 1,81% ao ano.
Infelizmente, não se pode falar ainda em conquista porque o país está longe, muito longe, de resolver o problema de financiamento do Estado brasileiro. O custo do dinheiro reflete, principalmente, a situação fiscal de uma economia. No regime de metas para inflação adotado pelo país em meados de 1999, a taxa de juros é o principal instrumento de combate à inflação, mas a âncora do modelo são as contas públicas.
Se as finanças públicas são permanentemente deficitárias, a tendência é que os juros sejam altos. Na situação oposta, o juro é cadente. Sua influência sobre outro preço importantíssimo da economia - a taxa de câmbio ou, grosso modo, a cotação do dólar - é direta. Se o juro é alto, o real tende a valorizar-se porque investidores trazem seus dólares para tirar proveito do custo do dinheiro aqui. Se o juro é baixo, os fluxos de capitais de curto prazo diminuem e a pressão sobre o dólar é menor.
Estamos falando da taxa básica de juros, a tal da Selic, o juro de curtíssimo prazo, usado pelo Banco Central como meta para estabelecer o custo do dinheiro e, assim, conduzir a política monetária. A Selic funciona como referência para o mercado e também para o Tesouro Nacional. É calibrada mais ou menos a cada 45 dias pelo BC e, em última instância, decorre do prêmio que os investidores cobram para financiar o Estado brasileiro.
Desde 2014, o setor público consolidado (União, estados e municípios) gera déficits primários, o que significa dizer que o dinheiro arrecadado com os impostos não tem sido suficiente para pagar as despesas dos governos federal e estaduais e das prefeituras. O conceito se chama primário porque não inclui o serviço da dívida (em português e não no economês, o gasto com juros). Portanto, o rombo total das contas públicas, o resultado nominal, é maior porque juro é despesa.
O governo brasileiro só consegue honrar despesas como aposentadorias do INSS, Bolsa Família e salários do funcionalismo porque o Tesouro Nacional pode tomar dinheiro emprestado no mercado, por meio de emissão de títulos públicos. Quanto mais o Tesouro se endivida, maior é a dúvida comprador do título quanto à sua capacidade do governo de honrá-la no futuro, logo, maior também é o prêmio (os juros) que o investidor exige para adquirir o papel novamente.
A dívida pública bruta da União tem crescido de forma exponencial - quase 30 pontos percentuais de PIB (Produto Interno Bruto) nos últimos cinco anos! A dívida líquida é menor porque desconta da bruta as reservas cambiais, mas, desde que o governo Dilma desmoralizou a contabilidade oficial por meio de ardis como a troca de ativos entre estatais para gerar dividendos de natureza contábil, apenas o número "bruto' das contas, sem desconto, é aceito.
Por causa dos déficits primários recorrentes, o Brasil possui a maior dívida pública dos países de sua categoria - equivalente a 78,7% do PIB, quase o dobro da média das economias em desenvolvimento.
O valor mais baixo da taxa real de juros ainda é o 1,39% ao ano, registrada no dia 6 de dezembro de 2012. Mas aquele valor era irreal. Não refletia os fundamentos da economia - a inflação se aproximava do limite do regime de metas e, pior, as expectativas estavam completamente fora de controle, razão suficiente para impedir a queda dos juros. O BC forçou a queda porque a presidente da República o obrigou a fazer isso, mas a farsa durou poucos meses.
Neste momento, os fundamentos não justificam o juro mais baixo da série do Plano Real, mas as expectativas, sim. E só é assim porque a atual equipe econômica tem credibilidade. O mercado aceita juros baixos neste momento - e isso beneficia a bolsa de valores e a taxa de câmbio - porque há um acordo tácito com Brasília: "vocês aprovam as reformas que vão equilibrar as contas públicas e nós lhes damos juro baixo, câmbio com baixa volatilidade e bolsa em alta".
Uma das principais lições da terrível crise econômica que assola o país há longos seis anos parece não ter sido totalmente assimilada - sem credibilidade, políticas expansionistas não dão certo, isto é, não entregam o prometido, que é a aceleração do crescimento do PIB.
Memória: depois de crescer insustentáveis 7,5% em 2010, graças a uma hiperdose de estímulos fiscais, a economia brasileira faria um ajuste em 2011 para evitar que a inflação, que fechou 2010 acelerando o passo, superasse a meta da ocasião (o teto do regime era 6,5%); o novo governo até fingiu, nos primeiros seis meses, que faria a necessária correção de rumo, mas, em agosto daquele ano, promovera o que estava planejado há alguns anos - redução dos juros na marra, adoção de medidas para administrar a taxa de câmbio à revelia do mercado e uso da margem fiscal acumulada nos anos anteriores para estimular a atividade a qualquer preço.
Cristiano Romero: A difícil arte de cumprir a meta fiscal
Está mais difícil cumprir déficit primário do que o teto
Quando o governo Temer propôs e o Congresso Nacional aprovou, em tempo recorde, a instituição de um teto constitucional para os gastos da União, nem o mais otimista dos viventes da Ilha de Vera Cruz acreditou na efetividade da medida, radical por definição. Não havia, de fato, por que acreditar. Do início da década de 1990 a 2015, o gasto corrente federal cresceu, em média, 6% ao ano em termos reais (acima da variação da inflação). Entre 2008 e 2015, o ritmo aumentou de forma exponencial - salto de 50%, já descontada a inflação, enquanto as receitas avançaram 15%; a diferença de ritmo fez a dívida explodir, levando o país a perder em 2015 o selo de bom pagador conquistado sete anos antes.
O teto constitucional de gastos estancou drasticamente o gasto real, simplesmente proibindo que isso ocorra, sob pena de as autoridades serem obrigadas a compensar o desrespeito ao teto com suspensão de reajustes salariais para o funcionalismo e mesmo da correção anual das aposentadorias, além da realização de concursos públicos. O teto entrou em vigor em 2017 e, apesar de todo o mau agouro, tem sido rigorosamente cumprido. Há analistas, inclusive, que atribuem ao teto uma das razões para a lenta e exasperante recuperação da economia brasileira, após seis longos anos de recessão (2014-2016) e baixo crescimento (2017-2019).
A adoção do teto deveria ter estimulado a sociedade, por meio do Congresso e de movimentos civis representativos, a redefinir as prioridades do Estado brasileiro, uma vez que, finalmente, entendemos que os recursos públicos são escassos, não só aqui mas em qualquer lugar do planeta.
Não, esse debate não se deu e dificilmente ocorrerá - nesse aspecto, o teto não mudou hábitos e costumes em Brasília: os donos do poder repartem cem quinhões do erário com o mesmo ardil e apetite com que dividem dez, deixando de fora da partilha quem mais necessita de um tostão (Sua Excelência o povo, que não tem um só representante no Planalto Central).
O difícil neste momento será cumprir não o teto, mas a meta de déficit primário. Considerando o cenário econômico atual, o cumprimento da meta de déficit do governo central em 2019, de R$ 139 bilhões, requer um contingenciamento no Orçamento na casa de R$ 34,2 bilhões. Por causa disso, observa a economista Vilma Pinto, especialista em contas públicas do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre-FGV), os gastos discricionários não poderão ultrapassar R$ 95 bilhões no corrente ano.
Nos 12 meses acumulados até junho deste ano, o gasto discricionário do governo federal atingiu R$ 120 bilhões. Como se vê, é necessário portanto um encolhimento expressivo de R$ 25 bilhões. Segundo Vilma, há duas possibilidades: reduzir ainda mais o custeio, com o risco de comprometer o funcionamento da máquina pública; ou, cortar ainda mais os investimentos, comprometendo a preservação do capital público e freando ainda mais a demanda da economia, que segue fraca.
O fato mais marcante ocorrido em 2017, devido à escassez de recursos públicos, foi a suspensão temporária da emissão de passaportes pela Polícia Federal. A crise virou um símbolo do risco de corte excessivo das despesas discricionárias.
Manoel Pires, pesquisador associado e coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre, observa que, a preços de 2010, as despesas "contingenciáveis" caíram de R$ 94,6 bilhões em 2016 para R$ 75,7 bilhões em 2017. A única diferença entre as despesas discricionárias, mencionadas por Vilma, e as contingenciáveis, citadas por Pires, é que estas últimas excluem aportes a estatais.
Em valores nominais, essa diferença em 2019 faz com que as despesas discricionárias no conceito da pesquisadora estejam previstas para R$ 97,6 bilhões, enquanto, excluindo aporte a estatais, a projeção é de R$ 87,4 bilhões.
De qualquer forma, tomando-se o conceito de Pires, a despesa real contingenciável - a preços de 2010 - prevista para 2019 é de apenas R$ 52,7 bilhões. Note-se que é muito menor que o nível de R$ 75,7 bilhões de 2017 (na mesma base real de preços), que já provocou os problemas de funcionamento da máquina pública citados acima.
Problemas mais sérios na gestão da máquina pública este ano se deverão à meta de primário, e não ao teto constitucional dos gastos. Esse resultado surpreende até certo ponto. O teto de gastos, estabelecido pela Emenda Constitucional 95, de 2016, começou a vigorar em 2017, e havia expectativa de que tornasse o limite mais restritivo da política fiscal - e muito difícil de cumprir - em dois ou três anos.
No entanto, isso não se verificou nestes três primeiros anos. Agora em 2019, como explicado acima, a maior restrição da política fiscal reside na meta de resultado primário.
Alguns fatores ajudam a explicar por que isso aconteceu. Em 2016, a repatriação de capitais impulsionou a receita, com um ganho de R$ 46,8 bilhões, permitindo uma elevação das despesas sem comprometer a meta de resultado primário. Essa alta da base inicial das despesas, congelada em seu valor real pela EC 95, evitou que o teto de gastos se tornasse limitante em 2017 e 2018. Já para 2019 a expectativa era diferente, de que a restrição se tornasse efetiva.
No entanto, a greve dos caminhoneiros provocou um salto da inflação (IPCA) em 12 meses até junho de 2018, para 4,4%, o que determinou a correção monetária do teto dos gastos. Esse percentual acabou bem acima, por exemplo, da inflação acumulada em 12 meses até dezembro de 2018 (INPC), de 3,4%, que corrigiu os benefícios previdenciários atrelados ao salário mínimo. O governo à época divulgou que o efeito de elevação do IPCA pela greve dos caminhoneiros aumentou o teto em R$ 14 bilhões.
Em 2020, porém, provavelmente chegará a hora da verdade em relação ao teto dos gastos. O IPCA em 12 meses acumulado até junho de 2019, que corrigirá o teto dos gastos, é de apenas 3,37%, não havendo, portanto, a folga proporcionada em 2019 pela evolução do mesmo indicador até junho de 2018. Além disso, a elevação das despesas obrigatórias tende a continuar pressionando o espaço restante para os gastos discricionários, mantendo níveis de investimentos e custeio discricionário extremamente baixos.