Cristiano Romero
Cristiano Romero: A difícil arte de romper com passado
O problema da pobreza não atendida por programas sociais está nos grandes centros e capitais
Na Ilha de Vera Cruz, impera a tradição de nunca se romper com o passado que nos condena ao atraso, inclusive, na transição de regimes, governos e crises. Não se muda totalmente o rumo das coisas nem quando a situação exige. E, por essa razão, torna-se sempre mais difícil avançar. Períodos de continuidade do que está dando certo são raros.
A crise da dívida, em 1982, mostrou que o regime de substituição de importações foi à breca. O modelo se esgotou porque, devido à escalada dos juros no mercado internacional, tornou-se impossível honrar o pagamento da dívida externa, que na década de 1970 saltou de US$ 6 bilhões para aproximadamente US$ 100 bilhões.
O governo federal perdeu a capacidade de bancar, desde a crise da dívida, os investimentos que vinha fazendo de maneira massiva.
Quem viveu naqueles anos pôde perceber a degradação gradual e irretratável da infraestrutura (estradas, ferrovias, aeroportos, portos) e dos serviços públicos desde então. No fundo, aindas vivemos em função daquele legado.
Equilibrar o balanço de pagamentos, isto é, gerar divisas internacionais para fazer frente ao pagamento da dívida externa, tornou-se mais importante do que combater a inflação naquele momento. É que, para dar rapidamente competitividade às exportações e, assim, gerar saldos positivos na balança comercial, a saída era promover maxidesvalorizações da moeda nacional frente ao dólar.
Como dizia o ministro da Fazenda do governo Geisel (1974-1979), a inflação aleija, mas o câmbio mata. Na prática, a desvalorização da taxa de câmbio reduz o salário real de quem trabalha, o poder de compra diminui, uma vez que ficamos todos mais pobres em relação ao mundo. Por conseguinte, diminui os custos de produção das empresas. O efeito colateral danoso é o aumento da inflação.
Os militares não tiveram muito tempo para fazer algo e, por isso, passaram o bastão aos civis, em março de 1985, com inflação alta e disparando e debilidade no balanço de pagamentos. A Nova República, cujo primeiro presidente fora um prócer da ditadura _ José Sarney, ex-governador do Maranhão _, foi inaugurada sem operar mudanças no modelo que vinha dando errado. Um importante protagonista daquele momento na equipe econômica contou a esta coluna o que aconteceu.
"O acordo com o FMI, de 1983, e os empréstimos setoriais do Banco Mundial, negociados e nunca concluídos, apontaram sérias distorções institucionais no campo econômico do Estado brasileiro. Das intensas discussões de então, das quais participei, surgiu a percepção de mudanças necessárias", relata Maílson da Nóbrega, que comandou o Ministério da Fazenda nos últimos dois anos do governo Sarney.
Antes, entre 1983 e 1984, Maílson coordenou a realização de amplo estudo para examinar a situação das finanças públicas federais. Em decorrência daqueles estudos, adotaram-se medidas relevantes como a extinção da “conta-movimento” do Banco do Brasil, o fim das atividades de fomento do Banco Central e a eliminação do Orçamento Monetário. Também em consequência daquele trabalho, foi criada a Secretaria do Tesouro Nacional, entre outras ações modernizantes.
Foi um avanço, sem dúvida. Imagine-se o seguinte: a conta-movimento permitia que o governo dispusesse de recursos financeiros, a qualquer momento e fora do orçamento, do caixa de um banco estatal. O BB, portanto, financiava o Tesouro. Dilma Rousseff sofreu impeachment por muito menos… Outra jabuticaba era a atuação do BC como agência de fomento para a agricultura. Em ambos os casos, os instrumentos fomentavam, na verdade, a explosão da inflação.
No setor externo, ficaram evidentes as distorções criadas pelo acirramento dos controles de importações e o efeito negativo da política de substituição de importações (levada então ao extremo) sobre a concorrência, a inovação e a produtividade. Daí, os estudos, revela Maílson, para rever a estrutura tarifária, à época plena de redundâncias e outras distorções.
"Esse trabalho insano, realizado de forma competente pela então Comissão de Política Aduaneira, forneceu a convicção de que chegara a hora de iniciar um processo cuidadoso e unilateral de redução dos escandalosos níveis de direitos de importação (alguns acima de 100%). Desse trabalho, adveio a primeira ação de abertura da economia em 1988, seguida da segunda em 1989. A tarifa média caiu para pouco mais de 30%, ainda elevadíssimas, mas muito inferiores às praticadas."
Um passo adicional foi a eliminação da lista de importações suspensas (sim, havia isso), que abrangia cerca de 3.500 produtos. Mesmo que o importador se dispusesse a pagar as altas tarifas, era proibido emitir a guia de importação. Como parte do acordo não concluído com o Banco Mundial, o Ministério da Fazenda se comprometeu a eliminar a lista em um prazo.
"Em janeiro de 1989, a lista estava em 500 produtos, todos muito sensíveis. Naquele mês, recebi o então diretor da Cacex, Namir Salek, que me propôs suspender a medida. Os argumentos eram fortes: fim de governo, baixa confiança, nível reduzido de reservas internacionais. A eliminação dessas 500 posições poderia, na visão dele, disparar um processo de importações que consumiriam as modestas reservas internacionais e piorariam a crise, que abrangia dificuldades no balanço de pagamentos. Concordei com Salek e até hoje me arrependo. Estou convencido de que o seu cenário pessimista não se materializaria. Não havia demanda para tanto."
Em 1986, uma equipe de jovens economistas lançou um engenhoso plano para estabilizar a inflação. Mas, como vivíamos ainda o pleno funcionamento do modelo de substituição de importações, que fechava as fronteiras comerciais do país às importações, o plano não tinha como dar certo. Sem expor os preços domésticos à competição internacional, a inflação ficaria em níveis comportados por muito tempo.
Fernando Collor de Mello venceu a eleilção de 1989, com o discurso de uma agenda liberalizante. Por muito tempo, atribuiu-se a ele a novidade. “As ideias liberais que Collor abraçou já estavam em discussão desde os anos iniciais da crise da dívida externa”, observa Mailson da Nobrega.
Cristiano Romero: Uma economia marcada pela concentração
Modelo que faliu em 1982 nos legou vários oligopólios
Quando um cidadão vai a um banco solicitar empréstimo para comprar um apartamento ou uma casa, fica sabendo que, entre outras taxas, ele tem que pagar R$ 3 mil para a “avaliação” do imóvel. Sob qualquer escrutínio, é um valor salgado. Muitos ou a maioria dos clientes nem sequer tomam conhecimento da cobrança, não porque a considerem módica, mas simplesmente por não saberem de sua existência.
Incomodado com essa situação, um brasileiro do Banco Central (BC) avistou-se com banqueiros para saber por que a taxa é tão alta e, também, o porquê da cobrança. Mandaram-lhe procurar representante dos peritos, os profissionais autônomos encarregados de avaliar imóveis.
A autoridade inquiriu o perito: “Vem cá, por que R$ 3 mil?”. Constrangido, o representante dos peritos respondeu: “Doutor, na verdade, a nossa parte é R$ 300”. “E os R$ 2.700?”, quis saber o brasileiro do BC. “Vão para o banco, doutor.”
Não mate o mensageiro, diz o provérbio originário do latim "ne nuntium necare". Diz a lenda que Dario III, rei da Pérsia, foi derrotado pelas tropas de Alexandre, o Grande, por ter matado Charidemus, um de seus generais, responsável por levar-lhe conselhos que contrariavam toda a sua estratégia até então. O brasileiro do BC respirou fundo ao retornar aos banqueiros.
“Vamos lá, os peritos me contaram outra história. Por que vocês ficam com R$ 2.700 da avaliação sem fazer absolutamente nada?”, questionou. Embaraço geral, crianças foram retiradas da sala e, assim, emergiu a verdade nua e crua: “Margem, por margem…”. Novamente: “Não mate o mensageiro”, meditou o brasileiro dom BC.
Margem, neste caso, é lucro ou aquilo que se pode auferir de um negócio num mercado controlado por poucas empresas. Os R$ 3 mil são rigorosamente cobrados por todos os bancos - é provável que isso tenha mudado, mas o fato serve para ilustrar a falta de concorrência no setor bancário.
O cliente não tem para onde correr, afinal, dois bancos estatais - Banco do Brasil e Caixa - respondem por 50% do varejo bancário, e três privados - Itaú Unibanco, Bradesco e Santander -, pelo restante. Uma pergunta que não se cala: a quem não interessa a privatização dos bancos estatais?
A atual gestão do Banco Central tem implementado agenda, desde sua chegada a Brasília, há um ano e meio, para tentar diminuir a concentração bancária, um dos principais gargalos da economia brasileira. Por que é um gargalo? Porque o custo do crédito na Ilha de Vera Cruz é altíssimo, e, no caso das micro, pequenas e médias empresas, proibitivo. Esta realidade impede o desenvolvimento na base da economia, onde estão os novos empreendedores, a possibilidade de inovação disruptiva e a maioria dos empregos.
Durante décadas - e isso ainda não acabou -, o Estado brasileiro deu subsídio fiscal e creditício, por meio do BNDES e outros bancos federais, a grandes empresas, inclusive multinacionais. Estas companhias não tomam dinheiro nos bancos locais pela mesma razão de todos nós: juro alto. Mas, elas têm acesso a capital barato lá fora, onde as taxas de juros são as menores da história.
A Constituição, corretamente, proíbe discriminar o capital estrangeiro investido aqui, mas, convenhamos, não faz nenhum sentido um país de 50 milhões de miseráveis e outros 100 milhões ou mais de pobres bancar as margens de lucro dessas empresas, bem como das grandes corporações nacionais.
A liberdade de expressão está para a democracia assim como a concorrência está para a economia de mercado. Não existe democracia sem que os cidadãos tenham o direito de dizer o que pensam de seus governantes. Do mesmo modo, não há economia de mercado onde monopólios e oligopólios vicejam. Economias de mercado, em que há verdadeira e acirrada competição entre as empresas, se desenvolvem mais rapidamente sob regimes democráticos. Democracias onde o poder econômico se concentra nas mãos de poucos são mancas e sempre sujeitas à instabilidade.
Na Ilha de Vera Cruz, os grandes monopólios e oligopólios foram criados pelo governo, como mencionado por esta coluna nesta série dedicada à história econômica do país desde 1964 - o objetivo é tentar, humildemente, saber onde estamos depois de duas décadas diametralmente opostas neste século: segundo o Valor Data, na primeira, a economia avançou em média 3,71% ao ano, e, na segunda, -0,02%; como se vê, estamos no último ano de uma década perdida.
A justificativa do Estado para estimular a emergência de grandes empresas, principalmente nos setores de matérias-primas e bens intermediários, era a de que não havia por aqui, na ocasião (década de 1970), capitalistas com capital suficiente para bancar investimentos vultosos. Adotou-se o modelo tripartite, que combinava a participação de capital estatal, privado nacional e estrangeiro.
Em alguns setores, considerados "estratégicos", o controle estatal era absoluto, como na Petrobras, fundada muito antes, em 1953, na CSN (fundada em 1941, mas inaugurada apenas em 1946), na Vale (1942) e na Eletrobras (1962, que surgiu como uma empresa de estudos na área energética, mas, depois, tornou-se holding e incorporou, durante o regime militar, uma série de estatais).
O modelo de desenvolvimento vigente era o de substituição de importações. De fabricante de quase nada, a Ilha de Vera Cruz transformou-se, graças aos portões fechados e a um enorme endividamento externo, em produtor de quase tudo - o “quase” aqui é crucial para entender que a economia fechada fez o país ficar à margem da corrida tecnológica, atraso que ainda nos custa muito caro. Em 1982, com o advento do que ficou conhecido como “crise da dívida”, o modelo de substituição de importações começou a ruir.
Cristiano Romero: Brasil: o destino de nunca ser liberal
Aqui, liberalismo e liberal são palavras demonizadas
Uma das palavras mais demonizadas do nosso vocabulário é "liberalismo". Sim, o vocábulo, porque, no fundo, não importa discutir seu significado real, a ideia, a doutrina ou o modelo de funcionamento de uma economia. Na Ilha de Vera Cruz, mesmo nas universidades, lócus por definição do debate de ideias, não se vai muito longe na discussão do tema. Ora, por quê? Porque o liberalismo econômico, nos ensinam os livros didáticos desde a tenra infância, é coisa de capitalista selvagem, empresário malvado e banqueiro usurpador, assim como de duas categorias cuja existência, para os anti-liberais, dispensa adjetivos: os investidores da bolsa de valores e os investidores estrangeiros.
A história nos conta por que somos assim, desde as capitanias hereditárias, a forma encontrada pelo já decadente reino de Portugal de ocupar esta imensa "ilha", antes que alguém o fizesse.
"Descoberta" em 1500, Cabrália só começou a ser realmente colonizada 34 anos depois, quando D. João III dividiu o território à régua _ sem levar em consideração os acidentes geográficos que costumam demarcar cidades, Estados e até países _ em 15 capitanias. Como o reino estava falido, cada área foi concedida a um donatário que tivesse recursos para ocupar e administrar a sua área, que não lhe pertencia, mas a Portugal.
A ocupação era urgente porque franceses vieram aos baldes, nas três primeiras décadas de existência da América Portuguesa, depenar a vasta Mata Atlântica para extração de pau-brasil, madeira resistente usada na fabricação de móveis, instrumentos musicais e, ainda, no tingimento (vermelho) de tecidos. Antes das capitanias, funcionaram as feitorias, um monopólio concedido pelo reino português aos exploradores e comercializadores de pau-brasil. Mais adiante, em 1550, os franceses tentaram tomar a pulso parte da Ilha de Vera Cruz do domínio português…
Os donatários das capitanias começaram a desenvolver a lavoura de cana de açúcar e a produção de açúcar, principal produto da colônia dali em diante e por mais de dois séculos. Ali, criou-se a ignomínia que nos caracteriza como sociedade: a escravização de indígena e de africanos. No tempo das feitorias, os índios faziam o trabalho pesado de derrubar as árvores de pau-brasil, mas, em troca, recebiam bugigangas europeias dos feitores. Era um tipo de escravidão, mas esta só foi posta em prática oficialmente com o início do plantio de cana-de-açúcar. À medida que o cultivo da cana foi avançando, o tráfico de africanos escravizados na colônia de Portugal nas Américas cresceu exponencialmente. Como se sabe, apenas em 1888, quase quatro séculos depois, a escravidão foi abolida no Brasil, o último país do Novo Mundo a fazer isso. Tarde demais.
Este país habitado hoje por 210 milhões jamais conseguiu superar as capitanias hereditárias (cartórios), as feitorias (monopólios), a escravidão (a forma mais perversa de não se reconhecer no outro, obstáculo intransponível para o florescimento de uma nação). Grosso modo, esses elementos sempre estiveram presentes na forma como nossa economia funciona. A história nos ensina que grupos específicos, minoritários quando comparados ao conjunto da população, dividem entre si os sempre parcos recursos do Estado.
A tradução moderna e contemporânea do modelo de formação econômica e política está, por exemplo, no poder autóctone da burocracia estatal _ que, isolada em Brasília, goza de privilégios, como o direito absoluto à estabilidade no emprego, e toma decisões em seu próprio benefício ao arrepio da sensatez e da opinião de quem lhe paga os salários. Revela-se, também, na manutenção sob o guarda-chuva do Estado de um sem-número de empresas estatais, periodicamente flagradas malversando recursos públicos em prol de interesses de empresas privadas.
Nossa herança maldita se manifesta na inaceitável tolerância do Estado com a existência de monopólios e de setores com elevado grau de concentração. Este não só provoca ineficiências na economia como um todo, mas representa também uma ameaça à própria democracia. Nos regimes democráticos, têm enorme vantagem sobre os outros os detentores de poder econômico e informação. Esses ativos são comumente usados nas disputas de poder e não raramente de maneira desonesta. A razão disso é simples: a posse dessas vantagens gera assimetrias que podem desequilibrar a luta política e, assim, fragilizar a democracia.
O atraso secular se traduz, ainda, na concessão, pelos governantes, de uma miríade de incentivos fiscais (que reduzem a capacidade da União, dos Estados e municípios de investir onde são mais necessários, ou seja, em educação e saúde) a grandes companhias, que têm acesso a crédito bancário e ao mercado de capitais. Ao mesmo tempo, é negada aos pequenos empreendedores e empresas qualquer forma de ajuda. Ao contrário das grandes companhias, as pequenas têm que buscar crédito no mercado, onde os juros são muito mais altos.
Por, não se deve esquecer que a nossa (de)formação histórica aparece, com nitidez desconcertante, na convivência cínica das elites (todas) com vergonhosos indicadores de violência (60 mil homicídios por ano), pobreza (50 milhões de miseráveis), desigualdade (1% da população detém 28,3% da renda, enquanto os 50% mais pobres ficam com 13,9%) e de qualidade da educação (no país onde se destacam tantos especialistas nessa área, entra ano, sai ano, e nossos adolescentes ocupam sempre as últimas colocações do Pisa, programa da OCDE que mede e compara o desempenho de estudantes de dezenas de nações em provas de matemática, ciências e língua pátria.
Nada disso tem qualquer relação com o liberalismo econômico. É justamente o oposto. Na verdade, neste imenso pedaço de terra, ideias liberalizantes jamais frutificaram. Não há liberais de verdade por aqui. No fundo, o liberalismo - concebido por Milton Friedman - é uma utopia. A saga continua…
Cristiano Romero: Por que caçoamos da própria desgraça?
No Brasil, o debate é interditado por quem não quer mudança
Uma das maneiras mais eficazes - e desonestas - de interditar um debate é atribuir simploriedade às ideias do interlocutor, enquadrá-las num "slogan" pejorativo e, assim, promover sua incompreensão no imaginário histórico e coletivo de uma sociedade. De fato, muitas vezes, a artimanha usada para sabotar o debate é mais engenhosa do que a iniciativa dos que pretendem enriquecê-lo. E, desta forma, as sociedades não progridem.
A Ilha de Vera Cruz é, possivelmente, a maior vítima desse perverso "controle" de ideias. Aqui, o passado não acaba nunca, a mistificação costuma prevalecer sobre a lógica e a ciência, o que está visivelmente errado não se muda porque, simplesmente, a maioria dos viventes, diz-se, não aceita. E, assim, fazemos vistas grossas para o anacronismo e banalizamos nossas tragédias.
Um exemplo inaceitável de banalização cotidiana: 60 mil brasileiros vão morrer assassinados neste ano. Sessenta mil cidadãos vão perder suas vidas em 2020 porque é esta uma estatística macabra. Há alguns anos é esse o número de pessoas marcadas para morrer neste país. O perfil médio dos assassinados é de jovens entre 17 e 24 anos, aqueles que, nas nossas famílias, nessa idade estão estudando ou iniciando sua brilhante carreira profissional.
A estatística, esta implacável, nos envergonha e humilha, como a perguntar: "Ei, vocês, como sociedade, não vão fazer nada para acabar com isso?".
Brasileiro deve odiar estatística porque essa maldita ciência nos lembra, todo santo dia, o que somos como sociedade. Pois é. Por que o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) teve a pachorra de nos inscrever no PISA, exame que avalia a qualidade da educação por meio de provas feitas por estudantes de 15 anos em três disciplinas (leitura, matemática e ciências). Aplicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o "maldito" PISA faz um ranking do desempenho de 80 países (36 integrantes da organização e 44 associados, isto é, que pediram para participar do programa).
A cada dois anos, desde 2000, o Pisa nos informa que nossos estudantes vão muito mal nas provas. O que o teste revela não deve ser embaraçoso para nossos adolescentes, mas, sim, para nossa sociedade, que aceita conviver com esse vexame há décadas, séculos, desde o início dos tempos.
No último exame do Pisa, realizado em 2018, nossos alunos ficaram abaixo da média da OCDE nas três disciplinas. Ficamos na 57ª posição em leitura, 70ª em matemática e na 66ª em ciências entre os 80 países avaliados. Em 2018, a pontuação média em leitura do exame foi de 487 pontos. Em matemática e ciências foi de 489 pontos. O Brasil ficou com 413 pontos em leitura, 384 em matemática e 404 em ciências.
Os habitantes têm o hábito de fazer piada da própria desgraça. Gostamos, por exemplo, de fazer troça dos atentados terroristas que nossos jovens cometem contra a língua portuguesa em seus exames, que circulam na internet para nos fazer rir da própria desgraça. A bordo de nossos carros, lemos nas ruas e estradas anúncios escritos à mão, repletos de erros de português. Novamente, achamos graça, embora, apenas, hoje em dia, apenas alguns de nós percebam que, na placa onde se lê "aluga-se apartamentos", o idioma sofre de maus tratos.
O desconforto para quem se incomoda com tudo isso está no fato de quase ninguém, neste imenso pedaço da Terra habitado por 210 milhões de pessoas, importar-se com o assunto, principalmente, quem tem consciência da mazela. Nos jornais, diariamente vemos economistas e empresários se queixando da baixa produtividade da nossa economia, especialmente, da baixa qualidade da nossa mão de obra. Nessas horas, o tom usado para tratar de nosso problema secular é severo, sem espaço para piadas. Isso indica que nossas elites intelectual e econômica, oxalá, reconhecem o problema, mas por que a situação não muda?
Um outro caso, quase anedótico, de mistificação que se faz contra o debate de ideias diz respeito à própria OCDE. A entidade foi criada em 1960 por um grupo de nações ricas da Europa, além dos Estados Unidos. É uma organização multilateral, mas não tem o mesmo caráter do FMI ou do Banco Mundial. Só entra para o clube quem é convidado.
O que faz a OCDE? A principal missão da instituição é estabelecer boas condutas em várias áreas para as nações que a integram. Quem as segue ganha um selo internacional que lhes garante, entre outras vantagens, baixo custo creditício no mercado internacional. No Brasil, aplicamos à OCDE a pecha de “clube dos ricos”, uma forma rasa de não haver a chance de entrarmos para o grupo.
Na próxima coluna, trataremos do chamado “Consenso de Washington”, cujas preceitos foram interditados pelo debate nacional como se fossem algo maléfico para o país, a saber:
1.Disciplina fiscal. Altos e contínuos déficits fiscais contribuem para a inflação e fugas de capital;
- Reforma tributária. A base de arrecadação tributária deve ser ampla;
- Taxas de juros. Os mercados financeiros domésticos devem determinar as taxas de juros de um país. Taxas de juros reais e positivas desfavorecem fugas de capitais e aumentam a poupança local;
- Taxas de câmbio. Países em desenvolvimento devem adotar uma taxa de câmbio competitiva que favoreça as exportações tornando-as mais baratas no exterior.
- Abertura comercial. As tarifas devem ser minimizadas e não devem incidir sobre bens intermediários utilizados como insumos para as exportações.
- Investimento direto estrangeiro. Investimentos estrangeiros podem introduzir o capital e as tecnologias que faltam no país, devendo, portanto ser incentivados.
- Privatização. As indústrias privadas operam com mais eficiência porque os executivos possuem um “interesse pessoal direto nos ganhos de uma empresa ou respondem àqueles que tem.” As estatais devem ser privatizadas.
- Desregulação. A regulação excessiva pode promover a corrupção e a discriminação contra empresas menores com pouco acesso aos maiores escalões da burocracia. Os governos precisam desregular a economia. Direito de propriedade.
- Os direitos de propriedade devem ser aplicados. Sistemas judiciários pobres e leis fracas reduzem os incentivos para poupar e acumular riqueza.
Cristiano Romero: Somos uma sociedade fundada no ódio não às minorias, mas à maioria
Sem nos reconhecermos no outro, jamais vamos superar a desigualdade que nos define como país
Uma medida da dificuldade que o Brasil tem para modernizar sua economia é o fato de nunca termos concluído as chamadas "reformas" estruturais. Com exceção dos períodos de bonança, o tema sempre esteve presente na agenda nacional desde a década de 1950. No plano simbólico, a imagem é a de um país cuja sociedade, de tão desigual na origem e no caminhar da história, não chega a consensos mínimos, o que dificulta sobremaneira a construção de uma nação. E, sem que nos reconheçamos no outro, característica fundamental de qualquer nação, jamais vamos superar as desigualdades que nos definem desde sempre e nos prendem a um binômio perverso - o de ser um país rico, porém, pobre.
Quando, em outubro de 1979, o senador Ted Kennedy decidiu disputar as eleições primárias do partido Democrata para ter o direito de se candidatar à Presidência dos Estados Unidos, ele justificou desta maneira, em entrevista à rede CBS, seu interesse em comandar o país mais rico do mundo: "As razões que me fariam concorrer são porque eu acredito neste país. Isto é, há aqui mais recursos naturais do que em qualquer nação do mundo; temos a população mais educada, a melhor tecnologia, a maior capacidade de inovação e o melhor sistema político no mundo".
A história não foi generosa com o irmão mais novo de John Kennedy. Ted perdeu as primárias para o incumbente, o então presidente Jimmy Carter, e este perdeu a eleição para o desafiante do partido Republicano, Ronald Reagan.
Assim como os Estados Unidos, a Ilha de Vera Cruz é riquíssima em recursos naturais. Se não bastasse toda a riqueza que se conhece há mais de um ou dois séculos, segue descobrindo novos ouros, exatamente como fazem os americanos. Um exemplo: o gás de xisto lá, que tornou os EUA auto-suficientes em petróleo, e a abundante reserva da mesma matéria-prima que encontramos na camada pré-sal da nossa costa. Não são muitos os países premiados pela natureza como o Brasil e os EUA.
Mas, e daí? Este país tem a maior floresta tropical do planeta, a Amazônica, que cobre 45% do nosso território, o 4º maior do mundo.
Todos, leigos e cientistas, sabemos que essa floresta encerra tesouros que tornam indigno o fato de os ribeirinhos sofrerem, ao longo do curso do rio mais caudaloso do globo, dos males da fome, do desamparo, enfim, da pobreza. No entanto, o que realmente nos impede de alcançar o futuro não é a suposta baixa exploração de nossos recursos naturais, mas os outros fatores mencionados por Ted Kennedy - elevado grau de escolaridade da população, tecnologia e alta capacidade de inovação.
Estes fatores não existem por aqui porque somos uma sociedade fundada no ódio não às minorias, mas à maioria. Reside na Ilha de Vera Cruz o maior desafio da humanidade no que diz respeito à construção de uma nação. Fizeram da nossa fortuna - a diversidade étnica - uma maldição.
Durante quase 400 dos 520 anos desde a chegada dos "colonizadores" europeus, os ricos iam ao mercado fazer a feira da semana, adquirir bens importados e… comprar gente. Sim, trocar dinheiro por seres humanos. Estes tinham várias utilidades: trabalhar na lavoura, cozinhar, arrumar a casa, fazer faxina, entregar seus corpos ao deleite dos “donos”.
Com isso, subvertemos nossa natureza naquilo que lhe é mais caro: a liberdade. Jamais aceitamos, como sociedade, o fim da escravidão.
Para não pagar salários a escravos alforriados, importamos mão de obra da Europa e do Japão e empurramos para a marginalidade milhões de brasileiros (não nos esqueçamos que os escravos estão aqui há tanto tempo quanto os “colonizadores”, embora com uma diferença: não vieram a Cabrália empreender, mas, sim, como mercadoria; eram números na balança comercial e o principal fator de acumulação de capital).
Vem daí a dificuldade em termos uma economia competitiva. Nossos antepassados foram de uma perversidade indizível ao privar do acesso à educação gerações e mais gerações de brasileiros. E o fizeram porque, para eles, era inaceitável - e ainda é - educar “escravos”.
A mão de obra importada de países como Itália, Alemanha e Japão, por sua vez, começaram a reagir a péssimas condições de trabalho oferecidas por aqui. Assim, as famílias abonadas começaram a reempregar os ex-escravos na lavoura, nas residências, nas casas de serviços íntimos, a escambo e salário indigno. É a escravidão 2.0, a mais difícil de se combater - todos já escutamos a mais cínicas das justificativas: “Olha, tenho duas empregadas porque quero ajudá-las, do contrário, elas passam fome”. A homofobia, dentre tantas outras formas de discriminação, usa os óculos da escravidão.
Não se tenha dúvida: depois da passagem da pandemia, estaremos piores: mais pobres, mais desiguais, mais longe do futuro. E com um Estado quebrado, retornando à estaca zero no que diz respeito à sua capacidade de atender os mais desfavorecidos.
Esta é a quarta coluna dedicada a relatar e discutir o passado recente da história econômica do país. O objetivo é humildemente tentar entender onde estamos, uma vez que, há sete anos, nosso PIB parece preso numa espécie de areia movediça.
Na próxima semana, tem mais, mas, antes, um registro para mostrar como o patrimonialismo, isto é, o hábito secular de grupos sociais de ver a coisa pública como algo que lhes pertença, é uma característica mais forte entre nós do que o populismo: 30 anos depois do Plano Collor, congressistas e Judiciário ainda tomam medidas para compensar servidores públicos que, sem estabilidade constitucional, foram demitidos na ocasião.
Cristiano Romero: Brasil não consegue superar modelo dos 80
Brasil demorou para superar inflação e crise da dívida
Depois de ter sido o país que mais cresceu entre as décadas de 1950 e 1970, o Brasil perdeu todos os “bondes” da história desde então, tornando-se uma economia de baixo crescimento. Demorou muito para superar a crise da dívida e livrar-se do processo hiperinflacionário, dois problemas que assolaram de forma indistinta nações subdesenvolvidas no início da década de 1980. Na verdade, foi justamente por não aceitar o fim do modelo de substituição de importações que a Ilha de Vera Cruz nunca mais se reconciliou com o crescimento acelerado.
Uma medida da “estagnação” está na comparação com os Estados Unidos. Dados do FMI mostram que em 1980, ano em que crescemos 9,2%, o PIB do Brasil, a preços correntes e pelo Poder de Paridade Compra (PPP, na sigla em inglês), era de US$ 590,9 bilhões. Naquele ano, pelo mesmo critério, o dos EUA era de US$ 2,857 trilhões, portanto, 4,8 vezes o brasileiro. No ano passado, segundo estimativa do FMI, a relação aumentou para 6,22 vezes - respectivamente, PIB (PPP) de US$ 3,479 trilhões e US$ 21,665 trilhões.
Em 1980, a China, ainda um gigante adormecido, mas com despertador programado para acordá-lo logo mais, tinha um PIB, também pelo critério usado pelo FMI, de US$ 304,3 bilhões, quase metade do brasileiro. Bem, 40 anos depois, os chineses já registram PIB, medido pelo PPP, superior ao dos EUA - US$ 30,9 trilhões, quase nove vezes o do Brasil. Uma observação importante: isso não faz da China nação mais rica que os EUA, afinal, seu PIB per capita, estima o FMI, chegou a US$ 20 mil no ano passado, enquanto o dos americanos é de US$ 67,7 mil.
Uma curiosidade da série “quando-é-que-nosso-despertador-vai-tocar”: em 2020, pela primeira vez, o PIB per capita chinês (pelo critério de PPP) superou o brasileiro, estacionado (ou atolado) em US$ 18,7 mil. Em 1980, o dos chineses estava em US$ 302,3 e o nosso, em US$ 4,8 mil.
Motivada por interesses de grupos específicos, principalmente de seus maiores beneficiários, a negação de que o velho modelo de desenvolvimento é obsoleto e insustentável nos fez perder a revolução tecnológica que se deu, primeiro, no Japão, depois nos chamados tigres asiáticos e nos EUA e, mais recentemente, na China. Quase 40 anos depois da falência daquele modelo, nossa economia continua bastante fechada e o Estado brasileiro, falido desde aquela época, continua ajudando e custeando alguns de seus beneficiários.
Para que o leitor não acuse este humilde repórter de omissão, aqui vai o maior exemplo de resistência ao fim do regime de substituição de importações: a indústria automobilística, toda ela multinacional. Além de se beneficiar de barreiras tarifárias e não tarifárias contra a competição internacional, tem direito a incentivos fiscais e subsídio creditício desde que chegou por aqui, há quase 70 anos. Agora mesmo, em meio à pandemia e à evidente escassez de recursos públicos para o enfrentamento da mais grave crise da história, movimenta-se em Brasília para receber algum socorro financeiro. O discurso não muda nem neste pandemônio - se o governo não ajudar, ameaçam os executivos, as montadoras deixarão o mercado brasileiro. Eles pedem dinheiro aqui, sendo que, na maioria dos países onde estão suas matrizes, a liquidez é farta e o juro real (descontada a inflação), negativo.
A Ilha de Vera Cruz não atolou sozinha. Na década de 1980, o Ocidente constatou que a produtividade da economia japonesa era assombrosamente superior à de suas economias e que o despertador da China já tinha tocado. Foi aí que os EUA de Ronald Reagan e a Inglaterra de Margaret Thatcher adotaram uma série de medidas para desregulamentar, isto é, diminuir a presença do Estado na produção de bens e serviços, abrindo espaço para que o setor privado, por definição mais eficiente, assumisse protagonismo.
Enquanto isso, na Terra de Santa Cruz, deu-se o seguinte:
- Fernando Collor confiscou poupança, outras aplicações financeiras e até depósito à vista, mas, com um voluntarismo típico de um “outsider”, coisa que na verdade ele não era, decretou, no segundo dia de gestão, a 16 de março de 1990, o fechamento de dezenas de estatais (esquisitices como Siderbrás, Portobrás, cuja falta a sociedade jamais sentiu); demitiu 108 mil funcionários sem estabilidade no emprego, dentre os quais, empregados das estatais extintas; colocou milhares de servidores da ativa em disponibilidade (possibilidade prevista pela Constituição em caso de calamidade, justificado pelo fato de a inflação ter alcançado 89% em apenas um mês, fevereiro de 1990); iniciou as privatizações; começou a abrir lentamente a economia e lançou agenda para desregulamentar diversos setores; como, a exemplo de Bolsonaro, Collor chegou a Brasília sem base de apoio no Congresso, seu capital político esvaiu-se após o fracasso do confisco - a “bala de prata” contra a inflação, disse o então presidente - e, justamente quando se rendeu aos partidos, seu governo desmoronou a partir de denúncias feitas pelo próprio irmão, levando-o ao impeachment; a agenda de Collor tinha, sim, cunho liberal, mas, antes de mais nada, atendia à aritmética - o Estado tornou-se insolvente, a dívida pública, inadministrável, e, consequentemente, a inflação era altíssima (e, por essa razão, um pesado imposto sobre os mais pobres), logo, as medidas se destinavam a encaixar o setor público dentro do PIB;
- Itamar Franco, o vice, assumiu em outubro de 1992 e deu sequência à agenda do antecessor; foi ele quem, fazendo muxoxo, privatizou em 1993 a CSN; esperava-se do presidente, porém, que lançasse logo um plano para debelar a inflação, que àquela altura já estava em quatro dígitos ao ano; teimoso que só ele, nomeou e demitiu três ministros da Fazenda no espaço de apenas sete meses, antes de dar ao cargo a Fernando Henrique Cardoso.
Esta é a terceira coluna dedicada a relatar e discutir o passado recente da história econômica do país. O objetivo é humildemente tentar entender onde estamos, uma vez que, há sete anos, nosso PIB parece preso numa espécie de areia movediça. Na próxima semana, tem mais, mas, antes, um registro para mostrar como o patrimonialismo, isto é, o hábito secular de grupos sociais de ver a coisa pública como algo que lhes pertença, é uma característica mais forte entre nós do que o populismo: 30 anos depois do Plano Collor, congressistas e Judiciário ainda tomam medidas para compensar servidores públicos que, sem estabilidade constitucional, foram demitidos na ocasião.
Cristiano Romero: A economia Frankenstein
Modelo brasileiro é aberração por não superar passado
O longo período de instabilidade entre meados das décadas de 1970 e 1990, seguido de tentativas frustradas (ou incompletas) de implantação aqui de uma economia competitiva, equilibrada do ponto de vista fiscal e menos desigual no que diz respeito à distribuição da renda, criou no Brasil uma espécie de Frankenstein. No fundo, o país nunca superou modelos que, aparentemente, sucederam num determinado momento, mas, em outros, tornaram-se uma das principais razões do fracasso do nosso Produto Interno Bruto (PIB) em crescer de forma mais rápida.
A longa batalha contra a superinflação nos fez pensar apenas no dia de hoje. O planejamento de longo prazo, uma característica presente nas nações ricas e marcante nas economias asiáticas de crescimento acelerado, perdeu relevância na Ilha de Vera Cruz desde a crise da dívida, em 1982.
Parece mentira, mas, no início daquela década, o governo tinha órgãos públicos para avaliar permanentemente, por exemplo, a qualidade de rodovias federais construídas na década anterior. O objetivo era verificar se o impacto do aumento do tráfego ao longo do tempo não estava diminuindo a eficiência daquela estrada, elevando os custos dos produtores de grãos e de bens industriais. Na ocasião, um engenheiro brasileiro desenvolveu, para facilitar essa tarefa, um software que se tornou referência no mundo.
A urgência do combate à inflação turvou a visão de empresários, consumidores e formuladores de políticas públicas. Nada era mais importante do que domar o processo inflacionário, que, desde a primeira crise global do petróleo, em 1973, tornou-se uma preocupação, uma vez que o Gigante do Atlântico Sul era fortemente dependente de importação de óleo bruto.
A coexistência de mecanismos distintos usados não só nos planos de estabilização, mas também em modelos de desenvolvimento, forjou contradições que atolam esta enorme economia numa espécie de areia movediça. Daí, a referência ao famoso personagem da escritora Mary Shelley.
Na Ilha de Vera Cruz, convivem lado a lado um sofisticado mercado financeiro, dotado de instituições capazes de competir com seus pares internacionais, especialmente nas áreas de gestão de recursos e estruturação de operações no mercado de capitais, com uma injustificável rede de bancos estatais, seis no total. Justamente por não conseguirem competir com os rivais do setor privado, esses bancos custam caro ao Estado.
Tendo sido, ao lado dos bancos estaduais, uma das fontes da superinflação nas décadas mencionadas, continuam funcionando 26 anos após o lançamento do Plano Real, sujeitos a pressões políticas e à geração de prejuízos cobertos pelo suor de todos os brasileiros. Isto, sem falar da fatura recorrente que temos que honrar, decorrente de rombos dos fundos de pensão vinculados a essas instituições, originados de gestão temerária ou corrupção. A pergunta que fica é a seguinte: se a maioria dos congêneres estaduais foi privatizada, por que não se deu a mesma destinação, senão a todos, a quatro ou cinco dos federais?
Banco do Brasil e Caixa detêm quase 50% do volume de depósitos do sistema bancário. No fundo, a concentração faz a alegria dos grandes bancos privados, uma vez que isso é a garantia de que jamais haverá competição real no segmento de bancos de varejo. Isso explica os juros altos cobrados por todos os bancos, as taxas injustificáveis aplicadas a coisas como avaliação de imóvel, à resistência ignominiosa das instituições financeiras de renegociar dívidas, alongar prazos de débitos, enfim, de dar uma contribuição aceitável e indolor (face a seus lucros) à sociedade no momento mais trágico da humanidade em mais de cem anos.
Na semana passada, esta coluna relatou, de forma bastante sintética, as gestões da economia brasileira desde 1964. O objetivo é mostrar como o vai-e-vem de modelos, conceitos e experiências nos paralisa. Naquela edição (29/04/2020), foram retratadas as administrações até o último governo militar. Por um problema técnico, a conclusão desse relato e a informação de que o relato continuaria na edição seguinte foram suprimidos.
A crise da dívida, em 1982, solapou o modelo de substituição de importações adotado até então. Dali emdiante, o governo não teve mais condições de investir em obras públicas e mesmo na manutenção dos investimentos realizados em setores como os de telefonia e energia. O modelo estatal não funcionava mais e, na verdade, tornou-se fonte da perda do controle da inflação. A insistência em ressuscitar o defunto custou e ainda custa caro ao país. Senão, vejamos:
- Em 1986, o governo Sarney lançou o Plano Cruzado, a primeira tentativa de se derrubar a inflação, no período de redemocratização, por meio de um choque; preços e salários foram congelados, “tablitas” foram aplicadas sobre prestações de crediário (criando-se um efeito ilusório para o consumidor, de que sua dívida diminuíra quando, na verdade, o valor era o mesmo, descontado dos juros embutido na prestação); a inflação despencou, os trabalhadores tiveram ganho real de renda no início do plano, mas, à medida que o consumo expandiu-se de forma veloz, houve desabastecimento, cobrança de ágio etc; dois fatores já condena riam o Cruzado ao fracasso: o fato de termos uma economia fechada, herança do governo Geisel; e a situação fiscal precária da União; fracassado o plano, Sarney ainda lançou duas tentativas que não deram certo, os planos Bresser e Verão;
- Em março de 1990, eleito como o “outsider” que na verdade não era, Fernando Collor de Mello valeu-se do ataque mais radical e ousado da história do país para debelar a inflação: o confisco dos depósitos; toda a dívida pública era, grosso modo, reemitida a cada 24 horas; isso criou o que os economistas chamam de “quase-moeda”, tornando inútil qualquer esforço de controle monetário na economia, logo, era impossível controlar a evolução dos preços; o plano, chamado por Collor de “bala de prata”, isto é, a última do tambor, fracassou, mas seu governo lançou agenda liberalizante para o país superar o modelo de substituição de importações.
Na próxima edição, a coluna tratará das gestões seguintes.
Cristiano Romero: A Grande Devastação
No exterior, pessimismo em relação ao Brasil é impressionante
Ainda é muito cedo para fazer projeções confiáveis sobre o estrago que a pandemia do novo coronavírus provocará nas economias, mas, lá fora, o pessimismo em relação ao Brasil é impressionante. A Economist Intelligence Unit projetou contração de 5,5% para o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro neste ano, em linha com a previsão do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgada ontem, de queda de 5,3%. O número do Institute of International Finance, entidade que representa os maiores bancos do mundo, é menos pessimista - recuo de 1,8%.
No último boletim Focus, elaborado pelo Banco Central (BC) com base nas projeções feitas pelo mercado, a mediana das projeções prevê queda de 1,96% para o PIB do país em 2020, bem maior que a mediana das opiniões colhidas há uma semana (-1,18%). “Assusta ver uma instituição muito conservadora [o FMI] prevendo contração do PIB do Brasil maior do que a visão de consenso de mercado [no país]. Além disso, a recuperação do Brasil é lenta frente aos Estados Unidos, a Alemanha e por aí vai”, disse a esta coluna o economista Nilson Teixeira, sócio-fundador da gestora de recursos Macro Capital.
De fato, o FMI prevê, em seu Panorama Econômico Mundial, que em 2021 a economia americana, depois de levar um tombo de 5,9% neste ano, crescerá 4,7% no próximo ano, enquanto o Brasil deve ter avanço de 2,9%. A Alemanha teria crescimento negativo de 7% em 2020, mas teria expansão de 5,2% no ano que vem.
Em ambientes de incerteza como o que vivemos, a chance de as previsões errarem o alvo é enorme. Em favor dos economistas, e Nilson Teixeira é um que acerta com grande frequência as suas projeções - dos 18 anos que trabalhou no banco Credit Suisse, atuou como economista-chefe durante 14 -, diga-se que os cálculos não são meros chutes. As projeções são feitas com base na assunção de uma série de dados, a partir de um cenário que considera, inclusive, eventos políticos com força suficiente para interferir no funcionamento da economia.
O problema é que a pandemia do coronavírus é um fenômeno absolutamente inesperado, que não estava nas contas de ninguém. O vírus foi descoberto na China no último dia de 2019 e, apenas 20 dias depois, já havia se disseminado com velocidade incrível por várias cidades e províncias chinesas. O restante do mundo não se deu conta imediatamente da gravidade do que ocorria no país mais populoso do planeta e essa letargia, não se tenha dúvida, é a responsável pela contaminação devastadora que o vírus provocou em nações ricas como Itália, Alemanha, França e, por fim, Estados Unidos, onde está hoje o epicentro da pandemia.
A forma como a China decidiu enfrentar o avanço veloz do vírus - fechando a entrada e a saída de pessoas de cidades com até 15 milhões de habitantes - foi vista no Ocidente como coisa de país autoritário. Sim, o regime chinês é autoritário, mas, se tivessem olhado o tamanho do problema mais de perto, especialistas e autoridades da área de saúde teriam constatado rapidamente que o “lockdown” (o bloqueio das cidades, numa tradução imprecisa) promovido pelo governo chinês é a única estratégia à mão para de se conter a velocidade de contágio do coronavírus, um agente infeccioso novo e cujo DNA tem uma única missão: hospedar-se em células do corpo humano para se reproduzir.
A opção da China deu certo, uma vez que, à medida que os dias foram passando, a curva epidêmica do vírus foi sendo achatada, com o número de novos casos diminuindo dia a dia. O achatamento da curva não tem outro objetivo a não ser conter a evolução do contágio, alongar no tempo a chegada da contaminação ao seu ápice, de forma que o número de novos casos possa ser atendido pelo sistema de saúde de cada país.
Mas o perigo nunca está afastado, uma vez que há o risco de haver uma nova onda de contaminação, uma vez que a China, por exemplo, começou a relaxar as medidas de isolamento social e o “lockdown”. Um possível retorno da pandemia, dizem especialistas, é muito perigoso porque, como ainda não se descobriu uma vacina contra o vírus e a maioria da população ficou isolada em suas casas, o organismo das pessoas não desenvolveu anticorpos contra o novo coronavírus. Uma segunda onda teria, portanto, efeitos ainda mais fortes sobre a saúde da população e devastadores no que diz respeito à economia, à medida que o isolamento social e a restrição ao direito de ir e vir das pessoas teriam que ser novamente postos em prática, paralisando uma vez uma economia já fragilizada pela parada súbita anterior.
O “lockdown”, evidentemente, paralisa a atividade econômica de forma radical. O isolamento social, estratégia recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e adotada pelo Brasil e muitos países, é menos rígido que o “lockdown”, mas também faz um estrago gigantesco na economia, especialmente no setor de serviços.
No documento divulgado ontem, o FMI assim definiu o momento vivido pela economia mundial: “O Grande Bloqueio: a pior crise econômica desde a Grande Depressão”. E nós que achávamos que a crise mundial de 2008 tinha sido mais profunda desde 1929
Nesse contexto, as projeções de recuperação rápida em 2021 soam frágeis. Se o Brasil, que está sendo atingido por este tsunami com a economia fragilizada depois de três anos de recessão, seguidos de um triênio em que não avançou acima de 1,3% ao ano, crescer os 2,9% previstos pelo FMI no ano vindouro será o melhor desempenho em quase dez anos.
Cristiano Romero: Onde estão 20 milhões de brasileiros?
O problema da pobreza não atendida por programas sociais está nos grandes centros e capitais
O governo federal demorou a reconhecer que, diante de uma crise sem precedentes como a provocada pela pandemia do novo coronavírus, é preciso deixar de lado a austeridade fiscal e agir rapidamente para evitar uma tragédia econômica maior e mais longa. O isolamento social, adotado pelo Brasil e a maioria dos países como estratégia para conter a velocidade de contágio do coronavírus, está fazendo estragos no setor de serviços, afinal, há quase um mês, praticamente todo o comércio está de portas fechadas.
Se a situação já é difícil para lojas comerciais e de serviços médias e grandes, estabelecidas, formais, imaginemos como deva estar o pequeno negócio. Deduzimos, portanto, que a vida de uma pequena empresa formal não esteja nada bem, afinal, um dia sem faturar já impacta fortemente sua atividade. As empresas precisam vender para continuar operando. Só assim vão honrar o salário dos funcionários.
Imaginemos o quadro de milhares de firmas que funcionam na informalidade - mesmo sem saber, lidamos com muitas delas no nosso cotidiano, inclusive, algumas farmácias, algo inesperado da maioria. Nesse grupo, há o trabalhador autônomo, um contingente enorme de brasileiros, os equilibristas, cidadãos que vivem à margem do Estado e que, neste momento, já podem estar passando fome porque a possibilidade de trabalhar está suspensa. Estima-se que 40% da força de trabalho do país esteja nessa categoria.
A Ilha de Vera Cruz avançou bastante, desde a promulgação da Constituição em 1988, na criação de uma rede de proteção social. Todos sabemos que muito ainda precisa ser feito, que há gastos vultosos mal alocados e que é preciso avaliar os programas sociais existentes e melhorar muito a qualidade da despesa realizada. Mas, vejamos: numa crise aguda como a que vivemos, não se vê fome no interior do Nordeste, uma vez que a aposentadoria rural paga um salário mínimo a cada agricultor aposentado, independentemente do fato de ter contribuído ou não para o INSS.
O Bolsa Família, que paga benefícios muito menores, também cumpre papel importantíssimo na região Nordeste e, por essa razão, não se vê mais o cenário de fome e desterro comum à história daqueles Estados ao longo do século XX. Mas não nos enganemos: vivem no Nordeste 57,7% dos brasileiros em situação de extrema pobreza, isto é, com menos de R$ 145 por mês.
O problema da pobreza não atendida por programas sociais está nos grandes centros e capitais deste imenso território. Nesses locais, estão os brasileiros que vivem no mundo da informalidade. Achá-los para ajudá-los é tarefa urgente, não será nada fácil e pode não haver tempo suficiente para isso.
Instituído pela chamada PEC da Guerra, aprovada no último fim de semana pelo Senado, o benefício social temporário de R$ 600, com duração de três meses e renovável por mais três, é ambicioso (e justo) para o momento que a economia brasileira atravessa. O Senado estendeu a abrangência do auxílio, incluindo 19 categorias, como diaristas, caminhoneiros, pescadores, vendedores de acarajé, entregadores de aplicativos. Além disso, deu aos homens chefes de família o direito a duas cotas do benefício, como já estava previsto para mulheres que fazem o mesmo.
Quem tem direito ao benefício? O Congresso decidiu que os beneficiários devem ser os seguintes:
1. as pessoas inscritas no Programa Bolsa Família;
2. as que fazem parte do cadastro de Microempreendedores Individuais (MEI);
3. os contribuintes individuais do INSS;
4. as pessoas inscritas no Cadastro Único até 20 de março deste ano;
5. os trabalhadores informais que não façam parte de nenhum cadastro do governo federal.
Os beneficiários precisam cumprir alguns requisitos, como ter mais de 18 anos, integrar família com renda mensal por pessoa de até meio salário mínimo (R$ 522,50) ou renda familiar mensal de até três salários mínimos (R$ 3.135). Outra condição é não ter tido rendimento tributável, em 2018, superior a R$ 28.559,70.
Na primeira década deste século, o Brasil fez o dever de casa na área fiscal, tirou proveito do boom de commodities propiciado pela China e, assim, experimentou taxas de expansão econômica bem superiores às das duas décadas anteriores. Isso permitiu bancar programas sociais como o Bolsa Família e reduzir a pobreza, a desigualdade nem tanto. Em 2010, nosso PIB apareceu como o 6º maior.
Apesar do recuo, a pobreza seguia em 2010 como marca indelével da nossa sociedade. Três anos de recessão (2014-2016) profunda e outros três (2015-2019) de crescimento medíocre (média anual de 1,2%) aumentaram novamente a pobreza. Dados do IBGE mostram que, em 2018, havia 13,5 milhões de pessoas em extrema pobreza no país. O número, recorde, é superior à população da Bélgica e de Portugal. Em relação a 2014, houve incremento de 4,5 milhões de cidadãos, uma prova cabal do mal que más ideias na condução de uma nação podem provocar.
Esse é, em tese, o público-alvo do Bolsa Família. O universo da pobreza, porém, vai muito além disso. Uma iniciativa elogiável dos governos anteriores foi justamente criar um cadastro para identificar as famílias em situação de pobreza e extrema pobreza. Entram no Cadastro Único (CadÚnico) famílias em que os indivíduos ganham até meio salário mínimo por mês ou cuja renda mensal seja de até 3 salários mínimos.
O Cadastro Único tem registro de 29 milhões de famílias, algo como 76 milhões de pessoas, incluindo o universo do Bolsa Família, que atende a 14 milhões de famílias (44 milhões de beneficiários). Uma parte grande dos beneficiários será identificada por meio desse cadastro. Um outro contingente de beneficiários identificáveis está entre os que se enquadram como MEI e os contribuintes individuais do INSS.
Mas, e a maioria dos trabalhadores informais? “Estimativas de técnicos da área social apontam cerca de 20 milhões de pessoas, ou algo entre 15 milhões a 30 milhões, o grupo populacional fora do CadÚnico e do mercado de trabalho formal. Este é o contingente que precisa ‘ser encontrado’ pelo auxílio informal, o que significa um enorme desafio para um programa urgente e de curtíssimo prazo”, diz Luiz Guilherme Schymura, diretor do Ibre-FGV.
Cristiano Romero: E assim caminha a humanidade
Civilização vive pendor para o totalitarismo que parecia adormecido
Cientistas nunca chegaram a um acordo para definir se um vírus é ou não um ser vivo. Eles carregam material genético, mas não têm célula como as bactérias, por isso, dependem das células de um ser vivo para se reproduzir e, dessa forma, viver. Viver? Mas, como, se não são seres vivos? Parasitas obrigatórios, sua missão é odiosa. Eles infiltram seu código genético em células dos hospedeiros, mudam a programação original, fazendo com que as células produzam vírus até explodir. O plano é diabólico: a explosão não é um ato suicida; ela libera milhões, bilhões de partículas, prontas para infectar outros corpos.
Volta e meia brotam da natureza vírus com grande capacidade de assombrar a humanidade. Nossos avós fizeram relatos terríveis sobre a gripe “espanhola” teria infectado, entre 1918 e 1920, um quarto da população mundial na época (2 bilhões) e matado pelo menos 17 milhões de pessoas - os números da tragédia são muito díspares; há dados sustentando a morte de 50 milhões e até de 100 milhões de pessoas.
Os vírus são específicos para cada hospedeiro. O novo coronavírus covid-19 apareceu para infectar seres humanos. Chama-se covid-19 porque foi descoberto pelos chineses em 2019, aliás, no derradeiro dia do ano. Isso é assustador porque, em menos de três meses, o novo coronavírus chegou aos quatro cantos do planeta, a todos os Estados de três (China, Estados Unidos e Brasil) dos cinco maiores países.
Cientistas sustentam que os vírus, principalmente os mais letais, aparecem porque estamos destruindo a natureza e libertando partículas infecciosas que costumam hospedar-se em animais, fungos e bactérias. Por esse raciocínio, o homem tem sido vítima do progresso sem medida, que se traduz na destruição do meio ambiente em que vivemos.
Debates sobre temas que dependem de conhecimento científico devem evitar o “achismo” tolo de alguns e a irresponsabilidade de outros, que, diante de tragédia sem paralelo na história recente da raça humana (ou desde sempre), estão fazendo cálculo político pensando nas eleições agendada para daqui a três anos. Seria o equivalente ao capitão do Titanic, crente na hipótese de seu navio não afundar, apenas adernar, pedir aos passageiros, contra a opinião de toda a tripulação, para ficarem na embarcação porque o casco atingido pelo iceberg seria consertado por bravos marinheiros antes do amanhecer.
Esse mesmo debate, ainda que instruído, deve tomar cuidado redobrado para não ser manipulado por moralismos de qualquer espécie. Muitos surtos e epidemias de vírus não se tornam pandemias, como a do coronavírus covid-19. Atingem grupos expostos ao vírus em alguns locais do planeta. O HIV, o vírus da AIDS, suscitou debate temerário e descabido sobre a opção sexual. E a doença foi apontada pateticamente como um recado de Deus contra o sexo livre da década anterior (1970).
A humanidade vive, talvez, seu Grande Teste. O covid-19 emergiu num momento particularmente difícil. Ao mesmo tempo em que, nos últimos 30 anos, o mundo ficou pequeno graças ao desenvolvimento acelerado da tecnologia da informação, conectando bilhões de viventes em tempo real e relativizando fronteiras histórico-culturais, a civilização vive pendor para o totalitarismo que se julgava adormecido (inexistente, nunca).
Justamente quando materializamos o acesso amplo dos cidadãos à informação, a liberdade, característica que nos define como humanos, corre risco. E o epicentro desse tenebroso movimento está nas nações ricas, onde figuram as democracias mais antigas e consolidadas. Diz-se que a História é pendular e que, no seu caminhar, uma nova onda se opõe obrigatoriamente à anterior e assim caminha a humanidade. Ora, o covid-19 não tem nada com isso. Vivemos uma fragmentação política sem precedentes desde o pós-Guerra.
Na França, o partido que conteve o avanço da extrema-direita fora criado há apenas um ano da eleição. Nos EUA, um bilionário outsider, novato na política, xenófobo, só chegou à presidência porque venceu a eleição em estados que votam tradicionalmente em candidatos democratas. Na Alemanha, nunca desde a ruína do nazismo os extremistas da direita tiveram tantos votos quanto na última eleição.
Na Inglaterra, um referendo tirou o país da União Europeia, enfraquecendo-o econômica e politicamente, confirmou a decisão e reelegeu o Partido Conservador, levando seu líder, Boris Johnson, ao posto de Primeiro-Ministro. Johnson é abertamente racista e islamofóbico.
Aparentemente, a revolução tecnológica foi crucial para fragmentar a política. Por quê? Porque desestabilizou o financiamento da mídia tradicional, afetando a produção e a distribuição de notícias, provocando o fechamento em massa de jornais em todo o planeta. Do lado da liberdade de expressão, a democracia perdeu curadoria.
Nota do redator: o capitão, registre-se, não tem o apoio da tripulação, mas ainda goza de grande prestígio junto aos passageiros mais afortunados. Estes estão preocupados apenas com o prejuízo que aquele acidente já estava causando a seus bolos, afinal, investiram pesadamente no projeto ambicioso do capitão. Além disso, já tinham reservados, em local estratégico do barco, botes para transportá-los, às suas famílias e às joias que levavam, com segurança à terra firme.
Negócios são negócios - não se sabe ainda com que grau de intensidade o Leviatã, o monstro que vem na cola do novo coronavírus, na hora oportuna, atingirá a nossa já enfraquecida economia; mas no caso do Titanic, lembrem-se, o navio afundou junto com as joias dos ricaços; o capitão, pelo menos, foi o último a abandonar o grande navio naufragado.
*Cristiano Romero é editor-executivo
Cristiano Romero: Crise expõe nossas vergonhas
Não há mais tempo de debater se a política pode ser heterodoxa
A taxa de desemprego da Noruega sempre foi um não assunto para quem acompanha o desempenho da economia mundial. Foi assim até ontem, quando ficamos sabendo que a taxa de desemprego do país nórdico chegou a impensáveis 10,9%, a mais alta em 80 anos. A última vez em que o desemprego chegou perto disso na Noruega foi durante a Grande Depressão, na década de 1930, quando o capitalismo sofreu sua primeira crise global.
A notícia de ontem assombrou analistas, investidores e autoridades mundo afora pelas seguintes razões: apenas uma semana atrás, a taxa de desocupação na Noruega estava em 5,3%, menos da metade do que está agora. Ter 5,3% de sua força de trabalho procurando emprego também não é comum naquele país.
A queda acentuada do preço do petróleo, principal produto exportado pela Noruega, já vinha motivando demissões nos dois primeiros meses do ano. Ainda assim, no fim de fevereiro, a taxa de desemprego, que é apurada semanalmente, era de 2,3%, muito provavelmente uma situação de pleno emprego. Portanto, em apenas três semanas, o número de desempregados de um dos países mais ricos do planeta quase quintuplicou.
Ao divulgar os números, a Agência do Trabalho e do Bem-Estar do governo norueguês informou que o Leviatã, a bestafera que emerge das consequências da pandemia do covid-19, o novo coronavírus, varreu o país nórdico nas últimas duas semanas. Nesse período, tudo ou quase tudo fechou no país, principal estratégia que governantes responsáveis têm adotado para conter o avanço do maldito vírus.
A Noruega é o primeiro país a revelar os impactos catastóficos do covid-19 na economia. Os outros virão em angustiante sequência e é impossível prever a dimensão do tombo que todos, obrigatoriamente, tomaremos. "Esta crise é muito mais aguda e impactará a todos indistintamente", diz Mário Torós, ex-diretor do Banco Central, hoje sócio da Ibiúna Investimentos. Em 2008, o vendaval que todos julgavam o mais severo desde 1929, ele estava na cabine de comando do BC, tendo enfrentado, inclusive, um ataque especulativo que poderia ter levado nossa moeda à breca.
O cidadão norueguês entrega ao governo, em forma de tributos, mais de 40% de sua renda. O imposto sobre a renda dos viventes equivalia, em 2018, a 9,9% do Produto Interno Bruto (PIB), a mesma proporção registrada pelos Estados Unidos no ano passado. Na Noruega, vejam só, se o contribuinte achar justo pagar mais imposto do que se cobra dele, tudo bem, ele pode fazer isso. Por aqui, filantropia é feita com o chapéu alheio - por meio de dedução de imposto devido -, sendo que o chapéu, no caso, não é do doador, mas de todos os que respiram o ar do Gigante Adormecido (que há seis anos não consegue sair de seu pior pesadelo), principlmente dos pobres.
A experiência mostra que as nações que tributam mais a renda e menos o consumo _ o oposto do que se faz no Gigante do Atlântico Sul (editoriais da imprensa venezuelana costumavam nos chamar assim) - são as que prestam os melhores serviços a seus habitantes - há exceções que não desmentem a tendência, como Japão e Israel.
Não é difícil comprovar a correlação: enquanto os estudantes noruegueses têm nota ligeiramente superior à média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) no exame PISA (sigla em inglês do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), considerando os exames de matemática, leitura e ciências, os brasileiros, devido ao nosso secular descaso com educação, ocupam a penúltima colocação nos três itens _ podia ser pior porque participam do PISA apenas 40 países. Trata-se de uma nódoa que nos envergonha perante a humanidade e que não se apagou nem com a vinculação de receitas (esta, aliás, é uma das causas da tragédia) nem muito menos por meio de planos mirabolantes de políticos que passaram pela Educação. Mais de um deles imaginou que, mesmo submetendo nossos jovens ao vexame do PISA, encurtaria o caminho para chegar ao Palácio do Planalto a partir do Mnistério da Educação (MEC).
Na Noruega, o governo prevê queda da atividade econômica privada entre 10% e 15% neste semestre. Depois de decretar quarentena para tentar conter o surto do covid-19, o governo aprovou rapidamente uma série de medidas com o objetivo de amenizar os efeitos econômicos da crise para empresas e trabalhadores e o banco central jogou a taxa básica de juros a zero (0,25% ao ano, a menor da história).
O Coisa Ruim acelerou sua marcha no Brasil nos últimos cinco dias. O país da falta de urgência se assustou com as declarações do ministro da Saúde, Luiz Mandetta, prevendo colapso do sistema de saúde em abril. No rastro do capeta em forma de vírus, o Leviatã já começou a avistar suas vítimas, não por causa da saúde, mas do apocalipse econômico que se anuncia na Ilha de Vera Cruz.
Quem e quantas são? Na linha de frente, 100 milhões de brasileiros, segundo estimativa do economista Arminio Fraga. É quase metade da população. Menos da metade recebe uns trocados do elogiadíssimo programa Bolsa Família. O restante está no cadastro único, onde estão inscritos brasileiros pobres, um pouquinho menos pobres que os elegíveis do Bolsa Família, mas ainda pobres. A maioria dessas pessoas trabalha como ambulante, empregado de pequena empresa etc. Desde o último fim de semana, eles estão sem renda alguma.
A Noruega recebeu o novo coronavírus e o Leviatã com um Produto Interno Bruto (PIB) per capita que, em dezembro, era de US$ 78,33 mil. Na Ilha de Vera Cruz, somava US$ 8,9 mil em outubro de 2019, bem inferior ao seu pico (US$ 13,3 mil em 2011). Esta é sua estatística porque a maioria absoluta dos brasileiros adoraria ter renda annual de US$ 8,9 mil.
O Leviatã vai nos pegar de calça curta.
Cristiano Romero: Jamais diga “isso não vai acontecer”
Riscos em 2008 foram negados até a chegada do Leviatã
No jornalismo, os mais experientes recomendam aos mais jovens que jamais pronunciem a frase “não vai acontecer nada”. Dita por jornalistas, essa sentença é uma espécie de maldição. Tudo acontece quando um repórter, encarregado de cobrir um determinado assunto, ousa duvidar do destino, este trapaceiro.
A crise mundial de 2008, cujo epicentro foram os Estados Unidos, vinha sendo antecipada por alguns poucos economistas havia alguns anos, mas as autoridades americanas fizeram ouvido de mouco. Não era necessário ser um especialista para desconfiar de que havia algo muito errado no mercado imobiliário da maior economia do planeta - um problema que depois contaminou o sistema financeiro europeu e provocou a crise mais severa desde a Grande Depressão, em 1929.
Desde o início dos tempos, diziam americanos orgulhosos, os preços dos imóveis nos EUA só têm uma direção: subir. Isso foi um fato até 2008, mas o que acontecia no fim do século XX e nos primeiros anos do atual não podia ser normal.
Grosso modo, dava-se o seguinte: o sujeito ia a um banco e, sem muita dificuldade, conseguia crédito para comprar um imóvel, às vezes, mais de um. Na época, os bancos não se preocuparam muito com a capacidade do devedor de honrar a hipoteca. Por quê? Porque o valor dos imóveis escalava a um ritmo extraordinário. A depender do local, o preço dobrava no espaço de apenas quatro anos.
Consumidores ávidos, os americanos também tiravam proveito da “pirâmide” da seguinte forma: como os preços dos imóveis não paravam de aumentar, o valor das hipotecas - dos financiamentos imobiliários que os cidadãos tomavam em instituições financeiras - se tornava ao longo do tempo proporcionalmente menor, quando comparado ao preço de mercado; isso permitia aos mutuários ir aos bancos e pedir a renegociação da dívida com base no preço mais alto do imóvel; como a dívida contratada era a mesma, o novo empréstimo, garantido pelo valor do bem cujo preço não parava de subir, assegurava que os “santos” devedores voltassem para casa com os bolsos cheios de dólares. E o que eles faziam com o dinheiro? Compravam carros maiores que os dos vizinhos, viajavam ao exterior, enfim, gastavam.
Ora, enquanto os preços dos imóveis continuassem subindo, estava tudo certo. Naturalmente, os preços permaneceriam em alta se a economia seguisse crescendo, com a taxa de desemprego estacionando perto do pleno emprego, mas sem pressionar a inflação. Ocorre que, desde a idade da pedra lascada, ciclos econômicos têm fim.
Os bancos americanos há muito têm uma maneira de passar adiante seus créditos imobiliários. Empacotam as hipotecas, atribuem-lhe uma classificação de risco e levam-nas a mercado. Trata-se de uma forma de fazer com que a roda do crédito continue funcionando. As hipotecas saem do balanço dos bancos e estes passam a ter condições de emprestar novamente. Isso é normal.
O que não é normal foi o que grandes e renomados bancos americanos começaram a fazer. Como o ciclo econômico começou a dar sinais de fadiga, trabalhadores logo passaram a perder seus empregos e, portanto, a capacidade de pagar dívidas. A qualidade das hipotecas (o “rating”) entrou em rota de queda porque os devedores não tinham mais como honrar o pagamento.
Os imóveis super valorizados não conseguiram salvar os devedores. Porque, lembram-se, eles aproveitaram a valorização de suas casas para renegociar a hipoteca e botar a mão num punhado de dólares, por meio de dívida nova. Agora, desempregados, tinham que pagar a hipoteca, a dívida nova, o cartão de crédito...
No período de bonança, a farra foi tão grande que as famílias americanas se endividaram de maneira jamais vista. Brasileiros, igualmente cobiçosos, mas sem instrumento (crédito farto e barato) para fazer isso, achavam muito estranho ver na casa de americanos utensílios domésticos e equipamentos eletrônicos chegados das lojas fazia tempo e jamais desembrulhados. Ninguém compra algo nos EUA por acreditar que o preço vá subir. Compra-se por prazer, porque, como diz Paulinho da Viola, “dinheiro na mão é vendaval”.
Em 2005, Raguran Rajan, então economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), foi ao convescote de Jackson Hole, promovido anualmente pelo Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, para uma troca de ideias com dirigentes de bancos centrais das maiores economias. Rajan, um economista discreto e sem o apelo marqueteiro de Nouriel Roubini, que diz ter sido o primeiro a prever o desastre da economia americana que levou o mundo à Grande Recessão, apresentou estudo que causou enorme frisson entre os convivas de Jackson Hole naquele ano.
Intitulado “O Desenvolvimento Financeiro Tornou o Mundo mais Arriscado?”, Rajan enxergou, antes de Roubini, que a sofisticação dos instrumentos financeiros desenvolvidos nas três décadas anteriores, motivada pela desregulamentação do sistema financeiro americano na década de 1990 e pelo avanço da tecnologia computacional, disseminou o risco financeiro por toda a economia. Ele fez um alerta aos presidentes de bancos centrais ali presentes.
Como sempre tem alguém no mundo que, sim, presta atenção a tudo, investidores, antevendo o desequilíbrio gigantesco que se criava no mercado imobiliário sem que o Fed fizesse nada para contê-lo, propuseram a bancos de investimento a criação de um novo instrumento financeiro. Este tinha três letras - CDS, sigla em inglês de Credit Default Swap - e foi para a prateleira. Quem quisesse apostar na quebra do sagrado mercado imobiliário americano passou a ter o CDS para fazer isso.
No início, investir nesse papel foi um mau negócio. Mas, quem perseverou venceu, ganhando muito dinheiro porque, em 15 de setembro de 2008, o centenário Lehman Brothers quebrou, acordando o Leviatã. Este destruiu trilhões de dólares em riqueza não apenas nos EUA, mas em todo o mundo. Para superar aquela crise, o Fed rasgou o livro-texto de Economia, salvou bancos, financiou governo e empresas do setor produtivo, enfim, jogou dinheiro do helicóptero. Ainda assim, os americanos amargaram cinco anos para reduzir a dívida e voltar a crescer.
A crise atual parece menor que a de 2008 porque não se origina de um problema econômico. Leviatã está à espreita porque um vírus chamado covid-19, de baixa letalidade, pôs a humanidade de joelhos.