Cristiano Romero
Cristiano Romero: A mais difícil e a mais urgente das reformas
Todos querem mudança tributária há trinta anos
Cristiano Romero / valor Econômico
Os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não sepultaram a possibilidade de aprovação da reforma tributária nesta legislatura, mas inovaram ao indicar que o tema, por bem ou por mal, será apreciado até dezembro. Como ocorreu nos últimos 30 anos, a reforma institucional mais demandada pelos agentes econômicos _ inclusive, os contribuintes pessoas físicas _ pode não sair do papel. E a razão é uma só: é impossível conciliar todos os interesses envolvidos nesse tema.
Razões para justificar mudanças no regime tributário brasileiro não faltam. O sistema taxa mais o consumo do que a renda, na contramão das economias avançadas. No 8º país que mais concentra renda no planeta, onde existem mais de 50 milhões de pessoas miseráveis (dependentes de programas de transferência de renda para sobreviver) e a maioria da população é pobre, essa regra ajuda a perpetuar uma de nossas maiores chagas.
Trata-se de uma “brasileirice” sem tamanho, típica de uma sociedade dilacerada pela cultura escravagista por mais de 500 anos: neste imenso pedaço de terra abençoado, mas esquecido por Deus, os pobres pagam mais imposto que os ricos. E isso ocorre porque, por razões óbvias, essa parcela da população consome mais, isto é, despende fatia maior de sua renda com bens de consumo e, quando a maré permite, serviços.
Incidem sobre o consumo três tributos _ o ICMS (estadual) e dois federais (PIS e Cofins) _, todos sobre a mesma base de cálculo, o faturamento das empresas que vendem os produtos. As alíquotas do ICMS são as mais elevadas. No caso de serviços como telefonia e energia, superam o patamar de 40%! Não nos esqueçamos do IPI, imposto que incide sobre a produção de bens industriais.
As “brasileirices” (sinônimo de jabuticaba) que condenam este país a não ser nação não param por aí. Neste território riquíssimo em recursos naturais onde vive um dos maiores contingentes de cidadãos pobres do mundo, indivíduos de classe média e os ricos podem deduzir, da base de cálculo do Imposto de Renda, tudo _ isso mesmo, tudo _ o que gastam em hospitais particulares e planos de saúde, inclusive, no exterior.
PRESIDENTES DA CÂMARA E DO SENADO
O raciocínio por trás dessa maldade é o seguinte: como a Constituição de 1988 assegura, a todos os viventes nesta extensão de terra no hemisfério sul da Terra, acesso universal a serviços públicos de saúde, é razoável que os transeuntes tenham o direito de requerer dedução das despesas que tiverem com serviços particulares de saúde. O cinismo _ uma “brasileirice” da qual ninguém fala, do mesmo quilate das férias de dois meses de juízes e procuradores _ chega ao paroxismo quando os defensores da vilania alegam que “a dedução é um direito, uma vez que o sistema de saúde estatal ainda não consegue atender a toda a demanda.
Se alguém tem alguma dúvida de por que o país a que chamamos de Brasil não dá certo, não precisa ir muito longe. Como os pobres não têm dinheiro para serem atendidos em hospitais particulares, eles não têm direito a deduzir nada da base de cálculo do Imposto de Renda. Os cínicos, neste momento da tertúlia, rompem qualquer fronteira do bom senso civilizacional: “Ora, pobres não pagam Imposto de Renda, logo, eles não precisam deduzir os gastos com saúde”.
Era só o que faltava: o sonho dos pobres no Brasil, agora, é pagar Imposto de Renda! Na verdade, eles já pagam, pois, já é obrigado a isso quem percebe pouco mais de R$ 2 mil por mês. Em termos menos edulcorados, o que esse sistema injusto e concentrador de renda faz é tirar bilhões de reais que deveriam financiar a saúde pública, que segundo a Carta Magna é para todos, inclusive, estrangeiros que estejam de passagem pelo país, e transferi-los para hospitais particulares e grandes empresas de planos de saúde.
Mesmo tendo consciência de que o Sistema Único de Saúde (SUS) pode ter uma gestão melhor, deveríamos considerar nas duras críticas que fazemos ao serviço público o fato de que o próprio Estado abre mão de bilhões de reais para beneficiar meia dúzia de grupos de interesse específico.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os americanos perceberam-se mais importantes do que achavam antes do conflito. Essa constatação mudou tudo. Logo, viram que, para sua economia crescer na velocidade desejada, eles precisavam de uma matéria-prima _ petróleo (energia) _ que eles possuíam, mas não na quantidade necessária.
Ora, o jeito foi sair pelo mundo em busca de fornecedores “confiáveis”_ um dos principais, a Venezuela, que, até o início deste século, fornecia 20% do petróleo consumido pelos Estados Unidos. A fome americana por óleo era tanta que moldou a geopolítica mundial a partir dali. Internamente, a decisão foi desonerar o preço do combustível consumido por empresas e famílias americanas, afinal, o país precisava crescer. Taxar excessivamente a gasolina para financiar o Estado, como fizeram outros grandes produtores de petróleo (México, Venezuela, Nigéria, Arábia Saudita), seria contraproducente: aumentaria a presença do governo na atividade econômica, tornando-o ineficiente por definição; estimularia a corrupção; desestimularia o desenvolvimento de outros setores; por fim, diminuiria a produtividade, uma vez que não haveria, de forma geral, incentivos para o desenvolvimento de uma economia dinâmica.
Quando achou que tinha chegado a sua hora de reluzir na economia mundial, depois de se deitar em berço esplêndido por quatro séculos e meio, a Ilha de Vera Cruz também não tinha petróleo suficiente. Mas, o que se viu desde então foi a taxação sempre elevada dos combustíveis. Como facilitar o crescimento da atividade?
Em entrevista à Maria Fernanda Delmas, diretora de redação do Valor, Lira e Pacheco expuseram o drama infindável da reforma que não se realiza. “É óbvio que a reforma tributária guarda uma série de divergências. É sem dúvida a proposta com maior dificuldade de conciliação, de entendimento do que é bom para o país”, disse Pacheco.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/coluna/a-mais-dificil-e-a-mais-urgente-das-reformas.ghtml
Cristiano Romero: Construção - No meio do caminho tinha uma pedra
Oligopólios jogam preços nas alturas e freiam setor
Responsável por cinco a 6% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, a construção civil foi o setor que mais gerou empregos formais no ano passado - 106 mil. Considerando toda a cadeia produtiva da construção, o setor representa 10% de tudo o que economia brasileira produz. Em 2014, quando se verificou o pico recente do setor, chegou a 11,5%.
A participação da cadeia da construção no PIB só é menor que a da agroindústria. Outro dado relevante é a fatia do setor na Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), isto é, na taxa de investimento da economia em bens de capital (máquinas e equipamentos) e construção: 50%, segundo a média histórica.
O setor de construção, como se sabe, é o que mais gera empregos no país: 12,5 milhões no total. Seu efeito multiplicador na economia é formidável. Estima-se que cada R$ 1,00 investido na construção civil gere R$ 1,88 na atividade. Para cada 10 empregos diretos gerados no setor, são gerados outros cinco indiretos. Embora seja um setor pouco importador de materiais e serviços, é exportador de bens e serviços.
A cadeia da construção compreende quatro áreas. Na primeira, estão as construtoras, incorporadoras e prestadoras de serviços auxiliares de construção, responsáveis por realizar obras de edificação e infraestrutura. Na segunda, estão as indústrias que produzem materiais de construção, máquinas e equipamentos.
Na terceira parte da cadeia, está o comércio varejista e atacadista. Por fim, há as atividades de prestação de serviços, tais como serviços técnico-profissionais, financeiros e de seguros.
Abrindo-se a participação de cada segmento, temos aproximadamente o seguinte: a construção responde por 61% do setor, seguida pela indústria de materiais (11,4%), o comércio de materiais (9%), os serviços (5%), o segmento de máquinas e equipamentos (0,6%) e por outros fornecedores (13,1%). Em termos de fatia do PIB, a construção lidera com 6,4%, seguida de materiais de construção (2,8% do PIB), serviços (0,7%), máquinas e equipamentos (0,2%) e outros materiais (0,1%).
Há uma forte correlação positiva entre a variação do PIB brasileiro e o setor de construção. A história mostra que, quando o PIB sobe, o PIB da construção cresce acima de sua variação; quando o primeiro cai, o do setor cai abaixo da queda da economia.
Depois de atingir o pico em 2014, primeiro ano da grande recessão brasileira (2014-2016), que nos subtraiu mais de 7% do PIB e desorganizou a economia de tal maneira que, até hoje, não houve efetivamente recuperação digna desse nome, o setor da construção amargou longo e penoso declínio. No fim do ano passado, estava 36,18% abaixo do pico.
Mas, foi em 2020, o primeiro ano da pandemia _ nenhum cidadão imaginou que, na Ilha de Vera Cruz, não teríamos vacina após 14 meses de tragédia _, que o setor começou a reagir graças a dois fatos inusitados: brasileiros de praticamente todas as classes sociais aproveitaram a economia forçada de dinheiro, provocada pelo isolamento social, para fazer reformas e também para construir e o fato de a taxa de juros dos financiamentos imobiliários está nos menores níveis da história.
Números da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) mostram que, no quarto trimestre de 2020, os lançamentos de novas unidades avançaram 33,2% em relação ao trimestre anterior, enquanto as vendas aumentaram 3,9%. Quando comparado ao quarto trimestre de 2019, lançamentos e oferta final caíram, mas isso não é necessariamente ruim.
"O mercado imobiliário vendeu mais 10 % em 2020, comparado com 2019; os lancamentos reduziram 13 %, logo, precisaremos construir o que foi vendido e repor o estoque, portanto, 2021 seria um ano para trabalhar à vontade", explica Luiz Carlos Martins, presidente da CBIC. "No caso de obra pública, os governos estaduais estão com dinheiro, estão contratando e pagando em dia."
O bom desempenho gerou confiança no setor, como demonstra o gráfico. Índice acima de 50 pontos mostra expectativa dos participantes do mercado de crescimento nos próximos meses. Mas, já começou a cair e a razão é uma só: a explosão dos preços dos insumos. Até as pedrinhas da rua sabem que o custo de insumos cresceu uma barbaridade porque tanto a sua produção doméstica quanto a internacional recuaram no início da pandemia.
Olhando a situação mais de perto, porém, o que se vê é muito feio: aprveitando-se de seu poder de mercado, isto é, do grau de concentração e das barreiras que Brasília impõe a concorrentes estrangeiros, várias indústrias, a siderúrgica e a de resinas à frente, estão tirando proveito do momento para elevar suas margens de lucro. O problema é que a prática asfixia o setor e o inviabiliza.
Cristiano Romero: Erro capital
Por que sociedade não reconhece erros do II PND e avança?
Um dos temas mais quentes do debate nacional, desde sempre, é entender por que o país fracassou e continua fracassando. O diabo é quando aparece alguém sustentando que não houve fracasso algum, afinal, temos uma das maiores economias do planeta. Aos ufanistas é imperativo lembrar que, nesse quesito, estamos em plena derrocada. O Produto Interno Bruto (PIB) do país a que chamamos de Brasil há dez anos era o 6º do mundo, agora é o 12º. Ademais, o que significa para as dezenas de milhões de pobres e miseráveis deste território viver, do jeito que vivem, numa das 20 maiores economias?
O ex-ministro da Fazenda Pedro Malan pronunciou uma das frases mais geniais da história da Ilha de Vera Cruz: "No Brasil, até o passado é incerto". Malan, que ocupou o cargo de ministro nos dois mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002), referiu-se na ocasião a decisões que a Justiça tomara, revendo integralmente o teor de leis e de jurisprudências firmadas pelo próprio Poder Judiciário.
O axioma de Malan é aplicável, também, a muitos outros aspectos da vida nacional. Um exemplo é justamente o debate, que já deveria ter sido concluído há décadas, quanto ao porquê do nosso fracasso econômico recente. Antes que o leitor pense que a coluna se refere ao desastre que vivemos desde 2014, quando se iniciou a maior e mais profunda recessão de nossa história, não é isso.
A referência aqui é à "mãe de todas as crises", aquela que ficou conhecida como a crise da dívida externa, cujo marco temporal foi 1982, mas que, na verdade, se instaurou entre nós pelo menos dois anos antes, quando foi deflagrada a segunda crise do petróleo.
De forma bem resumida, um rápido contexto. Por causa da primeira crise do petróleo, em 1973, o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) decidiu "isolar" o Brasil dos flagelos provocados pela alta do petróleo. A economia vivia os estertores do chamado "milagre econômico" (1967-1973), período em que cresceu a taxas superiores a 10% ao ano. Diante do aumento vertiginoso dos preços do petróleo _ o país importava na época 85% do óleo que consumia _, várias nações foram obrigadas a fazer ajustes para se adequar àquela realidade.
Geisel não foi eleito presidente pelo voto popular, mas agiu exatamente como se tivesse sido. Estávamos numa ditadura, que, instaurada desde 1964, passava por seu pior momento do ponto de vista de sua "popularidade". Filhos da classe média _ e esta deu apoio crucial ao golpe militar dez anos antes _ estavam morrendo nos porões da ditadura, que, desde 1968, com a assinatura do Ato Institucional nº 5, ampliaram-se ao incluir as polícias estaduais no aparato de repressão do regime.
Os anos de chumbo (1968-1975), como ficou conhecido o período mais autoritário da ditatura, coincidiram com o auge do "milagre". Este fato dificultou sobremaneira a defesa das liberdades e, portanto, a volta da democracia, interrompida em 1964 com a deposição ilegal do presidente João Goulart. Por outro lado, o regime militar começava a enfrentar naquele momento a sua crise hegemônica. Duas razões concorriam para isso.
A primeira foi o desgaste, junto à classe média, provocado pelo combate violento, principalmente com o uso da tortura, a grupos de guerrilha que decidiram pegar em armas para combater o regime e também a opositores políticos e da sociedade civil. Aquilo coincidiu com os primeiros impactos da crise do petróleo de 1973 na economia nacional, que, em meio a pressões inflacionárias, começou a desacelerar o ritmo de expansão.
Diante desse quadro, Geisel optou pela solução populista. O cálculo era o de que, se optasse pelo ajuste da economia, o regime perderia ainda mais apoio político e isso seria perigoso.
Numa democracia, governos são obrigados a fazer ajustes em duas situações: por causa do advento de uma crise internacional _ que, não nos iludamos, sempre nos atingirá _ ou decorrente de barbeiragens cometidas pelo próprio governo num dado momento, obrigando-o a corrigir o rumo de suas políticas. Do ponto de vista político, é melhor enfrentar crises externas porque estas, pode-se alegar, não estão sob o controle de nações como a nossa.
No caso de uma ditadura, a história mostra que esse tipo de regime tem seu ciclo e, portanto, sempre termina, e muitas vezes de forma ruinosa e violenta para todos os envolvidos _ ditadores e população. Ditaduras acabam porque os animais não sabem viver sem liberdade, o que, no caso do bicho homem, ser proibido de ir e vir é sinônimo de morte, uma vez que, dotado de inteligência, sabe o que é viver enclausurado.
As ditaduras, mesmo as longevas, e a "nossa" derradeira durou 21 anos, podem chegar ao fim de duas maneiras: por meio de um acordo que assegura uma transição pacífica no retorno à democracia ou de por meio de movimentos revolucionários, onde prevalecem a violência e o revanchismo (talvez, uma expressão mais branda para isso seja "aplicação da Justiça" com o objetivo de apuração de crimes cometidos durante o regime de exceção e aplicação respectiva de penalidades previstas nas leis).
Preocupado em como seria uma transição de regime em meio a uma crise econômica, Geisel lançou, com sua equipe econômica, o II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). O objetivo era isolar o país dos efeitos da primeira crise do petróleo. O programa trancou a economia brasileira a sete chaves para "protegê-la" da concorrência estrangeira, fundou dezenas de empresas estatais, exponenciou o endividamento externo para financiar um sem-número de projetos de desenvolvimento e expandiu a dívida pública com o mesmo objetivo.
Com o II PND, Geisel traçou a longa transição "pacífica" do regime. Militares e torturadores envolvidos até o pescoço na repressão à ditadura não queriam ser julgados pelo novo regime e, assim, não o foram. É a política, estúpido!
Em 1979, veio a segunda crise do petróleo e, três anos depois, o II PND desmonta-se como um castelo de cartas. Mas, inúmeros aspectos daquele modelo econômico (um deles, o fechamento da economia), seguem mantidos porque, o que é espantoso, parte expressiva da opinião pública ainda não chegou à conclusão do mal que ele faz ao país.
FHC: “Não pode ser o candidato da elite”
Para ex-presidente, nome da terceira via em 2022 precisa conhecer bem realidade brasileira
Cristiano Romero, Valor Econômico
BRASÍLIA - Na polarização que se desenha para a eleição de 2022, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) afirma ser possível criar o “espaço” para uma terceira via competitiva que enfrente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o atual, Jair Bolsonaro (sem partido). Desde que a alternativa construa esse “espaço” com um forte discurso de “progresso econômico”, que conheça a realidade brasileira e não seja “anódina”. “É preciso ver quem é capaz de conversar com o Brasil. Não pode ser o candidato da elite”, defende, em entrevista ao Valor.
Para FHC, o Brasil “gosta de novidade” e a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos é “positiva” por refletir “aqui de alguma forma” a possibilidade de se escolher “uma candidatura que seja equilibrada”. O ex-presidente almeja, mas não enxerga no momento o portador do perfil ideal para combater Lula e Bolsonaro em 2022: alguém que exerça liderança nacional, “atenda aos mais pobres” e seja popular.
“Estamos longe de ver alguém que simbolize essa diversidade, para ser um bom candidato de oposição”, diz. “Há governadores que têm peso. Dizem que são candidatos, mas eles não simbolizam nada nacionalmente”, acrescenta FHC, correligionário dos governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, pré-candidatos na corrida presidencial.
Para o tucano, “política não se faz com o passado”, mas com o futuro. Apesar disso, a disputa em 2022, afirma, pode favorecer Lula. Em sua opinião, o petista, na falta de uma terceira via competitiva, pode aglutinar forças do centro. “Bolsonaro é mais extremo que o Lula. Se não aparecer uma [terceira] candidatura, o Lula vai somar essa gente [que hoje faz oposição ao governo] para enfrentá-lo”, diz o tucano, que tampouco é a favor do impeachment de Bolsonaro. “Estamos muito longe de uma situação de impeachment. Bolsonaro está governando. Então, acho que é insensato”, disse.
A seguir, leia os principais trechos da entrevista ao Valor:
Valor: O senhor imaginou que o Brasil fosse se tornar o epicentro da pandemia?
Fernando Henrique Cardoso: Na minha casa falavam muito da gripe espanhola, que foi algo muito difícil, mas nunca mais se falou de uma pandemia no sentido que temos hoje. As pessoas não estavam, em geral, preparadas para isso. Quando o governo não sinaliza a gravidade, é pior. A situação é muito complicada, o número de mortos não para de crescer. E o pior é que os pequenos negócios na economia estão fechando, todo mundo está sofrendo as consequências e vai sofrer por muito tempo ainda.
Valor: Como estaremos depois da pandemia?
FHC: Não sei o que vai acontecer porque, neste momento, todos querem salvar a própria pele, todo mundo pensando em si mesmo, depois vai pensar na vida. E a vida é o trabalho, a política. O Brasil é curioso porque tem um serviço de saúde bom. Quando eu era criança, aqui só havia as santas casas de misericórdia e olhe lá. Hoje, temos o SUS e ele funciona, atende às pessoas. Eu uso o SUS.
Valor: Mas o senhor é bem atendido porque é ex-presidente.
FHC: Espero que sim, mas a cama é a mesma, os lençóis são os mesmos, os médicos, enfim, o SUS é razoável.
Valor: O que está faltando?
FHC: Confiança. É difícil manter a confiança numa situação dessas. E com o nosso presidente que acha que a pandemia é uma gripezinha, ninguém acredita em nada. Agora, isso não para a vida política. Ainda bem que tem eleição, mas sempre repito: política não se faz com o passado.
Valor: Não?
FHC: Não. Política se faz com o futuro. O que você apresenta, qual é o caminho. Num país como o Brasil, isso é mais forte.
Valor: Por quê?
FHC: Porque aqui não tem partido para disciplinar os políticos. O povo vai atrás de pessoas que expressam aquele momento. Neste momento, você olha em volta e vê falta de quem expresse alguma coisa. Vamos ver quem, depois da pandemia, vai expressar o momento novo do Brasil. É um país que tem futuro, tem riqueza, tem gente.
Valor: Mas não cresce há sete anos.
FHC: O problema fundamental é retomar o crescimento, mas diminuir a desigualdade, que é muito grande. Quando falam do meu governo, dizem: “Ele fez o Plano Real”. O real foi importante, mas fiz a reforma agrária, algo que tem um peso grande para a população. A educação melhorou bastante, Paulo Renato [de Souza] era um bom ministro; a saúde, onde o [José] Serra foi um bom ministro, antes dele o [Adib] Jatene, deu um salto grande. Comecei a reforma fiscal para enfrentar o déficit público, que sempre existiu e agora vai aumentar.
Valor: Bolsonaro, ex-deputado sem grandes pretensões políticas, rompeu com a polarização PSDB-PT que prevaleceu de 1994 a 2018. Como se explica isso?
FHC: Bolsonaro veio como o anti-PT. O pessoal ficou com medo da vitória do PT.
Valor: Medo do que exatamente?
FHC: O medo não estava baseado propriamente em fatos, mas muito mais na pintura que se fazia das coisas. Na verdade, quando foi presidente, Lula governou de acordo com o mercado. A presidente Dilma [Rousseff] foi mais voluntariosa, mas não fez nada que fosse contra os interesses predominantes. Ela podia ser menos capacitada que o Lula para lidar com a máquina pública.
Valor: Onde o senhor acha que a ex-presidente errou?
FHC: Ela rompeu [com o modelo macroeconômico herdado de Lula], sobretudo, no segundo mandato [2015-2016], quando fez outra coisa. A Dilma era mais estatizante que o Lula.
Valor: Lula manteve o modelo adotado em seu governo e, inclusive, o aperfeiçoou. Um exemplo foi a acumulação de reservas cambiais. Como o senhor o define?
FHC: O Lula é prático. Eu o conheci bastante quando ele era dirigente sindical. Ele é inteligente, sensível e prático. Sempre teve mais amor ao capital, mas nunca deixou de olhar para o povo, sempre fez uma mescla das duas coisas. É mais paulista: “O governo faz, mas quem faz também é o mercado”. Com a Dilma, é mais Estado. Não deu certo não só por ser Estado, mas também porque a conjuntura não favoreceu. Bolsonaro se elegeu na base de que é um liberal.
Valor: Ele é um liberal?
FHC: Não é liberal. É um militar e eu conheço bem os militares. Meu pai era general e meu avô, marechal. Nada contra isso, mas conheço a mentalidade militar deles, que é mais Estado. No caso do presidente, ele é capitão, então, é mais reivindicativo ainda. Nunca falei com ele, mas lembro que ele era um ser reivindicante, queria coisas para os militares. Não me parece que ele tenha grandes habilidades políticas.
Valor: Mas foi eleito presidente.
FHC: Sempre disse: quem tem votos eu respeito. Ele foi eleito. Sou visceralmente antigolpe. Nossa sociedade provou o gostinho da liberdade, é difícil voltar atrás.
Valor: O senhor não vê risco de golpe da parte do presidente?
FHC: Acho que não tem. Ele pode ter o ímpeto que tiver, não sei qual é o ímpeto dele, mas não pega. É difícil você botar um país do tamanho do Brasil na risca, tem que ter um partido. Aqui não tem nem partido nem de esquerda nem de direita.
Valor: E os partidos que chegaram ao poder, como PT e PSDB, são hoje bem menores do que eram, o que mostra que a fragmentação das legendas continua aumentando.
FHC: Além da fragmentação partidária, temos tradição de seguir o líder, de seguir pessoas. Bolsonaro, querendo ou não, tem liderança, o Lula também. Estão pregando a necessidade de localizar o centro. Depende de pessoas. Quem é? Não pode ser um centro anódino. Isso não pega na política.
Valor: Quem teria esse perfil?
FHC: Tem que ser alguém que faça a economia crescer e dê emprego para quem precise e atenda aos mais pobres. É fácil falar e difícil fazer, mas tem que simbolizar isso. Há governadores que têm peso. Dizem que são candidatos, mas não simbolizam nada nacionalmente.
Valor: É torcedor do Fluminense ou do Flamengo?
FHC: Eu era mais Fluminense, mas estava errado. Era melhor ter sido mais Flamengo... Quando fui candidato à Presidência [em 1994], Marcello Alencar era [candidato a] governador do Rio. Ele tinha força na Baixada Fluminense e me levou a uma cidade da região. No [Estado do] Rio, não conhecia nada; mais Niterói. Era assustador para mim.
Valor: Por quê?
FHC: Fui a um lugar onde tinha um bar, uma escadinha, por onde subimos e chegamos a uma sala grande, meio escura, onde estavam os “chefes” da Baixada, todos com pulseiras e colares de ouro. Eu era ministro da Fazenda. Conhece a Ana Tavares [então assessora especial]? Ana ia comigo e dizia: “Não vai falar com fulano!”. Eu dizia: “Ana, eu tenho que falar”. É complicado. Nossos líderes que estão aí têm que conhecer o Brasil. Eu tinha algum conhecimento de Brasil porque, primeiro, fui sociólogo. Minha mãe nasceu em Manaus. Minha família, por parte de mãe, é de Alagoas. Meu pai nasceu no Paraná, mas a família é de Goiás. Você tem que conhecer essa realidade, a diversidade que é o Brasil. Não adianta saber pelos livros, tem que ter contato com as pessoas. Ser líder político no Brasil não é fácil.
Valor: Como assim?
FHC: Bolsonaro tem a vantagem de ser capitão da reserva. Não sei o quanto ele andou pelo país, mas, mesmo que não tenha feito isso, eles [os militares] têm um certo conhecimento da realidade. Algum conhecimento do povo o líder político tem que ter. Estamos longe de ver alguém que simbolize essa diversidade, para ser um bom candidato de oposição. Os que estão aí e que são possíveis candidatos podem vir a ter, mas têm que obrigatoriamente vir a ter.
Valor: O senhor disse que ficou assustado com o encontro na Baixada Fluminense. Como foi?
FHC: Ah, chegou uma hora, depois de me ouvirem, que um deles disse: “Eu aposto não sei quanto nesse menino aí”. O menino era eu [com 63 anos na época]! Andei muito na Baixada com o Zito [José Camilo Zito dos Santos Filho, ex-prefeito de Duque de Caxias]. É muito importante falar com todo mundo e isso, que as pessoas pensam que é fácil, não é. Quando era presidente, eu falava com os motoristas, o sujeito que tomava conta da piscina [do Palácio da Alvorada], a moça que cuidava das flores, que se chama Dalina... Eu queria saber como as pessoas simples sentem a vida. Como não há estrutura partidária que sustente uma candidatura, é você que tem que se projetar. Projetar é jogar para fora, não é ficar para dentro. É preciso ver quem é capaz de conversar com o Brasil. Não pode ser o candidato da elite. Se ficar só na elite, está perdido.
Valor: Pesquisas mostram que, com a volta de Lula, neste momento a disputa de 2022 está entre ele e Bolsonaro. Há espaço para uma terceira candidatura, de centro?
FHC: Em política, o espaço é criado. Não está dado. Eu gostaria que houvesse alguém que criasse esse espaço. A maioria [dos eleitores] não é uma coisa nem outra, então, alguém tem que criar. No Brasil, o importante é o progresso econômico. Os que são espertos, Bolsonaro e Lula, ganharam espaço porque tiveram a capacidade de demonstrar [que conhecem a realidade].
Valor: Terão a mesma capacidade agora?
FHC: O Brasil gosta de novidade. Depende de aparecer uma novidade que seja palatável para a maioria da população. O mundo hoje é um mundo mais calmo, não tem expectativa de guerra. Isso reflete aqui de alguma maneira. Ganhou nos Estados Unidos o [Joe] Biden. Isso para nós é positivo porque não foi o extremo que ganhou. Então, há condições para uma candidatura que seja equilibrada, que não seja do extremo.
Valor: Lula é do extremo?
FHC: Não estou dizendo que Lula seja de extremo porque ele não é. Bolsonaro é mais extremo que o Lula. Se não aparecer uma [terceira] candidatura, o Lula vai somar essa gente [que hoje faz oposição ao governo] para enfrentá-lo. O Lula é inteligente, pegou no ar, aprendeu. O que ele vai simbolizar? Não sei. O que foi que ele simbolizou com o governo? Foi uma época feliz da vida no Brasil. E a economia foi bem. Mas ele não vai simbolizar o que vão dizer que ele simboliza, que é o socialismo, o comunismo, o Lula vermelho.
Valor: O que a sociedade tem a seu alcance para lidar com um presidente que nega a gravidade da pandemia desde o início e, por isso, não comprou a vacina ao tempo?
FHC: Ele vai pagar um preço por isso se houver alguém que diga isso, com força. Se não houver, não adianta. Política é sempre assim.
Valor: O governador de São Paulo, João Doria, está fazendo isso e o resultado tem sido o oposto. O Estado produz a vacina, mas esta tem que ser entregue ao governo federal para distribuição nacional. Como o governo atrasa a importação de vacina, o governador tem que fazer “lockdown” e isso derruba sua popularidade. Ele não corre risco de perder a reeleição?
FHC: Pode ser que ele ganhe de novo, pode ser. Por enquanto, quem está pagando um preço elevado [pela falta de vacinas] são os governadores. Você sabe como é o povo aqui. O povo não olha quem está tão lá em cima.
Valor: Quando começar a imunização em massa, Bolsonaro não pode se tornar o “pai” da vacina?
FHC: Quem for o pai da vacina terá vantagem eleitoral enorme, mas, isso hoje. Não sei daqui a um ano, porque as pessoas esquecem.
Valor: Em 36 anos de redemocratização, tivemos dois presidentes afastados por impeachment. Nossa democracia é frágil?
FHC: Não. Acho que já está consolidada, o povo gostou da liberdade de escolher. Eu acho difícil que dê marcha à ré. Não é impossível. Como dizia Otávio Mangabeira [ex-governador da Bahia], “a democracia é uma plantinha tenra que tem que ser regada todo dia”.
Valor: O senhor apoiaria Lula?
FHC: No segundo turno, se ficar o Lula contra o Bolsonaro, não sei se o PSDB vai fazer isso... Se depender da minha inclinação, iria nessa direção, com muita dificuldade porque o Lula jogava pedra em mim.
Valor: Mas ele ainda joga?
FHC: Não, ultimamente não tem jogado, porque ele não precisa.
Valor: As condenações, agora anuladas, e a prisão de Lula o tiraram da eleição de 2018. O ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro é acusado de ter agido politicamente. Como o senhor avalia isso?
FHC: É isso aí, o Moro fez isso. Acho que ele fez um erro ao aceitar ser ministro. Ele mostrou, na época da Lava-Jato, sua importância no combate à corrupção. É importante, é verdadeiro. Mas, depois, entrou no jogo de poder. Não é a dele. Ele é um bom juiz. O jogo do poder é um jogo difícil e ganhar do Lula não é brincadeira, é difícil. Ele sabe. Lula segue a regra. Instintivamente, ele sempre faz isso. Isso não quer dizer que o outro lado não possa transformar o Lula num fantasma outra vez. Pode, independentemente do Lula. É claro que eu não vou contribuir para isso nunca.
Valor: Para onde vai o PSDB, que, assim como o PT, se enfraqueceu e sem dividiu nos últimos anos?
FHC: Unir o PSDB é uma tarefa sempre difícil. E não sei se se deveria perder muito tempo com isso, porque não são os partidos que elegem os governantes. Eu me dou com o Doria. Sou amigo dele há muito tempo. Conheço pouco o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que é do PSDB também. Ele tem bom nome também. Agora, é mais recente e o Sul é longe do centro. Mas vai ficar entre esses dois, você vai ver.
Valor: E o Luciano Huck?
FHC: Eu o conheço bem, sou amigo da mãe e do padrasto dele. Não sei... Ele vai ter que decidir agora. Ele teria que queimar a vela e deixar a [Rede] Globo. É agora. Se ele tomar a decisão e se jogar, tem condição de se transformar num político. Mas tem que se transformar num político, naquilo que os outros já são. Não é tão simples assim. Ele tem mais popularidade do que qualquer deles, hoje. Ter popularidade é uma coisa, ser líder político não é a mesma coisa. É bom ter popularidade, mas tem que ser como líder político. Eu não quero dizer que ele não possa, mas ele vai ter que mostrar que pode se transformar em um líder político. Custa mais a ele do que aos outros porque os outros já queimaram as velas.
Valor: O senhor acha que há motivos para um pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro?
FHC: Nunca fui favorável à ideia que você trabalhasse pelo impeachment. É golpe, de outra maneira. Na situação da Dilma, ela mesma inviabilizou. Mas agora estamos muito longe de uma situação de impeachment. Ele está governando. Então eu acho que é insensato.
Cristiano Romero: Poderes eleitos têm pouco espaço no orçamento
A rigidez atrofia a democracia e ocorre simultaneamente ao aumento de incentivos fiscais
No país a que chamamos de Brasil, muitas vezes a explicação de um conflito entre atores políticos não está no fato em si, mas, sim, nas estruturas que, ao longo do tempo, a sociedade cria para lidar com seus problemas. Em outras palavras, é possível afirmar que, nesta Ilha de Vera Cruz, a maioria dos problemas é enfrentada por meio de subterfúgios e soluções incompletas. Para não tratar da verdadeira causa de nossos desequilíbrios, forjamos acordos que, no fundo, apenas evitam o "confronto" imediato.
O futuro é sempre adiado porque vivemos numa sociedade que não pensa em seus descendentes. Prevalece, também, nas relações sociais, talvez justificável em alguns aspectos da vida nacional, um sentimento permanente de desconfiança em relação aos propósitos do vizinho, do colega de trabalho, do empresário que lhe dá emprego, do político eleito pela maioria de nós, do estrangeiro que se dispõe a vir aqui, entre outros lugares, para investir seu capital, no lucro de quem consegue lucrar, no sucesso de outrem, enfim, entre nós não há reconhecimento mútuo, mas, acima de tudo, suspeição.
A escravidão que nunca nos abandonou explica a maior parte desse grande desencontro que nos impede, não somente de sermos uma nação, mas de almejarmos um dia chegar lá. Nesse ambiente tenso, confuso, violento (só um país que não é nação "aceita" que 60 mil de seus cidadãos sejam assassinados todos os anos, a maioria, jovem e negra, nossa maior etnia), o Estado não exerce seu papel primordial, inscrito na Constituição, de combater diuturnamente as diferenças e dedicar-se inteiramente à oferta de igualdade de oportunidades.
Mas, se não cumpre sua missão, o que faz o Estado? Ora, é no Estado, isto é, na sua organização, nas leis que o sustentam e regem o contrato social em que estamos inseridos, onde os setores da sociedade se encontram para decidir o que somos e o que seremos. Sendo assim, numa sociedade marcada por uma desigualdade vertiginosa desde a sua fundação, há 521 anos, decide quem tem mais poder em Brasília. Sabemos, portanto, que, no centro da República, estão representados todos os grupos sociais, menos a maioria _ em resumo, os negros (56% da população), os miseráveis e os pobres.
Na Constituição, determinou-se que a União aplique, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, menos de 25%, da receita resultante do recolhimento de impostos, incluída a proveniente de transferências, "na manutenção e desenvolvimento do ensino". Segundo os dados oficiais, a União tem se mantido com folga acima do patamar indicado, e o teto de gastos, instituído por emenda constitucional em 2017, não alterou isso.
Considerando que a despesa com a Previdência Social (INSS) e com as aposentadorias do funcionalismo público federal e dos militares consome hoje mais de 50% das receitas da União, o que sobra para investir em qualquer outra área é quase nada. Intitulado “Vínculo Obrigacional e Grau de Rigidez das Despesas Orçamentárias”, estudo realizado por três consultores de orçamento da Câmara _ Eugênio Greggianin, Graciano Rocha Mendes e Ricardo Alberto Volpe _ mostra que, neste ano, a participação das despesas obrigatórias no total da despesa primária (excluído o gasto com juros da dívida) da União pode chegar a 98%. Isto significa que governo e Congresso, justamente os poderes eleitos pelo voto popular, têm ingerência sobre apenas 2% dos gastos da União.
Os dados do gráfico, presente no estudo dos três consultores da Câmara, mostram a evolução da rigidez orçamentária nos ultimos 15 anos. A vinculação foi criada para forçar os governantes a investirem nas áreas onde, sim, desde sempre tivemos carência de recursos que explica muito da nossa enorme desigualdade social. Mas, ora, depois de 33 anos de vinculação, que quadro temos?
O SUS (Sistema Único de Saúde) foi viabilizado pela vinculação, tem se mostrado bastante útil nesta pandemia, mas não nos enganemos, está muito longe de cumprir sua missão constitucional. No caso da educação, o dado positivo foi a universalização do acesso das crianças ao ensino básico. E só. O que se vê além disso é uma tragédia que nos impede de formar cidadãos em condições de ascender socialmente.
Quem perde são justamente aqueles que os maiores defensores das vinculações dizem representar: os mais pobres, os que, na "corrida" de oportunidades da democracia.
A rigidez atrofia a democracia e ocorre simultaneamente ao aumento de incentivos fiscais porque os setores organizados, percebendo que a conta não fecha, estão correndo a Brasília para assegurar "privilégios" adquiridos. Não estaria aí o dilema de nossa democracia? Governo e Congresso, eleitos, não têm como atender a demandas de seus eleitores?
Reformar a Previdência, além de tratar-se de uma questão aritmética e de justiça social, também envolve a necessidade de o país ter mais recursos para investir no futuro de sua sociedade, isto é, na formação educacional de suas crianças, adolescentes e jovens, do contrário, jamais teremos uma economia em condições de competir no mercado mundial, um ambiente cada vez mais competitiva _ lembremo-nos que, nos últimos 35 anos, emergiram na Ásia países que, com exceção do Japão, nem se comparavam com o tamanho e a diversidade de nossa economia, e hoje estão muito à nossa frente, principalmente, em tecnologia e produtividade.
Cristiano Romero: Sem nação, pandemia é mais devastadora
Manifesto é tardio, mas é cinismo criticar iniciativa
É de um cinismo atroz a crítica feita, principalmente por alguns setores da esquerda, ao contundente manifesto, assinado por 500 economistas e lançado no fim de semana passado, que cobra do governo Bolsonaro mudança radical no enfrentamento da pandemia. Subscrito por economistas de orientação ideológica distinta, o manifesto, intitulado “O País Exige Respeito; a Vida Necessita da Ciência e do Bom Governo”, é uma forma de sensibilizar a opinião pública para a tragédia que assola o país devido ao inacreditável negacionismo do presidente da República diante da maior crise sanitária vivida pela humanidade em cem anos.
O movimento é tardio? Sim, não se tenha dúvida disso. Mas, o que explica o imobilismo da elite intelectual brasileira, assim como de todos os outros setores da vida nacional, é o fato de, infelizmente, não sermos uma nação. Esta só existe quando cada cidadão se reconhece no outro, quando compartilha valores e aspirações, quando todos são rigorosamente iguais perante as leis, quando não existe discriminação de qualquer espécie, quando o Estado assegura a todos oportunidades iguais de formação educacional e acesso a serviços, como a saúde e segurança pública.
Na Ilha de Vera Cruz, regimes ditatoriais procuraram forjar simulacros de identidade nacional, como a paixão pelo futebol. Pelé, o melhor jogador de futebol de todos os tempos (do passado e do que ainda virá), carregou nos ombros, talvez inconscientemente, o peso da responsabilidade de ajudar a Seleção Brasileira a vencer a qualquer custo a Copa do Mundo de 1970, no México.
Em documentário produzido pela Netflix, aos 80 anos, envelhecido pelos problemas de saúde que vem enfrentando nos últimos anos, Pelé relata, de uma maneira que nunca se viu antes, a carga sobre-humana que a falsa nação exigiu dele, em meio aos anos de chumbo da longa ditadura militar instaurada no país (1964-1985).
Em outubro do ano passado, o governador de São Paulo, João Doria, fechou acordo com o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para a compra de vacina da China, primeiro passo para a produção de imunizante em larga escala, no Instituto Butantan (estadual) e na Fiocruz (federal). Doria começou a negociar com os chineses em abril. O acerto envolvia outros Estados, uma vez que, com exceção da União e do governo paulista, as unidades da Federação não possuem dinheiro nem tecnologia para produzir vacinas.
Num sinal claro de que está ali para atrapalhar e não para ajudar, no tema gravíssimo da pandemia, o presidente Jair Bossonaro desautorizou o acordo. A pergunta que fica no ar é uma só e não se dirige apenas aos 500 economistas do manifesto lançado há poucos dias: onde estávamos todos, os cidadãos instruídos deste imenso país, os sindicatos patronais e de trabalhadores, os artistas, todos aqueles sabedores de que o presidente negacionista estava usando a tragédia para fazer política, jogando governadores e prefeitos, diante da ausência de vacina, na armadilha da necessidade de adotar medidas de isolamento social?
Sem nação, seremos sempre uma democracia manca porque nunca teremos institucionalizado para defender a sociedade de maus governantes.
Pelé
A propósito de Edson Arantes do Nascimento, eleito o maior atleta do século XX e que fez 80 anos no ano passado, sob o silêncio constrangedor de seus compatriotas, que juravam ver nele um dos símbolos de nossa identidade nacional _ mentira, claro _, este humilde colunista diz o seguinte:
Monstro, extra-terrestre, gênio, fora-de-série, fenomenal, absoluto, artista, maestro, rei, inigualável, inalcançável, Deus, enfim. Foi em todos os quesitos do esporte bretão o melhor da história, inclusive, no gol. Sua arrancada rumo ao gol adversário não era engenho humano. Sua habilidade tinha a precisão de um relógio suíço e a plasticidade de um balé russo.
Pelé não “matava” a bola. Esta, na verdade, perdia a fúria ao se aproximar de seu peito. Acolchoava-se nos braços do ente querido como se estivesse retornando depois de um dia longe de casa.
O craque do Santos e do Brasil usava régua e compasso, mas, em seus pés, a redonda ia sempre em direção à meta adversária. Irascível, muitas vezes batia na canela dos marcadores, como se esses fossem cones em dia de treino. O drible era pura arte, mas a serviço da missão jamais negligenciada: furar o bloqueio e colocar a bola na rede.
Para Pelé, não havia “russos”, mas jogo contra em pelada de várzea. “Último a ir no gol”, apressam-se os maganos onde começa _ ou começava _ o sonho do futebol na pelada atéia, sem uniforme, paixão clubística, mancha verde, fiel corintiana, young Flu ou religião de qualquer natureza.
Assim como no “jogo contra”, adversários de Pelé não tinham naturalidade nem nacionalidade; nem registro profissional ou passaporte; carteira de identidade ou de motorista. Não chegavam a ser pedras no caminho do poeta, mas estavam ali para cumprir o destino histórico de testemunhar o sobrenatural, o indizível, o inacreditável, o indomável.
Se tivesse sido jogador ao tempo em que Pelé ainda não havia estreado como jogador profissional, eu certamente sonharia “perder” para Pelé. Ganhar seria perigoso, afinal, ninguém acreditaria e eu passaria por mentiroso e megalômano: “Acreditem, ganhei dele, venci-o, é verdade!”. É quase como sonhar em ser o substituto de Lennon nos Beatles, ainda que este seja um desafio mais palatável do que jogar e vencer o maior jogador de futebol de todos os tempos, aqui e alhures, nesta e em todas as dimensões.
Edson Nascimento é parte do maior grupo populacional deste país, cujo nome _ Brasil _ nada diz, ao contrário da maioria dos territórios deste planeta. Pelé é negro como 56% dos habitantes da Ilha de Vera Cruz. Pergunte a um quatrocentão paulista, a um galego do Sul, a um carioca de sobrenome de diplomata e a um descendente de usineiro de Pernambuco se ele se reconhece minimamente no “ídolo" que os fizeram sentir orgulho, por alguns anos, de serem brasileiros. As respostas mostrarão o quão distantes estamos de um projeto de nação.
Cristiano Romero: Subestimar Jair Bolsonaro é um erro
Negacionismo do presidente tem cálculo político
Jair Messias Bolsonaro não é o primeiro presidente brasileiro cuja habilidade política é subestimada pela maioria dos analistas. Durante um bom tempo, duvidou-se da capacidade de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de governar o país. Antes do petista, era quase unânime a opinião de que Itamar Franco, o vice que assumiu o cargo em decorrência do primeiro impeachment da história do país _ de Fernando Collor de Mello, em 1992 _, de tão “incompetente”, “tolo” e “turrão” acabaria de afundar a nação no caos iniciado por seu antecessor.
Bolsonaro passou 28 anos na Câmara dos Deputados com apenas uma preocupação: reeleger-se a cada quatro anos. Não foi difícil, afinal, sua bandeira, única, sempre foi defender privilégios e vantagens das corporações militares, o que, evidentemente, significou apoiar, de um modo geral, os interesses da burocracia estatal, o Estado dentro do Estado, o poder autóctone deste país, patrimonialista por definição.
O atual presidente defendeu os soldos dos militares durante o período, provavelmente, de maior arrocho salarial do funcionalismo na história _ os primeiros anos de estabilização da economia, após o lançamento do Plano Real, em 1994. Com a queda abrupta dos índices de preços de cerca de 2.800% para 50% ao ano, o enorme desequilíbrio das contas públicas apareceu instantaneamente nos orçamentos, uma vez que, antes, a inflação crônica corroía o valor real da despesa, criando a ilusão de que o setor público não gastava mais do que arrecadava.
Entre outras providências, coube ao primeiro primeiro presidente eleito no pós-Real _ Fernando Henrique Cardoso (PSDB) _ segurar a evolução dos salários do funcionalismo civil e dos militares para conter, minimamente, o déficit público. Ainda no primeiro mandato de FHC (1995-1998), o déficit nominal _ conceito que inclui todas as despesas, inclusive, os juros da dívida _ chegou a 7% do Produto Interno Bruto (PIB).
Para o deputado Jair Bolsonaro, gritar contra o arrocho salarial de FHC e conquistar votos na família militar foi mais fácil que decorar a tabuada do número 1. Isto explica o ódio devotado por militares bolsonaristas ao ex-presidente. Em entrevista ao Valor em 2019, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), um dos mais próximos do presidente da República, disse que "Lula é terrível, mas o Fernando Henrique era pior, hein?”, uma óbvia referência ao principal alvo de Bolsonaro nos anos em que era visto apenas como uma figura folclórica da direita brasileira.
Talvez, nem em sonho Bolsonaro tivesse acreditado que, um dia, haveria a chance de sair do folclore para tornar-se o primeiro mandatário do país com a 6a. maior população do planeta, a quarta extensão territorial e a 12a. Maior economia (há poucos anos, caminhava para ser a 5a. Maior, mas esta é outra história). Mas, a tragédia inacreditável do governo da presidente Dilma Rousseff (PT) criou oportunidade única para Bolsonaro ambicionar seu salto inesperado na política nacional.
Em 2015, quando o país já ingressara no segundo ano da mais profunda e longa recessão de sua história, provocada por sucessão inacreditável de equívocos de política econômica cometidos pelo governo Dilma, Bolsonaro e seus seguidores montaram estratégia nas redes sociais para fazer do então deputado o candidato anti-PT, anti-Dilma, “anti-também-tudo-isso-daí”. Com a Operação Lava-Jato fazendo estragos nas hostes tanto do PT quanto do PSDB, a economia atolada numa recessão e o maior líder popular da história do país, Lula, encarcerado, o atual presidente tornou-se rapidamente um fenômeno nas redes sociais, ignorado por alguns, subestimado por muitos, entre os quais, o titular desta coluna.
“Quando a campanha oficial começar, em agosto de 2018, o tempo diminuto de horário eleitoral gratuito frente a outros candidatos fará de Bolsonaro o Celso Russomano da disputa presidencial _ sempre larga na frente, mas nunca chega em primeiro. Vai desidratar nas pesquisas”, dizia-se sobre as perspectivas eleitorais de Bolsonaro. A cada previsão frustrada, analistas experientes da cena política nacional faziam novas projeções, segundo as quais, o então candidato do PSL naufragaria.
Nos livros de História do Brasil, provavelmente na maioria deles, será dito que o presidente ganhara a eleição de 2018 porque, a menos de um mês, sofreu um atentado a faca que o afastou dos debates, de entrevistas e de eventos de campanha com grande potencial de desgastar a imagem do candidato. Depois de errar mais de uma vez em seus prognósticos sobre o destino político-eleitoral de Bolsonaro, o titular desta coluna acredita que atribuir sua vitória à facada é “brigar com a notícia”, como costuma dizer o nobre colega e escritor Sérgio Leo, ex-colunista do Valor.
Bolsonaro ganharia com ou sem facada. Ponto. Seu sucesso deveria ter convencido, senã0 a todos, pelo menos à maioria, de que ninguém chega à presidência de uma das maiores democracias do planeta, eleito pelo voto popular, destituído de inteligência, astúcia, sagacidade política. Para as elites pensantes do país, é mais simples manifestar o quão Bolsonaro é diferente _ para pior _ do que nós somos e desejamos para o projeto de construção de uma nação nestas plagas.
Daí, os erros de avaliação que ajudam a fortalecer o presidente e que, em alguns casos, desvalorizam avanços institucionais na área econômica, notadamente, a aprovação da independência do BC e da PEC emergencial, que criou novo marco regulatório fiscal para todos os entes da Federação, fato que na prática diminui sua compreensão e, portanto, sua legitimação na sociedade.
Na pandemia, com a ajuda do Congresso, Bolsonaro acabou por instituir o maior programa de redução de pobreza da história do país. Seu negacionismo tem cálculo político. Ele esticou a corda na negação da gravidade do vírus e os governadores foram obrigados a adotar medidas rígidas de isolamento, cujo efeito tem sido afastá-los da popularidade. No fim, o presidente virá com a solução, a vacina, que só a União tem condições de comprar em grande quantidade. Não adianta brigar com notícia, Bolsonaro será no momento agudo, aos olhos da população, o pai da vacina.
Cristiano Romero: O espetáculo da corrupção
Lava-Jato sofrerá novas perdas de reputação
Um famoso juiz federal perguntou certa vez a um jornalista sua opinião sobre vazamento de informações. Como todo repórter que vive da apuração de notícias, a resposta foi: “O vazamento me apraz”. Mas, para espanto e visível frustração do magistrado, o jornalista acrescentou: “Mas, como qualquer cidadão, não posso me coadunar com informações vazadas ilegalmente”.
A ética do jornalista, como ensinou o saudoso Claudio Abramo, não é nem deve ser diferente da ética do cidadão. “Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista - não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão”, escreveu Abramo no livro “A Regra do Jogo: O Jornalismo e a Ética do Marceneiro” (Companhia das Letras, 1988).
“Suponho que não se vá esperar que, pelo fato de ser jornalista, o sujeito possa bater a carteira e não ir para a cadeia”, acrescentou Abramo, um dos responsáveis pela modernização nas décadas de 1970 e 1989 da “Folha de S.Paulo”.
A pergunta do juiz perturbou o repórter porque ele percebeu que o magistrado ficou desapontado com sua resposta. A lembrança imediata, como sempre lhe ocorre quando colegas de profissão defendem a ideia de que os fins justificam os meios, foi das palavras de Claudio Abramo sobre a ética no jornalismo. Ele pensou com seus botões: “Para o juiz, sua ética não é a mesma do cidadão”.
A confusão na cabeça do profissional de imprensa estava instalada porque juiz é funcionário do Estado, pago para julgar se um crime foi cometido ou não e, com base nisso, manifestar se o acusado pela promotoria é culpado ou não, e então, no caso de condenação, estabelecer a pena, tudo com base nos parâmetros estabelecidos em leis.
Naquele momento, ficou claro para o jornalista que este país estava diante do seguinte quadro:
1. Sim, foi desbaratado, em 2014, um enorme esquema de corrupção envolvendo a maior estatal do país (a Petrobras) e centenas de pessoas, nesta ordem de "entrada em cena”: funcionários daquela empresa pública (os responsáveis pela montagem do bilionário mecanismo de corrupção), políticos e seus partidos, doleiros, executivos de grandes empresas (especialmente, empreiteiras) e empresários donos das empresas; não há dúvida alguma de que os desvios de recursos da maior companhia da economia brasileira, estimados em R$ 20 bilhões, ocorreram, afinal, descobriram-se contas milionárias de empregados da estatal no exterior, executivos e empresários confessaram a realização de pagamentos de propina a funcionários públicos e políticos etc.
2. As investigações, conduzidas por uma força-tarefa integrada por representantes da Polícia Federal (PF), do Ministério Público Federal (MPF) e da Justiça Federal e amparadas por um sem-número de delações premiadas, expediente relativamente novo na realização de inquéritos na Ilha de Vera Cruz, logo revelaram um objetivo maior, de caráter político -_ provar que o ex-presidente Lula era o chefe daquele grande esquema de corrupção - ; não dá para afirmar taxativamente que a força-tarefa estivesse a cargo de um propósito político-eleitoral, com vistas ao pleito de 2018, mas, convenhamos, o resultado foi o que se viu;
3. Para a força-tarefa, não bastava investigar, recolher provas, indiciar e/ou prender, interrogar, processar e condenar; mais importante era promover o “espetáculo da corrupção”, uma forma de massificar o apoio da opinião pública à operação e, assim, tornar sumárias investigações e condenações de alguns acusados, principalmente de Lula;
4. Com o apoio incontestável da sociedade, “entusiasmada” com o fato de ver empresários (antes, em sua maioria, inimputáveis devido a seus laços com o poder) e políticos pela primeira vez na cadeia, a Lava-Jato cometeu abusos de todo tipo, como permitir delações inconsistentes para validar presunções com viés político; vazar informações ao arrepio da lei para criar fatos consumados, isto é, evitar que instâncias superiores da Justiça questionassem o trabalho que vinha sendo feito; indiciar dezenas de pessoas que, depois, comprovou-se não terem envolvimento algum com o esquema de corrupção; grampear conversa da então presidente da República, Dilma Rousseff, com o ex-presidente Lula, sem autorização do STF, com o objetivo de criminalizar ambos; vazar a íntegra do grampo poucas horas depois da gravação da conversa e, assim, jogar a opinião pública contra a chefe do governo e contra Lula, um ato político, desprovido, portanto, de caráter jurídico;
5. Como se viu, as instâncias superiores do Poder Judiciário foram constrangidas pela primeira instância da Justiça; a prova disso é que a segunda instância (TRFs) rejeitou quase sempre por unanimidade os recursos da defesa; a Lava-Jato tornou-se um grande BBB, em que o importante não é o comportamento real dos participantes da “casa”, seu caráter e suas atitudes, mas o julgamento que os expectadores fazem a partir de narrativas induzidas pelo próprio “reality show” e de pré-concepções esmagadoramente conservadoras dos concorrentes ao prêmio, o que torna o BBB perpetuador de nossas doenças seculares, como o racismo e o machismo.
Ora, se a Justiça usa de expedientes abusivos e ilegais para cumprir sua missão institucional, esta fica maculada, independentemente de quem seja o réu. Não pode haver dúvidas num processo que leva à prisão de um ex-presidente da República, no ano em que este, e de acordo com as leis vigentes, seria um dos candidatos do pleito.
Com seu método de atuação, a Lava-Jato, mesmo levando em conta os resultados alcançados no combate à corrupção, resultou claramente na criminalização da classe política. Foi nesse vácuo que emergiu o inesperado Jair Bolsonaro, com discurso anti-política, anti-Brasília, impulsionado por uma campanha de instituições do Estado (PF, Justiça e MPF) que deveria ter se limitado à legalidade. O diagrama que mostrava Lula no centro do esquema de corrupção já deveria ter sido suficiente para mostrar a impropriedade com que a operação se movimentava.
Cristiano Romero: 'O Brasil é administrado por um software'
Vinculação de receitas foi instituída na hiperinflação
Durou poucos dias, menos de uma semana, a chance de o Congresso Nacional analisar a possibilidade de desvincular receitas orçamentárias. O relator da PEC Emergencial no Senado, Marcio Bittar, tirou a proposta da emenda, antes mesmo de levá-la à votação. Quem perde são justamente aqueles que os maiores defensores das vinculações dizem representar: os mais pobres, os que, na "corrida" de oportunidades da democracia, largam atrás dos ricos, dos corporativistas, dos donos do Estado, enfim, dos donos do poder.
As vinculações orçamentárias existem há muito no tempo não só na Ilha de Vera Cruz, mas em muitos outros países. No caso brasileiro, o atual sistema de vinculação foi instituído pela Constituição de 1988. Esta, lembremo-nos, foi debatida e formulada na saída de uma longa ditadura, quando, naturalmente, a sede de justiça social neste território marcado secularmente pela iniquidade social estava reprimida.
A Assembleia Nacional Constituinte reuniu as mais díspares forças políticas para escrever a Carta Magna da democracia que teríamos dali em diante. Nasceu, então, a Constituição "cidadã", como a batizou a principal liderança política da Nova República, o deputado Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, morto num acidente de helicóptero em 1992.
Se por um lado, aproximou-nos de um projeto de civilização ao consagrar como cláusulas pétreas direitos e garantias fundamentais a igualdade entre nós, independentemente da etnia, da origem, do sexo, da idade etc, bem como ao acabar com a censura e ao dar a todos acesso universal gratuito à educação e à saúde, a Constituição de 1988 acolheu interesses de grupos específicos, acostumados historicamente a receber mais do Estado do que a maioria.
A Constituição de 1988 foi elaborada em meio a um contexto macroeconômico aterrador: o descontrole inflacionário, a hiperinflação, as sucessivas derrotas do país no enfrentamento do mal que vinha desorganizando o sistema produtivo nacional, concentrando renda e sabotando o futuro.
É evidente que, num ambiente como aquele, criou-se terreno fácil para a adoção de dispositivos de caráter populista, como a fixação de um limite para a taxa de juros (12% ao ano), a vinculação de receitas para obrigar os governantes a aplicarem recursos em educação e saúde, a indexação do piso da Previdência Social à variação do salário mínimo e a concessão de benefícios impagáveis ao funcionalismo, como a aposentadoria integral, estabilidade no emprego para todas as categorias e a paridade de reajuste salarial entre servidores públicos da ativa e aposentados.
O texto constitucional determina que a União aplique, anualmente, nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os municípios, 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, incluída aquela proveniente de transferências, "na manutenção e desenvolvimento do ensino". Segundo os dados oficiais, a União tem se mantido com folga acima do patamar indicado, e o texto de gastos, instituído por emenda constitucional em 2017, não alterou isso.
A vinculação, talvez, tenha tido seu mérito nos primeiros pós-1988 porque, de fato, era preciso ter mais recursos para cumprir uma das metas fixadas pela nova Constituição: universalizar o acesso das crianças ao ensino fundamental (o antigo 1º grau). No fim da década de 1980, o índice de matrícula nessa faixa estava em 80%, um vexame em qualquer lugar, mas, especialmente, num país que figurava entre as dez maiores economias do planeta. No fim da década de 1990, a taxa subiu para 97%, certamente, uma conquista comemorada por todos.
Nota do redator: em 1953, ano da campanha popular "O Petróleo é Nosso", que resultou no ano seguinte na fundação da estatal Petrobras, detentora de monopólio na exploração de petróleo nos 44 anos seguintes, apenas 25% das crianças estavam na escola. Isso mostra como, na Ilha de Vera Cruz, os mais pobres nunca são consultados sobre quais devem ser as prioridades do país.
O que vemos hoje, porém, é o desgaste do modelo de vinculações orçamentárias. A despesa da União com previdência está hoje em torno de 60% das receitas orçamentárias. Atribua-se a maior parte dessa conta às benesses concedidas ao funcionalismo e o atrelamento do piso do INSS ao salário mínimo, ambos previstos na Constituição de 1988. Some-se a isso as vinculações com saúde e educação, o gasto com pessoal, outras vinculações menores e o sem-número de incentivos fiscais e subsídios concedidos a grupos de interesse específico, o que se tem é um orçamento engessado, onde apenas 5% das receitas são discricionariamente gastas a partir de decisões tomadas pelo presidente eleito pela maioria dos eleitores. A rigidez se repete, evidentemente, nos orçamentos de Estados e municípios.
"O Brasil é administrado por um software", disse, antes de deixar o cargo de secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, numa feliz referência à rigidez orçamentária que nos governa.
A primeira reação ao debate da desvinculação de receitas é: "Os governantes não investirão mais nada em educação e saúde". Ora, isso é uma enorme bobagem, afinal, a despesa deixará de existir? É claro que não! Hoje, a vinculação é um incentivo perverso ao gasto ineficiente, ao desperdício e à corrupção.
No interior do Ceará, modelo de avanço nos índices de atendimento e qualidade na educação fundamental, os municípios com melhor desempenho no Ideb são os que têm desembolsado recursos abaixo da vinculação. Como explicar isso?
Dias e Ferraz (2020) demonstram que pode haver ganhos, ainda que modestos, no número de votos para prefeitos candidatos à reeleição em municípios em que o Ideb foi divulgado e em que houve algum aumento nos índices de qualidade em educação. Da mesma forma, para municípios com escolas com pior desempenho, a divulgação da informação levou a uma redução na proporção de votos recebida pelo prefeito incumbente.
Cristiano Romero: Desvinculação pode fortalecer democracia
Pandemia não mudou viés liberal da agenda econômica
Em novembro de 2018, definida a vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial, Paulo Guedes, escolhido para ser o ministro da Economia do novo governo, foi a Brasília tomar pé da real situação fiscal do país. Foi recebido no Palácio do Planalto pelo então presidente Michel Temer, o ministro Moreira Franco (articulação política), o presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE) e o líder do governo no Senado, Romero Jucá (MDB-RR). Temer queria saber de Guedes que plano ele tinha para a então 7 economia do planeta.
Os encontros não se limitaram aos integrantes da cúpula do governo e do Congresso. O atual ministro se reuniu também, na ocasião, com o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Com o entusiasmo típico de quem chega a Brasília achando que, a bordo de suas (boas) ideias, a Ilha de Vera Cruz finalmente saltará do século XIX para o XXI, Guedes disse a todos, com sinceridade desconcertante, o que discorrera a Temer.
"Olha, vocês têm uma vida muito difícil hoje porque 96% do orçamento está carimbado. Vocês são eleitos, têm que tentar pegar cargos nas estatais para desviar recursos para financiamento de campanha, que é assim que financiamento político é feito no Brasil. Aí, vocês têm que fugir do [juiz] Sérgio Moro por dois, três, quatro anos. Se tudo der certo, vocês são reeleitos. Quando vocês são reeleitos, o jogo político é 'voltem para a casa 1 [do tabuleiro]'. Vocês, então, começam tudo de novo. Mas, aí, no terceiro ou quarto mandato, serão presos", observou Guedes, segundo depoimento de participantes daqueles convescotes.
"Por exemplo, o Aécio Neves, a Dilma Rousseff e o Lula estão acossados. Quase pegaram o senhor, presidente Temer. Os senhores acham que essa é uma forma razoável de viver?", indagou o ministro para, na sequência, expor aos interlocutores seu plano mais ambicioso. "O que nós queremos é devolver os orçamentos e a responsabilidade dos orçamentos para a classe política. Para quê? Para não ter que fazer um financiamento lateral [de campanha], tortuoso, todo equivocado. Vocês têm que ser eleitos porque fizeram boas coisas com suas decisões e não porque desviaram mais recursos [públicos] para seus financiamentos de campanha", prosseguiu Guedes, colhendo dos poucos espectadores um silêncio profundo, "ensurdecedor" para quem não acha palavras nem argumentos racionais que desembaracem o constrangimento generalizado.
Temer, o mais eloquente dos ouvintes, disse apenas: "Ousado. Teria todo o meu apoio se eu estivesse aqui". Quebrando um liturgia do cargo de primeiro mandatário da República, o entãio presidente levou Paulo Guedes ao elevador e o acompanhou até o térreo.
Três dias depois, Guedes foi convidado para almoçar com os então presidentes do TCU, José Múcio Monteiro, do STF, Dias Toffoli, e do STJ, João Otávio Noronha. O ministro repetiu sua pregação pela desvinculação das receitas _ como obriga a Constituição nos casos da saúde e da educação _ e a desindexação das despesas, como os benefícios da previdência.
Guedes expôs, então, a ideia de criação do Conselho Nacional da República, que reuniria, a cada três meses, os chefes do três poderes da República para discutir a situação fiscal do país, uma ideia, de fato, fabulosa, embora inexequível para país dominado por uma chaga secular chamada "pa-tri-mo-ni-a-lis-mo", a mais vil de todas as correntes da corrupção e a mais intocada, aceita e defendida de peito aberto pelos donos do poder nesta Ilha de Vera Cruz desde a invasão dos europeus, em 1500.
Nota do redator: se alguém necessita de desenho para entender o que é patrimonialismo, segue aqui humilde sugestão _ é a ideia de os usuários do poder, em todas as suas categorias (funcionalismo público, políticos, empregados de estatais, sindicatos patronais e de trabalhadores e empresas privadas fornecedoras de bens e serviços para o Estado), sejam _ ou se sintam e se comportem como _ donos da coisa pública. Sãos os donos, literalmente, daquilo que chamamos de República.
Entusiasmadíssimo com a explanação do futuro ministro da Economia, Toffoli reagiu da seguinte maneira: "Nós vamos para a História se tivermos essa coragem. Vamos dormir no Brasil e acordar nos Estados Unidos, na Alemanha, em qualquer país desenvolvido do mundo porque é isso o que acontece”.
O Plano Guedes, que já foi chamado de Plano Mansueto, morreu com a pandemia, mas renasce agora com a vontade política decisiva de um presidente da Câmara, Arthur Lira, disposto a brigar por ideias polêmicas.
Ontem, na “Live do Valor”, Lira detalhou a agenda econômica ambiciosa que pretende votar até o fim deste ano. Entre os temas mencionados, constam, nesta ordem de importância, a PEC Emergencial que institui regras para o "shutdown" da União, dos Estados e municípios, isto é, os mecanismos que os entes da Federação poderão usar para enfrentar crises fiscais provocadas, por exemplo, por situações de calamidade pública, como a pandemia.
O ponto mais importante e polêmico da PEC, porém, é a proposta de desvinculação de receitas _ como as existentes na educação e na saúde, fixadas na Constituição _ e a desindexação de algumas despesas. Lira tem convicção de que a desvinculação, que vem sendo debatida desde o governo Collor (1990-1992) _ tem chance de ser aprovada pelo Senado, onde tramita a emenda neste momento, e depois pela Câmara.
O presidente da Câmara sustentou que a rigidez orçamentária, decorrente da vinculação de receitas, provoca ineficiência nos gastos, e a educação comprovaria isso, uma vez que o país desembolsa hoje algo em torno de 6% do PIB, mas a qualidade do ensino público básico e fundamental só piora.
O deputado informou que, se o Senado aprovar a PEC ainda nesta semana, a Câmara poderá usar rito sumário para votar a PEC, uma vez que as comissões da Casa ainda não foram instaladas _ o regimento permite que, neste caso, a matéria (a PEC) possa ser votada sem ter que percorrer todo o caminho tradicional (admissibilidade pela Comissão de Constituição e Justiça, apreciação por comissão especial criada para essa finalidade etc).
Cristiano Romero: País convive com herança estatal do II PND
Apesar das polêmicas, todo governo reduz Estado na economia
Embora não tenham desmontado inteiramente, até os dias atuais, o modelo nacional desenvolvimentista que faliu durante a crise da dívida, em 1982, todos os presidentes, desde então, diminuíram a participação do Estado brasileiro na economia. Praticamente todos privatizaram ou concederam ao setor privado a gestão de serviços públicos como rodovias, telefonia e aeroportos, algo, ainda hoje, impensável para os defensores de um Estado utópico, provedor de bens e serviços de qualidade.
O fato de todos os governos terem vendido estatais significa que o modelo de desenvolvimento exauriu-se, isto é, tornou-se insustentável do ponto de vista de seu financiamento tanto fiscal (recursos públicos) quanto externo (dívida bancária). O negacionismo dessa realidade - o pior defeito de um governante - por setores da burocracia estatal, do empresariado, da classe média e do meio político à esquerda e à direita produziu nas décadas seguintes a ruína econômica, traduzida pelo advento da hiperinflação, pela queda brutal da taxa média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), pela deterioração da infraestrutura, pela forte contração das taxa de investimento dos setores público e privado etc.
O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) foi lançado em 1974, no governo Geisel (1974-1979), como resposta à crise internacional provocada pela primeira crise do petróleo. O objetivo, conforme anunciou o então presidente na ocasião, era evitar que a Ilha de Vera Cruz caísse numa recessão.
Bem, o II PND não foram medidas tópicas, conjunturais, como redução de impostos, corte de juros ou oferta de crédito oficial subsidiado, mas, sim, um amplo conjunto de iniciativas, envolvendo o governo, o setor privado e o capital externo. Foi a maior intervenção do Estado na economia na história deste território. O objetivo do II PND era dotar o país de infraestrutura comparável à de nações ricas, de um poderoso setor de bens de produção (nos setores siderúrgico, de química pesada, metais não ferrosos e minerais não metálicos) e de energia (petróleo e derivados, energia hidroelétrica e fontes alternativas como etanol e energia nuclear).
Foram durante aqueles anos que o número de estatais atingiu o ápice (382, segundo estudo da OCDE de 2017, realizado a partir de dados fornecidos pelo governo brasileiro). Toda a estratégia só seria viável se a taxa de juros, o custo dos quase US$ 100 bilhões que o país tomou emprestado na década de 1970, jamais subisse aqui e no mercado, “eppur si muove” (mas, ela se move).
Com a segunda crise do petróleo, deflagrada em 1979, a inflação americana escalou degraus até chegar a 20% e, para abaixá-la, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) moveu as taxas de juros com a mesma intensidade.
Uma continha rápida, grosso modo, evidentemente: no início daquela década, o país chamado Brasil devia pouco mais de US$ 6 bilhões ao exterior e o juro no mercado internacional era negativo; no início da década de 1980, a dívida estava em US$ 100 bilhões, e a taxa de referência do Fed, acima de 20%. Que tal?
A crise da dívida, “a mãe de todas as crises”, se deu em 1982, quando o presidente era o general João Baptista Figueiredo, o último da longa ditadura militar (1964-1985) instaurada por aqui. Já movido pela necessidade de desidratar o Estado criado pelo II PND, Figueiredo instituiu o Programa Nacional de Desburocratização (Decreto n 83.740/79), liderado por Hélio Beltrão e o que mais fez pela “causa”, e criou a Secretaria Especial de Controle das Empresas Estatais (SEST).
“Foi a primeira manifestação concreta de uma preocupação com o gigantismo estatal, com o claro objetivo de introduzir uma primeira agenda de reforma do Estado”, diz Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho, especialista no tema das privatizações, tendo trabalhado na modelagem de algumas operações quando trabalhou no BNDES. “A primeira Comissão de Especial de Desestatização foi criada em 1981 [Decreto Presidencial 86215/1981] e fixou normas para transferência e desinvestimentos das empresas controladas, identificando na ocasião 140 prontas para serem vendidas.”
No governo Sarney (1985-1990), o tema privatização começou a ser discutido e, pela primeira vez, associou-se a venda de estatais à redução do endividamento público interno e externo (via conversão de dívida). Até hoje, alguns críticos fazem muxoxo em relação a isso, esquecendo-se de um fato importante: aquela miríade de estatais foi criada às custas do endividamento interno e externo do país. Nada mais justo e razoável que o dinheiro arrecadado com a venda seja destinado à amortização da dívida.
O governo Sarney tentou, com a edição de vários decretos, ampliar o alcance do programa de venda das empresas, observa Chrysostomo, mas foi muito pressionado por grupos de interesses privados a não privatizar nada.
“O Brasil vem realizando diversas desestatizações há mais de 30 anos, incluindo-se modelos de venda de controle, vendas de participação minoritária, concessões públicas e parcerias público-privadas (administrativas ou patrocinadas), presentes em todos os entes da federação”, conta Chrysostomo, que trata do assunto no livro “Reforma do Estado no Brasil” (Atlas, 2020), organizado pelo economista Fabio Giambiagi.
Cristiano Romero: No reino das estatais
Com tantos assuntos mais prementes, é difícil entender por que as privatizações são o tema que gera as discussões mais acaloradas
Não há tema que provoque discussões mais acaloradas neste país do que o das privatizações. É difícil entender o porquê, uma vez que existem dezenas de assuntos muito mais prementes. Aliás, basta fazer esta afirmação para que o interlocutor imediatamente nos acuse de ter interesses escusos.
Seria desnecessário citar as mazelas nacionais que demandam enfrentamento urgente, uma vez que todos as conhecemos, afinal, elas integram a paisagem nacional desde sempre - entre outras, o racismo estrutural, a extrema violência decorrente dessa chaga secular, a desigualdade de renda, a discriminação contra mulheres, LGBT, indígenas, pobres, nordestinos e imigrantes de países não europeus, a concentração de renda, a baixíssima qualidade do ensino básico e fundamental prestado por escolas públicas, a apropriação do orçamento público por grupos de interesse específico e a falta de saneamento básico para a maioria da população.
Empresas estatais parecem povoar o "inconsciente coletivo" do brasileiro, tamanha é a sensibilidade da discussão sobre o status quo nessa área. No entanto, sabemos que é falsa a ideia de que a maioria dos 210 milhões de brasileiros seja favorável à manutenção do modelo estatal que começou a ser erigido na década de 1930 e atingiu o ápice na década de 1970, decaiu depois em consequência da falência do modelo estatizante evidenciada pela crise da dívida em 1982 e voltou a crescer durante os dois governos do PT (de 2003 a 2016).
Como a Ilha de Vera Cruz é repleta de contradições, Dilma Rousseff (PT), presidente mais afeita ao estatismo desde a redemocratização, privatizou os maiores aeroportos, em meio a protestos de sindicatos ligados a seu partido e à estatal Infraero. Registre-se, também, que a presidente teve coragem de levar ao Congresso e aprovar o projeto de lei que criou o Funpresp, o fundo de pensão dos funcionários públicos federais, iniciativa que, finalmente, regulamentou a reforma da Previdência aprovada em 2003, destinada a igualar as regras de aposentadoria do funcionalismo com as do INSS.
O que a reforma da Previdência tem a ver com privatização? Os dois tópicos vão na direção de desafogar o Estado brasileiro de compromissos injustificáveis como bancar a aposentadoria integral de funcionários públicos e construir e administrar coisas como aeroportos, algo que pode ser feito de maneira eficiente pelo setor privado, sob a regulação do setor público. A criação do Funpresp e a concessão de aeroportos ocorreram no primeiro mandato de Dilma (2010-2014) e isso não impediu sua reeleição.
A resistência às privatizações vem de setores das classes média e alta que pautam ou interditam o debate nacional. Curiosamente, a força do discurso contrário à desestatização aparece, inclusive, na agenda de movimentos sociais que tratam de temas prementes mencionados aqui. É como se o sucesso de itens dessa agenda, como a luta para que o Estado brasileiro torne o combate ao racismo o item número 1 de sua atuação, dependesse da manutenção da Petrobras, da Eletrobras e do Banco do Brasil como empresas estatais. Isso não faz o menor sentido. Não é com estatais que se enfrentam ignomínias como o racismo, mas, sim, com um Estado forte e implacável na defesa e na implantação dos direitos e garantias fundamentais, inscritos na Constituição de 1988 como cláusulas pétreas.
A Ilha de Vera Cruz não foi estatizante desde tempos imemoriais. Até 1930, as empresas que administravam a maioria dos serviços públicos eram privadas e de capital estrangeiro. Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, isso começou a mudar. Floresceu, então, o discurso nacionalista, embora Vargas procurasse conciliar, de forma pragmática, interesses nacionais e estrangeiros, de forma que os investimentos, principalmente em infraestrutura, fossem realizados. O nacionalismo, porém, prevaleceu.
Em 1930, segundo dados oficiais, o país tinha 17 estatais. Nas décadas de 1950 e 1960, o nacionalismo ganhou força em meio à Guerra Fria. Instigados por lideranças civis, os militares derrubaram em 1964 o presidente João Goulart e promoveram uma série de reformas econômicas de cunho liberal. Isso não alterou a marcha estatizante iniciada com a criação da Petrobras em 1954.
No fim dos anos 60, havia pouco mais de cem estatais no país. No fim da década seguinte, por causa do modelo de substituição de importações, o número subiu para 300. Em 1980, com as finanças públicas já colapsadas e inadimplente com os credores externos, a Ilha de Vera Cruz ampliou a carteira de estatais para 382.
Nos anos seguintes, diante da insustentabilidade de empresas que se tornaram cabides de emprego, instrumento de uso político em favor de poucos e fontes de corrupção, o primeiro governo civil depois de 21 anos de ditadura e, na sequência, os três primeiros presidentes eleitos começaram a vender e fechar estatais. Mas, haja contradição: na Guerra Fria, o país a que chamamos de Brasil estava alinhado aos Estados Unidos; seu regime econômico, todavia, assemelhava-se ao do bloco soviético-comunista. Isso fez com que, mesmo depois de 31 anos da derrubada do Muro de Berlim e de oficialmente nunca ter deixado de ser um país “capitalista”, este canto do planeta seja o terceiro mais estatizante (ver tabela acima). Esta coluna voltará ao tema nas próximas semanas.